Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
461/14.0TJLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA
NULIDADE
PODERES DO TRIBUNAL
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
QUESTÃO NOVA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / TRIBUNAL / GARANTIAS DA COMPETÊNCIA ABSOLUTA – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO D RECURSO / RECURSO DE REVISTA / INTERPOSIÇÃO E EXPEDIÇÃO DO RECURSO.
DIREITO ARBITRAL – CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM / ÁRBITROS E TRIBUNAL ARBITRAL / PROVIDÊNCIAS CAUTELARES E ORDENS PRELIMINARES / PROVIDÊNCIAS CAUTELARES.
Doutrina:
-ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 25 ; 2014, 2.ª Edição, p. 48 e ss.;
-AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição;
-FRANCISCO CORTEZ, A Arbitragem Voluntária em Portugal, O Direito, Ano 124, 1992, IV, p.555;
-J. L. LOPES DOS REIS, A Excepção da Preterição do Tribunal Arbitral in Revista da Ordem dos Advogados (ROA), Ano 58, Dezembro 1998, p.1122;
-MANUEL PEREIRA BARROCAS, Lei de Arbitragem Comentada, Almedina, 2013, p. 85;
-MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, 1994, p. 102;
-RAUL VENTURA, Convenção de Arbitragem, Revista da Ordem dos Advogados (ROA), Ano 46 (Setembro de 1986), p. 380.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 96.º, ALÍNEA B), 615.º, N.º 1, ALÍNEA D), 629.º, N.º 2, ALÍNEA A), 665.º, N.º 1, 671.º, N.º 3 E 682.º, N.º 3.
LEI DE ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA (LAV): - ARTIGOS 5.º, 12.º, N.º 5 E 21.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 26-01-1991, IN JSTJ0001085/ITIJ/NET;
-DE 04-05-2005, PROCESSO N.º 05A2222;
-DE 20-01-2011, PROCESSO N.º 2207/09.6TBSTB.E1.S1;
-DE 23-10-2014, PROCESSO N.º 5567/06.7TVLSB.L2.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A previsão da al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC abarca, ademais, a apreciação da questão de competência absoluta (al. b) do art. 96.º do CPC) resultante da preterição de tribunal arbitral.

II - Tendo a Relação declarado a nulidade da sentença apelada por a respectiva fundamentação não conduzir à decisão e, nesse seguimento, procedido ao respectivo suprimento (n.º 1 do art. 665.º do CPC) e fundamentado a sua decisão em termos diversos daqueles que foram delineados no 1.º grau, inexiste dupla conforme decisória entre as decisões das instâncias.

III - O vício a que se refere a al. d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC só se verifica quando o tribunal omite a apreciação de uma questão de que devesse conhecer, o que equivale por dizer que não está ferido de nulidade o acórdão que não conhece de determinada questão por ter julgado o seu conhecimento pela solução dada ao litígio ou por a considerar como questão nova.

III - A competência dos tribunais estaduais para verificar a inaplicabilidade da convenção de arbitragem restringe-se aos casos em que a sua nulidade, ineficácia ou inexequibilidade é manifesta (art. 5.º da LAV), cabendo à parte interessada o ónus de alegar (logo em 1.ª instância e não apenas em sede de apelação) e provar os pertinentes factos.

IV - Com ressalva dos casos prevenidos pelo n.º 3 do art. 682.º do CPC, o STJ não pode conhecer da matéria de facto, cingindo-se a aplicar o regime jurídico aos factos fixados pelo tribunal recorrido.

Decisão Texto Integral:                
Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:



      AA - Companhia de Seguros, S.A., que actualmente mudou a sua denominação social para BB, S.A., intentou a presente acção declarativa com processo comum contra a Companhia de Seguros CC, S.A. e contra DD, todas com os sinais dos autos, alegando em resumo o seguinte:


       Tendo a A. celebrado um contrato de seguro de acidentes de trabalho com a sociedade «EE, Lda.», ocorreu um sinistro que vitimou mortalmente um trabalhador desta, sinistro esse que configura simultaneamente acidente de viação e de trabalho.

       No processo de acidente de trabalho que correu termos, tendo o infausto evento ocorrido sido caracterizado, efectivamente, como um acidente de trabalho, a A. assumiu o pagamento ao Fundo de Acidentes de Trabalho da quantia de 20.370,00 €, quantia que efectivamente pagou.

        Nos termos do n° 4 do art. 17º da lei 98/2009, de 4-9, a A. pode sub-rogar-se no direito do lesado contra os responsáveis pelo acidente.

        A R. DD foi a única responsável pelo acidente de viação que vitimou o dito trabalhador.

        A R. DD celebrara com a «Companhia de Seguros CC» seguro de responsabilidade civil automóvel, transferindo para esta a responsabilidade civil decorrente do referido acidente.


     Formulou a A os seguintes pedidos:

 

     a) Deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, em consequência, a Primeira Ré, “Companhia de Seguros CC, SA”, ser condenada a pagar à Autora o montante de 20.370,00€ (vinte mil, trezentos e setenta euros), à qual acrescem os juros de mora vencidos, à taxa legal, que ascendem, na data da propositura da acção, a 2.656,05€ (dois mil, seiscentos e cinquenta e seis euros e cinco cêntimos), bem como os juros vincendos, igualmente à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento;

        Subsidiariamente, desconhecendo a Autora a validade do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, celebrado entre a Primeira e a Segunda Rés, à data em que se verificou o sinistro em causa nos presentes autos, que vitimou mortalmente FF, de harmonia com o disposto nos art.° 554°, n.º 1, e 39° do Novo Código de Processo Civil…


     b) … deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, em consequência, a Segunda Ré, DD, ser condenada a pagar à Autora o montante de 20.370,00€ (vinte mil, trezentos e setenta euros), à qual acrescem os juros de mora vencidos, à taxa legal, que ascendem, nesta data, a 2.656,05€ (dois mil, seiscentos e cinquenta e seis euros e cinco cêntimos), bem como os juros vincendos, igualmente à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento».


     Contestou a R. DD, alegando ser parte ilegítima uma vez que à data do acidente existia seguro válido, devendo ser absolvida da instância e pedindo a condenação da Autora, como litigante de má fé, em multa e indemnização a seu favor, não inferiores a € 5.000,00 e € 10.000,00, respectivamente.


     Também a Ré CC contestou. Invocou a nulidade do processo tendo em conta alegada nulidade da petição, com a consequente absolvição da instância.

       Invocou, outrossim, a prescrição da pretensão deduzida pela, considerando o prazo do n° 4 do art. 17º da Lei 98/2009.

       Por fim, invocou a excepção da preterição do tribunal arbitral, face à regulamentação emitida no âmbito da Convenção Regularizadora de Sinistros.


       Impugnou, ainda, a R. factualidade alegada pela A.


      Foi proferido despacho saneador, no qual o Tribunal de 1ª instância absolveu da instância a R. DD, por esta ser parte ilegítima na acção, assim como absolveu da instância a Ré «CC» por preterição do Tribunal Arbitral.

        

      Inconformada, a Autora apelou para o Tribunal da Relação de …, porém sem sucesso, pois foi julgado improcedente o recurso, embora com diversa fundamentação, confirmado a decisão recorrida por unanimidade.


      Não se conformando com tal Acórdão, a Autora trouxe, do mesmo, recurso de Revista para este Supremo Tribunal, rematando a sua minuta recursória com as seguintes:


       CONCLUSÕES


a) O acórdão recorrido não apreciou a exclusão da aplicabilidade do protocolo anexo à convenção de regularização de sinistro, por entender tratar-se de uma questão nova;


b) Ora, nos termos das disposições conjugadas do disposto no art. 4°, alínea b) da mencionada convenção e art. 3°, alínea b) do seu Anexo II, a mencionada Convenção Regularizadora de Sinistros não é aplicável ao litígio que aqui se pretende dirimir;


c) Nos termos do preceituado no art. 3°, alínea b) do referido Anexo II "excluem-se do âmbito de aplicação do presente Protocolo (...) acidentes em que os titulares do direito exijam, judicial ou extrajudicialmente do subscritor Automóvel, a indemnização integral":


d) Ora, a Recorrente referiu que no âmbito do processo judicial que correu termos sob o n.º 1583/11.5TABFA, no extinto 2.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de …, a única herdeira do sinistrado FF, deduziu pedido de indemnização cível contra a Recorrida, no qual peticionou uma indemnização integral nos termos supra aludidos;


e) Na sequência da peticionada indemnização, veio a Recorrida requerer a intervenção da Recorrente, com o objectivo de apurar o montante efectivamente pago pela Recorrente na sequência do acidente simultaneamente de viação e de trabalho.


f) Assim, tratando-se de um acidente em que já foi judicialmente requerido o pagamento de indemnização integral, conforme acima referenciado, não se aplica a mencionada convenção, pelo que deve ser julgada improcedente a excepção de preterição do Tribunal Arbitral.


g) Contudo, o acórdão recorrido entendeu que esta exclusão consubstancia uma questão nova de que não podia conhecer;


h) Na verdade, foi a própria Recorrida que suscitou pela primeira vez esta questão quando, no artigo 23° da contestação confessou que requereu a intervenção da aqui Recorrente no processo que correu termos em … com o propósito exclusivo de apurar o montante das indemnizações, despesas, pensões, etc. que tenha sido condenada a pagar aos herdeiros do sinistrado FF, de forma a evitar uma eventual e inadmissível cumulação de indemnizações;


i) Face ao confessado pela Recorrida, a sentença deu como provado que foi requerida a intervenção da Autora no processo que correu termos no Tribunal de … com o propósito exclusivo de se apurar o montante das indemnizações, despesas, pensões, em que tenha sido condenada a pagar aos herdeiros do sinistrado, deste modo se evitando uma eventual e inadmissível cumulação de indemnizações" - cfr. sentença proferida a fls. dos autos;


j) Assim, e ao contrário do defendido pelo acórdão recorrido, tendo sido alegados aqueles factos pela Recorrida, os quais levariam à exclusão ou inaplicabilidade da Convenção de Regularização de Sinistro e, consequentemente, à improcedência da excepção de preterição do Tribunal Arbitral, deveria o acórdão recorrido conhecer desta questão;


k) Não tendo o acórdão recorrido pronunciado quanto à exclusão invocada, deve ser declarado nulo, nos termos do artigo 666°, n º 1, do CPC, ex-vi, artigo 615, n.º 1, al. d), do CPC.


l) É da competência do Tribunal estadual a verificação da inaplicabilidade da convenção de arbitragem, tal como decorre do artigo 5°, nº 1, da Lei de Arbitragem Voluntária.


m) Constando da própria sentença recorrida factos que levavam à inaplicabilidade da convenção de arbitragem, deveriam os Exmºs. Senhores Juízes Desembargadores no acórdão recorrido declarar a inaplicabilidade da convenção de arbitragem e, em consequência, julgar improcedente a excepção de preterição do tribunal arbitral.


         Foram apresentadas contra-alegações pela Recorrida,


Cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 635º do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.


FUNDAMENTOS


      Da 2ª Instância, vem fixada definitivamente a seguinte factualidade:


1 – Entre a A. e “EE, Lda.” foi celebrado contrato de seguro obrigatório de acidentes de trabalho, garantindo os trabalhadores por conta doutrem desta sociedade, abrangendo os acidentes ocorridos durante o percurso normal entre os locais de residência e de trabalho, nos termos de fls. 89-95.


2 - Em 19-6-2012, em tentativa de conciliação perante o Ministério Público, nos autos de acidente de Trabalho (morte) nº 508/11.2TTFAR, aquele Magistrado declarou, designadamente, resultar dos referidos autos que no dia 9-7-2011 o sinistrado FF foi vítima de um acidente de trabalho como trabalhador por conta da entidade empregadora “EE, Lda.”, com sede na Rua …, nº 24, em F…, consistindo o acidente em atropelamento ao atravessar a estrada, e que do acidente resultaram as lesões descritas no relatório de autópsia que foram causa directa e necessária da morte do sinistrado ocorrida em 16-7-2011, sinistrado que era solteiro e não tinha descendentes ou familiares com direito a pensão;


3 - O representante da «Companhia de Seguros AA, SA» ali presente, declarou aceitar a existência e caracterização do acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre o acidente, as lesões e a morte, o valor da remuneração anual do sinistrado – 6.790,00 €/ano – e que não havendo benificiários com direito a pensão aceitava efectuar o pagamento ao FAT de uma importância igual ao triplo da retribuição anual da vítima – ou seja 20.370,00 €;


4 – Uma vez que a representante do FAT nada opôs, as partes foram dadas por conciliadas (fls. 14-15).


5 – A Autora pagou ao FAT a quantia referida em 3) (fls. 6).


6 – No âmbito da Associação Portuguesa de Seguradores, a Autora e a R. «CC» são subscritoras da «Convenção de Regularização de Sinistros», documentada a fls. 185 e seguintes e a fls. 329 e seguintes.


      É tendo em pauta este quadro factual definitivamente fixado que importa conhecer do objecto do presente recurso.



Da admissibilidade do presente recurso


Esta causa tem o valor de € 23.026,05 (inferior à alçada da Relação).

No entanto, o recurso interposto deverá ser recebido independentemente do valor da causa e da sucumbência, já que está em causa a apreciação de uma questão de competência absoluta resultante da alegada preterição de tribunal arbitral e tendo no horizonte o disposto no artº 629º, nº 2, alínea a) do CPC em vigor.

É certo que este preceito legal se refere às regras de competência em razão da matéria e hierarquia mas, como justamente escreve Abrantes Geraldes, «com esta ressalva pretendeu o legislador acautelar a observância das regras da competência absoluta, relevando o interesse público inerente ao facto de o Estado poder exercer a jurisdição, de o litígio se inscrever na ordem jurisdicional dos tribunais judiciais e, dentro destes, ser respeitada a competência em razão da hierarquia e da matéria. Em qualquer das vertentes, a competência absoluta constitui um pressuposto basilar cujo preenchimento legitima o tribunal a incidir sobre o mérito da causa, não podendo a violação das respectivas regras ficar condicionada por aspectos secundários relacionados com o valor da causa ou com o valor do decaimento.


À admissibilidade excepcional de recurso com aquele fundamento específico é indiferente o sentido da decisão que tenha sido proferida. Apelando a lei à violação das regras de competência, esta tanto pode revelar-se quando o tribunal afirma uma competência que não detém, como quando nega a competência que lhe é atribuída, ou mesmo naqueles casos em que o tribunal se abstém de emitir pronúncia sobre tal pressuposto, deixando de conhecer da correspondente excepção dilatória de conhecimento oficioso (arts. 278º, nº 1, alínea a) e 577º, al. a)» (A. Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014 – 2º edição, pg. 48 e segs)


No mesmo sentido se pronunciou Amâncio Ferreira na 9ª edição do seu «Manual dos Recursos em Processo Civil» referindo-se ao nº 2 do artº 678º do anterior Código correspondente ao actual artº 629º, embora com algumas alterações.


Há que ter em atenção que, actualmente, a preterição de tribunal arbitral determina a incompetência absoluta do tribunal [alínea b) do artº 96º do CPC/2013], tal como a violação da competência em razão da matéria e hierarquia, o que, a nosso ver, legitima uma aplicação extensiva do artº 629º, nº 2, alínea a) do CPC à preterição de tribunal arbitral, admitindo-se o presente recurso.

Aliás, mesmo em caso de dúvida, a regra seria a da admissão do recurso.


Quanto à inadmissibilidade recursória por dupla conforme, que a Recorrida, CC – Cª de Seguros, S.A., embora de forma implícita, parece levantar e sobre a qual já teve oportunidade de se pronunciar a Recorrente, antes do mais importa dizer que embora a Relação tenha confirmado por unanimidade, a decisão do tribunal «a quo» no que concerne à absolvição da instância, da Ré CC – Companhia de Seguros, S A., a verdade é que não se verifica a irrecorribilidade da referida decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, prevista no nº 3 do artº 671º do CPC, dado que a fundamentação adoptada por cada uma destas decisões judiciais foi essencialmente diferente na trajectória argumentativa perfilhada.

Para cabal entendimento desta situação, cremos que será vantajoso ter em conta o que afirma o Acórdão recorrido sobre a sentença que apreciou em sede de recurso de Apelação e, que, por isso, se passa a transcrever quanto a este aspecto concreto:


     «Concretamente a decisão proferida foi a seguinte: «Termos em que, se julga procedente a presente exceção dilatória, julgando-se o presente Tribunal, Jll da Instância Local Cível da Comarca de Lisboa/Lisboa não competente para apreciar e julgar a presente ação judicial e, consequentemente, absolvendo da instância a 1ª Ré, CC - Companhia de Seguros, S.A. - 576° e 577° do CPC».

       Não podemos dizer que ocorre aqui alguma ambiguidade ou obscuridade que tome a decisão ininteligível.

        A dificuldade põe-se na “compatibilidade”, na articulação lógica entre os fundamentos e aquela decisão.


       Apesar de logo a seguir colocar em interrogação se era ao Tribunal Estadual ou ao Tribunal Arbitral que a A deveria formular o seu pedido, não deixa o Tribunal de 1ª instância, antecipando-se à resposta aquela questão - que é prévia - de afirmar que «não obstante o sinistrado não ter deixado sucessores, tal circunstância não impede de a A ter direito, por força da sub-rogação, ao reembolso da indemnização que satisfez do responsável civil pelo acidente de viação». Embora referindo, depois, que no «âmbito da Convenção Regularizadora de Sinistros de que tanto a Ré como a Autora são aderentes, a Comissão Permanente Técnica Auto e Acidentes, com o objectivo de harmonizar procedimentos, considera que as seguradoras de Acidentes de Trabalho não devem reclamar às seguradoras de Automóvel o reembolso dos montantes por elas pagos ao Fundo de Acidentes de Trabalho por força do disposto no artigo 63° da referida Lei».

        A verdade é que temos alguma dificuldade em perspectivar qual o fio, qual o raciocínio lógico alicerçado em factos e considerações jurídicas atinentes que levaram o Tribunal de 1ª instância a concluir pela procedência da excepção invocada pela R. «CC». Encontramos, antes, várias afirmações não concatenadas entre si de forma a poderem produzir como resultado lógico a decisão final.


         É certo que se refere na sentença que a A. preteriu «o Tribunal Arbitral, como se encontrava vinculada pela adesão à C.R.S.». Todavia chegou-se a este epílogo que permitiu julgar a excepção procedente, através de fundamentos que a ele não conduzem necessariamente, correspondendo antes a uma justaposição de argumentos da qual não resulta demonstrada a obrigação da A. colocar a sua pretensão perante o Tribunal Arbitral. Não significa que os fundamentos contendam com a decisão, mas também não conduzem a ela.

Assim, entende-se verificada a invocada nulidade da sentença.


       Sucede que nos termos do n° l do art. 665 do CPC, ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação.

           

         Haverá, pois, que suprir a mencionada nulidade».


     Como se colhe do transcrito, a própria Relação não só considerou que a fundamentação tecida pela 1ª Instância revelava «dificuldade de compatibilidade» quanto à «articulação lógica entre os fundamentos e aquela decisão» como, ainda, reconhecendo que apesar de a 1ª Instância ter declarado verificar-se a preterição de tribunal arbitral, «chegou a este epílogo que permitiu julgar a excepção procedente, através de fundamentos que a ele não conduzem necessariamente, correspondendo antes a uma justaposição de argumentos da qual não resulta demonstrada a obrigação da A. colocar a sua pretensão perante o Tribunal Arbitral. Não significa que os fundamentos contendam com a decisão, mas também não conduzem a ela» (destaque nosso).


        Com base em tal constatação, a Relação considerou estar a sentença ferida da nulidade de que vinha arguida pela Recorrente mas, apoiando-se no disposto no n°l do art. 665 do CPC, supriu a referida nulidade conhecendo do objecto de apelação, com bem elaborada fundamentação, de sorte a poder considerar-se, sem esforço hermenêutico, uma fundamentação essencialmente diferente da que havia sido perfilhada pelo tribunal a quo, o que arreda in casu a referida regra da irrecorribilidade das decisões em sede de revista por via da «dupla conforme».

          

      Além disso, a dupla conforme não é inibitória do recurso de Revista nos casos em que o recurso é sempre admissível, como resulta expressamente do disposto no artº 671º, nº 3 do CPC.


Dito isto, entremos na apreciação do objecto do presente recurso!


Do mérito da decisão recorrida


A única questão decidenda é, tão-somente, a de saber se a decisão sobre a preterição da jurisdição arbitral que foi prolatada na 1ª Instância e confirmada pelo Tribunal da Relação com outra fundamentação, deve ou não ser mantida ou, em outras palavras, se, na verdade, foi cometida a preterição de tribunal arbitral como julgado por ambas as Instâncias.


Como supra se referiu no Relatório do presente aresto, o Tribunal de 1ª instância absolveu da instância a Ré DD, por esta ser parte ilegítima na acção, assim como absolveu da instância a Ré «CC» por preterição do Tribunal Arbitral.


É justamente esta questão que se mantém no presente recurso, carecendo de solução por banda deste Supremo Tribunal de Justiça.


Antes, porém, convirá esboçar – necessariamente a traço grosso – um breve esquema teórico-prático sobre a preterição de tribunal arbitral que, como é consabido, constitui infracção das regras de competência que se verifica quando determinada acção da competência de um tribunal arbitral for proposta num tribunal estadual.

    Se essa competência do tribunal arbitral resultar de imperativo legal, estaremos perante a preterição de tribunal arbitral necessário (artºs 1525º e segs. do CPC) e se resultar da violação de uma convenção de arbitragem (designação eleita pelo legislador para a preterição de tribunal arbitral voluntário), isto é, se a acção for instaurada em tribunal estadual, devendo sê-lo em tribunal arbitral convencionado pelas partes, estaremos perante a preterição de tribunal arbitral voluntário.

        

     Como se decidiu no Acórdão deste Supremo Tribunal de 04-05-2005 (Relator, o Exmº Juiz Conselheiro Azevedo Ramos), «a preterição de tribunal arbitral voluntário resulta da infracção da competência convencional de um tribunal arbitral que tem competência para apreciar determinado objecto, de tal modo que seja instaurada num tribunal comum uma acção que devia ser proposta num tribunal convencionado pelas partes»[1].

          

     Tanto a preterição do tribunal arbitral necessário, como a preterição do tribunal arbitral voluntário (actualmente designada como violação da convenção de arbitragem), constituem excepções dilatórias [artº 494º, j) do CPC] sendo que esta última não é de conhecimento oficioso, como comanda o artº 495º do mesmo Código.


       A convenção de arbitragem desdobra-se em duas modalidades:


a) Compromisso arbitral – quando concerne a um litígio actual, portanto, já existente.


b) Cláusula compromissória – quando se refere a litígios eventuais, portanto, potenciais ou futuros.


Por outro lado, como tem vindo a ser uniformemente entendido, tanto pela Jurisprudência como pela Doutrina, a competência convencionalmente atribuída ao tribunal arbitral pode ser exclusiva ou concorrente com a do tribunal legalmente competente [por todos, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 04-05-2005, acima identificado e, no plano dogmático, Prof. Miguel Teixeira de Sousa, A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, 1994, pg. 102).

Este mesmo Ilustre Processualista adverte, no entanto, que «não é frequente que a competência atribuída ao tribunal arbitral seja concorrente com a do tribunal legalmente competente» (op. cit, pg. 102).


É importante ter presente que os tribunais arbitrais, embora não sejam órgãos de soberania como os tribunais estaduais, não deixam de ser entidades jurisdicionais a quem cabe definir o direito nas situações concretas que lhes são submetidas, o que levou Francisco Cortez a proferir a sua conhecida afirmação:


    «O árbitro não é um conciliador, a decisão arbitral não é uma transacção; o árbitro é um juiz e a sua decisão é uma sentença. Só que se a decisão arbitral tivesse efeitos meramente privados, entre as partes, a utilidade dos seus efeitos seria muito reduzida. É então que a lei, no nosso caso a Lei Fundamental, tendo em conta as reconhecidas vantagens da arbitragem, equipara essa função jurisdicional dos tri­bunais arbitrais à função jurisdicional dos tribunais judiciais. Desta forma, os tribunais arbitrais não deixam de ser instituições de natu­reza privada para se transformarem em órgãos do Estado. O Estado é que, reconhecendo a utilidade pública da arbitragem voluntária, quebra o monopólio do exercício da função jurisdicional pelos seus órgãos atribuindo à decisão os efeitos próprios da sentença judicial: a força de caso julgado e a força executiva»[2]

           

     O mesmo conceituado Autor remata as referidas asserções com a seguinte síntese feliz:


      «A arbitragem voluntária é contratual na sua origem, privada na sua natureza, jurisdicional na sua função e pública no seu resultado»[3].


     Após estas considerações preliminares, a título meramente propedêutico, importa dizer que, sendo exacto – como diz a Recorrente na conclusão l) da sua douta minuta recursória – que nos termos do artº 5º da Lei de Arbitragem Voluntária (que doravante designaremos, brevitatis causa, pela sigla LAV) aprovada pela Lei nº 63/2011, de 14/12, é da competência do tribunal estadual a verificação da inaplicabilidade da convenção de arbitragem.

        

      Porém, tal verificação exige um inarredável requisito imposto pelo referido preceito legal, que é o da convenção em causa ser manifestamente nula ou se ter tornado ineficaz ou inexequível.

        

      Ora, como bem salienta a Relação no acórdão recorrido, no caso sub-judicio falta exactamente esse requisito de a invocada nulidade, ineficácia ou inexequibilidade ser manifesta.


       Lê-se, com efeito, na decisão ora sob recurso:


        «Efectivamente, o art. 3 do referido «Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho», sob a epígrafe de «Exclusões» diz que se excluem do âmbito de aplicação do Protocolo, designadamente, os acidentes em que os titulares do direito exijam judicial ou extrajudicialmente, do subscritor de Automóvel a indemnização integral – entendendo-se por indemnização integral a reparação da totalidade dos prejuízos sofridos de natureza patrimonial (nos quais terão necessariamente de estar englobados aqueles cuja reparação se encontra prevista na legislação específica de acidentes de trabalho) e de natureza não patrimonial.


      Sucede que a exclusão agora invocada, correspondendo a uma contra excepção, não fora antes mencionada pela parte, consubstanciando uma questão nova de que não poderemos conhecer.


      Desde logo porque o seu substrato factual – que por aquela pessoa foi formulado um pedido de indemnização com uma determinada amplitude - não está demonstrado no processo ([4]).


       Depois, porque dispondo o nº 1 do art. 627 do actual CPC que as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos, daí decorre que este tribunal – tribunal de recurso - não deverá conhecer de questões novas que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido.

           

        Os recursos destinam-se a reapreciar questões suscitadas e decididas no tribunal recorrido e não a apreciar questões novas, anteriormente não suscitadas ([5]).

          Pelo que não há que apreciar da dita exclusão, mas, apenas, da possibilidade de subsunção ao disposto na alínea b) do art. 4 da Convenção e no art. art. 4 do Anexo II (Protocolo)» (destaque a negrito nosso).


         Se, como ficou demonstrado, a Recorrente/Autora não logrou provar que a titular do direito à indemnização pelo acidente mortal exigiu, judicial ou extrajudicialmente, do subscritor Automóvel a indemnização integral – como diz a 2ª Instância que é a entidade soberana no julgamento da matéria de facto – e, como ressalta do elenco factual fixado, nada se diz sobre tal exigência indemnizatória dos sucessores do malogrado sinistrado do acidente dos autos, é apodíctico que nada permite concluir que a situação sub judicio se inscreva no apontado artº 3 do «Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho», sob a epígrafe de «Exclusões».


        Além do mais, é evidente que a Seguradora, ora Recorrente, tinha o ónus de alegar e provar factos integrantes da matéria excludente da aplicabilidade da Convenção em referência, já em 1ª Instância, como salientou a Relação, a fim de a apreciação da mesma poder sujeitar-se aos dois graus de jurisdição percorridos pelo processo em pauta, o que, contudo, não aconteceu, como bem aponta o douto Tribunal da Relação, não podendo vir, em sede de uma questão nova, invocar tal exclusão que, nem sequer assenta em base factual provada.

        

       Nas judiciosas palavras do Tribunal da Relação que aqui se transcrevem, «vem dizer-nos a apelante – na alegação de recurso, nunca antes o havendo invocado – que a única herdeira do sinistrado FF deduziu, no âmbito do processo judicial que correu termos sob o n.º 1583/11.5TABFA, no extinto 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de …, pedido de indemnização cível contra a Recorrida, no qual peticionou uma indemnização integral e que tratando-se de um acidente em que já foi judicialmente requerido o pagamento de indemnização integral não se aplica a mencionada convenção – art. 4-b) da convenção e art. 3- alínea b) do protocolo».


        Logo a seguir, acrescenta o mesmo Tribunal:


         «Efectivamente, o art. 3º do referido «Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho», sob a epígrafe de «Exclusões» diz que se excluem do âmbito de aplicação do Protocolo, designadamente, os acidentes em que os titulares do direito exijam judicial ou extrajudicialmente, do subscritor de Automóvel a indemnização integral - entendendo-se por indemnização integral a reparação da totalidade dos prejuízos sofridos de natureza patrimonial (nos quais terão necessariamente de estar englobados aqueles cuja reparação se encontra prevista na legislação específica de acidentes de trabalho) e de natureza não patrimonial.


         Sucede que a exclusão agora invocada, correspondendo a uma contra - excepção, não fora antes mencionada pela parte, consubstanciando uma questão nova de que não poderemos conhecer».


Deste pequeno fragmento extraído do acórdão recorrido ressaltam, de forma suficientemente clara, os motivos pelos quais não foi possível conhecer nos tribunais estaduais da alegada inaplicabilidade da mencionada convenção [art. 4º, b) da convenção e art. 3º, alínea b) do protocolo] e que são os seguintes:


a) Inexistência de um núcleo factual provado que permita concluir pela inaplicabilidade do referido instrumento convencional, isto é, que demonstre in casu o condicionalismo da exclusão a que se refere o artº 3º do falado «Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho».


Em directa conexão com esta inexistência, o facto de vir a invocar tal excepção não anteriormente invocada, em sede de Apelação, o que foi considerado como sendo uma questão nova, como se colhe da alínea que se segue:


b) A questão da incompetência do tribunal arbitral vir suscitada, pela primeira vez e nos termos aqui referidos, em sede do recurso de Apelação, o que constituiu uma questão nova, visto que a mesma não foi debatida e decidida na fase dos articulados e, portanto, não apreciada na 1ª Instância, o que lhe subtrai o duplo grau de jurisdição das Instâncias legalmente previsto.


Mesmo que tal questão fosse de conhecimento oficioso, inexistindo suporte factual provado que demonstre que os titulares do direito à indemnização exigiram judicial ou extrajudicialmente, do subscritor Automóvel, a dita indemnização integral, tal questão não procederia por ausência de demostração dessa exigência e, muito menos ainda, estaríamos perante uma manifesta nulidade ou inaplicabilidade da convenção.


A acrescer ao quanto fica dito, permitimo-nos transcrever aqui e agora, pela sua inequívoca aplicação ao presente caso, o que ficou dito no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 20-01-2011, em que foi Relator o mesmo Juiz Conselheiro que no presente processo intervém nesta mesma qualidade[6]:


«Vigora, entre nós, o princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência, designado em idioma germânico por Kompetenz-kompetenz e que, na sua acepção negativa, impõe a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral.

Com efeito, o artº 21º nº 1 da Lei de Arbitragem Voluntária consagra expressis verbis que «o tribunal arbitral pode pronunciar-se sobre a sua competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela insira, ou a aplicabilidade da referida convenção».


É de todo o interesse anotar, aqui e agora, as judiciosas considerações de Lopes dos Reis no seu estudo de referência «A Excepção da Preterição do Tribunal Arbitral», que, referindo-se ao princípio Kompetenz-kompetenz, assim escreve:


«Aquele princípio acarreta o efeito negativo de impor à jurisdição pública o dever de se abster de pronunciar sobre as matérias cujo conhecimento a lei comete ao árbitro, em qualquer causa que lhe seja submetida e em que se discutam aquelas questões, antes que o árbitro tenha tido a oportunidade de o fazer.

Isto é, do aludido princípio não decorre apenas que o árbitro tem competência para conhecer da sua própria competência, decorre também que tal competência lhe cabe a ele, antes de poder ser deferida a um tribunal judicial»[7]


Mais adiante, o mesmo distinto Autor afirma:


«Todas estas cautelas da lei significam que ela quis que o tribunal judicial olhasse a convenção de arbitragem como um sinal de proibição: há convenção de arbitragem, é plausível que ela vincule as partes no litígio, então, quanto ao litígio entre elas, o tribunal judicial não pode intervir senão em sede de impugnação da decisão arbitral.

Para que esse limite fique claro, para que fique nitidamente delimitada essa fronteira estabelecida ao poder do juiz, questões relativas à própria convenção, como a sua validade, a sua eficácia, a sua aplicabilidade, só podem ser apreciadas pelo tribunal judicial depois de o árbitro proferir a sua decisão final.

Só se ocorrer nulidade da convenção de arbitragem é que o tribunal judicial pode decidir de outro modo»[8]


Esta também tem sido a orientação, praticamente consensual, da nossa jurisprudência, como se pode constatar, a título meramente exemplificativo, do Acórdão da Relação de …, de 05-06-2007 (Relator, o Exmº Desembargador ….) que assim sintetizou e esquematizou a orientação perfilhada:


I - Para decidir sobre a procedência ou improcedência da excepção de preterição do tribunal arbitral, o tribunal judicial deve satisfazer-se com a prova da existência de uma convenção de arbitragem que não seja manifestamente nula.


II - Enquanto, à luz do regime do CPC de 1939, o julgamento da excepção dilatória da preterição do tribunal arbitral voluntário dependia da apreciação da validade, da eficácia e da aplicabilidade da convenção de arbitragem, pelo que a decisão do juiz que julgasse tal excepção procedente vinculava o árbitro, diversamente, no domínio da LAV (Lei de Arbitragem Voluntária), o juízo sobre a questão de saber se a convenção de arbitragem é inoperante, compete ao árbitro.


III - A questão da validade, a questão da eficácia, mesmo a questão da aplicabilidade da convenção de arbitragem ao litígio submetido ao tribunal judicial estão subtraídas à jurisdição do juiz, quer se discuta a validade da própria convenção - por exemplo, em função dos poderes do subscritor do contrato em que se insere a cláusula compromissória - quer se discuta a sua eficácia - por, v.g., ter sido ultrapassado o prazo fixado para a decisão - quer se discuta apenas a sua aplicabilidade - por exemplo, por o subscritor do contrato em que se insere a cláusula compromissória ter cedido o contrato, sendo parte no litígio o cessionário.


IV - Apenas com uma excepção: a que decorre da aplicação da doutrina do artigo 12º, nº 5 da LAV). Se for manifesta (óbvia, evidente) a nulidade, a ineficácia ou a inaplicabilidade da convenção de arbitragem, o juiz pode declará-lo e, consequentemente, julgar improcedente a excepção.

           

      A terminar, acodem-nos ao pensamento as lapidares palavras do saudoso Catedrático da Universidade de Lisboa, que foi o Professor Raul Ventura: «a convenção de arbitragem produz um efeito negativo, a que também poderia chamar-se reflexo, pois constitui a outra face do elemento positivo. Uma vez que, com o beneplácito do Estado, os interessados criam, pela sua convenção, um tribunal para conhecimento de um certo ou de eventuais litígios, segue-se como consequência natural, que os tribunais do Estado devem ficar excluídos, temporária ou definitivamente, do conhecimento do mesmo litígio»[9].


De igual sorte, não podemos olvidar as judiciosas palavras do ilustre Advogado e Árbitro, Dr. Manuel Pereira Barrocas, que nos permitimos, data vénia, aqui transcrever:


      «Assim, quer a convenção de arbitragem seja existente ou inexistente, válida ou inválida, eficaz ou ineficaz, exequível ou inexequível, o tribunal arbitral tem sempre competência, não apenas para julgar a lide como também para apreciar a existência, a validade, a eficácia ou a exequibilidade da convenção de arbitragem e, assim, em suma, tem poderes para, positiva ou negativamente, poder vir, a final, a decidir o litígio.


      Alguma jurisprudência menos informada sobre arbitragem tende a considerar a aplicabilidade da convenção de arbitragem ao litígio alheada do princípio de competência-competência. Nada mais errado, porém, por não haver qualquer razão válida para retirar da competência dos árbitros o conhecimento de toda a matéria que diz respeito ao litígio na sua globalidade.


       Por tudo isto se diz que o tribunal arbitral tem competência própria para concluir se tem competência para conhecer o litígio. E este duplo nível de competências que dá nome ao princípio da competência-competência. O tribunal estadual não tem, assim, poderes para definir ao tribunal arbitral que poderes detém, ou não detém, para decidir as questões que se colocam no pro cesso arbitral.


       No entanto, a decisão do tribunal arbitral sobre a sua competência não está isenta da fiscalização do tribunal estadual ao abrigo do artigo 46º, número alínea a), subalínea i).


       O preceito indica também a subalínea iii) daquele artigo, número e alínea.

        Todavia, parece-nos errada a referência a esta alínea, dado que ela respeita à sentença arbitral e, nesta fase do processo, ainda não existe qualquer sentença arbitral.


        Por outro lado, omitiu a referência à alínea b), subalínea i), do mesmo artigo 46º número 3, a nosso ver sem razão para tanto, devendo considerar-se que este último preceito também pode constituir fundamento da impugnação da decisão interlocutória sobre a própria competência, aliás de conhecimento oficioso pelo tribunal estadual se as partes tiverem suscitado a questão da competência a qualquer dos títulos legalmente admitidos, atento o disposto no artº 46º, nº 3, corpo da alínea b).


       O princípio da competência-competência consagra, assim, a autonomia da jurisdição arbitral relativamente ã jurisdição dos tribunais estaduais.

Se assim não fosse, como já se salientou, careceria o tribunal arbitral de saber previamente por decisão de um tribunal estadual se tinha ou não tinha competência para dirimir o litígio»[10]


Resta agora, após a necessária delimitação (legal, jurisprudencial e doutrinal) do terreno concreto em que nos movemos, averiguar da pertinência das conclusões relevantes da douta minuta recursória da Recorrente, supra transcritas, que decidirão do mérito do presente recurso.


      Desde logo, claudicam as conclusões a) a g) onde a Recorrente refere que «o acórdão recorrido não apreciou a exclusão da aplicabilidade do protocolo anexo à convenção de regularização de sinistro, por entender tratar-se de uma questão nova;

        Ora, nos termos das disposições conjugadas do disposto no art. 4°, alínea b) da mencionada convenção e art. 3°, alínea b) do seu Anexo II, a mencionada Convenção Regularizadora de Sinistros não é aplicável ao litígio que aqui se pretende dirimir;

       Nos termos do preceituado no art. 3°, alínea b) do referido Anexo II "excluem-se do âmbito de aplicação do presente Protocolo (...) acidentes em que os titulares do direito exijam, judicial ou extrajudicialmente do subscritor Automóvel, a indemnização integral":


      Tais conclusões claudicam, desde logo, quando referem que a Relação não apreciou a exclusão da aplicabilidade do protocolo, omitindo pronúncia sobre tal questão

        

        A Relação não omitiu pronúncia sobre tal questão!

        

A nulidade da decisão judicial por omissão de pronúncia a que se refere a alínea d) do artº 668º do CPC só ocorre quando o Tribunal omita absolutamente qualquer apreciação ou decisão sobre uma questão levantada pelas partes ou que devesse conhecer por dever de ofício e, além disso, apenas quando a apreciação de tal questão não tenha ficado prejudicada em face da solução dada ao litígio.

        

      Neste sentido pode ver-se, entre muitos outros, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 26.01.91 (in JSTJ0001085/ITIJ/Net).


      No caso sub judicio, a Relação referiu-se expressamente a tal questão, decidindo não a apreciar, por se tratar de questão nova, salientando, porém, igualmente a falta de factualidade provada que eventualmente pudesse dar suporte à invocada exclusão.

       A omissão de pronúncia traduz-se, como é sabido, na ausência total de tomada de posição do tribunal sobre uma questão que as partes submetem à decisão judicial ou nos casos em que, sendo o conhecimento da questão decidenda de conhecimento oficioso, o tribunal nada diz sobre a mesma, devendo sobre ela se pronunciar.

        

      Não assim nos casos em que o tribunal toma expressis verbis posição sobre ela, decidindo não só não a apreciar por se tratar de uma questão nova, isto é, que não foi sujeita à apreciação do anterior grau de jurisdição (tribunal a quo), mas salientando igualmente a falta de suporte factual provado para a decisão.


       Inexiste, portanto, qualquer omissão de pronúncia, claudicando consequentemente, as conclusões a) a g) da douta minuta recursória.


       No que à questão da exclusão da aplicabilidade do protocolo anexo à convenção de regularização de sinistro concerne, diz a Recorrente, nas conclusões h) a j) que «na verdade, foi a própria Recorrida que suscitou pela primeira vez esta questão quando, no artigo 23° da contestação confessou que requereu a intervenção da aqui Recorrente no processo que correu termos em Faro com o propósito exclusivo de apurar o montante das indemnizações, despesas, pensões, etc. que tenha sido condenada a pagar aos herdeiros do sinistrado FF, de forma a evitar uma eventual e inadmissível cumulação de indemnizações;

        Face ao confessado pela Recorrida, a sentença deu como provado que foi requerida a intervenção da Autora no processo que correu termos no Tribunal de … com o propósito exclusivo de se apurar o montante das indemnizações, despesas, pensões, em que tenha sido condenada a pagar aos herdeiros do sinistrado, deste modo se evitando uma eventual e inadmissível cumulação de indemnizações" - cfr. sentença proferida a fls. dos autos;

         Assim, e ao contrário do defendido pelo acórdão recorrido, tendo sido alegados aqueles factos pela Recorrida, os quais levariam à exclusão ou inaplicabilidade da Convenção de Regularização de Sinistro e, consequentemente, à improcedência da excepção de preterição do Tribunal Arbitral, deveria o acórdão recorrido conhecer desta questão».


        Como ressalta à evidência, não se vislumbra no escasso quadro factual fixado e supra transcrito, nada que demonstre que «foi requerida a intervenção da Autora no processo que correu termos no Tribunal de … com o propósito exclusivo de se apurar o montante das indemnizações, despesas, pensões, em que tenha sido condenada a pagar aos herdeiros do sinistrado, deste modo se evitando uma eventual e inadmissível cumulação de indemnizações».


        Quanto à questão nova a que se refere a Relação, no acórdão recorrido, consistente na invocação, pelo Apelante, da questão de não aplicabilidade da Convenção Regularizadora de Sinistros, pode ver-se, entre outros, o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 23-10-2014 (Relator, Exmº Conselheiro Granja da Fonseca) que assim sentenciou:

        

      «Sendo os recursos meios processuais de impugnação de decisões anteriores, os mesmos apenas incidem sobre questões anteriormente apreciadas, não podendo o tribunal ad quem ser confrontado com questões não colocadas no tribunal a quo» (Pº 5567/06.7TVLSB.L2.S1, disponível in www.dgsi.pt ).

        

       De igual sorte, como ressalta do referido painel da factualidade apurada, também não resultou provado o que alega a Recorrente com o seguinte teor:


        «Ora, a Recorrente referiu que no âmbito do processo judicial que correu termos sob o n.º 1583/11.5TABFA, no extinto 2.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de …, a única herdeira do sinistrado FF, deduziu pedido de indemnização cível contra a Recorrida, no qual peticionou uma indemnização integral nos termos supra aludidos;


      Na sequência da peticionada indemnização, veio a Recorrida requerer a intervenção da Recorrente, com o objectivo de apurar o montante efectivamente pago pela Recorrente na sequência do acidente simultaneamente de viação e de trabalho».


         Louva-se a Recorrente, para a sustentação da tese que defende nos articulados ou minutas recursórias, no quanto foi alegado ou referido em tais peças, mas tanto não basta para que o Supremo Tribunal de Justiça tome tais asserções ou alegações como demonstradas quanto à sua exactidão, posto que seguramente não desconhece, na medida em que está devidamente patrocinada, que nos termos do disposto no nº 1 do artº 682º do CPC, este Supremo Tribunal aplica o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, e não se trata de um caso que haja lugar ao disposto no nº 3 do referido preceito legal.


      Mais ainda, a Recorrente alega que foi no processo «n.º 1583/11.5TABFA, no extinto 2.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de …, a única herdeira do sinistrado FF, deduziu pedido de indemnização cível contra a Recorrida, no qual peticionou uma indemnização integral nos termos supra aludidos».


       Porém, não só não se mostra provado qualquer facto que tal demonstre, como o único processo que vem referido no elenco factual fixado é o Pº de acidente de Trabalho (morte) nº 508/11.2TTFAR e não o nº 1583/11.5TABFA.


      Em face de quanto exposto fica, claudicam as conclusões da douta minuta recursória e, em consequência, inarredável se torna a improcedência do presente recurso de Revista.

           

DECISÃO 


Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a Revista.


Custas pela Recorrente, por força da sua sucumbência.


Processado e revisto pelo Relator.


Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 8 de Fevereiro de 2018


Álvaro Rodrigues (Relator)

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

__________

[1] Pº 05A2222, in www.dgsi.pt
[2] FRANCISCO CORTEZ, A Arbitragem Voluntária em Portugal, in O Direito, ano 124, 1992, IV, pg.555
[3] Idem, ibidem.
[4]   Teria sido necessária a oportuna junção da correspondente certidão judicial.
[5]  Referindo Abrantes Geraldes, em «Recursos no Novo Código de Processo Civil», Almedina, 2013, pag. 25: «Na fase de recurso, as partes e o tribunal superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objecto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação. Por outro lado, a demanda do tribunal superior está circunscrita às questões já submetidas ao tribunal de categoria inferior, sem prejuízo da possibilidade de se suscitarem ou de serem apreciadas questões de conhecimento oficioso, como a inconstitucionalidade de normas, a nulidade dos contratos, o abuso de direito ou a caducidade em matéria de direitos indisponíveis, relativamente às quais existam nos autos elementos de facto».

[6] Pº Revista 2207/09.6TBSTB.E1.S1 (ÁLVARO RODRIGUES), disponível in www.dgsi.pt.

[7] J. L. LOPES DOS REIS, A Excepção da Preterição do Tribunal Arbitral in Revista da Ordem dos Advogados (ROA), ano 58, Dezembro 1998, pg.1122.
[8] Ibi, ibidem.
[9] RAUL VENTURA, Convenção de Arbitragem, Revista da Ordem dos Advogados, ano 46 (Setembro de 1986),pg. 380.
[10] MANUEL PEREIRA BARROCAS, Lei de Arbitragem Comentada, Almedina, 2013, pg. 85.