Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
459/14.9PBEVR.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: VÍCIOS DO ARTº 410 CPP
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
AMEAÇA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MEDIDA DA PENA
CÚMULO JURÍDICO
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
PENA DE PRISÃO
PENA ÚNICA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
PLURIOCASIONALIDADE
PENA ACESSÓRIA
Data do Acordão: 09/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIME EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - MEIOS DE PROVA / PROVA PERICIAL - RECURSOS.
Doutrina:
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 4.ª reimp., Coimbra Editora, 291.
- Miguez Garcia e Castela Rio, “Código Penal”, Parte geral e especial, 2014, Almedina, 356.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3.ª ed., UCE, 340.
- Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 563.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1874.º, N.º 1 E 1885.º, N.º 1, 1910.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 674.º, N.º 3.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 4.º, 154.º, N.º 3, 160.º, 163.º, N.º 1, 410.º, N.º 2, AL. C), 432.º, N.º 1, AL. C), 434.º
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, N.º 2, 70.º, 71.º, 77.º131.º, 152.º, N.ºS 1, AL. D), 2 E 6, 155.º, N.º 1, AL. A).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 202.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 02.02.2011, PROC. N.º 1375/07.6PBMTS.P1.S2, IN WWW.DGSI.PT ;DE 30.09.2015, PROC. N.º 861/13.3PFCSS.L1-3.ª, IN S.A./S.T.J..

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AC. N.º 7/2013, D.R., I SÉRIE, DE 20.03.2013.
Sumário :

I - O âmbito dos poderes de cognição do STJ é restrito à matéria de direito ainda assim, a invocação de tais vícios não pode constituir fundamento autónomo de recurso para o STJ, antes só oficiosamente e como pressuposto do julgamento de direito esse tribunal pode conhecer de tal vício e desde que a mesma resulte do texto da decisão, por si, ou conjugada com as regras da experiência comum.
III - Tal acontece quando da leitura do texto da decisão recorrida for detectável por uma pessoa medianamente instruída qualquer situação contrária à lógica ou às regras da experiência.
IV - Pelo facto de a arguida apresentar um QI sito na "zona normal inferior" e de se revelar "pouco evoluída do ponto de vista intelectual", sem prejuízo de tal relevar na apreciação da personalidade com reflexo na medida concreta das penas, o acórdão recorrido, ao ater-se a tal juízo no plano da culpa da recorrente, não incorreu em nenhum vício de erro notório na apreciação da prova.
V - O mesmo ocorre quanto à questão da inimputabilidade por via da embriaguez, em que a recorrente actuou e que o acórdão recorrido afastou com base no teor do relatório pericial do exame psiquiátrico que concluiu pela total imputabilidade da arguida quer à data dos factos, quer presentemente.
VI - O crime de ameaça, sistematizado na lei penal como crime contra a liberdade pessoal (é um crime de perigo contra a paz interior) e tem como elementos essenciais: um mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente. É necessário que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
VII - O critério da adequação da ameaça a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação é objectivo, ou seja, a ameaça é adequada se for susceptível de intimidar o "homem comum", tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente e é individual no sentido de que relevam também as características da pessoa ameaçada.
VIII - A expressão dirigida pela arguida por telefone à ofendida directora da instituição onde estava internada a filha menor daquela, de que "Oiça bem o que eu lhe vou dizer doutora, uma mãe por uma filha morre, mas também mata, ouviu bem. Eu vou a ... buscar a minha filha nem que seja à força, vou pegar fogo a toda a Instituição, agora você vai conhecer a velha e verdadeira ... vou fazer com que essa Instituição fique muito mal falada, ninguém me pode proibir de ouvir a voz da minha filha!" é idónea a constituir ameaça, conformando o objecto da ameaça um crime contra a vida.
IX - Quanto à conduta da arguida no que respeita à violência doméstica sobre a sua filha menor que se desenvolveu por um período superior a 4 anos, sem menosprezar as fortes necessidades de prevenção geral e especial, cremos que a personalidade da arguida, traduzida, além do mais, em "imaturidade e infantilidade com predomínio de uma vida instintiva, como se houvesse uma percepção diminuída ou alterada da realidade, dificuldade de coordenação entre aspectos intelectuais e os impulsos do corpo (...)", com um QI situado na zona do normal inferior (80-90) a revelar­-se "pouco evoluída do ponto de vista intelectual, muitas dificuldades ao nível da capacidade perceptiva e visuo-construtiva", aponta para alguma mitigação da culpa, pelo que, atendendo ao princípio da culpa (n.º 2 do art. 40.º do CP), se julga mais adequada a condenação
pelo crime de violência doméstica na pena de 3 anos de prisão.
X - Quanto aos crimes de ameaça, igualmente se nos afigura adequado um abaixamento das penas e uma diferenciação entre as ofendidas (psicóloga de uma associação e a directora da instituição onde a menor estava internada), no sentido de punir mais gravemente a ameaça na pessoa da directora da instituição onde a menor estava internada, com vista à defesa da própria instituição, ainda que indirectamente, bem se podendo dizer que a ilicitude da conduta é, nesse caso, de grau mais elevado, pelo que, será de condenar na pena de 6 meses de prisão pelo crime em que foi ofendida a psicóloga da associação e na pena de 1 ano de prisão pelo crime em que foi ofendida directora da instituição onde a menor estava internada.
XI - Na avaliação da personalidade do agente relevará sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência criminosa ou a uma pluriocasionalidade não radicada na personalidade, sendo que só no 1.º caso será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante na moldura penal conjunta, XII - A conduta da arguida no que respeita ao crime mais grave (violência doméstica sobre a filha menor) desenvolveu-se por um período superior a 4 anos, sendo que os crimes de ameaça estão com ele correlacionados, dado visarem ofendidos que de algum modo obstaram à sua prossecução, tendo a arguida tem já passado criminal, embora limitado à prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, neste contexto, dentro de uma moldura penal abstracta da pena conjunta de 3 anos a 4 anos e 6 meses de prisão, afigura-se-nos proporcional e adequado fixar a pena única em 4 anos de prisão.
XIII - Considerando, por um lado, a conduta reiterada da arguida ao longo de mais de 4 anos e a gravidade em que se traduziram os maus tratos infligidos à filha menor e, por outro, as responsabilidades parentais que lhe incumbiam em exclusivo, dada a filiação estar estabelecida apenas quanto à progenitora (art. 1910.º do CC), a quem desde logo cabia o dever de respeito e de promoção do desenvolvimento físico, intelectual e moral da filha (arts. 1874.º, n.º 1 e 1885.º, n.º 1, do CC), afigura-se proporcionada a pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais pelo período de 5 anos.
XIV - Embora tal lapso de tempo possa ultrapassar a maioridade da menor, que alcançará a 19-01-2024, se a medida tiver o seu início após o cumprimento da pena pela arguida em prisão efectiva, não poderá deixar de equacionar-se, em tese, poder a mesma vir a beneficiar de liberdade condicional a meio da pena, ficando o cumprimento da medida aquém daquela data.
XV - Impõe-se o cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada, dada a personalidade da arguida está amplamente descrita nos factos provados, cuja tónica assenta em primária irresponsabilidade social e parental, as condições da sua vida, o forte grau de ilicitude dos factos respeitantes ao crime de violência doméstica e o elevado grau de violação dos deveres legalmente impostos enquanto progenitora, bem como as fortes exigências de prevenção geral e sobretudo de prevenção especial que impedem que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

AA, natural do ..., nascida em ..., residente no ..., e actualmente em prisão preventiva à ordem dos presentes autos, no Estabelecimento Prisional de ..., foi julgada no âmbito do processo em epígrafe, da Instância Central de ...., Secção Cível e Criminal –J1, da Comarca de ..., por acórdão do tribunal colectivo de  17.03.2016, e que decidiu:

1) Condenar a arguida (…), pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;

2) Condenar a arguida (…), pela prática em autoria material e na forma consumada de dois crimes de ameaça agravada, p. e p., pelo artigo 155º, n.º 1, a), por referência ao artigo 131º, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão por cada um deles;

3) Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, operando o cúmulo jurídico, condenar a arguida (…) na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

4) Ao abrigo do disposto no artigo 152.º, n.º 6, do Código Penal, condenar a arguida (…) na sanção acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais, relativamente à sua filha BB, pelo período de 7 (sete) anos;

Inconformada, a arguida recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça em cuja motivação formulou as seguintes extensas e prolixas conclusões (transcrição onde se omitem, contudo, as conclusões n.ºs 25 e 38 e 39, por se tratarem de transcrição de acórdãos):

1. O douto acórdão que antecede, no que tange à apreciação que realiza da prova que sustenta a prática pela arguida de um crime de violência doméstica, está essencialmente estribado nas declarações prestadas para memória futura pela menor BB, a 30 de Junho de 2015, então com nove anos de idade.  

2. As declarações da menor, que não se encontram confirmadas pela restante prova testemunhal produzida, mormente no que tange à requerida pela defesa, são insuficientes para o Tribunal concluir, como o faz no douto acórdão, pela condenação da arguida no que tange à prática de um crime de violência doméstica agravada, na pena de quatro anos de prisão.

3. Atento o previsto no Artigo 434º do C.P.P., devem ser reapreciados os testemunhos requeridos pela defesa e que se encontram plasmados no douto acórdão recorrido a folhas 19 e 20, pelos quais, pode ser concluído facilmente que a arguida, como regra, foi sempre diligente com a filha BB.   

4. O douto acórdão recorrido, no segmento a que no ponto anterior se alude, padece de erro notório na apreciação da prova, em face do que decorre do seu texto, ao obter conclusões ilógicas em face da prova produzida pela defesa. 

5. Tal incongruência resulta de uma apreciação errada e notória dos factos que brota no próprio texto da decisão, apreensível de imediato, por incompatibilidade no espaço, de tempo e circunstâncias entre os factos.

6. Está plasmado no texto do douto acórdão recorrido haver sido determinado em perícia psicológica realizada à arguida o Q.I. de 80-89 revelador de uma capacidade intelectual que se situa na denominada zona normal inferior, havendo sido considerada pouco evoluída do ponto de vista intelectual.    

7. Nomeadamente tal elemento factual, que pode ser reapreciado nos termos do previsto no Artigo 484º [será 434.º] do C.P.P., porque decorre do plasmado no texto do douto acórdão recorrido, é muito relevante para aferir alguns dos comportamentos da arguida, na perspectiva do homem médio, pressuposto pelo direito.

8. O douto acórdão do Tribunal a quo, atento nomeadamente ao Q.I. determinado à arguida e a todo o circunstancialismo apurado, determina de forma ilógica a culpa da arguida.    

9. A errada determinação da culpa da arguida condiciona amplamente a douta decisão recorrida, mormente na parte que tange à fixação das penas parcelares. 

10. Por referência ao previsto no Artigo 434º do C.P.P. e ao vertido no douto acórdão recorrido, nomeadamente a folhas 4, as afirmações dirigidas pela arguida em visível estado de embriaguez para a psicóloga EE.

11. Considerando que não pode ser considerado provado, até por respeito ao princípio in dubio pro reo, que a arguida se embriagou com o propósito de praticar os factos.

12. Segundo as regras de experiência comum, é possível entender que a arguida, em tais momentos, se encontrava afectada na vontade de se determinar, na capacidade para avaliar a sua ilicitude, ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

13. Por força do previsto no Artigo 20º/1 do Código Penal, o facto praticado em estado de inimputabilidade no momento da sua prática, não releva criminal[mente].   

14. Tais factos e a prova que sobre os mesmos incidiu, atento o plasmado no douto acórdão recorrido, não se mostram aptos a concluir que a arguida se colocou propositadamente em estado de inimputabilidade, tendo em vista a prática dos factos, não sendo, assim, possível concluir pela sua imputabilidade, por força do previsto no Artigo 20º/4 do C.P.

15. No que tange aos factos praticados via telefone pela arguida em 03 de Junho de 2015, sindicável pelo STJ, conforme previsto no Artigo 434º do C.P.P., já que se colhe do texto do douto acórdão recorrido, nomeadamente face ao plasmado a folhas 7,

16. Factos, enquadrados no libelo acusatório, confirmados no douto acórdão recorrido, como aptos ao preenchimento dos elementos típicos respeitantes ao crime de ameaça agravada,

17. [Porém], tal conclusão, segundo as regras da experiência comum não se mostra lógica,  

18. Porque, conforme plasmado no douto acórdão recorrido, a chamada telefónica efectuada nessa data pela arguida, atendida pela Dr.ª ..., não demonstra de forma evidente que a expressão proferida pela arguida foi a esta objectivamente dirigida. 

19. Aliás, a expressão proferida pela arguida permite concluir pelo contrário, até porque a expressão é comum, não visa alguém em concreto, mostrando-se claramente inapta para o preenchimento de qualquer um dos requisitos típicos a que se alude no Artigo 153º do Código Penal.   

20. Na perspectiva do homem médio, pressuposto pelo direito, a expressão comum a que a arguida aludiu, não é adequada para provocar medo ou inquietação, ou para prejudicar a liberdade de determinação de uma pessoa, havendo que se concluir que os requisitos típicos previstos no Artigo 153º do Código Penal não se encontram preenchidos.     

21. O douto acórdão recorrido, ao decidir condenar a arguida na pena parcelar de quatro anos de prisão, no que tange à prática de um crime de violência doméstica agravada, viola mormente o previsto no Artigo 40º do Código Penal.    

22. Efectivamente, tal pena de prisão, determinada em medida muito próxima ao seu limite máximo abstracto,

23. Demonstra uma violação grosseira da medida da culpa que pode ser determinada à arguida.

24. E igualmente olvida o princípio basilar no que tange à reintegração do agente na sociedade.  

E a culpa;

25. (…)

26. O douto acórdão recorrido, nomeadamente nesta parte, é amplamente violador dos princípios essenciais visados pela aplicação das penas. 

27. O Tribunal a quo ao decidir pela aplicação das penas parcelares de prisão de um ano e quatro meses por cada um dos dois crimes de ameaça age em violação pelo previsto nos Artigos 40º e 70º do Código Penal.   

28. Nomeadamente porque a arguida não tem nenhum antecedente criminal que respeite à prática de qualquer crime de ameaça é adequado que, a haver lugar à sua condenação, a pena de multa se mostra apta a atingir qualquer um dos fins pretendidos pelo direito, mormente por força do previsto nos Artigos 40º, 70º, 153º e 155º/1-a), todos do Código Penal.

29. A pena facultativa acessória prevista no Artigo 152º/6 do C.P., de inibição do exercício das responsabilidades parentais, foi fixada no douto acórdão recorrido em sete anos.

30. Tal pena acessória não se encontra suficientemente estribada e mostra-se desnecessária, excedendo amplamente a medida da culpa da arguida.  

31. A pena acessória encontra-se calculada em evidente violação pelo previsto no Artigo 40º do Código Penal, nomeadamente porque extravasa amplamente a culpa da arguida. 

32. O douto acórdão recorrido, também neste segmento decisório, forma a convicção ilógica no que tange à determinação da culpa da arguida. 

33. Acresce ainda que se encontra a tramitar no Tribunal cível um processo de promoção e protecção a favor da menor BB.

34. É no âmbito deste processo que melhor se podem avaliar os diversos factos no que respeita ao exercício das responsabilidades parentais.

35. Tudo sopesado, deve a pena acessória ser alterada, fixando-se esta no seu limite médio inferior, em medida não superior a quatro anos.           

36. A pena única de prisão efectiva de cinco anos e seis meses demonstra a violação acentuada, em especial, do previsto no Artigo 77º/1 do Código Penal.  

37. O douto acórdão recorrido, especialmente na matéria que respeita à determinação da pena única, age em violação aos entendimentos vertidos em doutos acórdãos proferidos neste Supremo Tribunal de Justiça (…). 

38. (…)

39. (…)

40. O douto acórdão do Tribunal a quo, ao decidir aplicar a pena única de cinco anos e seis meses de prisão efectiva à arguida, viola amplamente, o juízo de prognose favorável ao comportamento futuro da arguida.

41. A que acresce haver a arguida vivido muitos anos num evidente quadro de fragilidade, o que se colhe do douto acórdão recorrido.

42. A arguida não tem nenhum antecedente criminal de relevo, o que se colhe também no texto do douto acórdão recorrido.    

43. O douto acórdão do Tribunal a quo, ao verter um entendimento parcial na apreciação dos factos, viola o previsto no Artigo 202º/2 da Constituição da República Portuguesa.    

44. Porque pondera de forma insuficiente a prova testemunhal produzida pela defesa, padece o douto acórdão recorrido de erro notório na apreciação da prova, facto que se mostra sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, por força do previsto no Artigo 410º/2 do C.P.P.

Nestes termos e nos melhores de direito, com o douto suprimento de V. Ex.ªs, respeitosamente requer:

1 - Em face do plasmado no douto acórdão recorrido seja entendido que os factos não permitem estribar a condenação da arguida pela prática de qualquer um dos dois crimes de ameaça agravada.

2 - Ou, a assim não se entender, mantendo-se a sua condenação pela prática de algum dos dois crimes de ameaça agravada, seja a pena de prisão substituída pela de multa, em medida não superior a 120 dias, a qual, até pelo facto de a arguida não apresentar nenhum antecedente criminal de relevo, se mostra apta a dar total satisfação aos fins legalmente previstos pelo direito, mormente por força do previsto nos Artigos 40º, 70º, 153º e 155º/1-a), todos do Código Penal.

3 - Em face do plasmado no texto do douto acórdão recorrido, se entenda que os factos dados como provados, na parte que tange ao crime de violência doméstica agravada, demonstram erro notório na apreciação da prova, nomeadamente a produzida pela defesa, pelo que o douto acórdão recorrido, além do mais, nesta parte padece de reforma.

4 - Reapreciada a prova sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, reponderados todos os demais elementos, se conclua que a pena concreta de quatro anos de prisão, próxima ao seu limite máximo abstracto, excede amplamente a medida da culpa determinável à arguida, o que viola um dos princípios fundamentais subjacentes à aplicação das penas, mormente em face do previsto no Artigo 40º do Código Penal e ainda porque não se mostra suficientemente ponderado o facto de a arguida não apresentar nenhum antecedente criminal com relevo para a decisão.            

5 - Tudo ponderado, seja entendido condenar a arguida pela prática de um crime de violência doméstica agravada na pena de prisão não superior a dois anos. Seja fixada a pena acessória facultativa, em medida não superior a quatro anos.   

6 - Nos legais termos, decidam V. Exas. suspender a execução da pena única de prisão, pelo período correspondente, por força do previsto no Artigo 50º do C.P., restituindo a arguida de imediato à liberdade, e se proceda ao desconto do tempo cumprido em prisão preventiva, termos em que se fará a costumada JUSTIÇA”.

O Exmo. Procurador junto do tribunal recorrido pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. A fundamentação do Acórdão mostra cabalmente que os factos julgados provados sob os nºs. 11 a 15 e 38 a 40, que a arguida nem sequer impugna, preenchem, por duas vezes, todos os elementos do tipo do crime de ameaça agravada, p e p. pelos artºs. 153º, n º1 e 155º, nº 1, al. a), do Cód. Penal.

2. As penas de um (1) ano e quatro (4) meses de prisão aplicadas a cada um desses dois crimes mostram-se conformes à elevada culpa da arguida e às sensíveis exigências de prevenção especial e geral reveladas nos autos pela situação da arguida. 

3. Manifestamente o Acórdão não incorre no vício de erro notório na apreciação da prova tanto mais que a Recorrente não enuncia, sequer, os concretos factos relativamente aos quais entende ocorrer o alegado vício, limitando-se a referências genéricas a alguns dos testemunhos prestados no decurso do julgamento, que na sua perspectiva são contraditórios.

4. Por outro lado, a Recorrente também não dá cumprimento às exigências vertidas no artº 412º, nº 3, do C.P.P. seja indicando os concertos factos que considera incorrectamente julgados, seja especificando as provas que impõem decisão diversa daquela alcançada pelo Tribunal pelo que, também na vertente de apreciação de um eventual erro de julgamento, que aliás não se verifica, o seu recurso [não] poderá merecer provimento.

5. Atento o elevado grau de ilicitude, expresso no longo período de tempo em que os actos perduraram, entre 09.01.2010 e 09.09.2014, data em que a menor foi acolhida na instituição e a pouca idade da vítima, nascida a 19.01.2006, sem a mínima hipótese de se defender dos actos contra si praticados.

6. A culpa, também de grau muitíssimo elevado, pois a arguida agiu com as próprias mãos contra a sua filha de pouca idade, à qual devia garantir a protecção e não constituir ela própria um foco de perigo para a saúde, segurança e integridade física da menor, motivada pela satisfação egoística dos seus impulsos em detrimento dos cumprimentos dos seus deveres para com a sua filha.

7. A forte necessidade de prevenção geral deste tipo de condutas, gravemente atentatórias de direitos fundamentais e que geram forte repulsa na comunidade em geral que impõe que se desencoraje a sua prática, assim se repondo a confiança da comunidade na eficácia do ordenamento jurídico;

8. As condições pessoais do agente e a sua situação económica.

9. A conduta anterior aos factos: a arguida já apresenta um outro antecedente criminal registado.

10. A conduta posterior aos factos e as necessidades de prevenção especial: a arguida assumiu em audiência de julgamento uma atitude desresponsabilizadora da sua conduta, não evidenciando reprovação pelos seus actos, situação que impõe que se acautele a prática futura de ilícitos criminais de idêntica natureza.

11. Donde, [porque] ressalta à evidência a preponderância das [circunstâncias] de cariz agravante, justifica-se a aplicação à arguida de uma pena da grandeza daquela aplicada pelo Tribunal Colectivo ao crime de violência doméstica, que se situa um pouco acima do meio da moldura penal aplicável.

12. Ponderando na sua globalidade os factos pelos quais a arguida foi condenada, importa desde logo considerar que incorreu sempre na prática de crimes contra as pessoas.

13. Os factos prolongaram-se por vários anos apresentando a filha da arguida pouca idade e, por via disso, sem capacidade de se defender da pessoa que a devia proteger.

14. Agiu de modo egoísta, sobrepondo os seus interesses particulares em detrimento do bem-estar físico e psíquico da sua filha.

15. Acresce que, como salientado no Acórdão Recorrido, a arguida praticou os factos após um período em que a sua filha esteve institucionalizada, no âmbito de um processo de promoção e protecção, num momento em que, confiando que a arguida iria bem tratar a BB esta regressou ao seu lar.

16. Violando essa confiança nela depositada pela filha e pelas competentes instituições, a arguida cometeu, então, os factos que fundam a sua condenação nos presentes autos.

17. Verifica-se, assim, que a propensão da arguida para o cometimento de ilícitos penais contra a pessoa da sua filha com vista à satisfação dos seus interesses pessoais é bastante acentuada.

18. São prementes as exigências de prevenção quer de prevenção geral, quer especial.

19. A sucessão de factos praticados e a relação entre a arguida e a vítima configuram um ilícito global de elevada gravidade e revelador de uma personalidade mal formada, desprovida de valores éticos.

20. Apreciando todas essas circunstâncias, em que avultam de forma muito acentuada as de sinal desfavorável à arguida, a pena que lhe foi aplicada em cúmulo jurídico mostra-se adequada aos critérios legais expressos no artº 77º, do Cód. Penal, não merecendo censura.

21.Tal como a sanção acessória aplicada se mostra conforme às disposições legais aplicáveis e às circunstâncias do caso supra expostas”.

Neste Supremo Tribunal a Exma. Procuradora-Geral Adjunto emitiu parecer nos seguintes termos:

a) - “A arguida (…) invoca vícios do art.º 410.º, n.º 2 do CPP, mas segundo nos parece muito genericamente, pois refere-se a tais erros apenas dizendo que se verificam entre os factos provados e as declarações das testemunhas e também entre aqueles e a fundamentação, sem as concretizar.

b) - Se por hipótese vier a ser considerado/decidido que a arguida AA visa impugnar correctamente tais vícios, então ao Supremo Tribunal de Justiça está vedado conhecer o recurso, por só poder conhecer da matéria de direito conforme expressamente a lei processual penal prevê nos art.ºs 432.º n.º 1, e) e 434.º do CPP.

c) – Parece-nos que só a medida das penas parcelares e única, bem como a pena acessória é que poderão ser discutidas e postas em causa no acórdão recorrido e que também são visados pela arguida Elisa Oliveira.

d) - “(…) Não nos parece haver fundamentos que possam levar a aplicar esta pena acessória de 7 anos, até porque a pena de prisão também deverá contribuir para a ressocialização da arguida, mãe da criança.

e) – Consideramos, pois, depois de todas as circunstâncias e pressupostos penais acima referidos, que as medidas das penas parcelares, únicas e acessória, poderão ser alteradas.

f) - A pena de prisão por autoria de crime de violência doméstica, poderá, segundo nos parece, ficar mais próximo dos 3 anos de prisão.

g) - A pena pelo crime de ameaça por factos ocorridos em Agosto de 2014 parece-nos dever ficar próximo do mínimo aplicável quando foi afastada a aplicação da pena de multa e aplicada uma pena mais próxima do seu máximo.

h) - Agora pelo crime de ameaça, via telefónica em Junho de 2015, parece-nos dever ficar no mínimo da pena aplicável, pois só teve como consequência a porta de acesso à casa ficar fechada.

i) - A pena única resultante do cúmulo destas penas parece-nos dever ficar próxima dos 3 anos e 2 meses de prisão e neste caso dever ser ponderado, desde que a pena aplicada seja igual ou inferior a 5 anos de prisão, a eventual suspensão da sua execução, em regime de prova, até porque, independentemente deste processo penal, estava/estará a correr outro no Tribunal de Menores de Família, [que] acompanha mais de perto e decide a situação da menor.

j) - A prognose poderá ser considerada favorável atendendo até às condições prisionais em que a arguida se encontra afastada do álcool.

l) - Assim e por tudo isto parece-nos poder ser dado provimento ao recurso da arguida AA, devendo ser alteradas as medidas das penas parcelares, única e acessórias e eventualmente ser suspensa a pena de prisão na sua execução”.

Cumprido o n.º 2 do art.º 417.º do CPP, a arguida reiterou o pedido de absolvição dos crimes de ameaça ou condenação, por qualquer deles, em pena de multa, e na pena de 2 anos pelo crime de violência doméstica, a suspender na sua execução, com redução da pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais para período não superior a 4 anos.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo decidir.

Decisão que versa sobre as seguintes questões:

a) – O erro notório na apreciação da prova enquanto vício do n.º 2, alín. c), do art.º 410.º do CPP;

b) – A qualificação jurídica quanto aos crimes de ameaças;

c) – A escolha da pena quanto a esses tipos legais;

d) - As medidas das penas parcelares;

e) – A medida da pena única;

f) – A medida da pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais;

g) – A suspensão da execução da pena.

*

II. Fundamentação

São os seguintes os factos dados como provados no acórdão recorrido:

“1) A menor BB, nascida em ..., é filha da arguida e de pai incógnito.

2) No dia 09.01.2010, a arguida saiu de casa sita na ..., entre as 2h00 e as 6h40, deixando a menor ofendida, na altura com 3 anos de idade, sozinha em casa juntamente com o seu irmão de 15 meses, DD.

3) A arguida trancou a porta de casa à chave, deixando os menores fechados no seu interior.

4) Durante o período de tempo em que se manteve ausente de casa, a menor chorava atrás da porta da rua e pedia a presença da mãe.

5) A arguida manteve-se incontactável e quando regressou, pelas 6h40 da manhã, apresentava sinais visíveis de embriaguez, com voz lenta e arrastada e olhar vítreo.

6) Nesse momento, ao deparar com a menor à porta de casa, acompanhada por um agente da P.S.P., a arguida desferiu, animada de violência, uma bofetada na cara da menor.

7) Em data não concretamente apurada, mas seguramente no Verão de 2011, a arguida saiu da casa de família, sita na ..., pelas 2h00, acompanhada da ofendida BB, na altura com 5 anos de idade e regressou a casa também na companhia da menor pelas 6h00.

8) Em data não concretamente apurada, mas seguramente no início do ano lectivo de 2013/2014 e no interior da casa da família, a arguida desferiu, animada de força, uma dentada na zona esquerda do maxilar na ofendida, provocando-lhe dor e uma marca de configuração oval de cor roxa/amarelada, na zona atingida.

10) Durante o ano lectivo referido, em datas não apuradas e seguramente em mais de duas ocasiões, a arguida foi buscar a ofendida à escola revelando evidentes sinais de embriaguez, com olhar vítreo, andar cambaleante e exarando odor a álcool, provocando sentimentos de vergonha e humilhação na menor.

11) No dia 29.08.2014, pelas 11h00, a arguida levou a menor à Associação ..., onde a mesma beneficia de apoio psicológico.

12) Após a sessão de apoio da menor a arguida regressou para ir buscar a BB, visivelmente embriagada, exalando odor a álcool, andar cambaleante e voz arrastada, pelo que a psicóloga solicitou que a acompanhasse até ao 1º andar, pois teria que contactar a técnica da Segurança Social.

13) Após o telefonema feito pela psicóloga do ... para a Técnica da Segurança Social, a arguida, em voz alta e com foros de veracidade, disse à psicóloga, Dra EE, que caso ela lhe tirasse a filha, a matava, a ela e à sua mãe.

14) Como consequência directa e necessária da conduta da arguida, a ofendida EE, sentiu receio pela sua vida e integridade física.

15) A arguida agiu, deliberada, livre e conscientemente com o propósito conseguido de incutir na ofendida EE receio pela sua vida e integridade física, bem sabendo que a expressão por si proferida, assim como as circunstâncias em que a mesma foi proferida, era adequada a atingir tal desiderato.

16) Após o episódio descrito em 13, [a] arguida abandonou a sala e desceu as escadas em direcção ao rés-do-chão, gritando pelo nome da menor, acto contínuo agarrou-a por um braço e com violência arrastou-a à força para fora da instituição enquanto a ofendida assustada gritava “mãe pára, mãe pára!”.

17) Em data não apurada, mas seguramente uns dias antes de a menor ingressar na instituição ..., o que ocorreu em 09.09.2014, a menor foi com a mãe às compras ao supermercado ..., em ..., e começou a chorar porque a arguida estava a comprar bebidas alcoólicas para levar para casa.

18) Nessa altura a arguida disse-lhe em voz grave e séria que se não parasse de chorar lhe batia quando chegassem a casa.

19) Assim, após terem regressado à residência, a arguida tirou o cinto que usava nas calças e munida com o mesmo desferiu com violência diversos golpes no “rabo”, nas pernas e nas costas da menor.

20) Em datas não concretamente apuradas, mas seguramente sempre que a arguida levava a menor consigo para sair à noite, aquela consumia bebidas alcoólicas em excesso e envolvia-se em brigas de rua.

21) Nessas alturas era a menor quem a conduzia até casa e no dia seguinte lhe contava o que tinha acontecido.

22) Por esse motivo e por se mostrar indignada com o facto de a menor não lograr impedi-la de “fazer aquelas figuras”, a arguida munia-se de um cinto e, usando-o como chicote, desferia pancadas com o mesmo no corpo da menor enquanto a confrontava com o facto de ter permitido que ela se comportasse daquela maneira.

23) A arguida dirigia com frequência à menor as expressões “puta”, “porca”, “nojenta”, “ordinária” e em voz grave e séria disse-lhe, em número não apurado de vezes, que a matava.

24) A arguida desferia com frequência violentas bofetadas na cara da menor ofendida, apertões nos braços, puxões de cabelos, dentadas no corpo, apertava-lhe a nuca com as pontas dos dedos usando as unhas, penteava o cabelo da menor com violência, provocando-lhe abundantes quedas de cabelo.

25) Em data não apurada, mas seguramente no interior da residência, a arguida desferiu uma dentada com violência na nádega da ofendida provocando-lhe uma ferida e sangramento.

26) A arguida puxou com violência, em número não apurado de vezes, os cabelos da menor pela zona da nuca, nomeadamente quando seguiam na rua e ficava desagradada com algum comportamento da menor.

27) Em data não concretamente apurada, mas seguramente após a ofendida ter contado a uma amiga que a arguida lhe batia, a arguida disse à menor em voz alta e com foros de veracidade que “lhe cortava a língua”, caso ela contasse o que se passava em casa.

28) Em data não concretamente apurada, mas seguramente durante um fim-de-semana que o irmão da ofendida, o menor DD, passava em casa da arguida, a arguida muniu-se de um cinto e servindo-se do mesmo, desferiu pancadas no corpo da menor.

29) Depois, quando a menor se encontrava deitada na cama, a arguida dirigiu-se ao quarto da ofendida deitou-lhe água para cima, depois muniu-se de uma almofada colocou-lhe a almofada sobre a cara e sentou-se em cima da referida almofada, fazendo menção de impedir a menor de respirar.

30) Após a menor lograr levantar-se da cama e livrar-se da arguida, a arguida dirigiu-se à casa de banho, foi buscar o frasco do álcool, atirando álcool para cima da menor. Acto contínuo, a arguida projectou a menor de cima da cama para o pavimento.

31) Entre finais de 2013 e meados de 2014, a arguida levou por diversas vezes a menor em saídas nocturnas, regressando posteriormente a casa, de madrugada, entre as 2h e as 4h da manhã, visivelmente embriagada, cambaleando, exarando odor a álcool e sendo nesses momentos amparada e guiada pela menor.

32) Em data não apurada, mas seguramente durante a Primavera de 2014, a arguida seguia apeada pelas ruas de Évora acompanhada da menor, entre as 3h e as 4 h da madrugada, durante a semana, visivelmente embriagada, cambaleando e amparada pela menor que evitava que caísse ao chão.

33) Em data não apurada, mas seguramente na Primavera de 2014, a arguida encontrava-se, durante a semana, entre a 1h e as 2h da madrugada, no interior do Bar “...”, sito na Rua ..., acompanhada da menor e visivelmente embriagada, com olhar vítreo e exalando odor a álcool, tendo referido nessas circunstâncias e por diversas vezes referido que, “a filha era dela e que fazia o que queria com a menina”. A arguida acabou por abandonar o bar cambaleando e apoiada na menor, a qual a guiou até casa.

34) Em data não concretamente apurada, mas seguramente quando a menor tinha entre os 7 e os 8 anos, no interior da casa de família e no período nocturno, a arguida muniu-se de um martelo usado para os pequenos actos domésticos e desferiu pancadas com o mesmo na cabeça da menor provocando-lhe dor e medo.

35) Em datas não apuradas e seguramente em duas ocasiões a arguida desfez um comprimido de “Diazepam” num copo com água e deu-o a beber à menor com o objectivo que esta dormisse e a deixasse estar à vontade com homens em casa.

36) A menor tem medo de falar ou contactar com a arguida. Teme pela sua integridade física.

37) Por esse motivo e a pedido da menor, as visitas foram suspensas.

38) No dia 03.06.2015 a arguida telefonou para a Instituição ..., em ..., onde a menor se encontra acolhida e dirigiu em voz alta e com foros de veracidade as seguintes expressões à Sra. Directora Técnica, Dra. ...: “Oiça bem o que eu lhe vou dizer doutora, uma mãe por uma filha morre, mas também mata, ouviu bem. Eu vou a .... buscar a minha filha nem que seja à força, vou pegar fogo a toda a Instituição, agora você vai conhecer a velha e verdadeira ..., vou fazer com que essa Instituição fique muito mal falada, ninguém me pode proibir de ouvir a voz da minha filha!”.

39) Como consequência directa e necessária da conduta da arguida, a ofendida FF, sentiu receio pela sua vida e integridade física.

40) A arguida agiu, deliberada, livre e conscientemente com o propósito conseguido de incutir na ofendida FF receio pela sua vida e integridade física, bem sabendo que a expressão por si proferida, assim como as circunstâncias em que a mesma foi proferida, era adequada a atingir tal desiderato.

41) Todos os factos descritos geram na menor sentimentos de insegurança, temor e angústia, vivendo a menor receosa das reacções da arguida, temendo pela sua integridade física e integridade física.

42) A arguida vem agindo sempre de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção conseguida de humilhar, de intimidar, de ofender o corpo, a saúde psíquica, o são desenvolvimento e fazer a menor temer pela sua integridade física e vida.

43) A arguida sabe que todos os seus comportamentos são adequados a atingir os desideratos supra referidos e que são proibidos porque punidos por lei penal.

44) Sabe que a menor BB é sua filha, que tem apenas 9 anos de idade, que é desconhecido o seu pai, que não tem outros familiares e que por esse motivo deve por si exclusivamente ser cuidada e respeitada, amada e querida e que alguns dos seus comportamentos por serem praticados no interior da casa da família e contra menor de idade, assumem especial gravidade.

Com relevância para a decisão da causa provou-se ainda que:

45) A arguida tem antecedentes criminais, tendo sido condenada no processo 513/02.0GTSTB do ... Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de ..., por sentença transitada em julgado em 21.09.2009, pela prática em 08.08.2002 de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 90 dias de multa à razão diária de €3,00, declarada extinta em 18.01.2013.

46) Antes de ser detida trabalhava nas limpezas, auferindo € 5,00 por hora e vendia produtos hortícolas, auferindo € 20,00 por dia.

47) Vivia em casa camarária pela qual pagava uma renda mensal de € 6,00.

48) Vivia com um companheiro que vende antiguidades.

49) Tem dois filhos menores, a BB que tem 10 anos de idade e o DD, que tem sete anos de idade e vive com o pai.

50) Do relatório social para a determinação de sanção constante de fls. 513-515 e seguintes, resulta nomeadamente o seguinte “(…) Do percurso de vida da arguida, sobressaem os episódios de agressividade por parte do pai, em relação à mãe e em relação a si própria durante a adolescência. Em Portugal estabeleceu relacionamentos afetivos sentidos como pouco gratificantes e foi desenvolvendo progressiva dependência do consumo de álcool. Em meio prisional revela capacidade de adaptação às regras institucionais. Face ao presente envolvimento judicial, assume uma postura de negação (…)”.

51) Do relatório Psicológico de Exame Pericial Forense constante de fls. 673-682 e seguintes cujo teor se dá por integralmente reproduzido resulta nomeadamente o seguinte: “Esteve sempre lúcida, orientada no tempo e no espaço. Manteve um pensamento organizado e estruturado mas de conteúdo pobre. Revelou uma capacidade intelectual que se situa na denominada zona normal inferior QI (80-89). Revela-se pouco evoluída do ponto de vista intelectual. Muitas dificuldades ao nível da capacidade percetiva e vi suo-construtiva. Perceção visual confusa e dificuldade de análise visual e espacial. Falha tanto a perceção como a recordação, confirmando o nível inferior de elaboração visuo espacial. Revela-nos alguma instabilidade psicológica e intranquilidade. Uma imaturidade e infantilidade com predomínio de uma vida instintiva. Como se houvesse uma perceção diminuída ou alterada da realidade. Dificuldade de coordenação entre aspetos intelectuais e os impulsos do corpo. Inferioridade/ regressão. Dificuldade no controle dos impulsos. Apresenta um perfil sugestivo de um sujeito que pode facilmente vir a ter problemas com a lei e a autoridade. Tendência a ficar não colaborante. Facilmente irritável e relacionar-se de forma superficial. Níveis de desconfiança e ideias persecutórias muito elevadas, o que pode refletir tanto uma marcada sensibilidade interpessoal como uma tendência a mal interpretar os motivos e intenções dos outros. Dados os valores tão elevados que apresenta nas escalas de paranóia, pensamento extravagante e outros valores significativos pode levar eventualmente e conjuntamente com outros critérios. a considerar a hipótese de um quadro clinico psicopatológico. Pode haver uma ideação paranóide pensamentos estranhos e peculiares eventualmente tipo alucinatório. Ainda de acordo com os resultados obtidos nas provas aplicadas pode ter alguma tendência para abuso de substâncias podendo haver uma propensão para a adição geral. Confrontada com algumas contradições entre o que referiu e as informações existentes no seu processo: só se lembra de maus tratos na adolescência, quando ela descobriu que o pai tinha amantes e a relação entre eles começou a ficar difícil e este começou a bater­-lhe. A morte da mãe deixou-a muito triste porque era seu sonho que a sua mãe tivesse conhecido os netos, o DD e a GG e isso não se chegou a realizar. Era a pessoa que mais amava e sofreu muito. Quanto aos consumos, diz que gosta de beber bom vinho e umas imperiais, sempre bebeu, mas acha que não em excesso. Nunca foi dependente e a prova disso é que está há 7 meses na prisão sem qualquer sintoma de privação. Negou peremptoriamente a maior parte das acusações que lhe estão imputadas. Sente-se maltratada e incompreendida. Acredita que os outros não a compreendem e que a vida lhe tem sido ingrata. Sente-se não desejada, infeliz e descreve-se a si mesmo como um incómodo para os outros não encontrando qualquer proveito ou interesse na vida. Lamenta-se e culpa-se pelo seu passado.”

52) Do relatório pericial de exame psiquiátrico constante de fls. 709-719, cujo teor se dá por integralmente reproduzido resulta, nomeadamente, o seguinte: “(…) Após análise das peças processuais, da avaliação psicológica e de exames directo e indirecto podemos concluir pela existência de perturbação de personalidade antissocial - F60.2, segundo critérios de Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento - CID-lO. "Transtorno de personalidade, usualmente vindo de atenção por uma disparidade flagrante entre o comportamento e as normas sociais predominantes, é caracterizado por: (a) Indiferença insensível pelos sentimentos alheios; (b) Atitude flagrante e persistente de irresponsabilidade e desrespeito por normas, regras e obrigações sociais; (c) Incapacidade de manter relacionamentos, embora não haja dificuldade em estabelecê-los; (d) Muito baixa tolerância à frustração e um baixo limiar para descarga de agressão, incluindo violência; (e) Incapacidade de experimentar culpa e de aprender com a experiência, particularmente punição; (f) Propensão marcante para culpar os outros ou para oferecer racionalizações plausíveis para comportamento que levou o paciente a conflito com a sociedade."

Segundo a CID-lO, transtornos da personalidade: "abrangem padrões de comportamento profundamente arraigados e permanentes, manifestando-se como respostas inflexíveis a uma ampla série de situações pessoais e sociais. Eles representam desvios extremos ou significativos do modo como o indivíduo médio, em dada cultura, percebe, sente, pensa e, particularmente se relaciona com os outros. Tais padrões de comportamento tendem a ser estáveis e abranger múltiplos domínios de comportamento e funcionamento psicológico". "não são secundários a um outro transtorno mental ou doença cerebral, embora possa preceder ou coexistir com outros transtornos."

Da avaliação psicológica realizada sobressai também um perfil da personalidade com predomínio da vida instintiva, com dificuldade no controle dos impulsos, que pode facilmente vir a ter problemas com a lei e a autoridade, ficando não colaborante, facilmente irritável e relacionar-se de forma superficial; com alto nível da desconfiança; que sente-se maltratada e incompreendida e tem alguma tendência para abuso de substâncias. Ao nível cognitivo a examinada apresenta um quociente intelectual de nível normal inferior, sem indicadores de deterioração mental.

Os factores etiológicos (que estão na origem) de qualquer tipo da perturbação da personalidade, são os seguintes: factores genéticos, factores neurobiológicos, factores ambientais/psicossociais.

No que diz respeito ao papel da provável influência das vivências traumáticas da infância, nomeadamente alegados consumos alcoólicos e violência por parte do pai da examinanda, na formação do quadro da perturbação da personalidade, estes eventualmente poderiam contribuir para desenvolvimento de traços da personalidade da examinada mas apenas durante a infância e adolescência dela como factores etiológicos psicossociais acima referidos (não é possível avaliar a medida em que as memórias traumáticas da infância poderiam contribuir na altura para o desenvolvimento da perturbação da personalidade da examinada, por ausência de informação objectiva e fidedigna relativa à infância e adolescência da examinanda e por contradições na informação fornecida pela própria nos vários períodos). De qualquer modo, à data da prática dos factos constantes na acusação, as memórias traumáticas da infância ou alcoolismo do familiar não poderiam ter influência para a capacidade de examinada para avaliar o carácter proibido dos actos que praticou, ou de se determinar.

O falecimento da mãe da examinada, segundo a própria, deixou-a triste, mas não levou a alteração significativa do padrão comportamental já praticado pela examinada durante vários anos e antes do falecimento da mãe, não podendo à data da prática dos factos constantes na acusação alterar a capacidade dela para avaliar o carácter proibido dos actos que praticou, ou de se determinar. Assinalamos ainda, que os indivíduos com perturbação de personalidade antissocial apresentam uma maior propensão para abuso e dependência de substâncias, jogo e promiscuidade.

Contudo, não se verifica na examinada a presença de critérios da dependência alcoólica, como: compulsão para consumir; estado de abstinência fisiológico; evidência de tolerância; abandono de outras actividades em favor de procura ou uso de substância.

No exame psicopatológico não se encontra qualquer alteração da consciência, da orientação em qualquer das referências avaliadas, da memória, da percepção, do curso, da forma e do conteúdo do pensamento, de qualquer alteração a nível do humor ou da motricidade (sendo também ausentes sintomas psicóticos, de natureza delirante ou alucinatória), que tivesse perturbado o sentido da realidade, ou o impedisse a examinada de agir com consciência e vontade.

O consumo de álcool aquando da prática dos factos de acusação, que aliado à sua perturbação de personalidade antissocial, poderá de facto diminuir a sua capacidade de controlo dos impulsos, encontrando-se [todavia] íntegro o processo cognitivo, sendo a examinada capaz de diferenciar com eficácia os actos lícitos dos ilícitos.

Assim sendo, no momento da prática dos factos e para estes, estaria capaz de se avaliar e de se determinar, integrando pois pressupostos médico-legais de imputabilidade. Dito de outro modo, neste caso concreto, não releva uma eventual patologia psiquiátrica para uma diminuição em termos médico-­legais da sua imputabilidade.

Tendo em conta que nos encontramos perante uma personalidade que apresenta dificuldades no manejo da agressividade, respondendo agressivamente aos estímulos do meio e na contenção das pulsões, e que não mostra qualquer tipo de arrependimento ou desejo de mudança em relação ao seu padrão comportamental e actos praticados, somos da opinião de que de facto, existe uma alta probabilidade de repetição de factos típicos semelhantes.

RESPOSTA AOS QUESITOS:

1. À data da prática dos factos constantes da acusação a arguida sofria de alguma anomalia psíquica (doença mental, distúrbio psicológico ou outro)? Qual?

- A examinada sofria de perturbação de personalidade antissocial.

2. Em caso afirmativo

b) Era a mesma grave, não acidental, não dominando a arguida os seus efeitos e não podendo por isso ser censurada?

- Não. A examinanda não apresenta doença mental grave ou mesmo sinais e sintomas de natureza psicótica, que constituam anomalia psíquica grave capaz de interferir de forma decisiva com o funcionamento cognitivo e por si impedir a avaliação da realidade e dominar os seus efeitos.

b1) Para a mesma poderá ter contribuído o consumo de bebidas alcoólicas da própria arguida e/ou outros familiares próximos na sua infância, a morte da sua progenitora ou outras memórias traumáticas da infância?

- O consumo de bebidas alcoólicas pelos familiares e outras memórias traumáticas da infância, assim como a morte da progenitora, não contribuíram, à data da prática dos factos da acusação, para a sua anomalia mental acima mencionada, não podendo alterar as capacidades psíquicas da doente para avaliar o carácter proibido dos actos que praticou, ou de se determinar.

- Os consumos alcoólicos pela própria examinada são secundários à sua perturbação da personalidade antissocial e não poderiam contribuir para o desenvolvimento da mesma. À data da prática dos factos da acusação os consumos referidos não interferiram de forma decisiva com a capacidade da doente para avaliar o carácter proibido dos actos que praticou, ou de se determinar.

3. À data da prática dos factos constantes da acusação tinha a arguida a capacidade para avaliar o carácter proibido dos actos que praticou ou de se determinar de acordo com essa avaliação?

- Sim, tinha.

4. Sofre a arguida presentemente de anomalia psíquica e por isso não pode avaliar o carácter proibido dos actos que pratica ou determinar-se de acordo com essa avaliação?

- A examinada actualmente sofre de perturbação de personalidade antissocial, que não afecta as suas capacidades de avaliar o carácter proibido dos actos que pratica ou determinar-se.

5. Tal anomalia psíquica permite concluir pela previsibilidade de repetição dos factos penalmente sancionados ou socialmente desvaliosos? (ou seja, poderá afirmar-se o receio de repetição de factos da mesma espécie).

- Sim. Existe probabilidade de repetição de factos da mesma espécie.

 A arguida é penalmente imputável (tem capacidade para compreender e avaliar a ilicitude dos comportamentos que adopta)?

- Sim. É imputável.

Na afirmativa:

7. Tal imputabilidade é total ou diminuída?

- Imputabilidade é total. “

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2. Apreciando, uma por uma, as questões suscitadas:

a) – Quanto à impugnação da matéria de facto, a recorrente dirigiu o presente recurso directo, do tribunal colectivo, a este Supremo Tribunal invocando, entre outros normativos legais, o art.º 432.º, n.º 1, alín. a), do CPP.

Dispõe esse preceito que se recorre para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo que aplique pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito.

Todavia, nas conclusões da motivação 1.ª a 14.ª a recorrente impugna a matéria de facto dada como provada pelo tribunal colectivo com base em erro notório da apreciação da prova decorrente, por um lado, da insuficiência das declarações da menor e da não consideração dos “testemunhos requeridos pela defesa” no que tange ao crime de violência doméstica e da ilogicidade da caracterização da culpa a partir de um QI 80-90 da arguida (correspondente à zona normal inferior) e da imputação de um dos crimes de ameaça (em que foi ofendida EE por afirmações “em visível estado de embriaguez) e, assim, de inimputabilidade e irrelevância criminal.

O âmbito dos poderes de cognição do STJ é restrito à matéria de direito (art.º 432.º, n.º1, alín. c), do CPP).

Ainda que o art.º 434.º desse diploma ressalve do âmbito desse reexame o conhecimento, designadamente dos vícios enumerados no n.º 2 do art.º 410.º, entre os quais se conta o erro notório na apreciação da prova (alín. c)), ainda assim, a invocação de tais vícios não pode constituir fundamento autónomo de recurso para o STJ, antes só oficiosamente e como pressuposto do julgamento de direito esse tribunal pode conhecer de tal vício e desde que a mesma resulte do texto da decisão, por si, ou conjugada com as regras da experiência comum.

E tal acontece quando da leitura do texto da decisão recorrida for detectável por uma pessoa medianamente instruída qualquer situação contrária à lógica ou às regras da experiência[1].

Ora, da leitura do acórdão recorrido nenhuma ilogicidade é notável entre a factualidade provada, antes o que haverá é uma divergência suposta na força valorativa dos meios de prova produzidos e que a recorrente entende dever sobrepor os que ofereceu àqueles em que o tribunal motivou a decisão.

O que não é sindicável por este tribunal.

A recorrente faz apelo ao exame psicológico que lhe determinou um QI de 80-90 revelador de uma capacidade intelectual situada na zona normal inferior, havendo sido considerada pouco evoluída desse ponto de vista, daí concluindo por uma “errada determinação da culpa” com reflexos mormente na fixação das penas parcelares, bem como invoca o estado de embriaguez em que se encontrava aquando da ameaça à psicóloga Dr.ª EE.

Enquanto prova pericial (art.º 154.º, n.º 3 e 160.º, do CPP) trata-se de prova vinculada, (art.º 163.º, n.º 1, do CPP), cujo erro na sua apreciação ou na fixação dos factos materiais da causa pode constituir, sempre, fundamento de recurso para o STJ enquanto tribunal de revista (art.º 674.º, n.º 3, do CPC, ex vi art.º 4.º do CPP).

Todavia, os factos fixados pelo tribunal colectivo em nada se chocam com o respectivo relatório pericial, como assim resulta do elenco dos factos provados.

O facto de a arguida apresentar um QI sito na “zona normal inferior” e de se revelar “pouco evoluída do ponto de vista intelectual”, sem prejuízo de tal relevar na apreciação da personalidade com reflexo na medida concreta das penas, o acórdão recorrido, ao ater-se a tal juízo no plano da culpa da recorrente, não incorreu em nenhum vício de erro notório na apreciação da prova.

O mesmo ocorre quanto à questão da inimputabilidade por via da embriaguez, em que a recorrente actuou e que o acórdão recorrido afastou com base no teor do relatório pericial do exame psiquiátrico de fls. 709, que concluiu pela total imputabilidade da arguida quer à data dos factos, quer presentemente.

O acórdão recorrido nesta ou em qualquer outra vertente, não padece de qualquer vício ou erro notório na apreciação da prova e que oficiosamente haja que ser declarado, assim improcedendo aquelas conclusões recursivas, como improcede, desde logo por falta de fundamentação e sentido, a invocada violação do disposto no n.º 2 do art.º 202.º da CRP.

*

b) – Nas conclusões n.ºs 15 a 20 sustenta a recorrente que a factualidade provada não integra os elementos do tipo legal de crime de ameaça do art.º 153.º do CP que teve como ofendida Francisca Pedroso por se não demonstrar que as expressões que lhe dirigiu telefonicamente a visaram objectivamente, nem eram adequadas a provocar medo ou inquietação ou prejudicar a sua liberdade de determinação.

Carece de razão.

Os factos tidos e a ter com provados, a esse propósito, são os seguintes:

- “38) No dia 03.06.2015 a arguida telefonou para a Instituição ..., onde a menor se encontra acolhida e dirigiu em voz alta e com foros de veracidade as seguintes expressões à Sra. Directora Técnica, Dra. CC: “Oiça bem o que eu lhe vou dizer doutora, uma mãe por uma filha morre, mas também mata, ouviu bem. Eu vou a ... buscar a minha filha nem que seja à força, vou pegar fogo a toda a Instituição, agora você vai conhecer a velha e verdadeira AA, vou fazer com que essa Instituição fique muito mal falada, ninguém me pode proibir de ouvir a voz da minha filha!”.

39) Como consequência directa e necessária da conduta da arguida, a ofendida CC, sentiu receio pela sua vida e integridade física.

40) A arguida agiu, deliberada, livre e conscientemente com o propósito conseguido de incutir na ofendida CC receio pela sua vida e integridade física, bem sabendo que a expressão por si proferida, assim como as circunstâncias em que a mesma foi proferida, era adequada a atingir tal desiderato.”

O crime de ameaça, sistematizado na lei penal como crime contra a liberdade pessoal (é um crime de perigo contra a paz interior) e tem como elementos essenciais: um mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente.

É indiferente a forma, oral ou escrita que revista a acção, podendo aquela ser directa ou, p. ex., por via telefónica.

É necessário que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

No fundo, lesar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo hoje necessário (após a Revisão do CP de 1995) que, em concreto, se tenha provocado esse medo ou inquietação.

O critério da adequação da ameaça a provocar esses sentimentos é objectivo, ou seja, a ameaça é adequada se for susceptível de intimidar o “homem comum”, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente e é individual no sentido de que relevam também as características da pessoa ameaçada.

No dizer de Taipa de Carvalho, a ameaça adequada “é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado) ”[2] .

Do exposto resulta que a expressão dirigida pelo arguido por telefone à ofendida directora da instituição onde estava internada a filha menor daquela, de que “Oiça bem o que eu lhe vou dizer doutora, uma mãe por uma filha morre, mas também mata, ouviu bem. Eu vou a ... buscar a minha filha nem que seja à força, vou pegar fogo a toda a Instituição, agora você vai conhecer a velha e verdadeira AA, vou fazer com que essa Instituição fique muito mal falada, ninguém me pode proibir de ouvir a voz da minha filha!” é idónea a constituir ameaça, conformando o objecto da ameaça um crime contra a vida.

Tal ameaça proferida com foros de seriedade é, de acordo com a experiência comum, adequada a provocar medo e inquietação ou prejudicar a liberdade de determinação da ofendida a quem, sem margem para qualquer dúvida, foi dirigida.

Porque também o elemento subjectivo desse ilícito está presente, sob a forma de dolo directo, configurada está a sua consumação.

Improcedem, assim também, as conclusões recursivas.

*

c) – Quanto à escolha da pena relativamente aos crimes de ameaça em que a recorrente foi condenada, crimes qualificados nos termos da alín. a) do n.º 1 do art.º 155.º, com referência ao art.º 131.º, do CP, em conformidade, aliás, com a jurisprudência do Ac. STJ n.º 7/2013[3], a pena oscila entre 30 dias e 2 anos de prisão ou 10 a 240 dias de multa.

O critério da escolha da pena nos termos do art.º 70.º do CP vai, nesses casos de penas alternativas, para a pena não privativa da liberdade, desde que realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Ora, a conclusão que a esse propósito chegou o acórdão recorrido não merece censura. São deveras elevadas as necessidades de prevenção geral e especial, desde logo tendo em conta a personalidade da arguida, pericialmente avaliada, a revelar que a pena de multa não censura suficientemente a conduta nem constitui garantia bastante para a comunidade no que respeita à afirmação da validade e vigência das normas violadas.

Impõe-se, pois, a aplicação da pena de prisão, ainda que em medida inferior à imposta, como vamos ver de seguida.

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d) – Reexaminando agora as medidas das penas parcelares (conclusões 21 a 28), o crime de violência doméstica do art.º 152.º, agravado pela circunstância de a sua prática visar menor, na sua presença e no domicílio comum da vítima e arguida, a moldura penal abstracta vai de 2 a 5 anos de prisão.

Sem menosprezar as fortes necessidades de prevenção geral e especial, cremos que a personalidade da arguida, traduzida, além do mais, em “imaturidade e infantilidade com predomínio de uma vida instintiva, como se houvesse uma percepção diminuída ou alterada da realidade, dificuldade de coordenação entre aspectos intelectuais e os impulsos do corpo (…)”, com um QI situado na zona do normal inferior (80-90) a revelar-se “pouco evoluída do ponto de vista intelectual, muitas dificuldades ao nível da capacidade perceptiva e visuo-construtiva (…)”, aponta para alguma mitigação da culpa.

Assim é que e atendendo ao princípio da culpa (n.º 2 do art.º 40.º do CP), se julga mais adequada a condenação pelo crime de violência doméstica na pena de 3 anos de prisão.

Quanto aos crimes de ameaça, igualmente se nos afigura adequado um abaixamento das penas e uma diferenciação entre as ofendidas, no sentido de punir mais gravemente a ameaça na pessoa da directora da instituição onde a menor estava internada, com vista à defesa da própria instituição, ainda que indirectamente, bem se podendo dizer que a ilicitude da conduta é, nesse caso, de grau mais elevado.

Assim, na moldura abstracta acima enunciada será de condenar na pena de 6 meses de prisão pelo crime em que foi ofendida EE e na pena de 1 ano de prisão pelo crime em que foi ofendida CC

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e) – Porque em causa está a prática de vários crimes antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles, ou seja, há uma relação de concurso entre eles, importa fixar uma pena única, para tanto havendo a considerar em conjunto os factos e a personalidade da recorrente (art.º 77.º do CP).

Na sempre repetida lição de Figueiredo Dias[4], tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisivo para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão entre os factos concorrentes. Na avaliação da personalidade do agente relevará sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência criminosa ou a uma pluriocasionalidade não radicada na personalidade, sendo que só no 1.º caso será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante na moldura penal conjunta.

A conduta da arguida no que respeita ao crime mais grave (violência doméstica sobre a filha menor) desenvolveu-se por um período superior a 4 anos, sendo que os crimes de ameaça estão com ele correlacionados, dado visarem ofendidos que de algum modo obstaram à sua prossecução.

A arguida tem já passado criminal, embora limitado à prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal.

Quanto à sua personalidade, conforme se respiga do exame pericial psiquiátrico a que foi submetida, “apresenta um perfil sugestivo de um sujeito que pode facilmente vir a ter problemas com a lei e a autoridade” e “tendo em conta que nos encontramos perante uma personalidade que apresenta dificuldades no manejo da agressividade, respondendo agressivamente aos estímulos do meio e na contenção das pulsões e que não mostra qualquer tipo de arrependimento ou desejo de mudança em relação ao seu padrão comportamental e actos praticados, somos da opinião de que de facto existe uma alta probabilidade de repetição de factos típicos semelhantes”.

Neste contexto, dentro de uma moldura penal abstracta da pena conjunta de 3 anos a 4 anos e 6 meses de prisão, afigura-se-nos proporcional e adequado fixar a pena única em 4 anos de prisão.

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f) – Quanto à pena acessória de inibição do exercício das responsabilidade parentais prevista no n.º 6 do art.º 152.º do CP por um período de 1 a 10 anos e fixada em 7 anos, igualmente se nos afigura excessiva, tendo em conta o princípio da culpa e todo o circunstancialismo a esse propósito referido.

A pena acessória, porque de pena se trata, não constitui um efeito automático da pena principal e a respectiva medida, dentro da moldura geral abstracta, tem de obedecer aos critérios legais de fixação da medida concreta da pena principal, incluindo a culpa (art.º 71.º do CP)[5].

O n.º 6 do art.º 152.º do CP faz depender a possibilidade de aplicação (e graduação) dessa pena acessória da concreta gravidade do facto e da conexão com a função exercida pelo agente.

Assim sendo, considerando, por um lado, a conduta reiterada da arguida ao longo de mais de 4 anos e a gravidade em que se traduziram os maus tratos infligidos à filha menor e, por outro, as responsabilidades parentais que lhe incumbiam em exclusivo, dada a filiação estar estabelecida apenas quanto à progenitora (art.º 1910.º do Cód. Civil), a quem desde logo cabia o dever de respeito e de promoção do desenvolvimento físico, intelectual e moral da filha (art.ºs 1874.º, n.º 1 e 1885.º, n.º 1, do Cód. Civil), afigura-se proporcionada a pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais pelo período de 4 anos.

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g) – Finalmente, quanto à suspensão da execução da pena de prisão, porque não superior a 5 anos de prisão, impõe-se-nos a pronúncia sobre a possibilidade da sua aplicação, que o n.º 1 do art.º 50.º do CP faz depender da personalidade do agente, as condições da sua vida, conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias deste e da conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

A personalidade da arguida está amplamente descrita nos factos provados, cuja tónica assenta em primária irresponsabilidade social e parental (maternal, se se quiser), as condições da sua vida são as de uma cidadã imigrante, sem raízes no país de acolhimento, com cerca de 45 anos, antes de detida a trabalhar em serviços de limpeza e a viver em casa camarária, com um companheiro vendedor de antiguidades, tendo outro filho com cerca de 7 anos, a viver com o pai, e dependente do consumo de bebidas alcoólicas e que, face ao envolvimento judicial assume uma postura de negação.

O forte grau de ilicitude dos factos respeitantes ao crime de violência doméstica e o elevado grau de violação dos deveres legalmente impostos enquanto progenitora, bem como as fortes exigências de prevenção geral e sobretudo de prevenção especial, já antes ressaltadas, impedem que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Impõe-se, assim, o cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada.

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IIIq. Decisão

Face ao exposto, no provimento parcial do recurso, acordam em condenar a arguida AA nos seguintes termos:

a) - Pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos art.ºs 152.º, n.ºs 1, alín. d) e 2, do CP, na pena de 3 (três) anos de prisão;

b) – Pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art.ºs 155.º, n.º 1, alín. a) e 131.º, do CP, em que é ofendida CC, na pena de 1 (um ) ano de prisão;

c) – Pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art.ºs 155.º, n.º 1, alín. a) e 131.º, do CP, em que é ofendida EE, na pena de 6 (seis) meses de prisão;

d) - Em cúmulo jurídico dessas penas, na pena única de 4 (quatro) anos de prisão.

e) – Na pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais relativamente à sua filha menor BB pelo período de 4 (quatro) anos.

No mais, mantêm o acórdão recorrido.

Sem custas (art.º 513.º, n.º 1, do CPP).

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Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Setembro de 2016

(Francisco M. Caetano)

(Souto de Moura)

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[1] V., entre outros, os Acs. de 02.02.2011, Proc. 1375/07.6PBMTS.P1.S2, in www.dgsi.pt ou 30.09.2015, Proc. 861/13.3PFCSS.L1-3.ª, in SASTJ.
[2] Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 2.ª ed., Coimbra Editora, pág. 563.
[3] DR, I, Série, de 20.03.2013.
[4] Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 4.ª reimp., Coimbra Editora, pág. 291.
[5] Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal, Parte geral e especial, 2014, Almedina, pág. 356 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3.ª ed., UCE, pág. 340.