Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5397/16.8T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
RECURSO DE APELAÇÃO
JUNÇÃO DE PARECER
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
PRESSUPOSTOS
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
GRAVIDEZ
RESPONSABILIDADE MÉDICA
LEGES ARTIS
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
CONFISSÃO
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Artigos, teses e documentos científicos, não jurídicos, não podem ser juntos ao recurso de revista apenas para reforçar a opinião, sustentada pela ciência, de que no período em que decorreu o diagnóstico pré-natal, aqui em discussão, já existia e era praticado o rastreio bioquímico do 1º e 2º trimestres de gravidez. Não estando tal facto submetido à exigência legal de prova documental, não poderão os mesmos ser valorados pelo STJ para uma hipotética alteração da decisão sobre a matéria de facto, competência que está reservada às instâncias.

II. Em fase de recurso de apelação em conformidade com o disposto no art. 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil a junção de documentos só pode ocorrer se estiverem em causa documentos cuja apresentação não tenha sido possível até encerramento da discussão – art.º 425.º do Código de Processo Civil ou quando a sua junção se tiver tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância – art.º 651.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

III. Os documentos usados e exibidos na audiência de julgamento para inquirição de testemunhas podiam, e, deviam ser juntos antes do encerramento da audiência, e, não basta discordar da decisão para poder juntar, nessa fase, documentos científicos, mas não jurídicos que, na visão dos recorrentes deveriam conduzir a diversa decisão.

IV. Para existir um errado diagnóstico pré-natal não basta que no período em que ocorreu a gravidez fosse já cientificamente possível detectar a trissomia 21, era também necessário que a prática clínica impusesse, ou pelo menos recomendasse que, nas condições de idade da mãe, ausência de antecedentes familiares dos progenitores, ausência de malformações visíveis ecograficamente no feto, e de gravidez de risco, fosse a grávida submetida a exames laboratoriais ou de amniocentese para eventual detecção de tal alteração cromossómica.

V. O dano indemnizável por errado diagnóstico pré-natal, não é apenas possibilidade perdida de interrupção voluntária da gravidez por mal formação do feto, pois, se a opção dos progenitores fosse o nascimento da criança teriam também perdido a possibilidade de atempadamente poderem colectar os meios humanos, físicos, psicológicos e financeiros, a par do conhecimento sobre a estimulação precoce e todas as possibilidades de desenvolvimento, mesmo com a deficiência, entre muitas outras coisas que o conhecimento científico já conhece nestas situações, bem como a oportunidade de adequadamente vestirem o seu coração para receberem bem estas preciosas crianças especiais.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

I.1 – Questões a decidir

AA e BB, interpuseram recurso de revista excepcional do acórdão proferido pela ... Secção do Tribunal da Relação do Porto em 1 de Julho de 2021 que julgou totalmente improcedente a acção por eles interposta contra os réus, na qual formularam o pedido de condenação destes ao pagamento de uma indemnização pelos danos sofridos pelo errado acompanhamento médico pré-natal e consequente nascimento de uma filha portadora de síndrome de Down.

Por acórdão da formação a que se refere o art.º 672.º, n.º 3 do Código de Processo Civil proferido em 15 de Setembro de 2022, foi admitido o recurso de revista excepcional interposto pelos autores.

 

Apresentaram alegações de recurso que culminam com as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão de fls. que enferma de violação da lei substantiva consistente em erro de interpretação e aplicação das normas e violação da lei de processo, assim como de erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, por ofensa de uma disposição expressa de lei que exige certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova, violando assim os arts. 562º, 563º, 564º, 566º, 798º, 799º, 800º do Código Civil, art.º 142º do Código Penal, arts. 64º e 67º da CRP bem como arts. 2º, 6º, 7º, 412º, 414º, 417º, 423º, 425º, 426º, 429º, 430º, 436º, 452º, 454º, 463º, 465º do Código de Processo Civil.

2. Em primeiro lugar, importa dizer que o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto embora confirme a decisão da 1ª instância, o faz com base numa fundamentação essencialmente diferente.

3. Pois, enquanto a decisão de 1ª instância assentou na alegada falta de prova do incumprimento das leges artis, o Acórdão do TRP entendeu: “concluir que a pretensão dos AA sempre claudicaria sem instrução do processo, pois o alegado direito que fundamenta a sua requerida indemnização, não pode ser ressarcível na ordem jurídica nacional. Deste modo, não existe dupla conformidade de decisões.

4. Caso assim se não entenda, o que só por mera hipótese processual se concebe, o Acórdão recorrido deverá ser passível de recurso de revista excecional ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art. 672.º do CPC, em virtude da relevância jurídica da questão da responsabilidade médica sobretudo nas ações de wrongful birth que são muita escassas em Portugal, nomeadamente devido à dificuldade de prova por parte dos AA., que se revela pelo elevado grau de complexidade e especificidade e exige conhecimentos técnicos que os AA. não possuem, tendo gerado controvérsia na doutrina e/ou na jurisprudência, que aconselham a respetiva apreciação pelo STJ, com vista à obtenção de uma decisão suscetível de contribuir para a formação de uma orientação jurisprudencial (cfr. Ac. STJ de 12-10-2017 Revista excecional n.º 1118/13.5TYLSB.L1-A.S1).

5. O pressuposto da al. a) do n.º 1 do art. 672.º do CPC preenche-se com a existência de divergências na doutrina ou na jurisprudência sobre a questão ou questões em causa, ou ainda nos casos em que o tema está eivado de novidade, pois só existem três acórdãos sobre wrongful birth, tudo de sorte que o cidadão comum que lida com este tipo de assuntos não pode legitimamente estar seguro da interpretação com que pode contar por parte dos tribunais.

6. Para além de estar em causa interesses de particular relevância social, como é o caso do direito do paciente a prestação de cuidados de saúde, nomeadamente na assistência à maternidade e ao planeamento familiar que são direitos constitucionais.

7. Ora, tais ações de wronful birth constituem um novidade em Portugal existindo apenas 3 Acórdãos do STJ sobre essa matéria e todos eivados de controvérsia e inclusive vários votos de vencido, gerando grande polémica quer na doutrina quer na jurisprudência, tendo em conta a distinção entre obrigações de meios e obrigações de resultado, a presunção da culpa, as legis artis especificas da classe médica de que o homem médio não tem conhecimento, o direito à vida, o direito à não existência, quem tem ou não legitimidade para estas ações, a reformulação da relação de causalidade e do próprio dano que consiste no direito à autodeterminação reprodutiva da mulher e qual o direito do pai, etc.

8. Tanto mais que no caso sub judice, o Tribunal da Relação do Porto não atribuiu qualquer relevância à confissão livre e sem reservas do R. médico que consta da Ata de Julgamento de fls.

9. Por outro lado, não admitiu os documentos juntos à Apelação que provam que as técnicas de rastreio de Sindrome de Down, designadamente os testes serológicos (AFP, HBCg e PAPPA) e a translucência da nuca, já eram usadas em 1995, independentemente da idade da grávida e dos seus antecedentes familiares, que poderiam levar à realização da amniocentese, razões pelas quais a apreciação desta questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

10. Sem prescindir, sempre se dirá que tal Acórdão está em contradição com os dois únicos Acórdãos do STJ que versam sobre a mesma questão fundamental de direito, designadamente: o Ac. STJ de 17.01.2013 in dgsi Proc. 9434/06.6TBMTS.P1.S1: em que os RR. foram condenados por violação do dever cuidado na preterição da leges artis na matéria de execução do diagnóstico porque este deveria ter conduzido à aferição das aludidas malformações, atentos os meios empregues em termos de equipamento e tendo em atenção a preparação privilegiada do Réu, impedindo assim a Autora de utilizar o meio legal que lhe era oferecido, atento o tempo de gestação em curso, de não levar a termo a sua gravidez caso o entendesse, o que esta teria feito atentas as circunstâncias, daqui decorrendo o dever de indemnizar a Autora por banda dos Réus.

11. E ainda, quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, ou quando ocorrem contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito, caso específico do normativo inserto no artigo 729º, nº3 do CPCivil (atual art. 682º nº 3 do CPC)

12. Mas o princípio da livre apreciação da prova cede em determinadas situações, perante o princípio da prova legal, designadamente no caso da prova por confissão, da prova por documentos autênticos e dos autenticados e particulares devidamente reconhecidos, cfr artigos 358º, 364º e 393º do CCivil”

13. Quer dizer, o Réu médico pertencente ao corpo clínico da Ré e sendo até seu sócio-gerente, pessoa com conhecimentos e capacidades acima da média, sendo reconhecido como conceituado pelos seus pares e até como pioneiro, tendo inclusive contribuído para a alteração da Lei de IVG no sentido do alargamento do prazo, no caso de malformações, das 16 para as 24 semanas – e face à confissão livre e voluntária do mesmo era a pessoa que estava nas melhores condições no âmbito da especialidade que exerce. Não se esqueça que foi recomendado à A. pela sua amiga médica CC a quem assistiu nas suas quatro gravidezes.

14. Pelo que os Recorrentes não escolheram um médico qualquer, mas antes aquele que à época seria o melhor na sua especialidade, motivo pelo qual já tinha sido anteriormente Director de Obstétricia no Hospital 1, onde tentou implementar o teste combinado que não propôs à Recorrente, nem sequer a informou da sua existência, bem sabendo o quão importante era para os Recorrentes que o seu primeiro filho nascesse perfeito (como aliás para quaisquer progenitores) o que significa sem qualquer malformação. Tendo inclusive os Recorrentes questionado o médico a tal propósito por diversas vezes e sobretudo depois da apendicite e suas complicações, ao que o mesmo sempre respondeu estar tudo bem com o bebé.

15. De todo este complexo factual pode-se concluir sem qualquer margem para dúvidas que por parte dos Réus houve uma conduta ilícita e culposa, pois poderiam e deveriam ter agido de outro modo face aos seus específicos conhecimentos, traduzindo-se a violação do dever cuidado na preterição da leges artis na matéria de execução do diagnóstico porque este deveria ter conduzido à realização de análises básicas (que nunca fizeram, que só por si constitui um violação grave do dever de prestar os cuidados de saúde) e especificas (de que tinha conhecimento privilegiado e até dos laboratórios que as faziam) o que conduziria ao rastreio e posterior aferição das aludidas malformações através da amniocentese. Assim como, poderia ter encaminhado a Recorrente para o seu amigo Dr. DD para fazer a ecografia da TN já que era considerado pioneiro nesse campo, na altura.

16. Pelo que podemos concluir que ao Réu médico se exigia que tivesse actuado com aquele grau de competência e cuidado que seria razoável e expectável de um profissional do seu gabarito, agindo em situações semelhantes.

17. Houve por banda dos Réus um erro médico, consistente numa falha profissional, não intencional, consistente na falta de realização de exames básicos de diagnóstico como as análises clínicas normais e ainda dos meios complementares de diagnóstico de que os Recorrentes nem sequer foram informados.

18. Dúvidas não se suscitam que a conduta dos Réus ao fornecerem à Autora uma «falsa» representação da realidade fetal, através dos exames ecográficos que lhe foram feitos e das análises e dos exames complementares de diagnostico que não fizeram contribuíram de forma decisiva para que a mesma, de forma descansada e segura, pensando que tudo corria dentro da normalidade, levasse a sua gravidez até ao termo: estamos em sede de causalidade adequada, pois a conduta dos Réus foi decisiva para o resultado produzido, qual foi o de possibilitarem o nascimento da EE com Sindrome de Down, o que não teria acontecido se aqueles mesmos Réus tivessem agido de forma diligente, impedindo assim a Autora de utilizar o meio legal que lhe era oferecido de não levar a termo a sua gravidez caso o entendesse, o que esta teria feito atentas as circunstâncias”.

19. Por sua vez, o douto Acórdão em apreço também está em contradição com o Ac. STJ de 12.03.2015 in dgsi Proc. 1212/08.4TBBCL.G2.S1, sobre a mesma questão fundamental de direito: As «wrongful birth actions» surgem quando uma criança nasce mal-formada e os pais, em seu próprio nome, pretendem reagir contra o médico e/ou instituições hospitalares ou afins, por não terem efetuado os exames pertinentes, ou porque os interpretaram, erroneamente, ou porque não comunicaram os resultados verificados, sendo considerada ilícita a omissão do consentimento informado sobre essa deficiência que, eventualmente, os impediu de terem optado pela interrupção da gravidez, proveniente de um erro no diagnóstico pré-natal.

20. Na responsabilidade contratual, a culpa só se presume se a obrigação assumida for de resultado, bastando, então, a demonstração do inadimplemento da obrigação, ou seja, que o resultado, contratualmente, assumido não se verificou, pelo que, face à culpa, assim, presumida, cabe ao devedor provar a existência de fatores excludentes da responsabilidade.

21. Uma das exceções, na área da Ciência Médica, em que se verifica a obrigação de resultado, situa-se no campo da realização dos exames laboratoriais e radiológicos.

22. Exprimindo a culpa um juízo de reprovabilidade da conduta do agente, que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade deste, que devia e podia actuar de outro modo, usando todos os conhecimentos, diligências e cuidados que a profissão, necessariamente, impõe e que teriam permitido dar a conhecer aos pais as malformações do filho, o erro de diagnóstico será imputável, juridicamente, ao médico, a título de culpa, quando ocorreu com descuido das mais elementares regras profissionais.

23. Existe nexo de causalidade suficiente, ou nexo de causalidade indirecto, entre a vida portadora de deficiência e a correspondente omissão de informação do médico pelo virtual nascimento o feto com malformação, devido a inobservância das «leges artis», ainda que outros factores tenham para ela concorrido, como seja a deficiência congénita.

24. Ocorre a presunção, a favor do credor da informação sobre o diagnóstico, do seu não cumprimento pelo médico, que faz parte dos denominados «deveres laterais do contrato médico», e pode ser causa de responsabilidade contratual, o teria feito comportar-se, de forma adequada, ou seja, no caso, que os pais teriam optado por abortar, caso soubessem da deficiência do filho.

25. As «wrongful birth actions» surgem quando uma criança nasce mal-formada e os pais, em seu próprio nome, pretendem reagir contra o médico e/ou as instituições hospitalares ou afins, pelo facto de os terem privado de um consentimento informado que, eventualmente, poderia ter levado à interrupção da gravidez [7].

26. Trata-se de um cenário que ocorre ou porque o médico não efectuou os exames pertinentes, ou porque os interpretou, erroneamente, ou porque não comunicou os resultados obtidos, não se mostrando, porém, responsável pela verificação da deficiência, propriamente dita, que surge, normalmente, desde o início da vida pré-natal.

27. Contudo, a omissão do esclarecimento sobre essa deficiência é considerada ilícita, enquanto que o comportamento alternativo lícito do médico teria evitado, na perspectiva dos autores, o nascimento e, deste modo, a vida, gravemente, deficiente, porquanto os mesmos alegam que se tivessem sido informados das malformações que o embrião/feto desenvolveu durante a gestação, teriam optado por interromper a gravidez, imputando, assim, aos réus um erro no diagnóstico pré-natal.

28. Com efeito, os chamados diagnósticos pré-natais são exames que se destinam a detetar anomalias fetais, durante a gestação, assumindo várias finalidades, nomeadamente, a de tranquilizar ou preparar os progenitores acerca da saúde do feto, permitir, quando possível, o tratamento do feto, indicar o modo mais adequado para a realização do parto, determinar o tratamento a ser dirigido ao recém-nascido e, nos países onde o aborto é permitido, o diagnóstico de uma deficiência fetal incurável possibilita ainda o exercício do direito à interrupção voluntária da gravidez.

29. Deste modo, o erro médico consistente na falta de deteção de uma anomalia embrionária ou fetal ou na ausência de informação acerca de tal quadro de deficiência, pode ocasionar a perda de chance de uma escolha reprodutiva, mais, especificamente, a realização ou não de um aborto, pelo que este específico direito à autodeterminação.

30. pelo que se o médico ecografista “fornece ao cliente um resultado cientificamente errado, então, temos de concluir que actuou culposamente, porquanto o resultado transmitido apenas se deve a erros de análise.

31. As açöes ou omissöes culposas que podem estar na origem dos danos indemnizáveis decorrentes da realização de um diagnóstico pré-natal contendem com a má execução de uma técnica, com a má interpretação de resultados ou a falta de comunicação dos resultados aos interessados.

32. Trata-se de um enquadramento clínico, baseado na capacidade subjectiva do médico para interpretar, de acordo com os indícios colhidos durante o exame preliminar, complementado por exames adicionais, se necessário, as condições de saúde do paciente.

33. Regressando ao caso em análise, impõe-se referir que a alegada falta médica residiu na omissão de todos os conhecimentos, diligências e cuidados para dar a conhecer aos autores a condição do filho, porque foram mal interpretados os exames e porque não foi comunicado aos pais o seu resultado, incumprindo os réus os deveres de informação, em desrespeito pelas «legis artis medicinae», acabando por causar um dano aos autores, uma vez que a sua adesão ao prosseguimento da gravidez não foi consequente a um consentimento esclarecido, dotado de todas as informações relevantes.

34. Se o médico executa ou interpreta mal um diagnóstico pré-natal produz um resultado negativo falso, concluindo-se a gravidez que a mãe teria podido interromper, podendo, então, dizer-se que a conduta culposa do médico foi a causa do nascimento com a deficiência grave que não foi diagnosticada.

35. De igual modo o douto acórdão em apreço também está em contradição com o Ac. do STJ de 26.6.2014 (Lopes do Rego), nº 1333-11-6tvlsb-l1-s1 que decidiu «age com culpa o médico anátomo-patologista que diagnostica erradamente, por deficiente interpretação dos exames realizados, doença oncológica ao lesado, omitindo e silenciando as dúvidas que resultavam razoavelmente da interpretação do resultado objetivo desses exames e não procurando supri-las através da realização de outros possíveis exames complementares ou da obtenção de outras opiniões credenciadas (…)” que como o próprio acórdão refere trata uma situação semelhante mas com resultados distintos.

36. Isto posto, os documentos juntos pelos AA. ao seu recurso para o Tribunal da Relação do Porto devem ser admitidos, sob pena de violação do art. 651º do CPC, porque são imprescindíveis para a descoberta da verdade material e porque a sua junção se mostrou necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância.

37. E como muito bem refere o acórdão recorrido e também foi dito repetidamente pelo Mº juiz a quo não é necessário juntar os diplomas legislativos, nem as circulares normativas que estão publicadas, e por isso são de aplicação oficiosa, motivo pelo qual os AA. não procederam à sua junção em audiência de julgamento e não por qualquer inércia.

38. Aliás, caso assim se não entendesse, o que só por mera hipótese processual se concebe, sempre o Tribunal deveria aceitá-los oficiosamente para estar munido de todos os elementos que lhe permitam uma justa composição do litígio, consentânea com a verdade material.

39. Quanto aos artigos científicos não tinham os AA. conhecimento dos mesmos, tendo de pesquisar após os depoimentos prestados pelos médicos em audiência de julgamento que levaram à prolação da sentença no sentido de que não haveria qualquer meio de diagnosticar a Sindrome de Down em 1995/1996 aplicável à Recorrente.

40. Ora, os artigos científicos juntos não constituem, salvo melhor opinião, pareceres médicos, antes retratam cronologicamente e em abstrato a introdução dos diversos meios complementares de diagnóstico pré-natal e de onde decorre que estes existiam muito antes de 1995. Motivo pelo qual se juntam agora mais três artigos científicos que vêm reforçar a existência do rastreio bioquímico do 1º e 2º trimestres.

41. Em 1984, Merkatz e colaboradores descreveram uma relação estatística entre níveis séricos de alfa-fetoproteina (AFP) baixos e fetos afetados por Trissomia 21.

42. Em 1988, foi descoberto que nas grávidas com fetos afetados por trissomia 21, o nível da hormona gonadotrofina coriónica (hCG) é mais elevado e o nível de estriol não conjugado é mais baixo (nE3). Numa avaliação retrospetiva a AFP, a hCG e o uE3 mostraram-se predictores independentes do Síndrome de Down, e também independentes da idade materna, conhecido como teste triplo.

43. Em 1992 van Lith e colaboradores descreveram a associação entre a inibina sérica e o Síndrome de Down que em conjunto com os outros marcadores (AFP, nE3, hCG) constitui o teste quádruplo.

44. Assim, a utilização conjunta da PAPP-A e da fração livre de b-hCG constitui o rastreio bioquímico do 1º trimestre que em associação com a translucência da nuca constitui o rastreio combinado.

45. Em 1992, Benaceraff e colaboradores definiram um índice para a deteção pré-natal de anomalias cromossómicas, que englobava prega da nuca, defeitos major, fémur curto, úmero curto e a dilatação pielocalicial. Para além destes, outros marcadores ecográficos do 2º trimestre têm sido definidos, nomeadamente braquicefalia, face plana, defeito septal aurículo-ventricular, atrésia duodenal, membros curtos, “sandal gap2 e climodactilia do 5º dedo” (cfr. Rastreio de cromossomopatias: novas teorias e velhos conceitos – Carla Ramalho – Hospital de São João).

46. Com efeito, “desde os anos 80 que existem diversos testes de rastreio pré-natal de T21. Estes testes baseiam-se na determinação dos níveis de marcadores bioquímicos no soro materno, expressos em múltiplos de mediana (MoM´s), associados ou não a dados ecográficos.

47. Em 1988, para aumentar a taxa de deteção do rastreio bioquímico do 2º trimestre, foi adicionado ao teste duplo (AFP eb-hCG) o estriol não conjugado (uE3) que se encontra diminuído no soro das grávidas de fetos com T21.

48. Nos anos 90, foram descritos marcadores ecográficos associados à T21, nomeadamente a translucência da nuca (TN).

49. Com efeito, é completamente improvável que os médicos 25 anos depois se lembrassem em que ano foi introduzida a medição da Translucência da Nuca ou os exames serológicos de rastreio, que eram feitos a todas as grávidas independentemente da idade e só se os resultados o indicassem era proposta a amniocentese.

50. Aliás como decorreu dos depoimentos dos médicos, os procedimentos variavam de Hospital para Hospital, cada um assumindo-se pioneiro em relação ao outro (a Srª Perita terá começado a medir a TN em 1996 no Hospital 2 e o Dr. DD em 1997 no Hospital 3 para depois todos convergirem em que tal só aconteceu a partir de 1997, perante as provas irrefutáveis constantes do processo clinico da segunda gravidez da Recorrente, que diga-se de passagem não aconteceu anos depois, mas antes poucos meses depois, já que a Recorrente engravidou da sua segunda filha apenas nove meses depois do nascimento da primeira.

51. Por outro lado, à época já existiam exames serológicos cujos resultados poderiam indiciar cromossomopatias, designadamente a Recorrente poderia ter realizado entre as 10 e as 13 semanas, uma análise de sangue da grávida para determinar os níveis de dois constituintes no sangue – a Beta-hCG livre e a Pregnancy Associated Plasma Protein A (PAPP-A), e perante os resultados ser proposta a amniocentese.

52. O chamado exame combinado de que o Recorrido médico tinha perfeito conhecimento, porque confessou no seu depoimento de parte: “Disse que as análises clínicas das grávidas por si acompanhadas eram feitas normalmente no centro de saúde. Mas não havia análises específicas para a detecção da trissomia 21. Apenas existia um exame combinado (com a ecografia e análises de alfafetoproteína). Estas análise era feita pelo Professor FF e pelo Dr. GG, em termos privados, em 1995, mas só quando havia suspeitas. Na altura havia um grande problema de falsos positivos nestes exames. Admite que os falsos positivos podiam ser afastados por amniocentese. Não se recorda se nessa altura esse exame combinado já era feito por rotina no Hospital 3. Antes disso, antes de 1995, tentou introduzir a rotina do exame combinado no Hospital 1 e não foi possível por o Conselho de Administração ter entendido que a relação entre valia do exame e os seus custos não permitia. Esses exames eram feitos entre as 12 e as 13 semanas de gravidez” (cfr. Ata da Audiência de Julgamento de 17.06.2019).

53. Não existiam guidelines escritas à época para acompanhamento da gravidez e deteção de malformações, sendo simples orientações verbais dos Diretores dos Hospitais, podendo variar de Hospital para Hospital.

54. Os testes serológicos que constituíam uma forma simples e barata de rastrear possíveis fetos com Síndrome de Down. E só depois perante tais resultados alterados, seria proposta à mulher grávida fazer a amniocentese.

55. Mas o que os médicos responderam não foi que tais testes não existiam, mas antes que os Hospitais nem sequer os faziam, porque a amniocentese só poderia ser feita às 16 semanas e como tal o seu resultado nunca chegaria a tempo de interromper legalmente a gravidez em Portugal.

56. Motivo pelo qual o acórdão recorrido até refere que esta ação nem sequer deveria ter sido admitida por inviabilidade legal. Pois segunda a lei portuguesa à época, jamais a A. poderia pedir uma indemnização por lhe ter sido negado o direito à sua livre autodeterminação reprodutiva porque quando soubesse o resultado já estaria fora do prazo legal para abortar,

57. Sustentando tal tese em vários dados erróneos, sendo o primeiro que a amniocentese só se fazia às 16 semanas e o resultado não viria a tempo porque demorava cerca de 4 semanas, quando está provado no processo clínico que poucos meses depois do nascimento da EE, a Recorrente fez, no Hospital 3, uma amniocentese às 13 semanas e o resultado chegou passado 8 dias, isto através de um Hospital Público, pelo que mais depressa seria se fosse diretamente ao laboratório privado.

58. E, em segundo lugar, sentencia que jamais a Recorrente poderia abortar legalmente em Portugal e que seria crime se o fizesse no estrangeiro, esquecendo-se que o Recorrente é de nacionalidade ..., podendo os pais decidir ter a filha ou poder abortar na ..., em cumprimento das leis desse país, onde à época não havia limite para a IVG no caso de malformações graves.

59. Dizer que a mulher portadora de um feto com Sindrome de Down com 90% de incapacidade não podia abortar pelo simples facto de que o prazo em Portugal já tinha passado, por culpa das próprias instituições que deveriam prestar tais cuidados de saúde em tempo útil ou pelo desajuste da legislação em relação à realidade, é um verdadeiro abuso de direito e é uma vergonha fazer passar tal mulher por criminosa.

60. Acresce que, tal discussão se revela absolutamente inútil, porque se a mulher tivesse abortado, mesmo que ilegalmente, já não viria agora pedir qualquer indemnização por ter tido uma criança deficiente.

61. Trata-se de lhe ter sido negado o seu direito à autodeterminação reprodutiva.

62. Quanto à apreciação da matéria de facto, lamenta-se profundamente o pré-julgamento subjacente ao Acórdão sub judice, que para além de rejeitar qualquer prova documental em contrário do referido pelos médicos, que vai em contrário da confissão do próprio Recorrido médico.

63. Por isso, não recorreram a um Centro de Saúde ou a um Hospital Público, porque pretendiam um acompanhamento de excelência da sua gravidez por um dos mais reputados obstetras naquela data, que até foi deputado na Assembleia da República, com uma experiência e um conhecimento muito superior à média e até dos mais avançados para a época, já que confessou que enquanto Diretor de Obstetrícia no Hospital 1, antes de 1995. tentou implementar o rastreio combinado o que só não conseguiu por motivos económicos.

64. Ou seja, os Recorrentes não alucinaram esse rastreio existia em 1995, o Recorrido médico tinha conhecimento do mesmo e mais concretamente dos laboratórios que o faziam, pelo que não se entende como não o fez à Recorrente, aliás nem sequer a informou da sua existência, nem da amniocentese como também confessou.

65. Mas vejamos bem os factos, porque iria a Recorrente confessar que o Recorrido médico lhe fez duas ecografias, das quais não tem imagens nem relatórios, mas isso era normal segundo o próprio Recorrido médico que confessou não fornecer tais documentos às suas pacientes, e iria dizer que não fez quaisquer análises clínicas como decorre do que está escrito no processo clínico aquando do seu internamento para o parto, antes de saber que a sua filha ia nascer com qualquer problema de malformação.

66. E como aliás, o Dr. HH, Pediatra, confirmou que constava da ficha clínica da EE embora tivesse sido a Recorrente a dizer-lhe, ora quem mais poderia ser?

67. Sem prescindir, o ónus da prova da realização quer das ecografias, quer das análises clínicas, quer de qualquer outro meio complementar de diagnóstico competia ao R. médico, já que ao presumir-se a sua culpa, também está inerente o seu incumprimento das leges artis.

68. Por outro lado, mesmo que o Recorrido médico venha alegar que já não tem o processo clínico da Recorrente porque já decorreram vinte anos, tal não implica a inversão do ónus da prova.

69. Certo é que o Recorrido médico não provou que cumpriu as leges artis, não existindo um único facto provado nesse sentido.

70. Porém ficou provado que, na altura, não foi fornecido aos Autores qualquer documento, nomeadamente a aludida ecografia nem qualquer relatório nem o Réu solicitou a realização de qualquer ecografia por terceira pessoa; aí (Hospital 3) foi-lhe solicitado o livro de grávida, as análises clínicas e as ecografias, ao que a Autora respondeu que não tinha nada; os Autores não tiveram a possibilidade de optar pela interrupção da gravidez da filha EE.

71. Por outro lado, o Acórdão em apreço fez tabua rasa da confissão do Recorrido médico: Admite como possível que já se fizessem nessa data ecografias no Hospital 3 de forma a medir a translucência da nuca. Admite que o seu colega Dr. DD poderia estar a iniciar esse exame, nesse hospital e na altura. Se houvesse risco, em 1995, o protocolo mandava fazer amniocentese. Não havia análises específicas para a detecção da trissomia 21. Apenas existia um exame combinado (com a ecografia e análises de alfafetoproteína). Estas análise era feita pelo Professor FF e pelo Dr. GG, em termos privados, em 1995, mas só quando havia suspeitas. Na altura havia um grande problema de falsos positivos nestes exames. Admite que os falsos positivos podiam ser afastados por amniocentese. Antes disso, antes de 1995, tentou introduzir a rotina do exame combinado no Hospital 1 e não foi possível por o Conselho de Administração ter entendido que a relação entre valia do exame e os seus custos não permitia. Só se houvesse sinais de alguma deformidade visível na ecografia feita no seu consultório é que pediria ecografia a serviços externos, normalmente públicos. O depoente terá continuado a seguir a Autora depois disso no seu consultório e tranquilizou-a dizendo-lhe que a apendicectomia não interferira com a sua gravidez. afirmou ter proposto projecto de lei de alargamento de prazo de aborto porque na prática clínica havia um problema recorrente porque os resultados dos exames eram tardios e já não permitiam a interrupção da gravidez antes das 16 semanas.

72. De qualquer forma relembra-se aqui que à data não havia nada escrito nesse sentido, variando até bastante os depoimentos médicos no sentido de quem era considerada grávida de risco.

73. Ora, o Recorrido médico sabe muito bem o que fez, ou melhor o que não fez, por isso o confessou serenamente confiante de que jamais seria condenado porque de qualquer forma os resultados da amniocentese nunca chegariam a tempo da interrupção voluntária da gravidez no prazo legal. Por isso não teve problema em confessar que conhecia o exame combinado (ecografia com alfafetoproteina) e até que já se media a TN, mas que tal não se aplicaria à Recorrente.

74. Vieram depois os Colegas em seu auxílio a desmentir tudo o que ele sabia, porque afinal o Recorrido estaria com problemas de memória e não sabia aquilo que confessou saber, ou melhor, sabia mas isso foi depois em 1997 e não em 1995, quando o Recorrido médico afirmou expressamente o contrário.

75. Ora, a confissão escrita do Recorrido tem o valor de prova plena, não podendo ser refutada por testemunhas que não presenciaram qualquer facto nem faziam parte da Recorrida Clínica, não sabendo qual a leges artis aí praticada, nem quais os exames médicos realizados e respetivos resultados, que aliás só poderiam ser provados por prova documental.

76. Resumindo, as testemunhas médicos que não assistiram a nada do acompanhamento da gravidez da EE no consultório particular do médico, sabem mais do que ele próprio.

77. E são tão credíveis como o Dr. HH que veio dizer que a EE não tinha malformações, quando o próprio relatório médico de fls. refere “cabeça anormal”, tendo o Dr. DD referido que tal significava facie (não é o que está escrito) e acrescentado que a EE não tinha problemas de imunidade resultantes da sua patologia, quando resulta o contrário do processo clínico da EE.

78. Que credibilidade tem a Drª II que vem dizer que tais procedimentos só começaram em 1997 e não em 1995/1996, para gravidas com mais de 45 anos (enganando-se aqui em 10 anos).

79. E a Srª perita ficou-se ali no meio dizendo que não havia nada escrito à época sobre qual era o procedimento no acompanhamento da gravidez, mas que os resultados da amniocentese nunca chegavam a tempo de abortar legalmente.

80. Porém acabou por admitir que em 1996 já media a TN no Hospital 2.

81. Sem prescindir, não ficou provado que a Recorrente nunca efetuou durante toda a gravidez qualquer análise clínica a pedido do Réu ou qualquer outro exame complementar de diagnóstico, mas também não ficou provado que o tenha feito. Aliás o médico confessou que normalmente mandava fazer as análises fora e que não lhe fez qualquer outro exame para além das duas ecografias de que não existe nem imagens nem resultados. Admitiu inclusive não ser habitual da sua parte entregar os relatórios ecográficos à grávida.

82. O Recorrido médico explicou que o alargamento de prazo legal para a interrupção da gravidez foi uma das suas lutas políticas enquanto deputado por estar ciente, como todos os seus colegas de profissão na altura, da quase total inutilidade da lei em vigor já que era recorrente os resultados dos exames serem tardios e já não permitirem a interrupção da gravidez antes das 16 semanas.

83. Isto posto, dada a presunção de culpa e visto se tratar de uma obrigação de resultado porque se trata de um médico especialista, era aos Recorridos que competia provar que cumpriram a leges artis, compatível com uma exigência superior à mediania por ser um obstetra reputado.

84. Pelo que lhe era exigível um acompanhamento melhor do que o fornecido pelos Hospitais Públicos, tendo de utilizar todo o seu know how específico superior ao dos restantes médicos, tanto mais que confessou que em 1995 já sabia do exame combinado e quais os laboratórios que o faziam.

85. Assim sendo, deveria ter informado os Recorrentes de todos os meios complementares de diagnóstico ao seu alcance, quer dos testes de rastreio bioquímicos e ecográficos, quer da própria amniocentese, porque como é óbvio os Recorrentes sempre manifestarem a preocupação que o seu bebé nascesse saudável, ou seja, sem malformações, senão não precisavam de diagnostico pré-natal e deixavam a natureza cumprir a sua tarefa.

86. De nada vale dizer que havia muitos falsos positivos nesses testes, porque isso logo seria resolvido com a amniocentese, que seria sempre melhor do que correr o risco de ter um filho com uma malformação grave e permanente.

87. Por conseguinte, só nos resta concluir que aquele especifica médico especialista que foi escolhido pelo seu superior saber e experiência, não utilizou todo o seu conhecimento para alcançar um diagnóstico que evitasse o nascimento de uma criança com Síndrome de Down.

88. Sem prescindir, como afirmam os médicos da Maternidade ..., “desde os anos 80 que existem diversos testes de rastreio pré-natal de Trissomia 21. Estes testes baseiam-se na determinação dos níveis de marcadores bioquímicos no soro materno, expressos em múltiplos da mediana (MoM’s), associados ou não a dados ecográficos”

89. já existiam estudos à época que comprovam que havia outros marcadores que, por se mostrarem irregulares, sugeriam indícios de Síndrome de Down,

90. Sem prescindir, nos anos 90, foram descritos marcadores ecográficos associados à Trissomia 21, nomeadamente a translucência da nuca (TN) – tudo conforme estudo científico supra-referido Rastreio de cromossomopatias: novas teorias e velhos conceitos.

91. Pelo que, mesmo que em 1995, ano da gravidez da Recorrente, não lhe tivesse sido sugerida uma amniocentese, por ser limitada devido ao seu risco associado (causava a morte do feto em 1% dos casos e até anomalias de crescimento de membros), esses riscos já existiriam com a própria patologia.

92. Sem prescindir, constam do processo documentos, como o processo clínico da Recorrente e da sua filha EE, e outros meios de prova plena, como a confissão judicial do 2º R., que, só por si, implicam necessariamente uma decisão diversa da proferida.

93. O Tribunal recorrido, salvo o devido respeito por melhor opinião, errou ao não valorar devidamente o depoimento de parte do R. médico que constitui confissão judicial dos factos nos quais teve participação pessoal e direta, e que lhe são desfavoráveis.

94. Nota-se que apesar de a Recorrente intervir como advogada em causa própria e ter sido ela a efetuar as perguntas ao Recorrido médico, isso não faz com que os factos se tornem pessoais e diretos, pois que a Recorrente interveio como mandatária e não como parte, pelo que tal não invalida a confissão que consta da ata supra-referida.

95. Independentemente do que podia ser ou não detetável na ecografia, a questão prende-se à partida com o facto de não ter sido realizada nenhuma de que tenhamos provas físicas no acompanhamento da gravidez, pelo que jamais se poderia saber, ab início, se se via alguma anomalia no crânio ou não.

96. Seria o Teste Triplo que dando “positivo”, reconduzia a exames para a determinação do número de cromossomas fetais, nomeadamente por biópsia das vilosidades coriónicas ou amniocentese.

97. Assim, independentemente da data em que chegaria o resultado da amniocentese ser antes ou depois do prazo legal de interrupção da gravidez, os Recorrentes saberiam que a sua primeira filha, muito querida e desejada, padecia de Trissomia 21, o que lhes permitia ter tomado outras decisões, como abortar no estrangeiro ou simplesmente prepararem-se de outra maneira para as incapacidades de que a sua filha viria a sofrer, de forma permanente e duradoura.

98. Pelo que, não decorreu nenhum espaço de tempo significativo entre as duas gravidezes, para que não possa ser feita uma comparação, porque a Medicina não evoluiu assim tanto com o passar de nove meses, nem foram obtidas novas formas e métodos de deteção, que aliás se mantêm os mesmos quanto à Sindrome de Down há várias décadas.

99. Porém, longe estavam os Recorrentes de saber, o que só com esta ação perceberam, que tais médicos eram amigos do Recorrido médico e o que na altura disseram “off record”, mas que nunca iriam testemunhar contra o Dr. JJ, efetivamente puseram em prática 20 anos depois, salvando o Colega da sua própria confissão dos factos.

100. Como pode um médico saber com certeza absoluta quais eram as guidlines em 1995 ou em 1997, se não havia qualquer documento escrito nesse sentido, antes se tratava de orientações verbais que variavam de hospital para hospital e de médico para médico?

101. Como pode a perita do Colégio de Especialidade assegurar que fazia o exame da translucência da nuca no ano de 1996, mas já não em 1995? Onde é que isso está escrito ou provado, quando existem dezenas de artigos científicos a dizer o contrário que o Tribunal da Relação não valorou.

102. Acresce que, também parece irrisório o acórdão referir que anos depois, na segunda gravidez da Recorrente, as condições dos laboratórios privados eram diversas. Quando foi o próprio Recorrido médico quem confessou que os hospitais públicos, nomeadamente aquele em que trabalhou como Diretor de Obstetrícia em ..., não implementou logo aqueles procedimentos e técnicas por questões financeiras, preferindo recorrer a laboratórios privados.

103. Alguma jurisprudência acredita que o acompanhamento da gravidez é uma obrigação de resultados, pois que um filho nascer é uma condição natural, nascer saudável é que é a razão pela qual se recorre a um médico.

104. Os exames de rastreio e de diagnóstico são, por si só, obrigações de resultados,

105. Sem prescindir, também refutamos que haja inversão do ónus da prova em virtude do tempo decorrido, não tendo o médico obrigação de guardar por 20 anos o processo clínico da Recorrente.

106. não tem igual tratamento quanto à falta do documento que considerou a Recorrente como grávida de risco e desapareceu do processo hospitalar (embora conste de fls.     a cruz a assinalar gravidez de risco), que aliás não está completo conforme foi constatado pelos próprios médicos e pela Mº juiz a quo, pois nem sequer constam do mesmo as alegadas análises que a Recorrente teria sempre que fazer antes de ser operada à apendicite aguda.

107. Pois a inexistência das análises que só por documentos se podem provar, equivale a não se terem realizado. E, o mesmo se poderá dizer das ecografias, que só por documentos se podem provar.

108. Aliás, se a Recorrente tivesse realmente a deturpar a realidade, bastar-lhe-ia ter alegado que nunca fez qualquer ecografia durante toda a gravidez, e o Recorrido médico não teria como provar que as fez e como tal seria de imediato condenado por violação da leges artis.

109. No direito português, Guilherme de Oliveira defende que está previsto o dever jurídico de documentação. Este dever encontra-se vertido no art. 77º, n.º 1 Código Deontológico da Ordem dos Médicos. Esta norma deontológica tem a virtualidade heurística de densificar o conteúdo normativo do art. 7º, al. e) do Decreto-Lei n.º 373/79, de 8 de Setembro (Estatuto do Médico)

110. Outra base legal encontra-se nos artigos 573º e 575º CC, que regulam a obrigação de “informação” e de “apresentação de documentos” - FIGUEIREDO DIAS/ SINDE MONTEIRO.

111. A afirmação deste dever de documentação tem também influência na distribuição da carga probatória. O médico fica prejudicado no plano probatório não apenas se subtrair ou alterar documentos que têm importância para esclarecer a controvérsia (art. 344.º, n. º2 do Código Civil), mas também se a redacção dos actos médicos for inexacta ou incompleta.

112. Efectivamente, entende-se que o processo clínico pode ter uma importância decisiva num processo de responsabilidade médica. Entre nós, o art. 344º, n.º 2, CC estabelece a inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova à parte onerada.

113. O médico, seja qual for o enquadramento da sua ação profissional, deve registar, de forma clara e detalhada, os resultados que considere relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo. Tem como finalidade a memória futura.

114. Resulta do exposto que o médico deve preservar o processo clínico do paciente sem limite de prazo e mesmo que cesse a sua atividade deve comunicar à Ordem quem fica com o espólio do seu consultório.

115.  Porém, os Recorridos não apresentaram qualquer documentação do processo clínico ou ficha da Recorrente, nem qualquer exame médico e seus resultados, nem do diagnóstico do acompanhamento de toda a gravidez. Assim sendo, por mais esta razão deve ser considerado invertido o ónus da prova e declarados provados os factos invocados pelos Recorrentes.

116. Não nos esqueçamos que não existe um único documento do processo clínico de acompanhamento da gravidez da EE pelos Recorridos. Os processos clínicos que constam dos autos são os processos hospitalares da Recorrente com o acompanhamento das duas outras gravidezes e o processo clínico da EE.

117. Ora, o que os médicos disseram foi exatamente o contrário, que por os prazos serem tão curtos e as respostas não chegarem a tempo, nem sequer faziam aqueles exames e que aliás à época nem haveria IVG por malformações que não fossem o feto ser inviável, que não é o que consta da Lei.

118. Porém, o aqui R. médico sabia de todos esses exames que até tentou implementar no Hospital 1 e dos prazos apertados para os hospitais públicos, o que não acontecia com os laboratórios privados (a que os Recorridos podiam aceder de imediato que até conheciam pelo nome os colegas que os faziam) e a que os mesmos hospitais públicos começaram a recorrer, sendo dada a resposta em tempo útil, como aconteceu poucos meses depois, na segunda gravidez da Recorrente.

119. As crianças com síndrome de Down geralmente têm faces dismórficas com aparência achatada e olhos oblíquos, boca pequena e orelhas pequenas e baixas.

120. Ora, vejamos foi notória a perplexidade de todos os médicos quando confrontados com a amniocentese realizada às 13 semanas + (o que pode significar mais um dia ou mais 6 dias, tendo o acórdão presumido que seria perto das 14 semanas), de qualquer forma ia a contrário de tudo o que tinha sido dito pelos médicos até então, ou seja, que a amniocentese só se fazia às 16 semanas e que o seu resultado demoraria cerca de 4 semanas, ou seja, nunca chegaria a tempo de abortar legalmente.

121. Mas afinal, a amniocentese tinha sido feita às 13 semanas, num Hospital público, coincidentemente pelo Dr. DD, passados poucos meses depois do nascimento da EE, mais concretamente em 24.03.1997, um ano após o nascimento da EE, com resultado em 01.04.1997, do Laboratório Privado ..., que o Recorrido médico também referiu no seu depoimento de parte (cfr. fls. 128 e 134 do processo clínico da Recorrente).

122. Por outro lado, o prazo legal de aborto ainda não tinha sido alargado para as 24 semanas, pois só foi alterado pela Lei nº 90/97 de 30 de Julho, ou seja, quando a Recorrente fez a dita amniocentese a Lei era exatamente a mesma que estava em vigor aquando do acompanhamento da gravidez da EE.

123. E nessa data (um ano depois e não anos depois) as condições dos laboratórios privados não eram diversas, eram exatamente iguais àquelas que o Recorrido médico descreveu que existiam em 1995 nos Laboratórios Privados do ... e outros.

124. Ou seja, a única coisa que mudou foi que nessa gravidez já tinha antecedentes da doença no nascimento da sua filha EE, mas mesmo assim e contrariamente aquilo que foi dito por todos os médicos, não foi proposta logo a amniocentese à Recorrente, fez antes todos os testes serológicos de rastreio que falamos supra.

125. Com efeito, se é verdade que os exames sanguíneos não revelariam essa anomalia, mas apenas, a amniocentese, não é menos verdade que são exames de rastreio não invasivos que podem detetar anomalias. que todos os médicos inquiridos referem a exigência de análises clínicas.

126. Não podemos concordar com a absolvição do réu pessoa singular, na medida em que nos autos, este não agiu como auxiliar, nem sob as ordens e direção da Recorrida Clínica, de que também é sócio e gerente, sendo este completamente independente da mesma assumindo as suas decisões, não obedecendo a qualquer ordem e tendo sido ele o escolhido pelos Recorrentes para prestação dos cuidados de saúde Pelo que, haverá aqui uma responsabilidade solidária dos Recorridos.

127.  O grau de qualidade técnica depende, como vimos, da concreta experiência profissional do médico, que condiciona o padrão de comportamento que o mesmo deve realizar na sua atividade.

128.  E, mais, se nove meses depois (e não dois depois) beneficiou de muitos outros exames na sua segunda gravidez isso não se ficou a dever aos avanços da medicina e da sociedade, nem à alteração da Lei do aborto, porque todos esses exames de rastreio já existiam anteriormente, como confessou o Recorrido médico.

129. Pelo que, tais exames complementares de diagnóstico supra-referidos com marcadores bioquímicos e ecográficos de anomalias – teste combinado) já era por isso exigível aos Recorridos, com o dever de informação sobre tais testes bem como da amniocentese, para que a Recorrente tivesse podido optar pela IVG em tempo legalmente permitido, como aconteceu com a segunda gravidez, num hospital público e não na clínica de um reputado especialista, que até fazia as ecografias no seu consultório.

130. Acresce que, o Recorrente marido é de nacionalidade ..., país onde era possível à época a interrupção voluntária da gravidez, sem limite de tempo, no caso de o feto ser atingido por uma anomalia particularmente grave e reconhecida como incurável (3 Avril 1990 Loi relative à l´interruption de grossesse)

131. Podia ter sido realizado entre as 15 e as 22 semanas de gestação o Teste Triplo, onde um dos três marcadores bioquímicos é a alfafetoproteína.

132. Existe vasta jurisprudência a considerar a obrigação do médico obstetra como de resultado, nomeadamente por se tratar de um médico especialista e ainda como no caso dos autos por ser altamente conceituado entre os seus pares, o que acarreta uma responsabilidade redobrada.

133. Ainda é mais vasta e unanime a jurisprudência relativamente aos exames pré-natais serem obrigações de resultado.

134. O erro médico consistente na falta de deteção de uma anomalia embrionária ou fetal ou na ausência de informação acerca de tal quadro de deficiência, pode ocasionar a perda de chance de uma escolha reprodutiva.

135. O dano realmente existente é a circunstância de a mulher ter sido privada de uma decisão pessoal e íntima decisiva, relacionada com a sua autonomia reprodutiva, desconsiderando a decisão efectiva que ela teria tomado, a qual é irrelevante para a existência do dano.

136. Sem prescindir, subsiste o choque e o trauma sentidos pelos pais quando finalmente percebem a situação da sua filha, frustrando assim as suas (legítimas) expectativas.

137. Existe uma sub-modalidade do contrato total é o chamado contrato total com escolha de médico.

Requereram a revogação do acórdão recorrido.


 ***

                                                 

I.2 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:

1. Admissibilidade da junção de documentos em sede de recurso de revista

2.  Admissibilidade da junção de documentos em sede de recurso de apelação

3. Violação das regras de direito probatório material– confissão do réu.

4. Errado diagnóstico pré-natal por omissão de exames de diagnóstico que detectam a presença de síndrome de Down em fase de gestação

5. Dano sofrido pelos autores

6. Responsabilidade civil solidária dos réus.

                                                            

                                                *

I.3 - Os factos

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1. O segundo Réu é médico registado na Ordem dos Médicos, com a Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia.

2. Nos anos de 1995 e 1996, tinha consultório particular na Praceta ..., ..., no ..., girando sob o nome C..., Lda., onde prestava serviço e de que era sócio-gerente.

3. O Réu foi deputado pelo ..., na VII legislatura função que exerceu, nomeadamente, nos anos de 1995 e 1996, foi nomeado Director do Serviço de ginecologia obstetrícia do Hospital 1 e 1995 e exerceu funções como ginecologista obstetra na Ordem do Terço, no ... em altura não concretamente apurada, mas situada no mesmo período temporal.

4. Os Autores procuraram o Réu em Junho de 1995, no sentido de saber se haveria algum problema já que a Autora mulher não conseguia engravidar tendo o mesmo, nessa consulta, realizado exame ginecológico à Autora.

5. Passados poucos dias, os Autores contactaram o Réu em virtude de autora ter sofrido de hemorragia e dores e aquele recomendou à Autora que ficasse em casa em repouso.

6. No mês de Agosto de 1995, a Autora mulher comunicou telefonicamente ao 2º R. que se encontrava grávida, conforme teste efectuado na farmácia, e solicitou a marcação de uma consulta.

7. A Autora passou a ser seguida na consulta de Obstetrícia, pelo segundo Réu, no seu consultório particular, sito na Praceta ..., ..., no ... que girava sob o nome de C..., Lda. onde teve várias consultas entre elas em 24 de Agosto de 1995, 20 de Novembro de 1995, 22 de Janeiro de 1996 e 19 de Fevereiro de 1996.

8. O Réu procedeu à realização da primeira ecografia de seguimento da gravidez no seu consultório, tendo informado os Autores de que se encontrava tudo bem, sem, contudo, lhes fornecer qualquer documento, nomeadamente a aludida ecografia ou qualquer relatório.

9. Cerca do quarto mês de gravidez, em Outubro de 1995, os Autores procuraram o segundo Réu no referido consultório, devido ao facto de a Autora mulher se queixar de fortes “dores de barriga”.

10. O Réu encaminhou a Autora para a Urgência do Hospital 3, que era mesmo em frente do seu consultório.

11. No referido Hospital foi a Autora diagnosticada com uma apendicite aguda e submetida a intervenção cirúrgica de urgência.

12. A Autora continuou a ser seguida pelo segundo Réu no seu consultório na Clínica Obstétrica ... tendo este procedido à realização da segunda ecografia após o que informou os Autores de que se encontrava tudo bem com o bebé.

13. Na altura não foi fornecido aos Autores qualquer documento, nomeadamente a aludida ecografia nem qualquer relatório nem o Réu solicitou a realização de qualquer ecografia por terceira pessoa.

14. No início do mês de Março de 1996, a Autora mulher começou a sentir dores, deslocou-se ao serviço de Urgências do Hospital 3 no ..., convencida de que o bebé iria nascer.

15. Aí foi-lhe solicitado o livro de grávida, as análises clínicas e as ecografias, ao que a Autora respondeu que não tinha nada.

16. O réu nunca facultou à autora o “livro de grávida”.

17. A Autora ficou internada no Hospital 3 até ao dia 16 de Março de 1996, data em que nasceu, de parto natural com ajuda de ventosa, a sua filha EE, portadora do Síndrome de Down.

18. Os Autores só tomaram conhecimento de que a sua filha era portadora do Síndrome de Down, após o seu nascimento.

19. Os Autores ficaram muito chocados, por ser a sua primeira filha, muito desejada e por não terem qualquer conhecimento prévio de que o bebé era portador de qualquer deficiência.

20. Foram informados de que o bebé tinha os estigmas de Down (prega na mão, orelhas pequenas, língua de fora) mas que seria necessário proceder a um exame sanguíneo específico – o cariótipo - no instituto de Genética Médica, a fim de ter a certeza do Síndrome de Down e de saber qual o tipo bem como se haveria ou não problemas genéticos dos progenitores e que o resultado de tais exames demoraria cerca de um mês.

21. A Autora permaneceu internada no Hospital 3, até a filha EE fazer os exames cardíacos e renais.

22. Após a alta, foi feito o exame ao cariótipo no Instituto de Genética ... d.... tendo obtido o diagnóstico de Síndrome de Down -Trissomia 21 do Tipo Livre.

23. Os Autores não tinham nem têm qualquer antecedente familiar de qualquer doença do foro genético ou outro.

24. Posteriormente, os Autores tiveram duas filhas, sem qualquer problema genético.

25. A Autora à data do parto tinha apenas 30 anos de idade e gozava de boa saúde física e psicológica.

26. Era a sua primeira gravidez, não tendo sofrido anteriormente qualquer aborto.

27. Não tinha antecedentes familiares de qualquer doença genética ou outra.

28. De igual modo o Autor também não tinha antecedentes familiares de qualquer doença genética ou outra.

29. O Réu tinha perfeito conhecimento de que Autora tinha sido operada à apendicite aguda durante a gravidez.

30. Após o parto, o Réu apareceu no Hospital 3, por sua iniciativa própria, e disse à Autora mulher para não se preocupar que logo engravidaria novamente e que tudo iria correr bem tendo aquela ficado profundamente perturbada, a chorar e não sendo capaz de lhe responder.

31. Os Autores ficaram profundamente afectados com o diagnóstico referido em 22, psicologicamente abalados e muito deprimidos.

32. A Autora mulher não queria ver ninguém, queria morrer e que a bebé morresse também.

33. Andou deprimida durante vários meses, sem vontade de viver.

34.  O que afectou a sua capacidade para o trabalho, a sua auto-estima e até a sua relação conjugal.

35. O Autor também ficou profundamente abalado, consternado e angustiado não só pela sua filha ter nascido com o Síndrome de Down, mas ainda por ver a sua mulher naquele estado prostrado.

36. Os Autores tiveram desde o nascimento da EE várias consultas de todas as especialidades médicas para saber do real estado de saúde da sua filha, designadamente pediatria, cardiologia, oftalmologia, otorrino, estomatologia.

37. Durante os primeiros anos da vivência da sua filha, a Autora mulher despendeu grande parte do seu tempo em consultas médicas com a sua filha, em terapia precoce, em terapia ocupacional, em terapia da fala, e outros tratamentos complementares.

38. Com uma média semanal de pelo menos, uma consulta médica, uma terapia precoce ou uma terapia da fala.

39. Com a consequente perda de rendimento no exercício da sua profissão de advogada.

40. A EE teve frequentes viroses, devido à sua fraca imunidade e contraiu, pela mesma razão duas pneumonias, tendo estado internada no Hospital 3, no ... em Abril de 2000.

41.  Ainda hoje, a EE necessita de um acompanhamento permanente em Oftalmologia, sendo necessário substituir os óculos periodicamente, com um elevado custo já que a sua miopia é muito elevada devido ao Síndrome de Down, estando agora em vista a possibilidade de ser operada.

42.  A EE poderá vir a beneficiar de uma correcção ortodôntica com implantologia devido a falta de dentes (genesia) e à sua especial morfologia derivada do Síndrome de Down,

43.  Os Autores recorreram sempre que possível aos serviços públicos, nomeadamente ao Hospital 3, para acompanhamento e tratamento da sua filha, não só pelas despesas que tais consultas de especialidade acarretam, mas também por já não confiarem na medicina privada.

44.  Os Autores recorreram também sempre que possível à terapia precoce e ocupacional fornecida pelo Centro de ..., no ..., sem qualquer custo.

45.  Tiveram, contudo, de arcar, durante vários anos, com as despesas de terapia da fala, porque não eram comparticipadas pelo sistema nacional de saúde, bem como custearam aulas de natação que foi indicada pelo médico, para estimulação motora.

46.  Os Autores pagaram a ajuda de uma terceira pessoa para cuidar da EE, por período de tempo não concretamente determinado.

47.  Os Autores têm sentido o preconceito social e as dificuldades quotidianas de ter uma criança com uma deficiência mental.

48.  A EE tem uma incapacidade permanente global de 90%.

49.  Os Autores tentaram dar à sua filha uma vida o mais normal possível integrando-a num infantário a partir dos dois anos de idade e posteriormente em escolas públicas, mas sempre com o acompanhamento do ensino especial.

50.  Contudo, a EE não consegue ler nem escrever, não conhece o dinheiro, não sabe as horas.

51. Estando agora findo o seu percurso de escolaridade obrigatória, a EE não tem condições para arranjar um emprego que lhe permita prover ao seu próprio sustento.

52. Tendo sido as alternativas apresentadas a da sua transição para uma CERCI, o que Autores recusam.

53.  A EE estava, à data da propositura da acção, a fazer um estágio não remunerado para aquilatar da possibilidade de ter uma actividade socialmente útil, em vez de ficar numa CERCI ou em casa para o resto da vida.

54.  A EE vai precisar sempre de ajuda e supervisão durante toda a sua vida.

55.  Previsivelmente nunca vai conseguir prover ao seu próprio sustento, ficando a cargo dos Autores enquanto estes foram vivos ou, posteriormente, a cargo das irmãs.

56.  O nascimento de uma filha com Síndrome de Down abalou profundamente os Autores e alterou para sempre o seu modo de vida e de encarrar o futuro, estando cientes de que esta filha precisara sempre de ser ajudada e orientada na sua vida quotidiana.

57. Os Autores sofrem com a ideia de que a EE um dia tenha de ser colocada numa instituição.

58.  A recusa de tal ideia constitui preocupação acrescida dos Autores em relação às suas outras filhas que temem venham a sentir a EE como um peso.

59. As duas outras filhas dos Autores vivem com o estigma de ter uma irmã deficiente e a responsabilidade de, eventualmente, no futuro terem de prover à sua habitação e ao seu sustento.

60. Os Autores não tiveram a possibilidade de optar pela interrupção da gravidez da filha EE.

61.  Os Autores afastaram-se do convívio com os seus amigos desde o nascimento da EE.

62.  A segunda filha dos Autores nasceu em .../.../1997.

63. A terceira filha dos Autores nasceu em .../.../2002.


*

II - Fundamentação

1. Admissibilidade da junção de documentos em sede de recurso de revista

Os processos judiciais foram concebidos para estabelecerem as regras a seguir com vista à correcta análise das pretensões sujeitas a juízo seguindo um ritual conhecido, justo e eficaz quer para a efectivação dos direitos das partes quer para o adequado uso dos meios humanos e materiais de que dispõe o sistema judicial.

Assim, nos articulados são vertidas as pretensões das partes que permitirão que adiante seja definido o objecto do processo, fixados os temas de prova e indicados os meios de prova.

Em princípio a prova realiza-se perante o tribunal de 1.ª instância, sendo passível de reanálise em segunda instância, em certos casos.

O Supremo Tribunal de Justiça não reanalisa a prova, aplica o direito à prova fixada pelas instâncias que não pode alterar, salvo os casos previstos no art.º 674 º, nos termos do disposto no art.º 682.º, n.1 e 2 do Código de Processo Civil.

 A sua intervenção a nível dos factos provados encontra-se pois, absolutamente confinada às duas situações previstas no art.º 674.º do Código de Processo Civil:

1 - ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto;

1 - ofensa de uma disposição expressa de lei que fixa a força de determinado meio de prova.

Não releva, pois, para a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça qualquer discordância do recorrente com o probatório seja ela subjectiva ou objectivamente fundada.

Por razões de mera lógica, sendo aqueles os poderes do Supremo Tribunal de Justiça ao nível da prova, a junção de documentos nesta fase de recurso apenas é possível na medida em que possa ter repercussões ao nível de qualquer uma das situações previstas no art.º 674.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.

 Com data de 22 de Setembro de 2021 os autores vieram juntar aos autos as suas alegações de revista e fizeram junção aos autos de três documentos que, seguindo as informações deles constantes, se enunciam da forma seguinte:

Doc. 1 - Artigo de revisão intitulado Rastreio de cromossomopatias: novas teorias e velhos conceitos II, da autoria de Carla Ramalho - Assistente Hospitalar do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia, Hospital de São João E.P.E. e Docente Voluntária do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto – publicada na Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa (AOGP) - revista propriedade da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia (FSPOG), no volume 3 do ano de 2007.

Doc. 2 - Artigo intitulado Alterações Morfológicas e Bioquímicas na Trissomia 21, da autoria de Ana Paula Reis, Sara Azevedo, Andrea Lebre, Eduarda Valente, Lurdes Lima, e Ana Cunha  - Assistente Hospitalar do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia, Hospital de São João E.P.E. e Docente Voluntária do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto – publicado em Arquivos de Medicina em 2015; 29(3):88-92 que, como dele consta é um estudo prospectivo, realizado no Centro Hospitalar do Porto (CHP) - Unidade Maternidade Júlio Dinis, entre 1998 e 2008, de avaliação dos casos com rastreio bioquímico considerado positivo para T21.

Doc. 3 - Artigo intitulado Aborto por anomalia fetal, da autoria de Tomaz Rafael Gollop, docente em genética médica pela Universidade de São Paulo e Director do Instituto de Medicina Fetal e Genética Humana de São Paulo, Brasil.

    Como referem os recorrentes a fls. 19 e 20 das suas alegações, tais documentos, qualificados pelos autores como artigos científicos são por eles juntos aos autos para reforçar a existência do rastreio bioquímico do 1º e 2º trimestres de gravidez.

     Sobre a referida junção de documentos com as alegações de revista, o tribunal recorrido pronunciou-se por despacho de 4 de Novembro de 2021 nos seguintes termos:

Ora, a fase de recurso sobre a matéria de facto terminou, pelo que a junção de documentos efectuada pela ré é inútil. Depois, conforme já se referiu a mesma é ilegal, porque não existe qualquer alegação da necessidade, superveniência do documento ou decisão surpresa.

Por fim, essa junção foi feita após a prolação do acórdão que decidiu a matéria de facto.

Pelo exposto, por ser ilegal e inútil, não se admite a junção de documentos dos apelantes efectuada em 22.9.2021.

Custas do incidente a cargo da mesma, com taxa reduzida ao mínimo legal.”

    Nos termos do disposto no art.º 652.º, n.º 1, al. e), aplicável à revista por força do disposto no art. 679.º, ambos do Código de Processo Civil, aquele despacho proferido pelo Tribunal da Relação não vincula o Supremo Tribunal de Justiça, pelo que se passa a analisar a pertinência da respectiva junção.

Nos termos do disposto no art.º 680.º, n.º1 do Código de Processo Civil podem ser juntos ao recurso de revista os documentos supervenientes. O conjunto de documentos que podem ser considerados como supervenientes no recurso de revista em que o Supremo Tribunal de Justiça conhece essencialmente de direito, assente na matéria de facto considerada provada e não provada pelas instâncias, tem uma amplitude muito menor que aquela a ter em conta quando se trate de junção de documentos em sede de recurso de apelação, por o Tribunal de 2.ª instância poder conhecer de facto e de direito.

Os documentos em causa existiam desde as últimas décadas do século passado, os autores não alegaram, nem provaram, sendo que sempre sobre eles impendia o correspondente ónus, que ignoravam tal existência até ao momento da junção, nem qualquer outro facto demonstrativo da impossibilidade da sua junção antes de iniciada essa fase de julgamento, sem que tal lhes possa ser imputável, num quadro normal de diligência, como vem sendo entendido por este Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente nos acórdãos STJ de 20-03-2014, proferido no recurso de Revista n.º 269/11.5TBCBR.C1.S1, de 06-03-2012 proferido no recurso de Revista n.º 154/07.5TBOER.L1.S1, de 11-12-2012 proferido no recurso de Revista n.º 564/07.8TCGMR.G1.S1, e de 20-01-2010 proferido no recurso de Revista n.º 1282/03.1TBLGS.E1.S1, este último publicado em www.dgsi.pt.

 Assim, tais documentos não podem ser tidos como supervenientes para efeitos do disposto no art.º 680.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

 Mesmo que tais documentos pudessem ser, por mera hipótese, tidos como supervenientes, a admissibilidade da sua junção aos autos em sede de recurso de revista dependia ainda da possibilidade de obterem enquadramento na previsão da 2.ª. parte do n.º 3 do art. 674.º do Código de Processo Civil, dados os estreitos limites em que o Supremo Tribunal de Justiça pode interferir na determinação da matéria de facto.

Pretendendo os recorrentes com tais documentos reforçar a sua opinião de que no período em que decorreu o diagnóstico pré-natal, aqui em discussão, já existia e era praticado o rastreio bioquímico do 1º e 2º trimestres de gravidez, e, não estando tal facto submetido à exigência de prova documental, não poderão os mesmos ser valorados pelo STJ para uma hipotética alteração da decisão sobre a matéria de facto, competência que está reservada às instâncias, não sendo assim admissível a requerida junção de documentos na fase de recurso de revista.

Aliás, nem se entende a razão pela qual os recorrentes querem reforçar a existência do rastreio bioquímico do 1º e 2º trimestres de gravidez.

Não tem para a decisão desta causa, como melhor explicaremos adiante, qualquer préstimo a averiguação sobre se existia, isto é, se era conhecido pela comunidade científica, praticado em Portugal e constante da prática clínica habitual, durante o período de gravidez aqui em causa o rastreio bioquímico do 1º e 2º trimestres de gravidez. Todos sabemos que existia, que nessa altura havia conhecimento científico bastante para diagnosticar a trissomia 21 do feto durante a gravidez, que em Portugal e no Porto se realizavam exames de diagnóstico que permitiam a detecção de tal anomalia. Mas nesta acção era preciso provar, para além disso, que aquela concreta gravidez, naquele concreto momento temporal, tinha de ter sido submetida aos testes de diagnóstico que permitiriam tal detecção, não com base nos dados que temos hoje em que a trissomia 21 da criança está comprovada, mas tendo em conta aquilo que se sabia no decurso dessa gravidez e era exigível que se soubesse.

Confirma-se, pois, aduzindo mais fundamentos jurídicos, a decisão proferida pelo tribunal da relação sobre a admissibilidade de junção aos autos destes três documentos que acompanharam as alegações do recurso de revista.

2. Admissibilidade da junção de documentos em sede de recurso de apelação

No recurso de apelação os recorrentes requereram a junção aos autos dos seguintes documentos:

1. Cópia de circular normativa da Direcção Geral de Saúde datada de 7-05-2001;

2. Cópia de Despacho da Ministra da Saúde publicado no Diário da República, II Série de 06-08-1997

3. Cópia da tabela de Goodwin modificada que avalia o risco de gravidez;

4. Cópia de circular normativa da Direcção Geral de Saúde datada de 07-07-1997;

5. Cópia de artigo científico sobre o impacto clínico da ecografia entre as 10 e as 13 semanas de gravidez, publicado em 2002, constando do mesmo que foi recebido para publicação em 21-03-2000;

6. Cópia de Dissertação para obtenção do grau de mestre em Medicina, datada de Junho 2009, com o tema “Inclusão do osso nasal fetal como marcador ecográfico no rastreio combinado do 1º trimestre para aneuploidias”;

7. Cópia de dissertação de candidatura ao grau de Doutor em Medicina, datada de 1995, com o tema “Questões éticas do diagnóstico pré-natal da doença genética”;

Tal junção veio a ser indeferida, no acórdão recorrido, com os seguintes fundamentos:

4. Da junção de documentos

Ambas as partes vieram ainda juntar documentos sem efectuar qualquer requerimento autónomo.

Os AA pretendem juntar 3 artigos científicos; duas circulares normativas uma datada de 7.7.1997 e a outra de 2001 um anexo e um diploma legislativo.

Os RR pretendem, por sua vez juntar uma notícia do jornal público.

Decidindo

Como é evidente os diplomas legislativos nem sequer necessitam de ser juntos, pois, a sua aplicação é oficiosa. Estamos, por isso, perante a prática de actos inúteis. No restante, o actual código visou limitar a junção de documentos, mesmo durante a audiência de discussão e julgamento, pois, “Em consonância com o princípio da inadiabilidade da audiência final, disciplina-se a produção de prova documental, estabelecendo como momento limite para a junção de documentos o do início da produção da prova (e não o do encerramento da audiência de discussão e julgamento), evitando que as partes possam entravar o normal prosseguimento da audiência com uma injustificável apresentação tardia de documentos, muitas vezes inúteis, de que há muito dispunham, com finalidades exclusivamente dilatórias”.

Assim é aplicável o art 425º, do Código de Processo Civil, que dispõe “depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento”.

Ou seja, a regra é a impossibilidade de a parte apresentar prova documental com a interposição de recurso

Por causa disso o Artigo 693.º-B dispõe que

 “ 1 – As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 524.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

2 – As partes podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para a elaboração do projecto de acórdão”.

Ora, é certo que a apelante alega (conclusão 104) que “a Circular Normativa nº 6/DSMIA de 07.07.1997 que se referiu na Audiência de julgamento e que os obstetras disseram desconhecer, embora publicada no Ministério da Saúde, e que à cautela se junta como Doc. 1 por se tornar necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.

Mas, basta ouvir a gravação da audiência para se constatar que isso é falso, pois, a Autora fez várias vezes uso desse documento no decurso do julgamento, tendo até sido advertida pelo tribunal a quo o que demonstra que nem se tratou de qualquer decisão surpresa, nem o documento tenha sido descoberto apenas após essa data.

Logo, a junção não é admitida, sem prejuízo do tribunal, como veremos fazer uso de todas as normas de conhecimento oficioso úteis para a decisão da causa.

Do mesmo modo a Tabela de Goodwin foi referida em julgamento e consta já da causa de pedir inicial da autora (gravidez de risco).

Os documentos que os apelantes pretendem juntar (sem qualquer requerimento expresso) não são novos, eram por si conhecidos e não derivam de qualquer decisão surpresa, mas pelo contrário foram usados ou mencionados em julgamento.

Ou seja, o actual regime não permite às partes juntaram documentos quando querem.

Se a parte podia ter juntado os documentos no momento processual próprio e não o fez, não lhe é concedida segunda oportunidade para a junção dessa documentação aquando da interposição do recurso, tanto mais que, recorde-se esta acção foi intentada 20 anos após a data dos factos e a AA fez uso desses documentos na audiência, sem os juntar.

Nessa medida o AC do STJ de 26.9.2012, (Goncalves Rocha), publicado in www.dgsi.pt), salienta: “os casos em que a sua junção (dos documentos com as alegações de apelação) se tiver por necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância são apenas aqueles em que, pela fundamentação da sentença, ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não poderia contar antes de proferida a decisão”.

Ora, não foi isso que aconteceu, pois, a decisão em causa abordou a causa de pedir exposta e resolveu apenas e só as questões que a AA alegou na sua petição.

Assim por falta de fundamento legal indefere-se a junção dos 3 documentos efectuada pela Autora.

Pelas mesmas razões e motivos, indefere-se também a junção efectuada pelos apelados.

Sem custas face à simplicidade do incidente.

2. Da junção de teses de doutoramento e artigos científicos

Pretendem os AA, nesta acção que diz respeito a uma gravidez de 1995, juntar agora as teses de dissertação sobre “QUESTÕES ÉTICAS DO DIAGNOSTICO PRÉ-NATAL DA DOENÇA GENÉTICA”, de 1995; Outra tese de Dissertação “INCLUSÃO DO OSSO NASAL FETAL COMO MARCADOR ECOGRÁFICO NO RASTREIO COMBINADO DO 1º TRIMESTRE PARA ANEUPLOIDIAS”, de Adelaide Stott Howorth Pinto Coelho, Covilhã, Junho 2009, publicada no repositório digital da Universidade da Beira Interior, como Doc. 6 e ainda um artigo cientifico de 2002 da acta médica.

Entendendo essa junção como documental reproduz-se o já exposto.

É certo que, nos termos do art.693º, B; do CPC podem as partes juntar pareceres.

Mas esta junção diz respeito apenas a pareceres de jurisconsultos e não permite a junção de outro tipo de pareceres de caracter técnico (como, por exemplo, de contabilidade, ou neste caso, medicina. Porque, como no caso presente a função dessa junção diz respeito à instrução e não à aplicação do direito.

Deste modo, indefere-se a junção desses documentos/pareceres.

Sem custas face à simplicidade do incidente.

    Em fundamento do recurso que apresentaram do acórdão recorrido, quanto aos documentos que pretenderam juntar com o recurso de apelação, junção que foi considerada inadmissível pelo tribunal recorrido, dizem os recorrentes:

Os documentos juntos pelos AA. ao seu recurso para o Tribunal da Relação do

Porto devem ser admitidos, sob pena de violação do art. 651º do CPC, porque são imprescindíveis para a descoberta da verdade material e porque a sua junção se mostrou necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância.

Pois, contrariamente ao aludido no douto acórdão em apreço, a A. utilizou determinados documentos em audiência de julgamento, nomeadamente uma circular e uma tabela de gravidez de risco, que os próprios médicos disseram todos desconhecer, e tais documentos só não foram juntos na altura ao processo porque a Mº juiz a quo disse que se os mesmos estavam publicados não era necessária a sua junção, motivo pelo qual não foram juntos.

E como muito bem refere o acórdão recorrido e também foi dito repetidamente pelo Mº juiz a quo não é necessário juntar os diplomas legislativos, nem as circulares normativas que estão publicadas, e por isso são de aplicação oficiosa, motivo pelo qual os AA. não procederam à sua junção em audiência de julgamento e não por qualquer inércia.

Aliás, caso assim se não entendesse, o que só por mera hipótese processual se concebe, sempre o Tribunal deveria aceitá-los oficiosamente para estar munido de todos os elementos que lhe permitam uma justa composição do litígio, consentânea com a verdade material.

Por outro lado, é falso que “os documentos que os apelantes pretendem juntar (sem qualquer requerimento expresso) não são novos, eram por si conhecidos e não derivam de qualquer decisão surpresa, mas pelo contrário foram usados ou mencionados em julgamento”. Pois quanto aos diplomas legais não era necessária a sua junção e quanto aos artigos científicos não tinham os AA. conhecimento dos mesmos, tendo de pesquisar após os depoimentos prestados pelos médicos em audiência de julgamento que levaram à prolação da sentença no sentido de que não haveria qualquer meio de diagnosticar a Sindrome de Down em 1995/1996 aplicável à Recorrente.

Pois, que outra forma têm os Recorrentes de refutar as “opiniões” (e digo opiniões porque não existem quaisquer normas escritas à data dos factos) consertadas dos médicos que acompanharam a Recorrente nas duas outras gravidezes, que por coincidência são todos amigos pessoais dos Recorrido médico, quanto à data de introdução de outros meios complementares de diagnóstico além da amniocentese que só se fazia a grávidas com mais de 35 anos ou com antecedentes familiares, que não os artigos científicos completamente objectivos e isentos que afirmam o contrário.

Ora, os artigos científicos juntos não constituem, salvo melhor opinião, pareceres médicos, antes retratam cronologicamente e em abstrato a introdução dos diversos meios complementares de diagnóstico pré-natal e de onde decorre que estes existiam muito antes de 1995.”

Começaremos por esclarecer que os documentos cuja junção foi requerida pelos autores com as alegações apresentadas no recurso de apelação são documentos passíveis de enquadramento no art.º 651.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, mas, por se não tratar de qualquer parecer de jurisconsultos, não são passíveis de enquadramento no disposto no número 2 daquele preceito.

Sendo livre a junção de documentos com os articulados no sentido de que não carece de qualquer requerimento da parte apresentante que explique porque razão pretende aquela junção, ainda que seja oportuno que, de algum modo torne claro que facto pretende com eles provar, para o caso de isso não resultar absolutamente evidente do próprio documento, já a admissibilidade da junção em fase processual posterior não pode ser efectuada pela simples apresentação do documento sem que se mostre acompanhada por requerimento que justifique a oportunidade da sua junção tardia, porque, também do bem fundamentado desta pretensão depende a admissibilidade dos documentos. Os recorrentes não apresentaram qualquer justificação a este propósito.

Os processos judiciais devem conter tudo o que for necessário à boa decisão da causa e apenas o que for necessário à boa decisão da causa.

Especial fundamentação deve ser apresentada quando os documentos são apresentados em fase de recurso, seja de apelação, seja de revista, porque a junção de documentos nestes casos está sujeita a mais apertados condicionalismos que aqueles que devem ser observados na junção de documento até 20 dias antes da efectiva realização da audiência de julgamento em primeira instância, estes constantes do art.º 423.º do Código de Processo Civil.

Em paralelo com o que se expressa no acórdão recorrido, também o Supremo Tribunal de Justiça entende o drama humano que está por detrás deste processo, as dificuldades de distanciamento e rigor jurídico com que o envolvimento emocional do advogado em causa própria se depara, tanto mais que, em concreto, o advogado é a mãe da EE, pelo que, sem nos afastarmos do rigor jurídico que se impõe na condução do processo, usaremos até ao limite a possibilidade de explicar todas as decisões tomadas, mesmo que fosse possível decidi-las simplesmente com a indicação de incumprimento dos pressupostos adjectivos da junção de documentos.

Não há dúvida que o tribunal tem obrigação de conhecer o direito e que não pode deixar de considerar toda e qualquer norma jurídica que de alguma forma possa contender com o objecto do processo, pelo que a junção de circulares e despachos normativos e outros diplomas legais é inútil seja em que fase processual for.

A junção da circular “a Circular Normativa nº6/DSMIA de 07.07.1997 que não sendo impossível ser conhecida pelo tribunal, poderá apresentar alguma dificuldade em ser por este obtida, deveria ter sido efectuada pelo menos na audiência de julgamento, sendo certo que o próprio tribunal deveria ter determinada a sua junção, caso não lhe tivesse já acesso, quer por ter interesse para a decisão da causa, quer por ter sido utilizada, em audiência pela recorrente durante a inquirição de testemunhas.

A Tabela de Goodwin foi também usada na inquirição de testemunhas, e até referenciada na petição inicial, pelo que deveria ter sido junta com a petição inicial ou, pelo menos, até ao início da audiência de julgamento, sendo tardia a sua junção em fase de recurso.

Em fase de recurso de apelação em conformidade com o disposto no art. 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil a junção de documentos só pode ocorrer em duas situações:

1 - Os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até encerramento da discussão – art.º 425.º do Código de Processo Civil

2 - Quando a junção se tiver tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância – art.º 651.º, n.º 1 do Código de Processo Civil

Ora os documentos que foram utilizados para inquirir algumas das testemunhas estavam na posse da recorrente que os utilizou nessa altura, antes, pois, do encerramento da discussão da causa. Por isso, não pode invocar como fundamento para a sua junção em sede de recurso que não os conhecia antes.

Não é pela circunstância de os recorrentes discordarem da sentença recorrida, que podem invocar que a junção se torna necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância, importando que sentença tenha decidido algo com que a parte não podia razoavelmente contar antes, e, que o documento em causa venha demonstrar que carece de fundamento. Nada disso acontece aqui.

Em causa está a discordância dos recorrentes com a decisão das instâncias, pelas razões amplamente debatidas ao longo do processo, pelos fundamentos científicos colectados e aprofundados, porventura ao longo dos anos pelos recorrentes, sobre o que era já possível fazer, em termos científicos em termos de diagnóstico pré-natal.

Percebemos que, perante o nascimento de uma criança com trissomia 21 e as preocupações sobre o seu futuro que durarão toda a vida, os recorrentes se tenham profundamente interrogado sobre que erro poderiam eles ou os médicos ter cometido para causar tal situação dramática. Num processo psicológico muito próprio da natureza humana o sofrimento parece ser atenuado se conseguirmos localizar para a causa dele um qualquer responsável, de preferência externo a nós próprios. Os recorrentes começaram a procurar sobre se o conhecimento científico contemporâneo da gravidez aqui em causa permitia a detecção de trissomia 21 no feto. É certo que permitia. Em teoria, no ano em que a EE nasceu, era possível do ponto de vista científico ter apurado, ainda em fase intra-uterina, aquela doença. Porque não foi apurado é verdadeiramente o objecto do litígio, dado que está assente que não foi apurado. Mas a simples circunstância de não ter sido apurado, havendo então bastante conhecimento científico para garantir esse apuramento, contrariamente ao entendido pelos recorrentes, não basta para definir que há um culpado por esse não apuramento, e, que esse “culpado” tem o dever de indemnizar os danos que decorrem para os recorrentes desse não apuramento de que o feto tinha trissomia 21.

Em conformidade com o decidido pelo tribunal recorrido é legalmente inadmissível a junção, em fase de recurso de apelação, de tais documentos por essa junção, no caso concreto, não ter enquadramento no já referido art.º 651.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

   

3. Violação das regras de direito probatório material – confissão do réu.

Suscitam os recorrentes a violação de regras de direito probatório material por não terem as instâncias tomado em consideração o que os requerentes consideram como confissão livre e sem reservas do R. médico que consta da Acta de Julgamento.

 O teor dessa assentada é o seguinte:

O depoimento do réu é parcialmente confessório pelo que se reduz a escrito o seu depoimento.

Inquirido disse que acompanhou a primeira gravidez da Autora lembrando-se de alguns episódios, nomeadamente, de uma apendicectomia da mesma, que foi operada no Hospital 3 por indicação dele.

Admitiu que era ele o legal representante da clínica Ré na altura e que tinha mais um sócio (KK).

Diz que não se lembra de ter dito a Autora “tinha medo de lhe ter provocado um aborto” quando esta lhe ligou a dar conta que estava grávida já após a primeira consulta consigo e depois de episódio de sangramento subsequente a tal consulta. Durante o depoimento acabou por se recordar desse episódio e admitiu que possa ter feito alguma afirmação nesse sentido, de que, contudo, não se recorda explicando que pode tal episódio ter estado relacionado com o facto de ter feito exame ginecológico decorrente da queixa da Autora de não conseguir engravidar. Depois explicou que era normal haver sangramento na sequência desse exame, mas não tão abundante quanto o da Autora.

Admitiu que fazia as ecografias no consultório dele e não fornecia nada (imagem ou relatório) à parturiente.

Asseverou que em 1995 não havia nenhum protocolo sobre o número de ecografias a fazer e quem podia fazer – essas regras são posteriores.

Admite como possível que já se fizessem nessa data ecografias no Hospital 3 de forma a medir a translucência da nuca. Admite que o seu colega Dr. DD poderia estar a iniciar esse exam, nesse hospital e na altura.

Alega que não solicitou ecografia à Autora fora do consultório porque não havia na história pessoal nem na idade da grávida indicação de risco. Se houvesse risco, em 1995, o protocolo mandava fazer amniocentese.

Disse que as análises clínicas das grávidas por si acompanhadas eram feitas normalmente no centro de saúde. Mas não havia análises específicas para a detecção da trissomia 21. Apenas existia um exame combinado (com a ecografia e análises de alfafetoproteína). Estas análise era feita pelo Professor FF e pelo Dr. GG, em termos privados, em 1995, mas só quando havia suspeitas. Na altura havia um grande problema de falsos positivos nestes exames. Admite que os falsos positivos podiam ser afastados por amniocentese.

Não se recorda se nessa altura esse exame combinado já era feito por rotina no Hospital 3. Antes disso, antes de 1995, tentou introduzir a rotina do exame combinado no Hospital 1 e não foi possível por o Conselho de Administração ter entendido que a relação entre valia do exame e os seus custos não permitia.

Esses exames eram feitos entre as 12 e as 13 semanas de gravidez. Asseverou que só em 2011 é que passou a ser obrigatório fazer os exames combinados de ecografia e alfafetoproteína.

A amniocentese só era obrigatória desde os 35 das grávidas e agora é desde os 37 anos. A amniocentese antes dessa idade só se fazia se houvesse outros factores risco que a Autora não tinha.

Só se houvesse sinas de alguma deformidade visível na ecografia feita no seu consultório é que pediria ecografia a serviços externos, normalmente públicos.

Algumas pacientes queriam sempre ecografia em todas as consultas. mas o número de ecografias que ele fazia normalmente era de duas por gravidez

Alegou que tinha um cartão de consultas com alguns dados da gravidez, entre eles a data da última menstruação, número de semanas da primeira consulta, tensões, peso, análise de urina, antecedentes pessoais, hereditários e sexuais, cartão esse do tamanho de um cartão de identificação mas em forma de livro que entregava às pacientes mas que não sabe se entregou à Autora, admitido que possa não o ter entregue, uma vez que era a sua funcionária que o entregava e não se recordar em concreto se a Autora o tinha ou não.

Recorda-se de ter encaminhado a Autora para o hospital de urgência não se recorda se presencialmente ou por telefone.

Afirmou que a intervenção cirúrgica ao apêndice não torna a gravidez de risco. Nem necessita de qualquer seguimento especial. O depoente terá continuado a seguir a Autora depois disso no seu consultório e tranquilizou-a dizendo-lhe que a apendicectomia não interferira com a sua gravidez.

Admite que vez em quando fazia de gravação de DVD das ecografias a pedido das parturientes

Ao tempo da gravidez da Autora não trabalhava no Hospital 1 e apenas fazia clínica privada e na Ordem do Terço pelo que admite como possível ter proposto o parto na ordem ..., ... em ... onde tinha conhecimento de colegas e onde trabalhara.

Na altura era deputado e afirmou ter proposto projecto de lei de alargamento de prazo de aborto porque na prática clínica havia um problema recorrente porque os resultados dos exames eram tardios e já não permitiam a interrupção da gravidez antes das 16 semanas.

Lembrou-se que teve notícia de que a criança tinha nascido com Síndrome de Down, foi visitá-la e disse à Autora que noutros filhos provavelmente não voltaria a acontecer.

Não se recorda de ter pedido desculpa nem de dizer que se acontecesse alguma coisa que tinha seguro. Admite que a Autora estava muito emocionada no momento em que esteve com ela.

Ninguém lhe disse que era estranho a grávida não ter quaisquer exames.

Não reconhece ter descurado a actividade médica por causa da actividade política.

Nessa ocasião, afirmou, os médicos particulares, não tinham acesso ao livro verde de acompanhamento da grávida que era só entregue nos centros de saúde.

Concluída e lida a assentada, foi a mesma pelo depoente confirmada, não tendo sido objecto de reclamação por parte dos Ilustres Mandatários presentes.”

  Nem nas alegações, nem nas conclusões do recurso de revista os recorrentes indicam, como deviam, com precisão, que factos provados ou não provados deveriam ser alterados face à confissão do réu. Tanto bastaria para nos termos da lei, não ser apreciada esta questão nos termos das disposições conjugadas dos art.º 640.º, e 670.º do Código de Processo Civil. A este propósito, como genericamente em todas as alegações manifestam a sua discordância com a decisão e vão apontando argumentos ora jurídicos, ora científicos, numa lógica de raciocínio difícil de divisar para que de alguma forma se atinja a decisão que pretendem. Tentando, porém, fazer aquilo que deveria ter sido apresentado nas alegações de recurso – confronto do depoimento do réu com a matéria provada – analisando todo e cada um dos parágrafos da assentada em confronto com a matéria provada, mesma na parte em que aquele depoimento não configura uma confissão, podemos concluir o seguinte:

1. Inquirido disse que acompanhou a primeira gravidez da Autora lembrando-se de alguns episódios, nomeadamente, de uma apendicectomia da mesma, que foi operada no Hospital 3 por indicação dele.

-  Coincide com o que consta dos pontos 7, 9, 10, 11, 12 da matéria de facto.

2. Admitiu que era ele o legal representante da clínica Ré na altura e que tinha mais um sócio (KK).

3. Diz que não se lembra de ter dito a Autora “tinha medo de lhe ter provocado um aborto” quando esta lhe ligou a dar conta que estava grávida já após a primeira consulta consigo e depois de episódio de sangramento subsequente a tal consulta. Durante o depoimento acabou por se recordar desse episódio e admitiu que possa ter feito alguma afirmação nesse sentido, de que, contudo, não se recorda explicando que pode tal episódio ter estado relacionado com o facto de ter feito exame ginecológico decorrente da queixa da Autora de não conseguir engravidar. Depois explicou que era normal haver sangramento na sequência desse exame, mas não tão abundante quanto o da Autora.

- Não há qualquer facto confessado, mas a versão dos autores foi considerada provada nos pontos 4,5 e 6.

Admitiu que fazia as ecografias no consultório dele e não fornecia nada (imagem ou relatório) à parturiente.

- Coincide com o que consta dos pontos 8, 12, 13 da matéria de facto.

4. Asseverou que em 1995 não havia nenhum protocolo sobre o número de ecografias a fazer e quem podia fazer – essas regras são posteriores.

- Não há confissão de qualquer facto

5. Admite como possível que já se fizessem nessa data ecografias no Hospital 3 de forma a medir a translucência da nuca. Admite que o seu colega Dr. DD poderia estar a iniciar esse exam, nesse hospital e na altura.

- Não há confissão de qualquer facto

6. Alega que não solicitou ecografia à Autora fora do consultório porque não havia na história pessoal nem na idade da grávida indicação de risco. Se houvesse risco, em 1995, o protocolo mandava fazer amniocentese.

- Coincide com o que consta dos pontos 12, 13 da matéria de facto.

7. Disse que as análises clínicas das grávidas por si acompanhadas eram feitas normalmente no centro de saúde. Mas não havia análises específicas para a detecção da trissomia 21. Apenas existia um exame combinado (com a ecografia e análises de alfafetoproteína). Estas análise era feita pelo Professor FF e pelo Dr. GG, em termos privados, em 1995, mas só quando havia suspeitas. Na altura havia um grande problema de falsos positivos nestes exames. Admite que os falsos positivos podiam ser afastados por amniocentese.

8. Não se recorda se nessa altura esse exame combinado já era feito por rotina no Hospital 3. Antes disso, antes de 1995, tentou introduzir a rotina do exame combinado no Hospital 1 e não foi possível por o Conselho de Administração ter entendido que a relação entre valia do exame e os seus custos não permitia.

9. Esses exames eram feitos entre as 12 e as 13 semanas de gravidez. Asseverou que só em 2011 é que passou a ser obrigatório fazer os exames combinados de ecografia e alfafetoproteína.

10. A amniocentese só era obrigatória desde os 35 das grávidas e agora é desde os 37 anos. A amniocentese antes dessa idade só se fazia se houvesse outros factores risco que a Autora não tinha.

11. Só se houvesse sinas de alguma deformidade visível na ecografia feita no seu consultório é que pediria ecografia a serviços externos, normalmente públicos.

12. Algumas pacientes queriam sempre ecografia em todas as consultas. mas o número de ecografias que ele fazia normalmente era de duas por gravidez

13. Alegou que tinha um cartão de consultas com alguns dados da gravidez, entre eles a data da última menstruação, número de semanas da primeira consulta, tensões, peso, análise de urina, antecedentes pessoais, hereditários e sexuais, cartão esse do tamanho de um cartão de identificação mas em forma de livro que entregava às pacientes mas que não sabe se entregou à Autora, admitido que possa não o ter entregue, uma vez que era a sua funcionária que o entregava e não se recordar em concreto se a Autora o tinha ou não.

- Não há qualquer confissão nos pontos 7 a 13.

14. Recorda-se de ter encaminhado a Autora para o hospital de urgência não se recorda se presencialmente ou por telefone.

- Coincide com o que consta do ponto 10 da matéria de facto.

15. Afirmou que a intervenção cirúrgica ao apêndice não torna a gravidez de risco. Nem necessita de qualquer seguimento especial.

- Não há qualquer confissão

16. O depoente terá continuado a seguir a Autora depois disso no seu consultório e tranquilizou-a dizendo-lhe que a apendicectomia não interferira com a sua gravidez.

- Coincide com o que consta do ponto 12 da matéria de facto.

17. Admite que vez em quando fazia de gravação de DVD das ecografias a pedido das parturientes

- Não há qualquer confissão

18. Ao tempo da gravidez da Autora não trabalhava no Hospital 1 e apenas fazia clínica privada e na Ordem do Terço pelo que admite como possível ter proposto o parto na ordem ..., ... em ... onde tinha conhecimento de colegas e onde trabalhara.

Na altura era deputado e afirmou ter proposto projecto de lei de alargamento de prazo de aborto porque na prática clínica havia um problema recorrente porque os resultados dos exames eram tardios e já não permitiam a interrupção da gravidez antes das 16 semanas.

- Coincide com o que consta dos pontos 1, 2 e 3 da matéria de facto.

19. Lembrou-se que teve notícia de que a criança tinha nascido com Síndrome de Down, foi visitá-la e disse à Autora que noutros filhos provavelmente não voltaria a acontecer.

- Coincide com o que consta do ponto 30 da matéria de facto.

20. Não se recorda de ter pedido desculpa nem de dizer que se acontecesse alguma coisa que tinha seguro. Admite que a Autora estava muito emocionada no momento em que esteve com ela.

21. Ninguém lhe disse que era estranho a grávida não ter quaisquer exames.

22. Não reconhece ter descurado a actividade médica por causa da actividade política.

23. Nessa ocasião, afirmou, os médicos particulares, não tinham acesso ao livro verde de acompanhamento da grávida que era só entregue nos centros de saúde.

24. Concluída e lida a assentada, foi a mesma pelo depoente confirmada, não tendo sido objecto de reclamação por parte dos Ilustres Mandatários presentes.”

- Não há qualquer confissão.

Do acima exposto, não resulta a confissão de qualquer outro facto relevante para a decisão da causa que não tenha sido considerado provado, nem resulta infirmada a prova de factos que as instâncias tenham julgado provados ou não provados.

Improcede, pois, a revista com este fundamento.

4. Errado diagnóstico pré-natal por omissão de exames de diagnóstico que detectam a presença de síndrome de Down em fase de gestação

A presente acção é uma acção de responsabilidade civil contratual em que os recorrentes alegam e provam que estabeleceram um contrato com a C..., Lda. de que o segundo réu era, à data dos factos, sócio-gerente. Mediante aquele contrato firmado com a 1.ª ré, esta comprometeu-se a garantir que o 2.º réu, na qualidade de médico registado na Ordem dos Médicos, com a Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia acompanharia a gravidez da autora que culminou com o nascimento da sua filha EE, obrigação que se mostra cumprida.

Consideram os autores que a referida obrigação de acompanhamento médico da gravidez foi efectuada de forma deficiente, por ter conduzido a um errado diagnóstico pré-natal, na medida em que sempre lhes foi indicado que nenhuma anomalia ocorria, vindo a criança a nascer com síndrome de Down, não diagnosticado antes do nascimento, quando havia meio técnicos para que esse diagnóstico tivesse sido efectuado.

A ré alegou que não existiu um errado diagnóstico pré-natal porque no momento do cumprimento da obrigação que assumiu perante os autores, pese embora fosse já possível detectar tal anomalia, a prática clínica não impunha, ou sequer recomendava que, nas condições que foi possível apurar nomeadamente de idade da mãe, ausência de antecedentes familiares dos progenitores, malformações visíveis ecograficamente no feto, ou situação de gravidez de risco, fosse a grávida submetida a exames laboratoriais ou de amniocentese para eventual detecção de tal alteração cromossómica. Além disso, nessa altura o momento em que era possível realizar e obter os resultados da amniocentese impedia que, caso fosse detectada alguma anomia, nos termos da lei portuguesa fosse legalmente possível a prática da interrupção voluntária da gravidez.

Subjacente ao inconformismo dos recorrentes com a decisão das instâncias estão ainda duas circunstâncias. Por um lado, a autora, durante o período de gravidez, foi alvo de uma intervenção cirúrgica por estar em estado de apendicite aguda e, desta circunstância pretende que seja retirada a conclusão de que a sua gravidez era, ou pelo menos deveria ter sido considerada como gravidez de risco, porque essa teria sido uma das situações em que era já aconselhada a realização dos exames de diagnóstico que poderiam ter evidenciado que o feto tinha trissomia 21. Por outro a circunstância de ter iniciado 9 meses depois uma nova gravidez onde foi sujeita a todos os testes possíveis para a detecção de alterações cromossómicas no feto que, felizmente não ocorreram.

Sobre estas duas questões não foi apurado que a apendicite aguda transformasse, segundo as “legis arts” do momento a gravidez em gravidez que deveria ter passado a ser classificada como gravidez de risco. Não foi efectuada prova nesse sentido. Assim a gravidez aqui em causa para todos os efeitos não pode ser considerada como gravidez de risco e, consequentemente na perfeição do cumprimento da obrigação a cargo da ré, a classificação de tal gravidez como gravidez de risco e a necessidade de realização de exames de diagnóstico pré-natal que se mostravam, no momento dos factos exigíveis para tais situações, não são aqui aplicáveis, não podendo falar-se de cumprimento defeituoso da obrigação com tal fundamento.

Os autores podem continuar a pensar que aquele foi um risco enorme que a gravidez teve de ultrapassar, que tal afectou muitíssimo o feto, que pelo menos a partir daí deveria ter a gravidez sido acompanhada com toda a bateria de testes, exames e cautelas conhecidos pela ciência. Os peritos médicos consideram que não é assim e o tribunal pelo maior respeito que tenha pela situação dos autores não pode considerar esta posição cientificamente infundada dos autores.

Quanto aos exames que foram realizados na gravidez da 2.ª filha dos autores, apesar do curto espaço de tempo decorrido após o nascimento da EE eles pouco dizem, ou até reforçam o que se passou no diagnóstico pré-natal da EE. O nascimento da EE com trissomia 21 tinha como efeito automático, em termos clínicos, para todos os irmãos que pudessem vir a nascer o factor de ser um antecedente familiar de alteração cromossómica do feto, importante, decisivo para submeter a mãe a todos os testes possíveis que pudessem detectar a repetição desse erro.

A diferença relevante entre a gravidez que conduziu ao nascimento da EE e as gravidezes que conduziram ao nascimento das suas irmãs não é do tempo em que cada uma ocorreu, do avanço do conhecimento científico entretanto verificado, mas do marco decisivo que para estas últimas tinha a circunstância de os mesmos progenitores terem já uma criança com síndrome de Down, este um factor de elevado risco a ter em consideração no diagnóstico pré-natal.

Tal como detalhadamente analisado pelas instâncias a matéria de facto apenas permite concluir que o dever de prestação da ré, executado com recurso aos conhecimentos científicos de elevada especialização do réu, foi cumprido segundo os conhecimentos e exigências clínicas em Portugal no ano de 1995. Não pode ser imputado à ré uma conduta negligente que tenha sido causadora do enorme dano sofrido pelos autores.

Sobre o dano aqui não indemnizável, que não analisaremos por se não ter apurado a realização por parte da ré de qualquer incumprimento contratual ou cumprimento defeituoso, e pese embora se tenha, ao longo de todo o processo, essencialmente analisado apenas possibilidade de interrupção voluntária da gravidez por mal formação do feto, e a jurisprudência e a doutrina convirja sobre a sua exclusiva relevância, deixaremos aqui a nota de que é possível que a opção dos progenitores seja o nascimento da criança mas tenham, nesse caso, o direito a um correcto diagnóstico pré-natal para poderem colectar os meios humanos, físicos, psicológicos e financeiros a par do conhecimento sobre a estimulação precoce e todas as possibilidades de desenvolvimento, mesmo com a deficiência, entre muitas outras coisas que o conhecimento científico já conhece nestas situações, como oportunidade de adequadamente vestirem o seu coração para receberem bem estas preciosas crianças especiais.

Fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas na revista.

O acórdão recorrido fez uma correcta interpretação da lei que aplicou ao caso concreto, o que impõe a sua integral confirmação.


* * *

III – Deliberação

Pelo exposto, nega-se a revista, e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


 *

Lisboa, 15 de Dezembro de 2022

Ana Paula Lobo (Relatora)

Afonso Henrique Cabral Ferreira

Maria Graça Trigo