Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3057/11.5TBGDM-A.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
AVAL EM BRANCO
CRÉDITO CONDICIONADO
Data do Acordão: 05/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES - GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES / IMPUGNAÇÃO PAULIANA.
DIREITO FALIMENTAR - MASSA INSOLVENTE E INTERVENIENTES NO PROCESSO / MASSA INSOLVENTE E CLASSIFICAÇÕES DOS CRÉDITOS - EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS CRÉDITOS - VERIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS - PAGAMENTO AOS CREDORES.
Doutrina:
- Carvalho Fernandes e João Labareda, Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, anotado, p. 456.
- Pereira Coelho, citado por Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, 7ª ed, p. 83.
- Pinto Furtado, Títulos de Crédito, p. 145.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 610.º, AL. A), 614.º.
CÓDIGO DE INSOLVÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 50.º, 90.º, 91.º, N.º1, 128.º, N.º 1, AL. B), 129.º, 130.º, N.ºS1 E 3, 181.º, 303.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 25-11-08, DE 29-11-11, E DE 2-5-12, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
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AUJ Nº 4/13, NO D.R., 1ª SÉRIE, DE 21-1-13.
Sumário :
1. O relevo que no processo de insolvência deve ser dado ao princípio par conditio creditorum justifica a intervenção oficiosa do juiz na verificação dos créditos, ainda que a lista apresentada pelo administrador de insolvência – que frequentemente nem é jurista - não sofra qualquer impugnação, devendo ser recusada a sua homologação quando verifique que está afectada por erro manifesto (art. 129º do CIRE).

2. Neste sentido, deve o juiz recusar a homologação da lista apresentada pelo administrador que apresenta como créditos reconhecidos créditos reclamados exclusivamente com fundamento em avales prestados pela insolvente em livranças subscritas em branco e que ainda não foram preenchidas.

3. Tais créditos apenas podem ser reconhecidos como créditos sob condição suspensiva.

A.G.
Decisão Texto Integral:
I - Por apenso ao processo em que foi declarada a insolvência de

AA veio o administrador da insolvência juntar aos autos a lista de créditos reconhecidos que foi elaborada ao abrigo do disposto no art. 129° do CIRE.
Não foram apresentadas impugnações, de modo que a lista foi homologada judicialmente.
A insolvente, contudo, apelou da sentença homologatória, alegando que de entre os créditos reclamados pelo credor BCP, os de € 79.411,23 e de € 31.134,00 correspondem a fianças que a insolvente prestou para garantia do cumprimento de contratos de mútuo que foram celebrados entre esse credor e  terceiro que estão a ser cumpridos.
Quanto ao crédito reclamado pelo credor BES no valor de € 1.787.605,73, corresponde a avales que a insolvente prestou em três livranças que foram subscritas em branco no âmbito de dois contratos de financiamento e de um contrato de locação financeira outorgados entre o referido credor e terceiras entidades. Não se encontrando ainda preenchidas tais livranças, considerou que não poderiam ser reconhecidos os créditos que as mesmas visam titular.

A Relação, depois de ter considerado que a concreta situação estava eivada de “erro manifesto” justificativo da recusa de homologação por parte do Tribunal de 1ª instância, apesar da falta de impugnação, decidiu que os créditos do BCP inerentes à intervenção da insolvente como fiadora deveriam ser integrados na lista de créditos reconhecidos sob condição suspensiva. Já quanto aos créditos do BES inerentes às livranças avalizadas pela insolvente determinou que fossem retirados da lista de créditos reconhecidos, uma vez que nem sequer se encontravam constituídos relativamente à insolvente.

Deste acórdão recorreu o BES, SA, concluindo que:

a) A decisão da Relação do Porto que julgou procedente a apelação, por existir um "erro manifesto" na lista de credores reconhecidos e, consequentemente, ordenou a anulação de todo o processado posterior à apresentação da lista, a fim de ser elaborada uma nova lista, não fez uma correcta interpretação dos factos, nem adequada aplicação do direito, pelo que deverá ser revogada.

b) As questões a apreciar são as que se passam a enunciar, segundo a ordem lógica que entre as mesmas intercede:

- Definição e amplitude do "erro manifesto" no âmbito da homologação da lista definitiva de créditos reconhecidos em sentença de verificação e graduação de créditos, nos termos do art. 130°, n° 3, do CIRE;

- Momento da constituição do direito de crédito do portador de uma livrança em branco sobre o avalista e, em consequência, se deve manter-se, ou ser excluído, o crédito reclamado pelo Banco recorrente.

c) O efeito cominatório previsto no art. 130°, n° 3, do CIRE, é corolário dos princípios do dispositivo, da auto-responsabilidade das partes, do contraditório, e mais amplamente, dos princípios da celeridade e economia processuais (que, como se sabe, são enfatizados no processo de insolvência).

d) No apenso de verificação e graduação de créditos, o juiz está vinculado ao princípio do dispositivo, previsto no art. 264° do CPC, segundo o qual "às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções" (n° 1) e "o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos arts. 514° e 665º" do CPC (n° 2), o que significa que são as partes que dispõem do processo, enquanto relação material controvertida.

e) O pleito judicial é, por definição, um processo de partes, cujos interesses e pretensões devem ser, oportunamente, deduzidos. Se a própria parte não demonstra interesse na relação controvertida, deve sofrer as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência ou inépcia na condução do processo.

f) A única excepção à decisão de homologação da lista a que alude o art. 129° do CIRE (enquanto efeito cominatório) é a existência de erro manifesto.

g) "Erro" é uma representação inexacta da realidade, cuja verificação, nestes casos, deve ser "manifesta", ou seja, ostensiva, grosseira. Erro manifesto é aquele que é grosseiro, que facilmente se detecta por análise, mesmo que perfunctória, da lista do reconhecimento dos créditos por banda do administrador.

h) Procedendo a uma análise da lista de créditos apresentada pelo administrador de insolvência, verifica-se que a mesma não padece que qualquer erro, muito menos manifesto.

i)     A norma legal que autoriza o juiz a corrigir a lista do art. 129° é (e só pode ser) a do art. 130°, n° 3, do CIRE, e apenas nos termos aí previstos - ou seja, quando a lista enferma de erro manifesto. Todavia, para corrigir erros (não manifestos) de direito ou de questões de fundo, não se pode lançar mão da norma do art. 58° do CIRE (como fez o acórdão recorrido), que tem outro âmbito de aplicação.       

j)     O art. 58° do CIRE (assim como o art. 68°) confere ao Juiz (e à comissão de credores) o poder de acompanhamento e avaliação do desempenho das funções realizadas pelo administrador de insolvência, com a finalidade de, detectadas irregularidades, serem tomadas as diligências necessárias (nomeadamente, a sua destituição).

k) Não se afigura correcta a conclusão do acórdão recorrido, que consiste na realização de uma "nova lista de credores", porquanto a inicial padece de um erro (manifesto?) que comporta restrição ou afectação dos direitos das partes. Porque, se bem se vê as coisas, i) ou o erro (uma representação inexacta) é manifesto (grosseiro) e, por isso, a sua correcção judicial é legítima, porque "inofensiva"; ou o erro não é manifesto e, por isso mesmo, é que afecta direitos das partes e, nessa medida, competia à parte interessada impugnar, iniciando um litígio e conferindo assim (e só assim) legitimidade decisória ao Juiz.

l)     A não ser assim, é a própria existência de um novo apenso de verificação de créditos que afecta e restringe os direitos das partes, na medida em que realiza uma duplicação injustificada de fases processuais, sem qualquer apoio na letra ou, até, na mens legis (atente-se na urgência que deve enformar o processo de insolvência).

m) No acórdão recorrido, o crédito reclamado pelo BES foi considerado inexistente, uma vez que tem como título livranças avalizadas pela insolvente (ainda) não totalmente preenchidas. O Tribunal a quo considerou, assim, que o problema substancial em apreço (saber em que momento se considera constituída a obrigação do avalista - se no momento do preenchimento da livrança se no momento da assinatura da livrança) é um caso de "erro manifesto".

n) O problema da existência ou inexistência de um direito de crédito, quando a livrança ainda não está totalmente preenchida levanta complexas configurações jurídicas que não se harmonizam, naturalmente, com o conceito de "erro manifesto" supra explanado.

o) O próprio acórdão refere que "não falta, porém, quem considere que a obrigação cambiária, como existente só pelo facto de o título (em branco) ser emitida. Desde que contenha o nome do tomador, o título se bem que ainda incompleto, pode já circular por meio de endosso", remetendo para a doutrina de Ferrer Correia. Assim, ao assumir-se que a questão de fundo é controvertida na doutrina e na jurisprudência dos nossos Tribunais, já não estamos, naturalmente, no campo do chamado "erro manifesto".

p) O processo de insolvência não se resume a uma espécie de processo de execução, consistindo, ao invés, num processo especial e autónomo, que partilha elementos declarativos com elementos executivos.

q) Tendo em conta a natureza, a função e a finalidade do processo de insolvência, a verificação do passivo do devedor insolvente abarca não só os créditos vencidos e exigíveis, mas também - de acordo com o art. 50° do CIRE - créditos que se encontrem condicionados a um evento futuro e incerto (em óbvia oposição, assim, à execução comum, onde é imprescindível a existência de uma dívida certa, líquida e exigível).

r) O art. 90° do CIRE dispõe que "os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência", impondo, assim, um verdadeiro ónus a cargo dos credores, que apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com as regras do CIRE e apenas se (obviamente) reclamarem o seu crédito.

s) O Banco recorrente reclamou um crédito, actualmente no valor de € 1.508.121,32, correspondente a financiamentos, de vários tipos, concedidos às sociedades BB, S.A., e CC, S.A., e garantidos por livranças em branco avalizadas, entre outros, pela insolvente.

t)     A insolvente participou nas negociações dos contratos de financiamentos, tendo assinado não só as livranças entregues como caução, como também os próprios contratos, na qualidade de garante da obrigação, e ainda os pactos de preenchimento das livranças - fonte da obrigação -, o que coloca a avalista no domínio das relações cambiárias imediatas, com a inerente possibilidade de invocação da relação subjacente.

u) A declaração negocial da insolvente acontece, assim, no momento de assinatura dos contratos e na data da assinatura da livrança caução, sendo esse o momento determinante do nascimento da obrigação da avalista.

v) É no momento da assinatura da livrança que o Banco assume a posição de credor relativamente aos avalistas que, a partir de então, se co-responsabilizam pelo pagamento da quantia que, eventualmente, venha a ser inscrita na livrança. É precisamente nesse momento que, nas suas esferas jurídicas, passa a haver a obrigação de prestar - ainda que essa obrigação esteja diferida no tempo. É, por conseguinte, nesse mesmo momento - em que a avalista se assume como garante da obrigação - que nasce a obrigação cambiária.

w) A própria LULL prevê a validade e existência de livranças em branco – art. 76° -, em que falte alguns dos requisitos previstos no art. 75°, sendo o preenchimento completo apenas uma condição da sua eficácia (executiva).

x) A obrigação da avalista, ora insolvente, apesar de não ser ainda certa líquida e exigível, já existe, já está constituída, pelo que pode ser reclamada no processo de insolvência, ainda que seja reconhecida como "sob condição".

y) Assim, ao processo de insolvência são chamados todos os credores, independentemente dos seus créditos se encontrarem ou não vencidos nessa data, pois num processo de insolvência, não se trata de exigir o cumprimento da obrigação ao garante, não se está a executá-lo, mas sim a reclamar um direito de crédito que existe, foi constituído e só não é - ainda - exigível.

z) A obrigação da avalista, ora insolvente, apesar de não ser ainda certa, líquida e exigível, já existe, já está constituída, pelo que pode ser reclamada no processo de insolvência, ainda que seja reconhecida como "sob condição".

aa) A seguir-se o entendimento do Tribunal recorrido, os credores portadores de livranças em branco ver-se-iam forçados a preencher os respectivos títulos sempre que um avalista fosse declarado insolvente, para poderem defender os seus créditos nos processos de insolvência, o que implicaria a violação do pacto de preenchimento, acordado pelas partes. Pois, os pactos de preenchimento, celebrados entre o Banco recorrente e as sociedades subscritoras e respectivos avalistas prevêem, na sua grande maioria, o preenchimento dos títulos dados em garantia em caso de situação de incumprimento dos contratos e em caso de declaração de insolvência das mutuárias/subscritoras dos títulos.

bb) O preenchimento do título de crédito dado em garantia seria abusivo quando o contrato que lhe subjaz esteja a ser integralmente cumprido.

cc) Numa vertente puramente económica e social, as consequências do preenchimento antecipado das livranças, e a consequente exigência dos montantes nelas apostos, seriam catastróficas. Se na actual conjuntura económica já é difícil para a maioria das empresas honrar os seus compromissos, o vencimento antecipado dos créditos de que são devedores acarretaria, em grande parte dos casos, a sua situação de insolvência.

dd) Os avalistas obrigaram-se ao pagamento da dívida no pressuposto do incumprimento por parte da empresa avalizada, cuja solvência e solidez podiam sempre controlar. Já não conseguem acautelar a situação financeira de todos os intervenientes cambiários, com os quais podem até não ter qualquer relação, pelo que, a exigência da totalidade da dívida a quem não contribuiu minimamente para o seu vencimento antecipado (e no pressuposto de uma situação de insolvência de pessoa diversa daquela de que se constituíram garantes) viola o princípio fundamental da segurança do comércio jurídico.

ee) Ao permitir, no art. 50° do CIRE, que fossem reclamados créditos ainda não constituídos e exigíveis, o legislador quis evitar estas situações de manifesta injustiça social, não devendo o julgador esquecer tal desiderato, como o fez no caso sub judice.

ff) O acórdão recorrido viola, assim, os arts. 50°, 90°, 130° do CIRE, os arts. 10°, 32°, 76° e 77° da LULL e o art. 264° do CPC.

Houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Elementos a considerar:
1. Por apenso aos autos n.º 3057/11.5TBGDM-A, onde foi declarada a insolvência de AA, por sentença proferida a 10-8-11, transitada em julgado, veio o administrador da insolvência juntar aos autos a lista dos créditos reconhecidos constante de fls. 8.
2. Foram apreendidos para a massa insolvente o direito à meação do prédio urbano, denominado Lote 00, Quinta .........., Jovim, Gondomar, descrito na CRP de Gondomar sob o n.º 00000000000 e inscrito na matriz urbana sob o art. nº 2338 e na proporção de 1/413 do prédio urbano, V......., Jovim, Gondomar, descrito na CRP de Gondomar sob o nº 00000000000 e inscrito na matriz urbana sob o art. 2136;
3. O BCP, SA, apresentou reclamação de créditos no valor total de € 294.270,66, o qual se encontra titulado por duas escrituras públicas de 1-2-01 e de 8-8-08, em que o Banco reclamante mutuou à insolvente e a outro as quantias de € 158.151,86, € 37.409,84 e € 60.000,00 respectivamente, sendo nos mesmos actos constituídas 3 hipotecas a favor do credor sobre o seguinte imóvel registado a favor da referida insolvente e outro (MLS 00000000, 00000000 e 00000000);
4. Por escrituras públicas celebradas com o BCP, em 8-8-08, a insolvente e outro prestaram fiança aos contratos de mútuo das quantias de € 79.411,23 e € 31.134,00, celebrados com DD e EE, estando tais contratos a ser cumpridos;
5. O BES, SA, apresentou reclamação de créditos no valor global de € 1.787.605,73, quantia que engloba contratos de financiamento celebrados com as sociedades BB SA, e CC, SA, no âmbito dos quais a insolvente avalizou livranças em branco, cujas cópias se encontram junta aos autos a fls. 67/68 e 84/85, e ainda o crédito emerge do contrato de locação financeira nº 0000000, cuja cópia se encontra junta a fls. 450/454, no âmbito do qual a insolvente também avalizou uma letra em branco, cuja cópia se encontra junta a fols. 459/460;
6. FF, SA, apresentou reclamação de créditos no valor de € 21.574,83 e o GG, Ldª, apresentou reclamação de créditos no valor de € 93.222,13.
7. Por não ter havido impugnações à lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e junta a fls. 8, nos termos referidos no art. 130.º, nº 3, do CIRE, foi proferida de imediato sentença que homologou a referida lista e graduou os créditos nela incluídos pela ordem seguinte:
I - Sobre o produto da venda do bem imóvel descrito sob a verba n.º 1:
1º) O crédito do BCP, S.A., no valor de € 185.694,64, garantido com hipoteca.
2º) Os créditos comuns, de forma rateada caso não haja produto suficiente para o seu pagamento integral.
II. Sobre o produto da venda do outro bem:
Todos os créditos comuns, de forma rateada, caso não haja produto suficiente para o seu pagamento integral.

III – Decidindo:
1. Entre outros, foram reclamados na insolvência pelo credor BES, SA, créditos sustentados na intervenção da insolvente como avalista em 3 livranças subscritas em branco por terceiras entidades, as quais ficaram a garantir dois contratos de financiamento e um contrato de locação financeira.
Tais créditos foram integrados pelo administrador na lista de créditos reconhecidos.
Não tendo sido impugnados nem pela insolvente, nem por qualquer outro credor, o Mº Juiz de 1ª instância procedeu à sua homologação, nos termos do art. 130º, nº 1, do CIRE.
Porém, a insolvente recorreu da sentença homologatória, alegando que tal reclamação deveria ter sido rejeitada, uma vez que, resultando os créditos de avales apostos em livranças em branco, não existia ainda verdadeiramente qualquer crédito susceptível de ser reclamado, reconhecido e graduado.
Esta tese foi acolhida no acórdão recorrido.
Deste acórdão recorreu o BES, SA., importando unicamente decidir se a opção do administrador de integrar aqueles créditos na lista de créditos reconhecidos traduz ou não “erro manifesto”, susceptível de correcção oficiosa por parte do Juiz de 1ª instância, nos termos do art. 130º, nº 3, do CIRE.
Em face de uma resposta positiva, importará decidir se, em tais circunstâncias, se impunha a negação da existência dos correspondentes direitos de crédito ou se devem ser classificados como créditos condicionados.

2. Quanto à primeira questão:
2.1. Resulta do art. 130º, nº 3, do CIRE, que “se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação de créditos, em que, salvo caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador de insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista”.
Não é clara a amplitude dos poderes do juiz do processo de insolvência quando não sejam deduzidas impugnações contra as reclamações de créditos, verificando-se divergências em redor da definição do conceito de “erro manifesto” e da delimitação da actuação oficiosa do juiz, antes de exarar a sentença homologatória.
Advogam uns a restrição da intervenção oficiosa do juiz a casos em que o mero confronto com a lista apresentada pelo administrador revele a existência de um erro de facto ou de erro de direito na qualificação ou na quantificação dos créditos.
Já outros defendem que o juiz não deve abrir mão dos poderes inquisitórios, enquanto garante da legalidade, devendo acautelar uma correcta verificação e graduação dos créditos, com respeito pelos pressupostos formais e substanciais.

Esta solução conta com o apoio do Ac. deste STJ, de 25-11-08 (www.dgsi.pt), no qual se observa, além do mais, que “atendendo aos curtos prazos fixados na lei, quer para o administrador da insolvência elaborar as listas de credores, quer para estes as impugnarem, a inexistência de impugnações não constitui garantia significativa da correcção das listas elaboradas pelo administrador da insolvência, pelo que, embora os credores não fiquem, apesar dessa inexistência, com o direito de confiar na estabilidade da ilegalidade substancial resultante de alguma eventual incorrecção que os possa beneficiar, também não podem ficar impedidos de defenderem os seus direitos contra alguma alteração inesperada”. Adoptando, para o efeito, a solução defendida por Carvalho Fernandes e João Labareda (CIRE anot., pág. 456), considera-se ainda em tal aresto que o conceito de “erro manifesto” deve ser “interpretado em termos amplos, não podendo o Juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar, nem dos documentos e demais elementos de que disponha …”.
Acompanhando esta solução, em benefício da mesma, importa notar que no processo de insolvência, visando a liquidação total do activo e do passivo do insolvente, deve garantir-se um tratamento exacto de todas as reclamações apresentadas (par conditio creditorum), evitando que um erro de apreciação ou de qualificação acabe por se repercutir negativamente na esfera do credor reclamante, na de outros credores ou até na esfera do próprio insolvente.
Ademais, não sendo o administrador de insolvência necessariamente jurista, certas situações não dispensam uma análise mais aprofundada da matéria de facto e das respectivas implicações jurídicas que permita delimitar correctamente os créditos que devem ser acolhidos ou rejeitados e, dentro dos primeiros, proceder à sua integração na exacta categoria onde devem ser graduados.

2.2. O caso concreto não suscita a este respeito dúvidas substanciais, já que, sob qualquer ângulo, a concreta situação referente aos créditos reclamados pelo BES, SA, revelava um “erro manifesto”.
Com efeito, na lista de créditos reconhecidos o administrador de insolvência integrou, sem qualquer hesitação, créditos que resultavam apenas de avales prestados em livranças que haviam sido subscritas em branco e que ainda não tinham sido preenchidas nos segmentos relativos aos montantes em dívida e às datas de vencimento.
Sem entrar de imediato na natureza jurídica da relação cambiária, maxime quando sustentada apenas em avales em branco, a concreta situação não consentia o resultado que foi assumido pelo administrador mediante a integração dos correspondentes créditos na lista de créditos reconhecidos, sem qualquer especificação.
Não existe qualquer sustentação legal, nem apoio doutrinal ou jurisprudencial que permita estabelecer uma equivalência imediata entre a obrigação do avalista resultante de avales em branco e o montante dos financiamentos efectuados as terceira entidades. A mera invocação por parte do credor do facto de ser beneficiário de um aval em branco não permite invocar, de imediato, o direito de crédito emergente da relação subjacente.
No caso concreto, outras possibilidades se colocavam e que, não tendo sido ponderadas pelo Tribunal de 1ª instância, deixavam aflorar a existência de um “erro manifesto” que, devendo ser corrigido pelo juiz de 1ª instância, era igualmente susceptível de ser corrigido pela Relação.
Tendo o Mº juiz de 1ª instância sido confrontado com uma lista de créditos reconhecidos que, além de outros, enunciava, como créditos comuns, créditos sustentados apenas em avales em branco, não poderia o juiz deixar de agir no sentido de colocar tais créditos na sua devida posição:
a) Considerando que se tratava de créditos que nem sequer se haviam constituído, excluí-los de tal listagem e, assim, evitar que a massa insolvente respondesse pelo seu pagamento;
b) Considerando que os créditos, embora constituídos, estavam sujeitos a alguma condição, reconhecê-los como condicionais e sujeitá-los ao regime específico previsto para tais créditos.
Por conseguinte, é de confirmar o entendimento que foi adoptado pela Relação quando considerou ser de sindicar a colocação na lista de créditos reconhecidos créditos sustentados apenas em avales apostos em livranças subscritas em branco.
Improcede, assim, a primeira questão suscitada pelo recorrente BES, SA.

3. Quanto ao mérito:
3.1. A Relação considerou, além do mais, que os créditos reclamados pelo BES, SA, sustentados em avales em branco, não mereciam qualquer reconhecimento, nem como créditos normais, nem como créditos condicionais.
Não se aceita este entendimento, revelando-se pertinentes os argumentos que, em sentido contrário e sob diversas perspectivas (jurídicas e até sócio-económicas), foram arrolados pelo BES.
Para o efeito, não pode ignorar-se o que este mesmo Supremo Tribunal de Justiça vem asseverando relativamente à natureza jurídica dos créditos cambiários e das correspondentes obrigações, concluindo que quando se trate de letras ou de livranças sacadas ou subscritas em branco ou em branco avalizadas, o direito de crédito de natureza cartular se constitui simultaneamente com tais actos.
Assim acontece designadamente para efeitos de determinação da anterioridade do crédito que é pressuposto da procedência da acção de impugnação pauliana, nos termos dos arts. 610º, al. a), e 614º do CC (cfr. os Acs. do STJ, de 29-11-11, e de 2-5-12, www.dgsi.pt).
Em tais circunstâncias, a constituição da relação cambiária (maxime a que integra o avalista) ocorre em paralelo com a outorga do pacto de preenchimento que define os termos em que o título poderá ser preenchido no que concerne aos elementos em falta, tais como a data de vencimento ou o montante, correspondendo este à quantia que, de acordo com o relacionamento contratual subjacente, se encontre vencido e seja exigível na data em que o título for preenchido.
É verdade que esta questão não obtém unanimidade na doutrina, defendendo uns que a obrigação cambiária apenas se constitui posteriormente, na ocasião em que o título seja preenchido com todos os seus elementos essenciais (neste sentido cfr. Pinto Furtado, Títulos de Crédito, pág. 145, ou Pereira Coelho, citado no acórdão recorrido e também por Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, 7ª ed, pág. 83).
Outra é a solução que prevalece na jurisprudência, a qual vem expressa nos Acs. do STJ, de 2-5-12 (fls. 724 e segs.) e de 29-11-11 (fls. 570 e segs.), contando com significativo apoio doutrinal, de onde se destacam Pereira Delgado (ob. e loc. cit.), e Vaz Serra, sendo argumento essencial para se afirmar a anterioridade da constituição da obrigação cambiária o facto de a letra em branco ser susceptível de endosso.
Por isso, justifica-se que se separe o momento da constituição da obrigação cambiária traduzida em letras ou em livranças sacadas ou subscritas em branco daquele em que se efectiva o direito de crédito que naturalmente depende do preenchimento do título.

3.2. A percepção desta diferenciação torna-se ainda mais visível quando se trata de avales prestados em letras ou livranças aceites ou subscritas em branco.
Nos casos em que à obrigação cambiária (v.g. do subscritor da livrança) está subjacente uma relação jurídica substancial ainda se pode concluir, em face do disposto no nº 1 do art. 91º do CIRE, que a declaração de insolvência despoleta a liquidação de todas as responsabilidades que emergem dessa relação jurídica material. Tratando-se de livranças a que subjazem contratos de financiamento bancário ou de locação financeira, a declaração de insolvência do subscritor das livranças entregues como garantia do cumprimento desses contratos provoca o vencimento imediato das obrigações causais, tanto mais que no contexto do processo de insolvência nem sequer se revela essencial o preenchimento dos títulos criados para facilitar a cobrança dos créditos, a qual deve ser obrigatoriamente exercitada através do processo de insolvência.
Todavia, são diversas as circunstâncias com que nos defrontamos quando a declaração de insolvência respeita aos intervenientes cuja obrigação seja de natureza estritamente cambiária, como ocorre com o avalista do subscritor de livrança. Conquanto esta qualidade jurídica o coloque, perante o tomador, no mesmo plano de responsabilidade do respectivo avalizado (responsabilidade solidária), não podemos deixar de ponderar que a responsabilidade do avalista será delimitada pela responsabilidade que para o avalizado emergir da relação jurídica subjacente.
Mais concretamente, desde que a livrança se mantenha na posse do respectivo tomador, a responsabilidade solidária do avalista com o avalizado apenas poderá ser exigida se e na medida em que o avalizado não cumprir o contrato subjacente ou perante a verificação das condições que tenham sido previstas no pacto de preenchimento.

3.3. Como flui do recente ACUJ nº 4/13, no D.R., 1ª Série, de 21-1-13, está consolidado o entendimento quanto à autonomia da obrigação do avalista em relação ao avalizado, sendo o aval uma garantia autónoma directamente prestada ao respectivo beneficiário, mesmo quando se trate de avales apostos em livranças subscritas em branco.
Se as especiais circunstâncias que rodeiam o aval prestado em livrança subscrita em branco impedem que com a declaração de insolvência do avalista se considere imediatamente vencida e exigível a obrigação causal, também pode afirmar-se que a constituição da obrigação cambiária do avalista não está dependente do preenchimento da livrança.
A falta de preenchimento de alguns dos elementos que definem os títulos de crédito não tem como significado a inexistência de qualquer crédito. Pelo contrário, a obrigação do avalista constituiu-se com a aposição do aval, ainda que, tratando-se de aval em branco, a quantificação da obrigação cambiária e a sua exigibilidade fiquem condicionados pela verificação de um evento futuro e incerto: o preenchimento dos elementos em falta.
Nesta medida, a invocação de créditos decorrentes de avales em branco importa que o seu reconhecimento seja integrado no rol de créditos condicionados que encontram em diversas normas do CIRE específico tratamento.

3.4. É, na verdade, a categoria de crédito condicionado (sob condição suspensiva) que, para efeitos do processo de insolvência, melhor caracteriza o crédito do portador relativamente àquele que numa livrança subscrita em branco apôs o seu aval.
Tal categoria vem expressamente prevista no art. 50º do CIRE cujo texto, marcadamente exemplificativo (“são havidos, designadamente, como créditos sob condição suspensiva …”), tem potencialidades para envolver naquela classificação os créditos cuja quantificação e exigibilidade fiquem dependentes da verificação de um evento futuro e incerto. É essa circunstância que verdadeiramente rodeia as situações que emergem de avales em branco e cujo vencimento imediato nem sequer decorre da declaração de insolvência, como o ressalva o nº 1 do art. 91º do CIRE.
Todos os direitos de crédito devem ser exercidos através dos mecanismos previstos no CIRE (art. 90º), o que determinou a previsão de uma forma específica de composição dos diversos interesses que se traduziu na caracterização específica como créditos condicionados:
a) O interesse do credor, no sentido de alcançar de imediato o reconhecimento e a graduação do seu crédito;
b) O interesse do insolvente e avalista, no sentido de não ser de imediato responsabilizado enquanto mero garante de obrigação que, afinal, até poderá ser satisfeita pelo avalizado;
c) O interesse do próprio avalizado que, alheio à insolvência do avalista, não tem de suportar de imediato os efeitos de um preenchimento antecipado do título de crédito, contra o que ficou previsto no pacto de preenchimento.
Fica assim demonstrado que é a qualificação como crédito sob condição suspensiva aquela que permite acautelar todos os interesses em conflito, garantindo a posterior aplicação do regime que se encontra previsto designadamente nos arts. 128º, nº 1, al. b), 129º, nº 2, e 181º do CIRE.

3.5. Neste contexto, deve ser revogado em parte o acórdão recorrido, de modo que em lugar do reconhecimento puro e simples do direito de crédito reclamado pelo BES, SA, se justifica o seu reconhecimento como crédito condicionado.

4. Para efeitos de tributação, o processo de insolvência abarca também a reclamação de créditos (art. 303º do CIRE). Contudo, desta tributação unitária excluem-se os recursos de apelação e de revista que entretanto foram interpostos.
Não sendo de imputar à massa insolvente a responsabilidade pelas custas inerentes aos recursos de apelação e de revista, a mesma deve ser distribuída pelos responsáveis, segundo o respectivo decaimento, nos termos do art. 446º, nº 2, do CPC.

IV – Face ao exposto, acorda-se em:
a) Julgar parcialmente procedente o recurso de revista, determinando-se a revogação do acórdão recorrido na parte em que incidiu sobre os créditos reclamados pelo BES, SA, sustentados em três livranças que pela insolvente foram avalizadas em branco, devendo os mesmos ser integrados em nova lista de credores, como créditos condicionados, seguindo-se, depois, os termos prescritos no art. 130º, nº 1, e segs. do CIRE;
b) Pelas custas da presente revista responderá a insolvente e o BES, SA, na proporção de 90% para aquela e de 10% para este, tendo em consideração que o BES pretendia a confirmação total da sentença de 1ª instância e os créditos reclamados, apesar de terem sido reconhecidos, acabaram por ser inseridos numa categoria jurídica não coincidente com a que pretendida pelo credor.
As custas da apelação serão repartidas entre a insolvente, o BES, SA, e o BCP, SA, respectivamente, na proporção de 90%, 7% e 3%, considerando que também quanto aos créditos do BCP referentes a fianças foi determinado na apelação que fossem considerados como créditos condicionados.
Notifique.

Lisboa, 15 de Maio de 2013

Abrantes Geraldes (Relator)

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva