Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
26/20.8YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO DO CONTENCIOSO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: DECISÃO DO TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS
REVISÃO
SANÇÃO DISCIPLINAR
DIREITO DE DEFESA
PROCESSO DISCIPLINAR
PROCESSO EQUITATIVO
ACEITAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO
CASO JULGADO
IMPARCIALIDADE
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
Data do Acordão: 05/19/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AÇÃO ADMINISTRATIVA
Decisão: JULGADA PROCEDENTE A ACÇÃO.
Sumário :
I - Nos presentes autos de revisão de decisão proferida em processo disciplinar, de forma a assegurar o cabal cumprimento do acórdão proferido pela Grande Chambre do TEDH, que julgou ter havido violação do direito da autora a um processo equitativo, do direito da autora de acesso a um tribunal independente e imparcial e, em particular, do direito da autora a uma audiência pública, seria imperioso que o novo instrutor tivesse procedido à reabertura da fase da defesa e dado à autora a possibilidade de demonstrar que não praticou os factos pelos quais foi acusada, com recurso aos meios de prova legalmente admissíveis.
II - Tendo o novo instrutor recusado os atos instrutórios e os meios de prova oferecidos pela autora e, designadamente, a elaboração de um novo relatório, antes propondo que, na audição da autora pelo Plenário do CSM, o órgão deliberativo considerasse o relatório final elaborado pelo instrutor do processo que deu origem à decisão revidenda, não fica plenamente assegurado o cumprimento daquele Acórdão do TEDH, cumprindo determinar a anulação da deliberação que decidiu pela improcedência do pedido de revisão e a devolução dos autos à entidade demandada para retomar a tramitação subsequente à deliberação que deferiu o pedido de revisão.
Decisão Texto Integral:




PROC. N.º 26/20.8YFLSB


*



ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. Partes
Autora: AA
Entidade demandada: Conselho Superior da Magistratura (CSM)

II. Actos impugnados

Da leitura conjunta da petição inicial e dos dois articulados supervenientes resultam impugnados os seguintes actos:
1 - Deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 7.07.2020, que decidiu pela improcedência do pedido de revisão apresentado pela autora, relativo à decisão do procedimento disciplinar n.º 269/....
2 - Deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 19.11.2019, que decidiu pelo indeferimento do recurso apresentado pela autora do despacho do Senhor Inspector instrutor de 11.10.2019.
3 - Deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 23.03.2021, que decidiu pelo indeferimento do requerimento apresentado pela autora em 12.02.2021.
4 - Deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 20.04.2021, que decidiu pelo indeferimento do requerimento apresentado pela autora em 8.04.2021.


III. Saneamento
1. O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território [cfr. artigos 169.º e 170.º, n.º 1, do EMJ; cfr. ainda Acórdãos do Tribunal Constitucional de 22.06.1999 (Acórdão n.º 373/99, Proc. 90/97), 23.06.2015 (Acórdão n.º 345/15, Proc. 1041/14) e 16.11.2020 (Acórdão n.º 640/2020, Proc. 1040/2019)].

2. A petição inicial não é inepta.

3. O processo é o próprio e é válido (cfr. artigos 66.º e s. do CPTA, ex vi do artigo 169.º do EMJ).

4. As partes têm capacidade e personalidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas.

5. Das excepções suscitadas na contestação da entidade demandada
5.1. Embora não o fazendo separada e especificadamente, a entidade demandada suscitou, nos artigos 30.º a 32.º da contestação, as excepções de inimpugnabilidade contenciosa ratione temporis de um segmento do acto impugnado e de aceitação de acto nesse segmento.
A autora replicou.
Cumpre apreciar e decidir.

5.2. Para conhecimento das excepções, importa deixar desde já enunciadas as seguintes ocorrências processualmente relevantes:
A) No âmbito de um procedimento de revisão de sanção disciplinar, a ora autora apresentou em 30.09.2019 requerimento no qual solicitou a sua audição presencial (bem como a repetição da audição do Senhor Participante), perante o novo instrutor nomeado.
B) O requerimento referido em A) foi indeferido pelo Senhor Inspector instrutor, por despacho de 11.10.2019, no que respeita às audições requeridas, o qual determinou o prosseguimento do procedimento de revisão com a audição pública da Senhora Juíza de Direito no Conselho Plenário, tomando por referência o relatório final de 21.12.2011, com as retificações de 30.01.2012 (fls. 124 a 139 do P.A.).
C) Não se conformando com o teor do despacho referido em B), a ora autora apresentou a 4.11.2019 recurso hierárquico impróprio para o Conselho Plenário do CSM, cujo teor se dá por transcrito (fls. 150 a 156 do P.A.).
D) As questões suscitadas no recurso hierárquico impróprio referido em C) foram ponderadas na deliberação tomada a 19.11.2019, que concluiu assim: “foi deliberado por unanimidade aprovar o projeto de deliberação do Exmo. Senhor Juiz Desembargador Dr. Jorge Raposo, que contém o seguinte trecho decisório: 'Não admitir a reclamação apresentada, e proceder como proposto pelo Ex.mo Sr. Inspetor Judicial, prosseguindo o procedimento com a audição pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura da Senhora Juíza de Direito AA, atendendo-se então ao relatório final constante de fls. 1142 a 1178 verso, datado de 21.12.2011, com as retificações decorrentes do despacho de fls. 1289 a 1298, datado de 30.1.2012'”(fls. 160 a 163 do P.A.)
E) A autora não impugnou contenciosamente a deliberação referida em D) no prazo de 30 dias contados da respectiva notificação.
F) Os autos de procedimento disciplinar prosseguiram com a audição pública da autora, na sessão do Conselho Plenário de 11.02.2020.
G) Em 7.07.2020 o Conselho Plenário da entidade demandada deliberou, por unanimidade, julgar improcedente o pedido de revisão formulado pela autora.
H) Em 25.09.2020 a autora instaurou a presente acção administrativa de impugnação da deliberação referida em G).

5.3. É inegável que a deliberação referida em D), porque objecto de notificação oportuna à autora, poderia ter sido impugnada no prazo a que alude o artigo 171.º, n.º 1, do EMJ. E é também inequívoco que esse acto, por ter eficácia externa, se projecta na esfera jurídica da autora.
Mas será que o facto de aquele acto se ter tornado inimpugnável, por decurso do prazo para impugnação, impede que este Tribunal se pronuncie sobre as eventuais ilegalidades de que padeça e que se tenham repercutido no acto final, entendido como a deliberação referida em G), de 7.07.2020, pela qual se julgou improcedente o pedido de revisão de sanção disciplinar que a demandante formulara?
Entende-se que não.
É aplicável ao caso o disposto no artigo 51.º, n.º 3, do CPTA, ex vi dos artigos 166.º, n.º 2, 169.º e 173.º, todos do EMJ.
Na sua versão inicial, o artigo 51.º, n.º 3, do CPTA dispunha: “salvo quando o ato em causa tenha determinado a exclusão do interessado do procedimento e sem prejuízo do disposto em lei especial, a circunstância de não ter impugnado qualquer ato procedimental não impede o interessado de impugnar o ato final com fundamento em ilegalidades cometidas ao longo do procedimento”.
O texto foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, 21.10, passando a dispor: “os atos impugnáveis de harmonia com o disposto nos números anteriores que não ponham termo a um procedimento só podem ser impugnados durante a pendência do mesmo, sem prejuízo da faculdade de impugnação do ato final com fundamento em ilegalidades cometidas durante o procedimento, salvo quando essas ilegalidades digam respeito a ato que tenha determinado a exclusão do interessado do procedimento ou a ato que lei especial submeta a um ónus de impugnação autónoma”.
Em anotação ao preceito citado, na sua versão inicial, refere, em termos que permanecem actuais, a doutrina da especialidade o seguinte:
Em termos inovatórios, e que são de aplaudir, vem o art. 51.º/3 do CPTA estabelecer que (com exceção das hipóteses previstas logo no seu início) o facto de não se ter impugnado qualquer ato administrativo procedimental — é dizer, qualquer ato administrativo com eficácia externa localizado no início ou no seio de um procedimento administrativo — não impede o interessado de impugnar o ato administrativo final com fundamento nas ilegalidades que afetavam aquelas decisões anteriores.
Anteriormente ao Código, o que sucedia (embora não se tratasse de posição unânime) era que a falta de atempada impugnação de um ato administrativo destacável determinava a sua consolidação na ordem jurídica e a preclusão da possibilidade de invocação das respetivas ilegalidades em sede de impugnação dos atos subsequentes do procedimento ou do ato final. Ou, como também se dizia, este tornava-.se inimpugnável com base naquelas ilegalidades, porque, nessa parte, se traduzia num ato meramente conformativo.
Hoje, porém, já não é assim, passando a impugnação judicial dos atos administrativos procedimentais a ser vista como uma faculdade do interessado, não um ónus seu, pois — mesmo tendo-se tornado inimpugnáveis por força do decurso do prazo de reação judicial — as suas ilegalidades são sempre invocáveis a final, contra o ato constitutivo (quando, claro, se repercutam negativamente no seu conteúdo ou procedimento), tornando este derivadamente inválido.
Quer isto dizer então que, sem prejuízo da faculdade de impugnação autónoma (e tempestiva) das suas ilegalidades — que é o que os distingue dos meros trâmites ilegais do procedimento —, vale hoje, para os atos administrativos com eficácia externa localizados no início ou no seio do procedimento, a mesma solução que sempre valeu para as ilegalidades desses trâmites procedimentais: as respetivas ilegalidades são invocáveis através da impugnação do ato final.
O que implica, além do mais, que não se veja na respetiva falta de impugnação, ou na continuação da participação do interessado no procedimento, uma aceitação sua desses atos[1].
No mesmo sentido se tem pronunciado a jurisprudência mais recente dos tribunais superiores da jurisdição administrativa[2] e também deste Supremo Tribunal de Justiça[3].
Tudo visto e ponderado, improcede esta excepção.

5.4. Também improcede – diga-se já – a aludida excepção de aceitação do acto.
Seguindo de perto a exposição da doutrina da especialidade[4], é seguro que a aceitação tácita do acto administrativo é um pressuposto processual autónomo da acção administrativa de pretensão conexa com actos administrativos, que implica a impossibilidade de impugnação ou a ilegitimidade superveniente, consoante a aceitação ocorra após a prática do acto (impugnado, e não um qualquer outro acto situado a montante), antes da interposição da acção ou já na pendência desta. Trata-se de uma vicissitude que não se confunde com a renúncia ao recurso contencioso, podendo antes caracterizar-se como “[…] um ato jurídico voluntário a que a lei reporta um certo efeito de direito – a perda da faculdade de impugnar – independentemente de o particular ter ou não querido a efetiva produção desse resultado[5].
Certo é que, para os efeitos que ora interessam, a aceitação do acto é apenas aquela que deriva da prática espontânea e sem reservas de facto incompatível com a vontade de recorrer, devendo tal comportamento ter um significado unívoco e não deixar quaisquer dúvidas quanto ao seu significado de acatamento integral do acto, de acatamento das determinações nele contidas. É este, aliás, o sentido do disposto no artigo 56.º, n.º 2, do CPTA. Se não fosse assim, configurar-se-ia uma limitação da garantia constitucional de impugnação contenciosa e, portanto, violar-se-ia o princípio da tutela jurisdicional efetiva[6].
Daí que, como adverte a doutrina, “[…] embora não seja necessária a intenção de renunciar (ao direito ou à impugnação), é pressuposto lógico e valorativo da preclusão legal a existência comprovada de uma vontade livre e esclarecida de aceitar os efeitos do ato, não valendo a conformação determinada pelo receio, pela ignorância e, em geral, por qualquer defeito da vontade (erro, dolo, coação), ou quando não fosse exigível ao aceitante outro comportamento[7].
Seguindo, pois, estes ensinamentos da doutrina[8] e da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo[9], deve interpretar-se o artigo 56.º, n.º 1, do CPTA restritivamente, por ser uma norma limitativa da garantia constitucional de impugnação contenciosa. Assim, só uma aceitação livre, incondicionada e sem reservas deve poder ser entendida como impeditiva do exercício do direito de acção.
Ora, se, como já se viu, “[…] a impugnação de atos procedimentais intermédios é meramente facultativa, como estabelece o artigo 51.º, n.º 3 (salvo no caso de atos de exclusão ou de expressa previsão legal em contrário), quando o interessado venha a impugnar o ato final com fundamento em ilegalidades cometidas ao longo do procedimento, não é possível invocar a aceitação tácita dos atos procedimentais anteriores, pelo facto de não terem sido impugnados ou de não ter sido manifestada qualquer reserva quanto a eles[10].
Tudo visto e ponderado, improcedem as excepções deduzidas pela entidade demandada.

IV. Fixação do valor da causa
De harmonia com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 306.º do CPC, aqui aplicável ex vi dos artigos 1.º e 31.º, n.º 4, ambos do CPTA, fixa-se o valor da causa em € 30 000,01, por ser este o valor correspondente à utilidade económica do pedido, nos termos exigidos pelo artigo 34.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA e no artigo 6.º, n.º 4, do ETAF e, por remissão deste, também no artigo 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, na sua redacção actual.


V. Questões decidendas
1 – Deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 7.07.2020
1.ª) Nulidade insuprível por preterição de diligências probatórias essenciais – deficit de instrução – e ofensa de caso julgado.
2.ª) Violação das garantias de imparcialidade devida à participação no acto impugnado de membros da entidade demandada que deveriam ter-se declarado impedidos.
3.ª) Falta de quórum deliberativo.
4.ª) Erro notório na apreciação da prova e erro de julgamento.
5.ª) Violação das garantias de imparcialidade devida à conduta do instrutor
2 – Deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 19.11.2019
6.ª) Violação das garantias da imparcialidade devida à participação no acto impugnado de membro da entidade demandada que deveria ter-se declarado impedido
7.ª) Violação das garantias de imparcialidade devida à conduta do instrutor
3 – Deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 23.03.2021
8.ª) Não reconhecimento do impedimento de participação de membro da entidade demandada nas deliberações de 7.07.2020 e de 19.11.2020
4 – Deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 20.04.2021
9.ª) Não reconhecimento do impedimento de membro da entidade demandada nas deliberações de 7.07.2020 e de 19.11.2020


VI. Factualidade apurada com relevância para a causa
Tendo em atenção a posição das partes expressas nos seus articulados e o acervo documental junto aos autos, julga-se provada, com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos e para as soluções de direito equacionáveis, a matéria de facto que passa a enunciar-se (de acordo com a sua ordem lógica e, dentro desta, cronológica):
1) A ora autora foi arguida em três processos disciplinares instaurados pela entidade demandada, que conduziram à aplicação, em cúmulo jurídico, de uma pena única de 240 dias de suspensão para o exercício das suas funções, tendo sofrido perdas salarias e perdido o correspondente período de antiguidade, quais sejam:
- PD n.º 333/..., em que foi aplicada pena disciplinar de 20 dias de multa;
- PD n.º 179/..., em que foi aplicada pena disciplinar de 100 dias de suspensão de exercício de funções;
- PD n.º 269/..., em que foi aplicada pena disciplinar de 180 dias de suspensão de exercício de funções.
2) A autora apresentou três queixas distintas, junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), em que era visado o Estado Português (a aqui entidade demandada e este Supremo Tribunal de Justiça), dirigidas à impugnação das três decisões disciplinares referidas em 1), correndo as queixas termos na 4.ª Secção do TEDH sob os n.ºs 55391/13, 57728/13 e 74041/....
3) Em 21.06.2016, no âmbito das queixas referidas em 2), a 4.ª Secção do TEDH condenou o Estado Português por violação do artigo 6.º, § 1.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), mais precisamente por violação:
a) do direito da aqui autora a um processo equitativo (cfr. §§ 77 a 80 da decisão do TEDH);
b) do direito de acesso a um tribunal independente e imparcial, com plena jurisdição, em virtude da extensão do controlo exercido por este Supremo Tribunal de Justiça relativamente às deliberações tomadas pela entidade demandada e por causa da composição do CSM (cfr. §§ 84 a 89 da decisão do TEDH); e
c) em particular quanto ao PD n.º 269/..., no âmbito da queixa n.º 74041/..., do direito da autora a uma audiência pública (cfr. §§ 96 a 99 da decisão do TEDH).
4) O Estado Português recorreu da decisão referida em 3) para a Grande Chambre do TEDH, no segmento em que o Estado Português foi condenado por a composição do Conselho Superior da Magistratura não oferecer as garantias de independência e de imparcialidade que decorrem do artigo 6.º, § 1.º, da CEDH, por ser composto, à data das deliberações, na sua maioria, por membros que não eram juízes, nem magistrados, nem eleitos pelos juízes.
5) Em 6.11.2018, no âmbito do recurso referido em 4) e após a audiência pública realizada em Estrasburgo em 22.03.2017, a Grande Chambre do TEDH veio a proferir decisão definitiva, reiterando o julgamento efectuado a 21.06.2016 e referido em 3), consignando-se, além do mais, na decisão referida, o seguinte:
(a) A questão das decisões do CSM
195. O objeto das decisões impugnadas do CSM (ver alínea a) do ponto 179), que a requerente contestou por meio de ações administrativas especiais (ação administrativa especial, ver parágrafos 64 e 80 acima), tal como existiam ao abrigo da lei portuguesa no momento relevante, foi a questão de saber se a requerente tinha violado obrigações profissionais. É indubitável que, para resolver essa questão, o CSM teve que exercer seus poderes discricionários. Essa entidade tem responsabilidade específica por força da Constituição (ver parágrafo 70 acima) para gestão autónoma do sistema judiciário e, em particular, para as questões disciplinares relativas aos juízes, com o objetivo mais geral de garantir a independência do sistema de justiça (ver, mutatis mutandis, Tsanova-Gecheva, citado acima, § 100, sobre o poder do Búlgaro Supremo Conselho Judicial para nomear o Presidente de um tribunal). O tribunal reconhece, portanto, a importância particular das responsabilidades do CSM perante a Constituição numa área-chave do ponto de vista do Estado de Direito e da separação de poderes. Como um corpo especificamente configurado para interpretar e aplicar as regras que regem a conduta disciplinar dos juízes, o CSM tem a tarefa de contribuir para o bom funcionamento do sistema de justiça.
No entanto, no presente caso, a avaliação dos fatos e a revisão das sanções disciplinares impostas não exigem conhecimento especializado ou experiência profissional específica, mas podiam estar sob a jurisdição de qualquer tribunal. Este não foi um exercício clássico de uma área de critério administrativo numa área especializada da lei, (ver por outro lado, Sigma Radio Televion Ltd, citado acima, § 161).
196. O tribunal observa ainda que as decisões do CSM foram impugnadas por meio de recursos da lei administrativa para à secção ad hoc do Supremo tribunal. Considera primeiramente, que a revisão da decisão impondo uma pena disciplinar difere daquela que não implica um elemento tão punitivo. Em segundo lugar, nota que os procedimentos disciplinares em questão referiam-se a um juiz. Nesse aspeto, o Tribunal realça que, mesmo não estando no âmbito do Artigo 6 da Convenção, em matéria criminal, as penas disciplinares podem ainda assim implicar consequências sérias para as vidas e carreiras dos juízes. As acusações contra a Requerente foram passíveis de resultar no afastamento de funções ou suspensão, o que quer dizer, numa pena muito séria, que envolvia um grau significativo de estigma (ver, mutatis mutandis, Grande stevens and Others v. Itália, nos. 18640/10 e 4 outros, § 122, 4 de março de 2014). De acordo com os princípios gerais estabelecidos acima e tendo em conta os objetivos políticos prosseguidos pela legislação neste domínio (ver parágrafo 180 acima), o Tribunal considera que controlo jurisdicional realizado deve ser adequado ao objeto da disputa, o que quer dizer, no caso em questão, à natureza disciplinar das decisões administrativas em questão. Esta consideração aplica-se ainda com mais força aos processos disciplinares contra juízes, que devem usufruir do respeito que é necessário, para o desempenho de suas obrigações. Quando um Estado membro inicia tal procedimento disciplinar, a confiança pública no funcionamento da independência do judiciário fica em risco; num Estado democrático, esta confiança garante a existência do estado de direito. Além disso, o Tribunal realçou a crescente importância ligada à separação de poderes e à necessidade de salvaguardar a independência do Judiciário (ver Prager e Oberschlick v. Áustria, 26 de abril de 1995, § 34, Série A no. 313; Kudeshkina v. Rússia, no 29492/05, § 86, 26 de fevereiro de 2009; e Stafford, § 78; Kleyn, § 93; e Baka, § 165, todos acima citados).
(b) Os Procedimentos perante o CSM (o organismo disciplinar)
197.        Com relação ao método usado pelo CSM, a fim de chegar às suas decisões (ver parágrafo 179 (b) acima), o Tribunal reitera que o CSM, como autoridade disciplinar, é um organismo não-judicial, facto que é atestado, entre outros fatores, pela sua composição (ver parágrafo 26, 41, 59, 68, 70 e 131 acima). Quanto às garantias processuais aplicadas por esse órgão, a Grande Câmara está preparada para aceitar que, como o Governo argumentou, os procedimentos conduzidos no presente processo proporcionaram à Requerente a oportunidade de estruturar a sua defesa. A Requerente foi notificada da acusação elaborada pelo inspetor judicial (ver parágrafos 16, 19, 37 e 52 acima) e apresentou contestação (ver parágrafos 17, 21, 37 e 53, acima). Ela também pôde consultar o relatório final e teve um período de tempo para apresentar possíveis observações, embora estas observações tivessem sido examinadas pelo mesmo inspetor judicial (ver parágrafos 17, 39 e 57 acima).
198. Todavia, apesar da Requerente ter estado sujeita a incorrer em graves penas (ver parágrafo 196 acima), os procedimentos perante o plenário do CSM, foram apresentados por escrito e a Requerente não pôde participar nas sessões, em nenhum dos três conjuntos de procedimentos em relação a ela; conforme decorre da legislação nacional, aquelas sessões também não foram abertas à pessoa visada pelos procedimentos ou a membros do público. Primeiramente, como o governo reconheceu, o CSM não está autorizado por lei a realizar audições públicas e, em segundo lugar, no terceiro conjunto de procedimentos recusou o pedido da Requerente para tal audição com o fundamento, inter alia, que não existia base legal para ser ouvida em público, perante a sessão em plenário do CSM (ver parágrafo 56 acima). Além disso, a requerente não teve oportunidade de fazer a sua apresentação oral, tanto da questão factual, tanto ao nível das penas como das várias questões legais. Da mesma forma, a formação do plenário do CSM não ouviu qualquer depoimento prestado pelas testemunhas, embora não fosse só a credibilidade da Requerente que estava em risco, mas também a das testemunhas cruciais, em particular do inspetor judicial BB e do investigador CC Nestas circunstâncias o Tribunal considera que o CSM não exerceu os seus poderes discricionários numa base factual adequada.
[…]
214. À luz do exposto, a Grande Câmara conclui que, nas circunstâncias do presente processo — levando em consideração o contexto específico dos procedimentos disciplinares conduzidos contra um juiz, a seriedade das penas aplicadas, o facto das garantias processuais perante o CSM serem limitadas, e a necessidade de aceder à evidência factual para determinar a credibilidade da Requerente e das testemunhas e constituindo este um aspeto decisivo do caso — o efeito combinado de dois fatores, nomeadamente a insuficiência da revisão judicial desempenhada pela seção ad hoc do Supremo Tribunal de Justiça e a falta de audição da Requerente, quer na fase administrativa dos procedimentos disciplinares, quer na fase jurisdicional, significou que o processo da Requerente não foi conduzido de acordo com as exigências do Artigo 6 § 1 da Convenção.
215. Em vista das considerações expostas, o Tribunal decide que houve violação do Artigo 6 § 1 da Convenção”.
6) Com fundamento na decisão da Grande Chambre do TEDH referida em 5), a ora autora apresentou junto do CSM três pedidos de revisão, um por cada um dos três procedimentos em que foi visada e condenada, referidos em 1).
7) A entidade demandada, em Plenário ocorrido em 26.03.2019, apreciou os três pedidos de revisão referidos em 6) e o projecto de decisão que sobre eles incidia, nos termos que se mostram exarados, por súmula, no ponto 25. da respetiva acta, que se transcreve:
25) Em Processos Disciplinares referentes a Exma. Senhora Juíza de Direito, apreciados os projetos de decisão elaborados pelo Exmo. Senhor, Juiz Desembargador Dr. Sousa Pinto, após ampla discussão, os mesmos não obtiveram acolhimento, tendo sido obtido, após votação, o seguinte resultado: — 4 (quatro) votos a favor dos projetos, dos Exmos. Se­nhores, Vice-Presidente, Prof. Doutor Cardoso da Costa, Dra. Ana Rita Varela Loja, e Dr. Sousa Pinto, e; - 8 (oito) votos contra os projetos, dos Exmos. Senhores, Prof. Doutor Jorge Alves Correia, Dr. Victor Faria, Dr. Armando Cordeiro, Dr. Rodolfo Serpa, Dr. Narciso Rodrigues, Dr. José Eusébio Almeida, Doutor João Vaz Rodrigues e Dra. Susana Brasil de Brito. Atento o resultado da votação, foi deliberado, por maioria — com os votos contra dos Exmos. Senhores, Vice-Presidente, Prof Doutor Cardoso da Costa, Dra. Ana Rita Varela Loja, e Dr. Sousa Pinto e a favor dos demais Exmos. Senhores Conselheiros presentes — desencadear o procedimento tendente à eventual revisão do ato administrativo sancionatório, tendo o Conselho Plenário, na sequência de proposta do Exmo. Senhor Vice-Presidente do CSM, designado o Exmo. Senhor Prof. Doutor Jorge Alves Cor­reia, para, como relator e de acordo com o supra deliberado, apresentar projeto de deliberação na próxima sessão do Plenário”.

8) Em 23.04.2019 o Conselho Plenário, com a mesma formação que votara a deliberação referida em 7), aprovou o projecto de deliberação cujo objecto abrangia a apreciação da totalidade dos pedidos de revisão das deliberações punitivas tomadas nos PD n.º 333/..., PD n.º 179/... e PD n.º 269/..., referidos em 1), aí se consignando, além do mais, o seguinte:
A requerente, em sustentação da sua pretensão, juntou o Acórdão proferido pela Grande Chambre do TEDH, de 6 de novembro de 2018, alegando que, por via desse Acórdão, nomeadamente na parte em que o Tribunal declarou ter sido violado o artigo 6.º, § 1 da Convenção, deveria ser deferido o pedido de revisão do procedimento disciplinar, nos termos do artigo 127.º do EMJ, com as consequências daí derivadas.
Vejamos.
O fundamento invocado para a revisão da decisão disciplinar é o Acórdão proferido em 6 de novembro de 2018 pela Grande Chambre do TEDH. Perante vícios e deficiências relativas ao procedimento administrativo disciplinar detetadas pelo TEDH, a requerente sustenta que, em nome da tutela jurisdicional efetiva, deve o CSM tomar conhecimento do pedido formulado e desencadear o procedimento de revisão da deliberação punitiva.
O mencionado Acórdão do TEDH reconheceu a existência da violação de um direito procedimental da requerente, com base na falta de audição oral, fosse na fase administrativa, fosse na fase contenciosa, do procedimento disciplinar. Como assinalou o Mmo. Juiz Português, DD, na sua declaração de voto, só a reabertura do procedimento disciplinar ao nível interno permitirá restaurar as violações à Convenção declaradas pelo Tribunal, mediante a restitutio in integrum.
O artigo 127.º do EMJ faculta a revisão, a todo o tempo, pelo CSM, de decisões condenatórias em processo disciplinar «quando se verifiquem circunstâncias ou meios de prova suscetíveis de demonstrar a inexistência dos factos que determinaram a punição e que não puderam ser oportunamente utilizados pelo arguido».
Desde logo, o preceito provê para a hipótese em que o requerente possa, através da apresentação do requerimento de revisão, exibir uma prova demonstrativa de que o facto não ocorreu, e que não pudera utilizar no processo (portanto, uma prova que, nesse sentido, seja nova, um facto ou documento superveniente). Mas o preceito não é aplicável apenas à hipótese em que o magistrado condenado por infração disciplinar invoca uma nova prova demonstrativa de que a factualidade não ocorreu.
[…]
Com efeito, após a apresentação do relatório final no âmbito do qual era proposta a pena de demissão à recorrente, a então arguida ..., em fase administrativa, a sua audiência pública perante o Plenário do Conselho Superior da Magistratura, a qual foi indeferida, uma vez que a audiência não se encontrava regulada nos termos previstos na legislação em vigor do processo disciplinar em que foi arguida, nem a sua solicitação estava suportada num precedente administrativo.
Não se trata de especular sobre o resultado a que o Plenário do CSM teria chegado se tivesse ouvido a requerente em audiência pública. Trata-se de reconhecer que essas garantias procedimentais que foram preteridas, neste caso, se revelavam suscetíveis de demonstrar a inexistência de algum dos factos que determinaram a punição ou a existência de alguns que a afastariam, já que os membros do CSM poderiam formar uma diferente convicção sobre a factualidade e suficiência probatória que conduziu à condenação da requerente.
Tem-se por seguro, assim, que a situação jurídica concreta é cabível na hipótese do artigo 127.º, n.º 1, do EMJ, ainda que a atipicidade da mesma obrigue a um aproveitamento quase integral dos elementos e formalidades em que se gerou o ato administrativo sancionatório. Isto porque a decisão do TEDH não retira consequências substantivas, ou seja, ela é inteiramente neutra quanto à ocorrência ou não dos factos que determinaram a punição. Com efeito, ao TEDH não compete especular sobre o resultado a que o CSM teria chegado se tivesse ouvido a requerente em audiência pública.
Por essa razão, a decisão do TEDH respeita ao formalismo do procedimento administrativo observado em ordem à punição – ao qual aponta deficiências. E a deficiência, no ponto que ora interessa, estará, segundo o TEDH, no facto de à requerente não ter sido dada a possibilidade de prestar declarações em audiência pública, audiência considerada determinante para a punição e para a escolha da sanção aplicável, designadamente porque nela a arguida poderia produzir declarações ou apresentar documentos passíveis de conduzir o órgão administrativo a formar diferente convicção.
Nestes termos, verificando-se os pressupostos da revisão, o desencadeamento do procedimento administrativo de revisão da decisão condenatória não implica qualquer juízo administrativo de inconciliabilidade entre a condenação da requerente e a sentença do TEDH e – menos ainda – a revogação da decisão proferida em processo disciplinar.
Pelo contrário, a formulação do competente juízo rescindente, autorizando a revisão da decisão administrativa condenatória, significa apenas o reconhecimento de uma inconciliabilidade entre o procedimento que o CSM adotou na tomada da decisão e aquele que o TEDH considerou indispensável para assegurar os direitos de defesa. Ainda que a falta de audiência pública não envolva um vício procedimental grave e evidente – desde logo, porque não é imposta pela regulamentação nacional –, o CSM reconhece a CEDH como um padrão da juridicidade administrativa, bem como o efeito vinculativo das decisões do TEDH, o que, de resto, se encontra em sintonia com um paradigma de «boa administração» (artigo 5.º do CPA), responsável e cooperante no plano da vinculação internacional do Estado português.
3. Delimitação do objeto da revisão administrativa
De tudo o que se vem dizendo decorre que a revisão administrativa que ora se defere terá necessariamente de abranger o ato procedimental omitido e todos os que dele dependam, mormente a decisão final.
[…]
Com efeito, o procedimento extraordinário poderá prosseguir – com a nomeação de novo instrutor –, sem prejuízo do aproveitamento de todos os elementos ou formalidades do procedimento onde se gerou o ato que é objeto de revisão (princípio do aproveitamento do ato administrativo).
Face a tudo quanto se deixou dito, há, pois, que concluir que a pretensão da requerente no sentido de ver revista por este CSM a deliberação que, no âmbito do procedimento disciplinar 269/..., a sancionou com a pena disciplinar de 180 dias de suspensão de exercício deverá de ser deferida.
4. Delimitação do procedimento de revisão do ato administrativo sancionatório
Para além dos artigos 127.º e segs. do EMJ, a requerente invoca, subsidiariamente ao preceito do Estatuto, a aplicação dos regimes dos artigos 696.º do CPC, 449.º, n.º 1, g), do CPP e 154.º do CPTA. Simplesmente, estes preceitos foram editados para revisão de sentenças, e – logo por aí, dir-se-á – só são aplicáveis à revisão destas, sendo intransponíveis para a revisão de atos administrativos.
Neste ensejo, ao nível do direito subsidiário, serão aplicáveis ao procedimento de revisão as normas do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, e as normas do Código do Procedimento Administrativo.
No âmbito do procedimento de revisão do ato administrativo sancionatório, sem prejuízo de outros atos e formalidades admissíveis, deverão ser observados os seguintes trâmites: a nomeação de um novo instrutor para o processo (artigo 129.º, n.º 2, do EMJ); a verificação da existência de algum vício da decisão administrativa ou do procedimento a ela conducente (juízo rescindente); e a elaboração pelo novo instrutor de uma proposta final que antecede a audição da requerente perante o órgão deliberativo, com observância do princípio do aproveitamento do ato administrativo.
IV - Decisão
Pelo exposto, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura defere o pedido de revisão formulado pela Exma. Requerente, Juíza de Direito AA, em relação ao Processo ...-269-PD-D, e indefere os pedidos de revisão formulados quanto aos Processos 2010-333-PD-C e 2011-179-PD-A”.
(cfr. fls. 88 a 98 do processo administrativo)
9) Na mesma data da deliberação referida em 8) foi designado novo Inspector instrutor para o PD n.º ...-269/PD-D.
(cfr. fls. 102 do processo administrativo)
10) Em 23.09.2019 o Senhor Inspector instrutor notificou a autora para, em 10 dias, querendo, dizer o que tivesse por conveniente, nomeadamente quanto ao processamento ulterior do deferido pedido de revisão, bem como para esclarecer acerca do mandatário com procuração nos autos.
(cfr. fls. 112 do processo administrativo)
11) Em 30.09.2019, a ora autora apresentou, em resposta, requerimento no qual solicitou a sua audição presencial, bem como a repetição da audição do Senhor Participante, perante o novo instrutor nomeado, tanto mais que, no seu entender, dispunha então de novos e poderosos argumentos adequados a rebater a convicção anterior que de[ra] origem a uma decisão administrativa e jurisdicional inquinadas, argumentos que impor[iam] necessariamente a formulação do pertinente juízo rescisório”.
(cfr. fls. 115 a 119 do processo administrativo)

12) Por despacho de 11.10.2019, o Senhor Inspector instrutor indeferiu o requerimento referido em 11) no que respeita às audições requeridas, bem como determinou o prosseguimento do procedimento de revisão com a audição pública da autora no Conselho Plenário, tomando por referência o relatório final de 21.12.2011, com as rectificações de 30.01.2012, aí se consignando, além do mais, o seguinte:
II. PROCESSAMENTO SUBSEQUENTE DOS AUTOS.
Proferido juízo rescindente com a deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 23.04.2019, importa ora fazer prosseguir os autos em ordem a concluir quanto a um juízo rescisório, isto é, no sentido da prolação de decisão que substitua a referida deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, datada de 10.04.2012, que condenou a Senhora Juíza de Direito AA na sanção disciplinar de 180 dias de suspensão de exercício.
Nesse domínio, tendo em vista tal desiderato, há que dilucidar desde já quanto ao concreto processamento subsequente dos autos.
Desse ponto de vista, segundo a Senhora Juíza de Direito AA, «a formulação do juízo rescisório, com a formulação de nova decisão que execute a decisão da Grande Chambre do TEDH, implica que o novo instrutor nomeado, no mínimo, reinquira a recorrente e o participante, habilitando-o a elaborar novo relatório final que expresse a sua nova convicção sobre a factualidade indiciariamente provada e disciplinarmente relevante», sendo que «caso o relatório final elaborado pelo novo instrutor mantenha a proposta de condenação da recorrente pela putativa violação do dever de lealdade - o que nem se configura - que seja então designada pelo Plenário do CSM, data para a realização de uma audiência pública, no âmbito da qual a Recorrente possa expor oralmente a sua argumentação sobre a factualidade provada, sobre o relevo disciplinar da conduta que lhe é censurada e sobre a pena (…)» .
Ou seja, a Senhora Juíza de Direito AA entende que os autos devem prosseguir pelo menos com a sua (re)inquirição, bem como com a do Participante, sendo que aos autos juntou igualmente múltiplos documentos, devendo o instrutor nomeado realizar um novo relatório final e, caso neste não seja proposto o arquivamento do processo disciplinar, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura deverá proceder à audição da Senhora Juíza de Direito.
Ora, em função das indicadas deliberações do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos de 06.11.2018 e do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 23.04.2019 a intervenção do subscritor deste despacho configura-se por ora bem mais limitada.
Vejamos.
No seu acórdão de 06.11.2018, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos considerou que a violação do Artigo 6 § 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos decorria de «falhas na conduta dos procedimentos contra a peticionária» , sendo que em sede de procedimento administrativo o vício decorria do facto de a Senhora Juíza de Direito AA não ter sido ouvida pelo Plenário do Conselho, nem ter aí ter tido a oportunidade de «fazer a sua representação oral, tanto da questão factual e das penas como das várias questões legais» .
Ouvida, sublinha-se, na fase ulterior à apresentação do relatório final do instrutor do processo disciplinar.
Na sua deliberação de 23.04.2019, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura refere que a revisão administrativa em causa «terá necessariamente de abranger o ato procedimental omitido e todos os que dele dependam, mormente a decisão final».
Isto é, tanto quanto decorre daquelas deliberações, afigura-se que os autos devem prosseguir com a audição da Senhora Juíza de Direito AA pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura.
No contexto indicado, relativamente à revisão administrativa aqui em causa, afigura-se ter sido a omissão desse ato que justificou a conclusão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos quanto à violação do artigo 6.º § 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, bem como o deferimento da revisão pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura.
Nos termos do artigo 127.º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, «as decisões condenatórias proferidas em processo disciplinar podem ser revistas a todo o tempo quando se verifiquem circunstâncias ou meios de prova suscetíveis de demonstrar a inexistência dos factos que determinaram a punição e que não puderam ser oportunamente utilizados pelo arguido».
Ora, a audição da Senhora Juíza de Direito AA, constituindo naqueles termos um meio de prova que não pôde ser oportunamente utilizado, é o que justifica a revisão na situação em apreço por ser suscetível de demonstrar a inexistência do facto que determinou a punição, em função da convicção que o Plenário constitua após tal audição.
Na sequência daquela audição e da convicção a partir dela constituída, os autos prosseguirão então nos termos determinados pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura, eventualmente com decisão final ou, antes, com decisão interlocutória que determine a realização de diligências concretas ou que genericamente delegue no instrutor nomeado a reabertura da fase da produção de prova.
Dito de outro modo.
Com o referido acórdão de 23.04.2012 ficou sem efeito a indicada deliberação de 10.04.2012, retornando, pois, os autos de processo disciplinar ao momento imediatamente anterior àquela deliberação a fim de que a Senhora Juíza de Direito AA seja ouvida pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura, sendo que, em função de tal audição e da convicção então constituída, o Plenário pode proceder conforme tiver por mais conveniente, proferindo decisão final ou ordenando diligências complementares, concretas ou genericamente indicadas.
Proceder sem mais a eventuais diligências complementares, como as requeridas pela Senhora Juíza de Direito AA, bem como considerar os documentos juntos por ela nestes autos de revisão, documentos esses que não foram considerados no juízo rescindente proferido, seria, estamos convictos, ir além do deliberado pelo Plenário em 23.04.2019, seguindo vertente não indicada por aquele órgão e, pois, exercitando poderes por ele não conferidos ao aqui signatário.
É a esta luz que urge interpretar a referida deliberação de 23.04.2019 quando nela se afirma que «no âmbito do procedimento de revisão do ato administrativo sancionatório, sem prejuízo de outros atos e formalidades admissíveis, deverão ser observados os seguintes trâmites: a nomeação de um novo instrutor para o processo (artigo 129.°, n.º 2, do EMJ); a verificação da existência de algum vício da decisão administrativa ou do procedimento a ela conducente (juízo rescindente); e a elaboração pelo novo instrutor de uma proposta final que antecede a audição da requerente perante o órgão deliberativo, com observância do princípio do aproveitamento do ato administrativo» .
Proferido que foi o juízo rescindente, a nomeação de novo instrutor constituiu um seu corolário, legalmente prescrito.
Tal juízo rescindente fundou-se na falta de audição da Senhora Juíza de Direito perante o Plenário do Conselho Superior da Magistratura, pelo que urge proceder a tal audição, assim sanando o vício em causa, sendo que em função de tal audição e da convicção então gerada, caso sejam determinadas ao instrutor nomeado diligências complementares caberá então ao mesmo, após tais diligências a elaboração de um novo relatório final.
Proceder sem mais à elaboração de um tal relatório configura-se infundado.
Por um lado, porque o juízo rescindente funda-se em vício ocorrido em momento posterior àquele relatório.
Por outro lado, no contexto em causa indicado, porque seria inadequado considerar que foi conferido ao instrutor nomeado a faculdade de, sem mais, proceder ao reexame de meios probatórios constantes dos autos aquando da prolação do relatório final deles constante.
Tal significa que na audição pelo Plenário da Senhora Juíza de Direito AA haverá que considerar o relatório final constante de fls. 1142 a 1178 verso, datado de 21.12.2011, com as retificações decorrentes do despacho de fls. 1289 a 1298, datado de 30.01.2012, ambos subscritos pelo Senhor Juiz Desembargador EE, ao tempo Inspetor Judicial nomeado para os autos de processo disciplinar em causa, ato que não foi incluído no juízo rescindente da referida deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 23.04.2019.
III.
DECISÃO
Pelo exposto, sou de parecer que os autos prossigam com a audição pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura da Senhora Juíza de Direito AA, devendo então atender-se ao relatório final constante de fls. 1142 a 1178 verso, datado de 21.12.2011, com as retificações decorrentes do despacho de fls. 1289 a 1298, datado de 30.01.2012, após o que os autos prosseguirão seus termos conforme então for determinado pelo Plenário em função daquela audição e da convicção dela decorrente”.
(cfr. fls. 124 a 139 do processo administrativo)
13) Em 4.11.2019, não se conformando com o teor do parecer / despacho referido em 12), a ora autora apresentou recurso hierárquico impróprio para o Conselho Plenário do CSM, afirmando, em suma, que o Senhor Inspector não cumpriu a deliberação do Conselho Plenário referida em 8) nem respeitou a tramitação da revisão de sanção prevista na LGTFP, subsidiariamente aplicável aos magistrados judiciais.
(cfr. fls. 150 a 156 do processo administrativo)
14) Em 19.11.2019 o Conselho Plenário do CSM indeferiu o recurso referido em 13), tendo deliberado “[…] por unanimidade aprovar o projeto de deliberação do Exmo. Senhor Juiz Desembargador Dr. Jorge Raposo, que contém o seguinte trecho decisório: 'Não admitir a reclamação apresentada, e proceder como proposto pelo Ex.mo Sr. Inspetor Judicial, prosseguindo o procedimento com a audição pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura da Senhora Juíza de Direito AA, atendendo-se então ao relatório final constante de fls. 1142 a 1178 verso, datado de 21.12.2011, com as retificações decorrentes do despacho de fls. 1289 a 1298, datado de 30.1.2012.'
(cfr. fls. 160 a 163 do processo administrativo)
15) Notificada do teor da deliberação referida em 14), a ora autora pugnou junto do CSM para que fosse designada data para a audiência pública, para que fosse convocado para essa audiência pública o Senhor Participante, de forma a que o mesmo pudesse prestar os esclarecimentos que lhe viessem a ser solicitados em ambiente de contraditório e publicidade, para que, atenta a complexidade dos autos, fosse fixada para as suas declarações duração não inferior a uma hora e para que fossem criadas condições materiais para garantir a gravação da prova e assegurar a garantia de publicidade da audiência.
16) Por despacho datado de 13.01.2020 do Exmo. Vice-Presidente do CSM, designou-se como data da audiência pública da ora autora perante o Plenário o dia 11.02.20202, pelas 14h00, tendo-se ainda decidido: “Não se convoca (desde já) o Exmo. Participante Dr. FF, nem se fixa a duração das alegações finais, uma vez que será o próprio Plenário a decidir tais questões”.
17) Por requerimento de 2.02.2020 a autora solicitou que, para a hipótese de não ser deferida pelo Plenário a audição do participante em audiência pública, fosse autorizada a reprodução em audiência das declarações prestadas pelo participante, na qualidade de Assistente, no Processo n.º 114/12..., aos minutos 4m23s a 10m43s, documentadas no suporte magnetofónico junto com o pedido de revisão.
18) Por email de 5.02.2020, a ora autora facultou ao CSM o teor das declarações que tinha a intenção de prestar em sede de audiência publica, solicitando o envio, por correio eletrónico, com a necessária antecedência, de uma cópia a cada um dos Exmos. Vogais, por forma a assegurar a participação (activa) de todos os membros do órgão, no acto designado.
19) Tendo ainda em vista esse objectivo, a autora organizou um dossier para cada um dos Exmos. Vogais, composto por 32 documentos dispersos pelos três procedimentos disciplinares, que considerava essenciais à compreensão do objeto das declarações que iria prestar em audiência pública.
20) O procedimento de revisão prosseguiu com a audição pública da ora autora, na sessão do Conselho Plenário de 11.02.2020, exclusivamente limitada à matéria da acusação e dos factos que são objecto do processo disciplinar, tendo a aqui autora disponibilizado aos senhores Vogais presentes na audição pública documentos de que se fizera acompanhar.
(cfr. fls. 388 a 399 do processo administrativo)
21) Na diligência referida em 20) foi expressamente indeferido o pedido formulado pela ora autora, para acareação do Senhor Participante naquela audição pública perante o Conselho Plenário, nos termos e com os seguintes fundamentos:
O processo disciplinar foi devidamente instruído, no âmbito do qual o Exmo. Senhor Participante foi ouvido, por duas vezes, e acareado.
Tratando-se a presente diligência de audição pública da Exma. Senhora Juíza de Direito Dra. AA, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 120.º-A do EMJ, não haverá que replicar diligências já realizadas no respetivo processo disciplinar, razão pela qual se indefere o requerido”.
(cfr. fls. 388 do processo administrativo)

22) Por deliberação do Plenário de 7.07.2020, votada e assinada por 8 membros (Juízes) do CSM, decidiu-se julgar improcedente o pedido de revisão formulado pela autora, aí se consignando, além do mais, o seguinte:
Nas suas declarações, a Ex.ma Senhora Juiz reafirma a sua versão dos factos e carreia como novos elementos comprovativos dessa sua versão e descredibilizadora da versão dos factos apresentada pelo Ex.mo Participante o conteúdo de decisões judiciais e disciplinares e declarações prestadas pelo Ex.mo Participante nalguns desses processos, como circunstâncias ou meios de prova suscetíveis de demonstrar a inexistência dos factos que determinaram a sanção e que não puderam ser oportunamente invocados. Apenas essas circunstâncias e meios de prova que não foram e não puderam ser apreciados poderão fundamentar um juízo rescisório porquanto não é propósito do procedimento de revisão uma nova apreciação de todos os elementos probatórios que já foram apreciados. Por isso, justifica-se uma apreciação da prova documental limitada a esses novos meios de prova.
São factos já conhecidos e apreciados nos autos, existentes no momento em que se fundamentou a decisão disciplinar, designadamente, a circunstância do Ex.mo Participante ter conduzido a Ex.ma Senhora Juiz até ao portão exterior do Tribunal Judicial ..., despedindo-se dela com dois beijos; de ser/declarar ser inimigo fidagal da Ex.ma Senhora Juiz (toda essa inimizade sempre foi assumida pelo Ex.mo Participante e a credibilidade das suas declarações subsistiu apesar dessa inimizade); de ter assumido determinadas posições sobre a valoração de declarações ou sobre a maior ou menor relevância disciplinar do depoimento do Dr. GG.
Procedeu-se à análise das declarações da Ex.ma Senhora Juiz concomitantemente com os documentos juntos, essencialmente os referidos nas suas declarações, na procura de razões sérias para pôr em causa a factualidade em apreço e a convicção subjacente à opção tomada no Plenário que deliberou sancionar a Ex.ma Senhora Juiz nos autos.
Com especial relevância para esse efeito analisaram-se os elementos juntos aos autos relativos aos proc.s 114/12..., 593/11...., 2396/14...., 30/15.... e 5/13.... bem como a transcrição das declarações proferidas pelo Participante nos 1ºs três desses processos e ainda os elementos relativos aos processos de inquérito disciplinar 08-296-D2, 2016-368-IN.
É certo que a prova feita no processo-crime não releva sem mais, e automaticamente, para o processo disciplinar, como resulta da jurisprudência do STA (acórdãos do STA de 21.9.2004, Proc. 047146; de 6.12.2005, Proc. 42203; de 12.1.2005, Proc. 0930/04; de 19.6.2007, Proc. 01058/06, de 27.1.2011, Proc. 01079/09 e de 25.3.2015, Proc. 01402/13), devendo existir um espaço instrutório para apuramento e valoração disciplinar dos factos. Esta decorrência do princípio da autonomia do procedimento disciplinar assume especial amplitude perante as decisões judiciais em apreço em que a matéria de que é objecto o processo disciplinar só acessoriamente tem relevância. Ainda assim, estando em causa um juízo de revisão importa apreciar se dos elementos juntos resultam circunstâncias ou meios de prova susceptíveis de demonstrar a inexistência dos factos que determinaram a sanção e que não puderam ser oportunamente invocados.
Vejamos.
Embora no proc. 114/12... conste que o Ex.mo Participante afirmou que a Ex.ma Senhora Juiz não lhe pediu para retirar nada do processo, também não é isso que consta da factualidade provada supra transcrita. As declarações referidas, prestadas nesse processo são compatíveis com a sugestão constante do facto 2.1.92 transcrito;
Também a transcrição das suas declarações no proc. 593/11.... se mostram compatíveis com os factos assentes no procedimento disciplinar, o que resulta evidenciado quando refere que foi “objeto de um … aliciamento”;
Relativamente às declarações no proc. 2396/14…, a sua audição também revela a sua compatibilidade, conforme resulta também da exaustiva descrição do seu teor, na fundamentação da matéria de facto da sentença (fls. 94 a 106 da sentença). Todavia convém deixar consignado que foram ouvidas as suas declarações dos dias 10, 13, 20 e 27.3.2017 a instâncias várias, incluindo, nos dias 20 e 27, a instância da aqui arguida, Drª AA, actuando como defensora do ali arguido, seu marido. Tudo o que o Ex.mo Participante aí disse se coaduna com aquilo que consta na matéria de facto do procedimento disciplinar, esclarecendo designadamente que apesar de a Ex.ma Srª Juiz não ter pedido expressamente para ele falsificar os autos era isso que decorria directamente da sua pretensão, nos seguintes termos: “A Srª Drª nunca me disse para tirar coisas do processo. Não! Estúpida seria ela se me dissesse para falsificar os autos. Agora, aquilo que ela me diz, implicava necessária e obrigatoriamente que eu, ponto 1, retirasse o ofício confidencial registado que já estava lá e não juntasse o registo magnetofónico, aquilo que havia de vir de ...…”. Referiu por duas vezes os factos, tal como constam da factualidade assente no procedimento em que foi sancionada, a instâncias do Digno Magistrado do Ministério Público e da sua mandatária. A instâncias da aqui arguida, actuando como defensora do arguido, seu marido, apesar de dificuldades de comunicação que se geraram, ainda consegue esclarecer que a expressão “dali não vinha grande mal ao mundo” que disse à arguida na conversa a sós, a propósito das consequências para o Dr. GG subentendia que se referia a consequências naquele procedimento disciplinar.
Relativamente ao conteúdo e sentido das decisões em causa também não se encontram elementos que justifiquem abalo para a credibilidade dos meios de prova em que se fundamentou a condenação disciplinar da Ex.ma Senhora Juiz:
A circunstância de no proc. 114/12... se considerar assente no facto 12 que “a arguida AA não pediu ao assistente FF para retirar do PD 333/... quaisquer elementos, nomeadamente a notificação para o envio de uma certidão não é incompatível com a sugestão constante do facto “2.1.91 – A arguida afirmou-lhe que talvez fosse possível evitar o procedimento contra o Dr. GG se do processo fosse retirada a notificação para o envio da certidão”; efectivamente, nesse processo, consta como 1º dos factos não provados “A – qual o conteúdo da conversa mantida entre arguida e assistente no dia 18-3-2011 para além do referido no facto provado nº 12”; no mais o objecto daqueles autos é absolutamente irrelevante;
Do proc. 593/11.... apenas foi junta a referida transcrição;
No proc. 2396/14...., embora a sentença considere assente que a “troca de impressões” … “decorreu sempre em tom ameno e sem que a Dra. AA tivesse formulado ou sequer sugerido qualquer proposta, negociação ou troca”, tal factualidade não decorre do que o Ex.mo Participante afirmou, bem pelo contrário, sendo certo que o objecto do processo incide sobre a imputação de crimes de denúncia caluniosa e difamação agravado ao mandatário e cônjuge da Ex.ma Senhora Juiz a propósito do incidente de suspeição do Ex.mo Participante; aliás, analisada atentamente a sentença não se descortinam razões que possam ter relevância neste procedimento – por forma a abalar a convicção adquirida no processo disciplinar - para considerar assente tais factos (dos intervenientes na conversa apenas foi ouvido o aqui Ex.mo Participante e a versão da Ex.ma Senhora Juiz foi referida em julgamento pelo ali arguido, seu marido); consequentemente – como decorrência do princípio da autonomia do procedimento disciplinar – pode e deve afirmar-se que os elementos que se recolhem deste processo são inócuos insuficientes para fundamentar o juízo rescisório;
Da análise da decisão de não pronúncia no proc. 30/15.... e da decisão dos recursos no Supremo Tribunal de Justiça, no proc. 5/13…, apesar da identidade de intervenientes, não decorre qualquer elemento com pertinência para a questão em apreço;
O processo de inquérito disciplinar 08-296-D2 reporta-se a “questão familiar” do Ex.mo Participante, anterior aos factos e sem nenhuma conexão com os presentes autos;
Do processo de inquérito disciplinar 2016-368-IN, apesar da identidade de intervenientes, não decorre qualquer elemento com pertinência para a questão em apreço.
Consequentemente, o juízo valorativo da prova efectuado na deliberação que sancionou a Ex.ma Senhora Juiz mantém-se na íntegra, apesar das suas declarações e de todos os documentos juntos, não se encontrando pertinência em quaisquer outras diligências probatórias.
*
Mantém-se intocada a validade da fundamentação da matéria de facto provada que consta da decisão que aplicou à Ex.ma Srª Juiz a sanção de 180 dias de suspensão de exercício:
– Fundamentação da matéria de facto provada:
[No ponto II e IV) de 2.2 (do relatório final)]. referimos que a questão da credibilidade dos depoimentos, acareação e esclarecimentos complementares, prestados pelo Sr. Desembargador FF, iria ser analisada, após a fixação da matéria de facto, desde logo por a fixação da mesma, designadamente no tocante aos factos referentes à conversa a sós, depender da credibilidade dada ao depoimento do Sr. Inspetor Judicial, conjugada com a demais prova dos autos.
Como é sabido a credibilidade dos depoimentos prestados, tem de ser analisada em conjunto com toda a prova produzida, nunca perdendo de vista a livre convicção do julgador e a análise crítica da mesma.
Foi com base nestes critérios que demos como provada a matéria factual vertida em 3, com a epígrafe factos provados.
É verdade que a testemunha HH refere a fls. 929 e 930 que « …reconhece ser o Sr. Desembargador FF uma pessoa muito inteligente, tecnicamente competente nas decisões que toma … mas não o queria juiz em casos que me dissessem respeito ... se não entende muito bem, sobretudo o homem médio, que um senhor juiz, no seio de uma associação cívica, como é o ..., aproveite a discussão interna de uns estatutos para participar judicialmente de um membro dessa associação», que a testemunha II refere a fls. 935 «... que considera totalmente impróprio que um Sr. Juiz possa promover acções próprias em tribunais sob os quais exerce inspecção ...», que a testemunha JJ refere a fls. 943 «...Quem o conhece como eu conheço e cidade conhece bem, não tem qualquer dúvida de que a vontade dele tem que prevalecer, doa a quem doer e a qualquer preço. Aí daquele que tenha que julgar e não satisfaça os seus desejos. A sua personalidade manifesta-se sempre pela conquista, não olhando a meios e a formas para atingir os seus objetivos» que a testemunha KK refere a fls. 949 que «o Dr. FF é um homem que não sabe perdoar, que é capaz de mentir para perseguir um inimigo figadal, que é um homem que é amado e é odiado. É amado enquanto as pessoas não têm que lhe dizer que não. É uma pessoa excelente, conversa com as pessoas, convive, confraterniza. Logo que por qualquer motivo tenhamos que lhe dizer não, muda completamente» e que por sua vez a testemunha LL, irmão do participante, refere a fls. 952 a 956 que «...Há cerca de 15 anos o Dr. FF, seu irmão, lhe deu voz de prisão, depois de lhe ter chamado corrupto e descreve o irmão como conflituoso, vingativo e prepotente, tem a certeza que tudo fará, inclusive mentir e levar as testemunhas a mentir, para perseguir uma inimiga figadal...»
Das certidões juntas aos autos de fls. 629 a 974 e 1075 a 1078 dos autos, fls. 18 a 56 e 116 a147 do Vol. II, do apenso 2, resulta que no Tribunal Judicial ..., correram processos, onde o Desembargador FF era assistente e formulou pedidos de indemnização, alguns deles findos antes do mesmo ser nomeado inspetor Judicial, outros que vieram a findar após essa nomeação, sendo que ainda se encontra pendente um processo a correr termos no Tribunal Judicial ... e outro nos serviços do Ministério junto desse Tribunal, cfr. fls. 82 a 114 do Apenso II, Vol. II e Apenso II, Vol. I, respetivamente.
 Das certidões de fls. 778, 779, 782 e 783 resulta que dois senhores juízes pediram escusa, tendo sido deferida a pretensão de uma Sr.ª Juiz.
De fls. 1052, resulta também, que o Dr. MM foi inspeccionado pelo Sr.º Inspector Judicial FF, no período inspectivo de 15/9/2005 a 22/7/2010 no qual se enquadra o trabalho desenvolvido pelo Sr. Juiz no Tribunal Judicial ....
E de fls. 18 a 55 do Apenso II, Vol. II resulta que o Sr. Juiz, Dr. MM, em 8/1/2009 lavrou sentença, onde fixou a favor do Sr.º Inspector FF, altura em que o mesmo ainda não exercia essas funções, a quantia de 25.000,00€ a título de indemnização.
Resulta ainda de fls. 3 a 18 do Apenso II, Vol II, que correram termos no Tribunal Judicial ... dois processos um com o n.º 182/84, acção de preferência, - em que eram A - NN - e RR. - OO, PP e esposa D. QQ, D. RR e marido SS, D. TT, UU, D. VV, WW, XX, YY e esposa D. ZZ Carlos e AAA e esposa D. BBB – ação que findou por desistência do pedido, homologada pelo Juiz FF - e outro com o n.º 233/84, acção de despejo, em que eram AA. - AAA e esposa D. BBB e YY e esposa D. CCC - e RR. NN e esposa DDD - que findou por sentença, lavrada pelo Juiz FF, em 17/2/86, onde se decidiu julgar a acção procedente, por provada, e, consequentemente, declarado resolvido o contrato de arrendamento relativo ao anexo direito do prédio urbano sito na Rua ..., em ....
Diga-se, desde já, que dos depoimentos das testemunhas supra referidas e das certidões supra aludidas, só por si, não podemos tirar a ilação que o depoimento do Desembargador FF não merece credibilidade, desde logo, por a prova ser analisada pela totalidade e a credibilidade ou não credibilidade depender da analise da prova no do seu conjunto, tanto mais que a sentença proferida pelo Dr. FF no processo n.º 233/84, foi proferida em 7/12/1986 e a sua mulher só veio a ser sócia do A. AAA em 1989 e a este respeito cabe salientar que a testemunha EEE refere a fls. 937 a 940 «...quem julgou a acção, por se ter provado que o inquilino já não residia no locado há vários anos, foi o Dr. FF. Esclarece que aquilo que sabe ou pensa saber, após o sucesso da acção eram sócios na construção desse edifício os referidos FFF e ZZ e o construtor GGG...».
A fls. 928 encontra-se um artigo jornalístico, publicado no ...” de 4 de Novembro de 2011, onde se refere «…O Conselho Superior da Magistratura vai apreciar, no próximo dia 14 uma situação invulgar pela sua gravidade: um dos seus inspetores judiciais, nomeado para avaliar e fiscalizar o trabalho dos juízes nos tribunais, é ele próprio alvo de uma queixa disciplinar, por factos e comportamentos questionáveis... A queixa foi apresentada por uma juíza de ..., AA, que acusa o inspetor judicial, o desembargador FF, de não ter condições para exercer tal função e de a perseguir através de participações disciplinares. O juiz está envolvido – ora como queixoso, ora como denunciado ou arguido – numa série de casos e de conflitos judiciais em ...... FF admitiu que, durante uma discussão entre ambos, lhe mostrou a arma que trazia no coldre, à cintura, como forma de intimidação... O irmão, LL, tem uma versão diferente: «ele não me mostrou a arma, ele encostou-me a arma à cabeça. E disse-me `estouro-te os miolos» … FF comprara, por 25 mil euros, a meias com um empresário da zona, HHH, dono do .... Estando o avião em nome de uma empresa, poderiam beneficiar de «preços mais baixos do combustível em ...». Nessa declaração afirma-se ainda que o avião, um ..., seria registado em favor da firma, mas que todos os sócios «reconhecem que a ... é de propriedade exclusiva de FF e HHH», devendo transferir para estes a sua posse, quando eles a solicitassem. «Não havia prejuízo fosse para quem fosse», alega o juiz... o juiz desembargador FF foi referido por indivíduos condenados por tráfico de droga como sendo uma pessoa das suas relações e que lhes conferiria proteção (uma afirmação que um deles fez, inclusivamente, junto do ..., quando detido nos ...). O magistrado processou-os por difamação e injúrias, tendo os mesmos sido condenados...», que por si só não pode tirar credibilidade ao depoimento do Desembargador FF.
Também a fls. 1091 a 1095, se encontram outros artigos jornalísticos que não podem, só por si, tirar essa credibilidade, desde logo, porque como já referimos, a prova ter de ser analisada no seu conjunto e é do seu conjunto e das regras da experiência comum, que formamos a nossa convicção, sempre de forma objetiva, como já referimos.
No que concerne ao momento em que a Drª AA solicitou a conversa a sós ao Sr. Inspetor e sobre o teor da mesma, iremos transcrever partes dos depoimentos prestados pelo Sr. Desembargador, pela Drª AA, pelo Dr. GG e pelo Dr. III, na medida em que estes referem que a Drª AA lhes comunicado o teor da mesma.
Dos depoimentos do Sr. Desembargador e da Drª AA resulta, até por ambos estarem de acordo, que no dia 18 de Março de 2010, da parte da tarde, por volta das 14.30 horas, houve entre ambos uma conversa a sós, no Tribunal Judicial ..., a pedido da Drª AA.
A divergência entre ambos consiste, no momento do seu pedido e conteúdo da mesma, pois enquanto o Sr. Desembargador refere a fls. 460 a 464 «que só após ter recebido a Drª AA no gabinete onde se encontrava a trabalhar, por volta das 14.30 horas, quando surgiu acompanhada pelo Secretário do Tribunal Judicial ... e, após este se ter ausentado é que esta lhe pediu que a conversa fosse a sós tendo, após tal insistência o Sr. Inspetor ordenou ao seu secretário que se retirasse, mais refere que “depois de me dar os parabéns por ter descoberto que o Dr. GG não tinha assistido ao telefonema, ao que respondi que não podia tirar essa conclusão, acrescentou «sou eu que o digo porque o sei». Acrescentou que não estava minimamente preocupada com o desfecho do seu processo disciplinar, mas que estava muito incomodada pelo facto do Dr. GG poder ser perseguido disciplinarmente pois que «fui eu que o arregimentei».
Foi-lhe respondido que o poder disciplinar não era do inspetor, mas sim do C.S.M. (...) afirma ainda que a Dr.ª AA lhe sugeriu ser possível evitar o procedimento disciplinar contra o Dr. GG. Tendo o Sr. Inspetor referido o seguinte: A Drª AA insistiu que era possível não haver perseguição disciplinar ao Dr. GG desde que não tivesse que responder ao teor do ofício que lhe enviara, ao que o inspetor retorquiu que, para tanto seria necessário retirar do processo a notificação efetuada, e que isso nem ao meu filho faria. Como aliás a Drª AA bem sabia pois que já tomara conhecimento do teor do ofício e a resposta a um inspetor só pode deixar de ser dada se nada constar do processo. É nesta altura que a Drª AA me responde: Assim sendo tendo de prosseguir com a minha estratégia de defesa e o Dr. GG vai retratar-se...».
Por sua vez a Drª AA afirma a fls. 461 a 464 «que logo no contacto telefónico efetuado na manhã desse dia este anuiu que aceitaria a ter a conversa a sós com a mesma, mais refere, que a conversa ocorreu dois dias após o anúncio do propósito anunciado pela defesa de suscitar a suspeição e que naturalmente quando a testemunha de defesa, um dia após o anúncio daquele propósito, rececionou o dito oficio, oficio esse que foi enviado em pleno decurso do prazo da defesa, a arguida decide ter a conversa por duas ordens de razões: 1.º pretendia ser ela própria a relatar ao inspetor do processo a fragilidade da sua defesa, ao invés dela resultar da resposta àquele ofício; redundando aquele ofício numa diligência instrutória oficiosamente determinada já depois de deduzida a acusação, acusação esta no âmbito da qual a testemunha GG já havia sido descredibiliza, à arguida percebeu o óbvio: - O envio daquele ofício tinha o objetivo de lhe condicionar a defesa. No contexto, tendo a arguida admitido como possível que a motivação do inspetor em perseguir o Dr. GG (estranho àquele processo) pudesse depender do tipo de estratégia, mais ou menos dura, que a mesma adotasse naqueles autos e, porque mais importante para si do que se defender no processo era preservar o seu colega, a arguida decidiu ter a conversa para poder perceber junto do Inspetor se a intenção de perseguir existia e a existir se estava dependente da sua estratégia de defesa. Resumindo, a arguida não pediu coisa nenhuma, apenas tentou perceber se, acaso abdicasse da sua estratégia dura de defesa, tal consistiria ou não uma forma de preservar o Dr. GG, … mais refere, em primeiro lugar note-se esta nuance: Na participação o ora participante refere que a arguida lhe teria sugerido que retirasse do processo o ofício, nesta acareação admite apenas que a arguida lhe perguntou se havia alguma hipótese do Dr. GG, não responder ao ofício. Tendo sido o próprio inspetor quem aludiu à retirada dos autos do ofício que este apresentou contra a arguida e seu mandatário. Aliás note-se que a participação criminal cuja cópia a arguida oportunamente juntará aos autos, o ora participante refere que face a estas propostas ilegais dirigiu à arguida um “rotundo não”. Ora este “rotundo não” na tese do participante teria levado a arguida a resignar-se do seu propósito e a antecipar que nesse caso o Dr. GG se iria retratar. Ora, este “rotundo não” é, desde logo, incompatível com a negociação mesmo nos termos em que o participante a reporta. Além do mais a arguida não anunciou o propósito da retratação questionou apenas o inspetor, uma vez que o mesmo apesar de se ter comprometido a não perseguir disciplinarmente o Dr. GG adiantou que não estava em condições de garantir que outros não o fizessem, razão pela qual a arguida lhe questionou o que é que ao mesmo achava de um cenário possível de retratação, tendo este sido claramente contra este desfecho. Foi aqui que a arguida começou a questionar-se sobre se poderia confiar no compromisso do Sr.º Inspetor. Reportado o teor da conversa ao Dr. GG este informou que de qualquer forma se iria retratar, porque não convivia com a ideia de condicionar a defesa da arguida. Face a esta posição e à constatação de que o inspetor consignou, nas suas costas, a ocorrência daquela conversa sem a fixação do respetivo conteúdo, a arguida decidiu avançar com a sua estratégia de defesa e, em boa hora o fez, porquanto, também nas suas costas e sem disso a notificar, o Instrutor proferiu nos autos despacho participando contra o Dr. GG, participação que deu origem ao PD n.º 179/...».
Por sua vez refere o Dr. GG a fls. 1016 e 1017 «... segundo é do meu conhecimento, em virtude de eu a Dr.ª AA termos falado sobre o assunto antes de ter ocorrido a dita conversa, a iniciativa da mesma surgiu na sequência da receção, por mim, de um oficio confidencial e urgente no qual o Exmº Sr. Inspetor FF me solicitava o envio de certidão extraída do programa H@abilus da qual resultasse a hora de início e de terminus da produção da prova nas diligências a que presidi no dia em que havia referido ter assistido à conversa telefónica havida entre a Dr.ª AA e Exmº Inspetor JJJ, e que era objeto do processo disciplinar no qual havíamos sido inquiridos na qualidade de testemunha.
Como resulta da declaração de retratação, que depois remetemos ao Sr. Inspetor Judicial, conforme se provou no processo disciplinar n.º 179/..., aquele nosso depoimento não correspondia à realidade na parte em que refere que havíamos assistido à conversa telefónica acima aludida, circunstância que resultaria da circunstância que me era solicitada.
Dias antes de receber o ofício em causa a Drª AA havia-nos comunicado ter recebido o despacho de acusação, proferido no processo a que respeitava o nosso depoimento testemunhal. Havia também partilhado comigo a junção de um requerimento a esse processo, no qual solicitava certidão do mesmo para efeitos de dedução de incidente de suspeição e propositura de ação de indemnização contra o Estado Português por atos praticados pelo Inspetor FF.
Causou-nos, pois, alguma perplexidade a receção do referido oficio após a dedução do despacho de acusação, razão pela qual, no próprio dia, comunicamos a mesma à Drª AA, dando-lhe também conhecimento de que era nossa convicção que tal oficio só poderia ter como objetivo a ulterior instauração de procedimento criminal e disciplinar contra a nossa pessoa.
Foi na noite desse mesmo dia, ou na manhã posterior, não sabe agora precisar, que a Drª AA comunicou ao ora depoente o seu propósito de falar, a título particular como Exmº Inspetor Judicial, no sentido de saber qual o propósito do dito ofício... segundo me relatou a Drª AA, o Exmº Inspetor Judicial ter-lhe-á referido que tal diligência se destinava tão só a apurar a verdade, reforçando a credibilidade da versão apresentada pela defesa, já que, a seu ver, a mesma se encontrava numa posição desfavorável, em face do participante. Mais lhe teria o Sr. Inspetor afiançado que não via qualquer relevância criminal na nossa conduta e que perante a hipótese da nossa retratação então aventada pela Drª AA, terá dito que não via nisso qualquer interesse. No que se refere ao estado de espírito da Drª AA constatamos que após lhe termos dado conhecimento do ofício por nós recebido este era de grande consternação pelas consequências que para mim poderiam advir do envolvimento no processo disciplinar em que aquela era arguida. Ao invés, quando nos relatou o conteúdo da conversa que havia mantido com o Exmº Inspetor Judicial, a Drª AA mostrava-se bastante tranquilizada, não só por lhe ter sido dito que não se vislumbrava relevância criminal no meu comportamento, como também pelo tom ameno em que, segundo me relatou, tal conversa decorreu, não tendo pressentido nessa ocasião qualquer hostilidade por parte do Sr.º Inspetor...», referindo o Dr. KKK a fls. 1030 que o objetivo da Drª AA ir falar com o Sr. Desembargador FF, era o de tentar perceber qual era o objetivo do envio do referido oficio, nomeadamente em termos de consequência que dele poderiam resultar para o Dr. GG.
Quanto ao momento do pedido da conversa a sós, não resta qualquer dúvida, que o mesmo ocorreu só quando a Dr.ª AA, chegou ao gabinete, do Tribunal Judicial ..., onde o Sr. Desembargador se encontrava a trabalhar, pois se o pedido fosse feito logo no momento do telefonema, como a Drª AA refere, não fazia sentido a mesma voltar a pedir ao Sr. Desembargador para que a conversa fosse a sós, pois bastaria dizer se não estava esquecido que a conversa era sós, não havendo, necessidade de novo pedido para a conversa ser a sós.
Quanto ao conteúdo da mesma, tendo presente as regras da experiência, ao referido pelo Sr. Desembargador, pela Drª AA, pelo Dr. GG e pelo Dr. III, não restam dúvidas que a conversa tinha por fim abordar o Sr. Inspetor com o objecivo de saber se o Dr. GG seria ou não perseguido disciplinarmente.
Tendo também presente as regras da experiência comum, não há qualquer dúvida, que a Drª AA procurou que o Sr.º Inspetor não perseguisse disciplinarmente o Dr. GG.
Não é lógico nem faz sentido, dizer-se, para descredibilizar o depoimento do Sr. Inspetor, que este pretendia “vigar-se da Drª AA”, pois se assim fosse, era o Sr. Inspetor a respeito de algo que teria marcado a reunião a sós e não foi.
Todos sabemos que quem quer ter uma conversa a sós o faz para que a mesma não seja testemunhada seja por quem for. E sendo assim, quem pretendia que a conversa não fosse presenciada fosse por quem fosse foi a Drª AA e não o Sr. Inspetor.
Por outro lado, é a própria Drª AA que refere não ter anunciado o propósito da retratação mas questionado apenas o Sr. Inspetor, uma vez que o mesmo apesar de se ter comprometido a não perseguir disciplinarmente o Dr. GG adiantou que não estava em condições de garantir que outros não o fizessem, razão pela qual o questionou sobre o que achava de um cenário possível de retratação.
Ora, se a Drª AA não questionasse o sr. Inspetor sobre a possibilidade de este não perseguir disciplinarmente, o Dr. GG, a que propósito o mesmo referia, nas palavras da Drª AA, que não o faria mas que não podia garantir que outros não o fizessem. Pois, como se sabe alguém só se compromete ou não a fazer algo se tal lhe for pedido, pois se nada lhe for pedido não pode comprometer-se ou não a fazer algo. Ou seja, se a Drª AA não solicitasse ao Sr. Inspetor a possibilidade de não perseguir disciplinarmente o Dr. GG, certamente o Sr. inspetor não lhe referia, como ela própria o afirma, que ele não o faria ainda que não pudesse garantir que outros o não fizessem.
Tendo presente ao quadro exposto não vemos razão para não dar credibilidade ao referido pelo Sr. Desembargador FF, ou para duvidar do referido por ele, apesar do referido pelas testemunhas JJ, KK e LLL como supra referido. Tanto mais que a testemunha MMM refere que o Dr. FF é uma pessoa excelente, conversa com as pessoas, convive, confraterniza, até ao momento que tenhamos de lhe dizer não. Ora, a conversa aludida nos presentes autos foi antes do incidente de suspeição, bem como antes do Dr. FF se ter considerado inimigo figadal da Drª AA, por outro lado, como confirma a Drª AA o Sr. Desembargador despediu-se dela inclusivamente com dois beijos e de forma amistosa, o que não seria condizente com a personalidade do participante, como descrita pelas testemunhas supra referidas e aludidas a fls.929 a 956.
Por outro lado, se a Drª AA não tivesse interesse em solicitar ao Sr. Inspetor a não perseguição disciplinar do Dr. GG, nem teria solicitado a conversa a sós, tanto mais que o interesse não era dela mas sim do Dr. GG.
Só assim, não seria se o Dr. GG estivesse envolvido nos autos, por a Drª AA o ter solicitado, daí o tal “arregimento” que o Sr.º Inspetor fala, e que foi trazido na conversa a sós pela Drª AA.
Nem o facto do Sr. Inspetor não ter feito constar dos autos, processo 333/..., o teor da conversa a sós, a pedido da Drª AA, tendo referido que o não fazia, face ao incidente de suspeição e para não prejudicar a defesa da arguida, pode levar à conclusão de que o Sr. Inspetor não fala a verdade, pode tirar credibilidade ao referido pelo Sr. Desembargador, pelas razões já referidas.
Aliás, como já referimos, não vemos como o Sr. Inspetor tenha assumido o compromisso de não perseguir disciplinarmente o Dr. GG, como afirma a Drª AA, se tal não lhe fosse solicitado, pois se assim não fosse a que propósito o Sr. Inspetor ia referir que não iria perseguir disciplinarmente o Dr. GG, embora tivesse referido que não estava em condições de garantir que outros o não fizessem, como refere a Drª AA, se tal não lhe tivesse sido solicitado.
Refere a Drª AA no ponto 264 da sua defesa «Não pode, sem insanável contradição, o Exmº Instrutor acreditar que a arguida tivesse confessado ao Exmº Participante que “arregimentou” a testemunha em causa, Dr. GG, (sublinhado é nosso) quando é certo, o mesmo acusador, no ..., que também instruiu e no qual já produziu relatório final se convenceu e deu como provado que a iniciativa do depoimento foi da própria testemunha».
Não há qualquer contradição entre os dois factos, ou seja, dar como provado no processo disciplinar n.º 179/2001 que a iniciativa de depoimento foi da própria testemunha, e neste processo dar como provado que a arguida confessou ao Participante que “arregimentou” a testemunha. Pois uma coisa é a Drª AA ter confessado tal facto ao Sr. Inspector, dentro do teor da conversa a sós, fosse por que razão fosse, ainda que tal facto pudesse não corresponder à verdade, outra é termos dado como provado no processo n.º 179/... que foi a testemunha que teve tal iniciativa, até pelos depoimentos prestados nesse processo, mormente pelo Dr. GG, que originou em nós uma dúvida muito ténue no sentido de ser a Drª AA ou não a «arregimenta-lo» e nessa dúvida decidimos a favor da arguida, até por outros elementos dos autos, como a retratação do Dr. GG.
Cabe também referir, para que dúvidas não restem, se alguma dúvida tivéssemos, por mais ténue que fosse, sobre o teor da conversa a sós, não daríamos como provados os factos relatados pelo mesmo Sr. Inspetor nessa conversa.
Refere também a arguida que não se pode dar como assente o facto 58 da acusação, por ainda não se mostrar junto aos autos a resposta da operadora sobre a georreferência da chamada e faltava enviar à testemunha de defesa o ofício confidencial e aguardar a respetiva resposta.
Não advogamos tal entendimento. Na verdade o Sr. Inspetor a fls. 167 do processo disciplinar n.º 333/..., Vol. I, do apenso I refere «A arguida remeteu ao Instrutor destes autos, o aqui participante, - sublinhado é nosso – requerimento a conceder autorização para que a operadora de telemóvel forneça a localização geográfica do seu telemóvel no dia 13 de Setembro de 2010, às 14,43 h.
Porque a diligência em causa, que se considera com interesse para a decisão, jamais poderá prejudicar a acusação face ao entendimento do Instrutor quanto ao objeto do processo, vai ordenar-se a sua realização.
Mas vai passar a deduzir-se acusação para salvaguarda do princípio da celeridade».
Ora o referido por nós no ponto 58 corresponde factualmente à verdade, se o Sr. Inspetor, instrutor do processo disciplinar n.º 333/…, entendeu deduzir acusação sem tais elementos, como refere, é uma questão que deverá ser discutida nesses autos, e não nestes. Por isso o referido no art. 58º é um facto que corresponde à verdade, desde logo por a acusação ter sido deduzida sem tais elementos.
Consequentemente, mantêm-se todos os pressupostos de facto e de direito da aplicação da sanção disciplinar à Ex.ma Srª Juiz”.


VII. Fundamentação

1. Da preterição de garantias de defesa e do deficit instrutório

1.1. Alega a autora que a deliberação impugnada é nula, por violação da decisão da Grande Chambre do TEDH de 6.11.2018, no segmento em que, apesar de ter permitido à demandante o direito a prestar declarações/alegações orais perante o órgão decisório, lhe vedou a possibilidade de produzir — seja perante o órgão decisório (CSM), seja perante o novo instrutor nomeado — a prova que se mostrava essencial para a evidenciação da sua inocência, em ambiente de contraditório, imediação e publicidade. Alega ainda que nos presentes autos de revisão, para demonstrar que não praticou os factos constantes da acusação, seria imperioso que o novo instrutor nomeado tivesse procedido de imediato à reabertura da fase da defesa, que a tivesse notificado para responder novamente à acusação contra si deduzida, que tivessem sido admitidos os documentos que juntou com o pedido de revisão e que ela e o participante tivessem sido (re)inquiridos, por forma a que o novo instrutor ficasse habilitado a formar a sua própria convicção sobre a factualidade controvertida e, com base nela, apresentar a nova proposta final.
Por sua vez, a entidade demandada sustenta que o que resultou do Acórdão proferido pela Grande Chambre do TEDH foi tão só a necessidade de, em sede de impugnação graciosa e contenciosa de decisões em matéria disciplinar, serem assegurados os direitos de defesa dos arguidos através da realização de diligências processuais próprias para esse efeito. Em causa está, pois, um direito procedimental de audição oral perante o órgão decisor, previamente à tomada de decisão, trâmite que, no iter procedimental em apreço, surge depois da apresentação do relatório final pelo inspector e antes da tomada de decisão pelo órgão decisor. In casu, a autora bastou-se com considerações manifestamente vagas, não fundamentando, nem tão pouco precisando, a específica finalidade probatória de tais diligências/audições. Consequentemente, em homenagem ao princípio do aproveitamento do atos validamente praticados – conclui a entidade demandada – bem andou o Senhor Inspector instrutor ao determinar que o procedimento prosseguisse com a realização do trâmite em falta – audição pública e eventual produção de prova nessa sede – para então ser avaliado, pelo órgão decisor, da eventual necessidade de o procedimento “baixar” novamente ao instrutor, para eventuais diligências complementares e eventual realização de novo relatório final.

1.2. Tenha-se presente, como ponto de partida, o teor da decisão de condenação do Estado Português no Acórdão da Grande Chambre do TEDH, em particular o que se reproduziu parcialmente no ponto 5) da factualidade relevante.

Feito esse exercício, constata-se que o TEDH, não obstante reconhecer que a entidade demandada não é um órgão jurisdicional mas sim administrativo e que o procedimento disciplinar não é um processo judicial (nem em matéria cível, nem penal) mas sim administrativo, não se coibiu de estender à atuação do próprio CSM a carga axiológica subjacente ao artigo 6.º, § 1.º, da CEDH, segundo o qual “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativa e publicamente […] por um tribunal independente e imparcial, estabelecido por lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela”.
Assim é porque, como dizem alguns[11]:
Interpretada assim […] a acusação em matéria penal, ela pode abarcar infrações qualificadas internamente como administrativas ou disciplinares, como o Tribunal desde há muito precisou no seu Acórdão Engel e outros […].
O Tribunal reconheceu que a Convenção permite aos Estados classificar como penal uma ação ou omissão, mas a escolha inversa apresenta já restrições.
Uma tal latitude neste campo poderia conduzir a resultados incompatíveis com o fim e objeto da Convenção, pelo que o Tribunal pode verificar se, apesar de classificada como disciplinar, a matéria da acusação não assumirá a natureza penal.
Para apurar quando uma sanção disciplinar assume natureza penal, o Tribunal utilizou três critérios:
— A qualificação dada pelo direito interno do Estado em causa, e examinar à luz de um denominador comum às legislações dos diversos Estados Contratantes;
— A própria natureza da infração;
— O grau de severidade ou gravidade da sanção, tendo como referência o máximo da pena aplicável.
[…]
No Acórdão Öztürk [[12]], estes princípios foram alargados às contravenções administrativas, às contraordenações […]”.
Com importância para este ponto, veja-se que o TEDH não deixou de notar “[…] primeiramente, que a revisão da decisão impondo uma pena disciplinar difere daquela que não implica um elemento tão punitivo. Em segundo lugar, nota que os procedimentos disciplinares em questão referiam-se a um juiz. Nesse aspeto, o Tribunal realça que, mesmo não estando no âmbito do Artigo 6 da Convenção, em matéria criminal, as penas disciplinares podem ainda assim implicar consequências sérias para as vidas e carreiras dos juízes. As acusações contra a Requerente foram passíveis de resultar no afastamento de funções ou suspensão, o que quer dizer, numa pena muito séria, que envolvia um grau significativo de estigma (ver, mutatis mutandis, Grande stevens and Others v. Itália, nos. 18640/10 e 4 outros, § 122, 4 de março de 2014)» (§ 196 da decisão parcialmente reproduzida em 5) do probatório).

Quer isto dizer que é à luz do artigo 6.º da CEDH (e da plenitude da tutela jurídica e judiciária que nele se empresta aos cidadãos afectados por sanções) que deve ser lida a decisão do TEDH e a censura efectuada à actuação do CSM.

E, porque assim é, avulta a necessidade de a actuação da entidade demandada observar a garantia do “processo equitativo”, que “não pode ser definida in abstracto, antes deve ser verificada segundo as circunstâncias particulares de cada caso, tomando em consideração o processo no seu conjunto; e, portanto, não pode ser considerado um elemento isolado, salvo se ele revestir uma importância tal que deva ser considerado decisivo para a apreciação geral do processo[13].

Ao apreciar a atuação do CSM à luz do artigo 6.º da CEDH e apelando à garantia de um processo equitativo, considera-se que a decisão do TEDH não deve ser lida restritivamente, limitada a um aspecto concreto ou a um elemento isolado, mas sim numa perspetiva mais global, integrada e conjugada, como uma decisão que visa disponibilizar esse processo equitativo. Ao circunscrever as considerações contidas na decisão do TEDH à audiência pública da arguida em procedimento disciplinar, entende-se que o CSM não retirou todas as consequências do comando que lhe foi dirigido.

1.3. Mas deve aprofundar-se esta análise. Deve, designadamente, procurar-se saber em que consiste, afinal, essa garantia a um “processo equitativo”, tal como densificada pela doutrina e interpretada pelo TEDH bem como pelo Tribunal Constitucional e ainda por este Supremo Tribunal.

Seguindo de perto a exposição da doutrina da especialidade[14], pode alinhar-se as seguintes ideias de força resultantes da interpretação, pelo TEDH, do artigo 6.º da CEDH:

— um processo equitativo exige, como elemento conatural, que cada uma das partes tenha possibilidades razoáveis de defender os seus interesses numa posição não inferior à parte contrária[15];

— à parte deve ser garantida a possibilidade de apresentar o seu caso em condições que a não coloquem em substancial posição de desvantagem face ao seu oponente[16];

— os princípios de contraditório e de igualdade de armas são elementos incindíveis e fundamentais de um processo equitativo[17];

— o princípio do contraditório implica que cada uma das partes seja chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discutir sobre o valor e resultados de umas e de outras, devendo as partes ter a mesma oportunidade de acesso, de comentário e de refutação das provas e de outros elementos do processo, assim como idêntica possibilidade de interrogar testemunhas e peritos[18];

— quando as provas são vedadas a uma das partes em nome do interesse público, o Tribunal deve examinar se o processo decisório satisfaz em toda a medida possível as exigências do contraditório e da igualdade de armas e se ele assegura meios adequados a proteger os interesses do visado[19];

— o tribunal (ou, in casu, o CSM) tem a obrigação de proceder a um exame efectivo dos meios, argumentos e elementos de prova oferecidas pelas partes[20].

Na realidade, a exigência de um processo equitativo decorre do próprio primado do Direito[21]. Na sua origem está aquilo que a jurisprudência norte-americana denomina “due process of law” (“devido processo legal”, em tradução literal)[22].

O due process era, de início, interpretado de forma restritiva, mas tem sido progressivamente estendido. Existem, essencialmente, duas concepções: uma, a concepção processual (“process-oriented theory”), limita-se a dizer que “processo devido” é o processo legal ou o processo especificado na lei; a outra, a concepção material ou substantiva (“value-orientated theory”), entende-o como um processo legal, justo e adequado, que deve ser materialmente informado pelos princípios da justiça e começa por sê-lo logo no momento da criação normativo-legislativa. Por influência desta última, começa a falar-se, cada vez mais, num “processo devido substantivo”.

Também em Portugal é bem conhecido o princípio do processo equitativo ou, como se prefere, do “processo adequado” ou “justo”[23].

De acordo com o artigo 20.º da CRP, o processo deve ser configurado como um processo equitativo e assegurar uma tutela jurisdicional efectiva. A norma do artigo 20.º da CRP enuncia o princípio fundamental contido no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) (“Qualquer pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida”)[24] e acolhido, com desenvolvimentos, no artigo 6.º, § 1.º, da CEDH [“Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, criado pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela (…)”].

Em processo civil, o direito ao processo equitativo reclama que cada parte tenha uma possibilidade razoável de defender as suas razões em posição que não seja menos vantajosa do que a da parte adversária, sob o ponto de vista tanto dos meios dispostos como da atenção dispensada pelos órgãos processuais. Por fim, quanto ao direito a uma tutela efectiva — que aparece, na CRP, circunscrito à defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais (cfr. artigo 20.º, n.º 5, da CRP) e à defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos no âmbito da justiça administrativa (cfr. artigo 268.º, n.º 4, da CRP), mas tem, na verdade, uma aplicação geral, como indicam “quer a inserção na epígrafe do artigo 20.º, quer a própria teleologia do direito de acesso aos tribunais[25] —, ele postula a adopção de um sistema de providências cautelares (conservatórias e antecipatórias) que assegure o efeito útil da acção e previna o risco de lesões graves e irreparáveis dos direitos ou interesses legalmente protegidos. Impõe, além disso, a previsão de processos céleres e prioritários (cfr. artigo 20.º, n.º 5, da CRP).

Além do artigo 20.º da CRP, existem regras constitucionais que, não obstante terem outro âmbito imediato, contribuem, também elas, para conformar o regime processual. Pense-se na reserva de jurisdição (cfr. artigo 202.º da CRP), na independência dos tribunais e na sua vinculação à lei (cfr. artigo 203.º da CRP) e na imparcialidade dos juízes (cfr. artigo 216.º da CRP), no dever de fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente (cfr. artigo 205.º, n.º 1, e artigo 282.º, n.º 4, da CRP), na obrigatoriedade e na prevalência das decisões dos tribunais sobre as de quaisquer outras autoridades e na sua exequibilidade (cfr. artigo 205.º, n.ºs 2 e 3) e na publicidade das audiências dos tribunais (cfr. artigo 206.º da CRP). Pense-se, por fim, no domínio — aparentemente mais remoto, mas não menos importante — dos princípios fundamentais, no princípio do Estado de Direito, no princípio democrático, no princípio da universalidade, no princípio da separação de poderes (cfr. artigo 2.º da CRP) e, sobretudo, no princípio da igualdade (cfr. artigo 13.º da CRP).

Como este Supremo Tribunal teve já a oportunidade de deixar estabelecido[26], a exigência de um processo equitativo e leal deve assegurar a cada uma das partes: i) o poder de expor as suas razões de facto e de direito perante o tribunal (ou o órgão decisor) antes que este tome a sua decisão; ii) o exercício dessas faculdades em condições de igualdade, podendo cada uma das partes expor as suas razões perante o tribunal em condições que as não desfavoreçam em confronto com a parte contrária, pelo que deve não só observar-se um debate ou uma discussão entre os litigantes contrapostos, como também garantir-se que cada um é chamado a “dizer de sua justiça”, tanto nos processos declarativos, como nos executivos, maxime quando são deduzidas oposições à própria execução ou penhora (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 335/95); iii) a possibilidade de exercer “uma influência efetiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes de o tribunal decidir questões que lhes digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de umas e de doutras (cf,. Acs. do Tribunal Constitucional n.os 1185/96 e 1193/96) […]”, não podendo as limitações à produção de prova ser arbitrárias ou desproporcionadas (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 209/95, 604/95 e 681/06)[27].

1.4. Ainda cientes desta exigência de um “processo equitativo” e de que à mesma estão indissociavelmente ligadas as garantias de contraditório e de igualdade, plasmadas na CRP nos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 5, importa ainda efectuar a análise de outro aspecto que não pode ser desconsiderado, atenta a natureza sancionatória inerente ao procedimento no âmbito do qual foi produzida a deliberação impugnada. Prende-se ele com as garantias de processo penal estendidas, mutatis mutandis, aos arguidos em procedimentos disciplinares.

Não pode negar-se: “[…] tendo em mente a identidade da redação adotada para o n.º 10 do artigo 32.º e para o n.º 3 do artigo 269.º da CRP, tal implica que o amplíssimo repositório de jurisprudência constitucional emitida a propósito da generalidade dos processos sancionatórios pode ser aplicado em benefício do regime da função pública. Dito de outro modo, […] o intérprete pode lançar mão do rico manancial de coordenadas formuladas no âmbito da aplicação do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição sempre que a jurisprudência se revelar lacunosa no tratamento específico dos trabalhadores em funções públicas[28].

Veja-se o que a este respeito se consignou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 62/2016, de 3.02.2016:

A garantia de audiência e defesa do arguido decorre, para os trabalhadores da Administração Pública, como um elemento central do estatuto da função pública, do disposto no artigo 269.º, n.º 3, da Constituição, mas que a revisão constitucional de 1989 tornou extensiva aos processos de contraordenação e aos demais processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10). No entanto, da garantia de audiência e defesa não é possível retirar uma extensão ao processo disciplinar da generalidade do regime substantivo em matéria penal. O preceito constitucional apenas releva no plano adjetivo e significa que é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 180/14).

Tem-se admitido, em todo o caso, que os princípios da constituição criminal, e especificamente os previstos nos artigos 29.º e 32.º da CRP, apesar de se restringirem no seu teor literal ao direito criminal, devam valer, no essencial, e por analogia, para todos os domínios sancionatórios: o princípio da legalidade das penas, o princípio da não retroatividade e o princípio da lei mais favorável ao arguido e o princípio da culpa (acórdãos do TC n.ºs 161/95, 227/92, 574/95 e 160/2004). A jurisprudência constitucional tem igualmente admitido, em processo disciplinar, o princípio da presunção de inocência do arguido, como decorrência do direito a um processo justo, não apenas na sua vertente probatória, correspondendo à aplicação do princípio “in dubio pro reo”, pelo qual é à Administração que cabe o ónus da prova dos factos que integram a infração, quer ao nível do próprio estatuto ou condição do arguido em termos de tornar ilegítima a imposição de qualquer ónus ou restrição de direitos que, de qualquer modo, representem e se traduzam numa antecipação da condenação (assim, o acórdão do TC n.º 123/92, que julgou inconstitucional a norma que determina, na sequência da prolação do despacho de pronúncia, e durante a suspensão do exercício de funções da mesma decorrente, a perda da totalidade do vencimento)”.

Daí que sejam princípios de direito disciplinar exercido na relação jurídica de emprego público, entre outros, ainda que sempre com as devidas adaptações e restrições, os princípios da legalidade sancionatória, da culpa, do respeito pelos direitos de audiência, defesa e contraditório, do respeito pelos direitos fundamentais, da proporcionalidade das sanções, o princípio ne bis in idem e o princípio da presunção de inocência do trabalhador. Depara-se, nos casos apontados, com as manifestações ou concretizações do direito de defesa, consagrado nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 32.º da Constituição para o processo criminal, mas extensível ao processo disciplinar, não só por determinação constitucional expressa (artigo 269.º, n.º 3, do mesmo diploma), mas também porque o direito de audiência e o direito de defesa integram o cerne do princípio do Estado de direito democrático, sendo, por isso, inerente a todos os processos sancionatórios.

Simultaneamente, a referência às garantias de audiência e de defesa em processo disciplinar não significa que a isso se reduzam os direitos dos arguidos neste tipo de processos. Pelo contrário, o processo disciplinar deve configurar-se como um processo justo, aplicando-se-lhe, na medida do possível, e sempre com as devidas adaptações, alguns dos princípios e regras de defesa constitucionalmente estabelecidos para o processo penal, respeitantes às garantias de legalidade, ao direito à assistência de defensor, ao princípio do contraditório e ao direito de consulta do processo[29].

A própria doutrina penalista vem de há muito ensinando que, “[…] na medida em que as penas disciplinares são um mal infligido a um agente, devem […] em tudo quanto não esteja expressamente regulado, aplicar-se os princípios que garantem e defendem o indivíduo contra todo o poder punitivo […][30].

Ou, noutra formulação, “as sanções disciplinares têm fins idênticos aos das penas criminais; são, por isso, verdadeiras penas: como elas reprovam e procuram prevenir faltas idênticas por parte de quem quer que seja obrigado a deveres disciplinares e essencialmente daquele que os violou, […] aquelas sanções têm essencialmente em vista o interesse da função que defendem, e a sua atuação repressiva e preventiva é condicionada pelo interesse dessa função, por aquilo que mais convenha ao seu desempenho atual ou futuro […] No que não seja essencialmente previsto na legislação disciplinar ou desviado pela estrutura específica do respetivo ilícito, há que aplicar a este e seus efeitos as normas do direito criminal comum […][31].

Tendo em mente estes ensinamentos e com a consciência de que o poder disciplinar encontra a sua razão de ser nos próprios fins públicos do direito sancionatório e é susceptível de se associar a molduras sancionatórias abstractas de considerável gravosidade, não há como não concluir que devem ser observados nos procedimentos disciplinares os mesmos princípios garantísticos de defesa do direito penal.

Deve precisar-se, no que respeita, em particular, ao princípio da tipicidade, que “se, em matéria disciplinar se não pode falar numa tipicidade tal qual, numa tipicità previsionale ou numa 'tipicidade máxima', não pode dizer-se também que não existe. Ela pode ser chamada de 'tipicidade nuclear' ou 'tipicidade aberta'; trata-se de uma 'tipicidade modular' próxima do 'tipo ideal lógico', como expressivo de certa valoração ou 'ADN infraccional' e como 'padrão de comparação', que permite 'compreender melhor mediante comparação com os tipos puros, as formas híbridas encontradas na realidade'[32].

Visto isto, embora se reconheça que, como afirma alguma doutrina, o procedimento disciplinar “não obedece a formas rígidas e solenes: é simples e dúctil” impõe-se deixar estabelecido que um ponto apenas é considerado essencial: a faculdade de defesa ampla do arguido[33]. Trata-se de um direito de conteúdo assimilável ao direito a um “processo justo” e às inerentes garantias de defesa de que goza o arguido em processo-crime, na certeza de que a tendência que se tem verificado para a progressiva autonomização do direito disciplinar relativamente ao direito penal “é contrabalançada pelo progressivo alargamento das garantias de direito penal ao direito disciplinar[34]. Diz-se ainda, a este respeito, que “as garantias de processo penal surgirão como o 'magma' das garantias de um processo sancionatório público[35].

Porventura por isso os sucessivos legisladores tenham desde sempre consagrado a falta de audiência do arguido e a omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade como nulidades insupríveis[36].

Como é sabido, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 123.º do EMJ, “constitui nulidade insuprível a falta de audiência do arguido com possibilidade de defesa e a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade que ainda possam utilmente realizar-se ou cuja realização fosse obrigatória.

Por seu turno, o n.º 2 deste preceito estatui que “as restantes nulidades e irregularidades consideram-se sanadas se não forem arguidas na defesa ou, a ocorrerem posteriormente, no prazo de cinco dias contados da data do seu conhecimento.

Significa isto que as nulidades insupríveis são a falta de audiência do arguido e a omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade. As demais são supríveis, embora o suprimento tenha de ser reclamado.

A omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade teve, durante muito tempo, “escassa autonomia, porque, a não ser em casos pontuais, a omissão de tais diligências normalmente integra formas de revelação da falta de audiência do arguido. Razão porque esta continua a ser, para a Doutrina e a Jurisprudência, a nulidade insuprível por excelência[37].

Assim, “haverá nulidade insuprível decorrente da omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade, por exemplo, nas seguintes situações: || — falta de inquirição válida — cfr. Art. 61.º, n.os 3, 4 e 5 e Ac. STA de 73-07-05, Acs. Dout., 144-1637; || — falta de inquirição de testemunhas oferecidas pelo arguido — cfr. Arts. 59.º e 61.º, n.os 3, 4 e 5 e Acs. STA de 73-07-26, Acs, Dout. 143-1533; de 91-12-19, BMJ 412-530, de 93-11-04, Proc. N.º 31198; de 94-06-30, Proc. N.º 33319; e de 97-11-06, proc. N.º 28566; || falta de realização de exames, peritagens ou quaisquer outras diligências indispensáveis à prova ou esclarecimento dos factos […][38] [39].

A jurisprudência mais recente não diverge substancialmente da mencionada acima, sendo apontados os seguintes “exemplos de hipóteses reconduzíveis à noção de nulidade insuprível, além das que resultam diretamente do n.º 1: // a) Falta de notificação do mandatário do coarguido para estar presente na inquirição das testemunhas de defesa de outro coarguido (Acórdão do STA de 18/06/2008, P. n.º 145/08) ou testemunhas do próprio arguido (Acórdão do STA de 11/10/2006, P. n.º 1166/05). // b) Integra o conceito de nulidade insuprível uma nota de culpa em que relativamente à matéria de facto na acusação, não se fazem referências de tempo, nem se diz que sanção se pretende aplicar (Acórdão do STA de 13/02/2008, P. n.º 167/07). // c) Acusação vaga e genérica (Acórdãos do STA de 18/06/2009, P. n.º 4594/08, e de 12/05/2010, P. n.º 116/09). // d) Falta de notificação da acusação. // e) Concessão de prazo insuficiente para a defesa[40].

Nessa medida, a expressão “falta de audiência”, entendida em sentido amplo (abarcando, por conseguinte, a própria “omissão de quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade”), configurada como nulidade insuprível segundo os próprios termos do citado normativo, tem sido associada, pela jurisprudência[41] e pela doutrina, além de outras, às seguintes situações: i) acusação despida de qualquer expressão factual e contendo apenas juízos valorativos ou conclusivos, com remissão para peças ou documentos do processo, que não identifiquem inteiramente as infrações; ii) ausência de formalidades essenciais à acusação e à defesa; iii) falta de notificação da acusação (pessoal ou por carta registada com aviso de receção); iv) falta de publicação de aviso no Diário da República quando necessário; v) concessão de prazo insuficiente para defesa; vi) não prorrogação injustificada do prazo para a defesa; vii) negação do direito de defesa ampla; viii) falta de nomeação de curador quando necessário; ou ix) não notificação ao arguido da junção de documentos, ou de declarações ou depoimentos, por ele não requeridos e efetuados posteriormente à apresentação da defesa.

Nesta linha, já houve quem afirmasse mesmo que “[…] a possibilidade de indeferir as diligências probatórias requeridas pelo arguido é restrita às situações em que tais diligências não sejam legalmente admissíveis, não permitam a prova dos factos a que se destinam ou já estejam suficientemente provados os factos alegados pelo requerente da prova […]. Isso mesmo é agora comprovado pelos n.os 1 e 3 [do artigo 53.º do Estatuto Disciplinar de 2008, a que corresponde o cogente artigo 218.º da LGTFP], o qual, em matéria de inquirição de testemunhas, é bem expressivo ao determinar que as mesmas só podem deixar de ser ouvidas quando o instrutor considerar provados os factos alegados pelo arguido, o que denota que, mesmo que esteja convencido da veracidade dos factos contrários, não pode deixar de inquirir as testemunhas arroladas […][42].

1.5. Nunca perdendo de vista o enquadramento acabado de fazer, recupere-se a dinâmica factual apurada.

Admitida a revisão do Proc. 269/..., por despacho do Vice-Presidente do CSM, datado de 18.09.2019, foram os autos apresentados ao Senhor Inspector nomeado para a realização da instrução, Dr. NNN, que, por seu turno e por despacho datado de 23.09.2019, ordenou a notificação da autora para dizer o que tivesse por conveniente quanto ao processamento ulterior do pedido de revisão.

A autora, por requerimento datado de 30.09.2019, requereu a sua audição presencial, bem como a reinquirição do Senhor Participante perante o novo instrutor nomeado, por forma a que este pudesse estar habilitado a emitir novo relatório final que expressasse a sua convicção sobre a factualidade indiciariamente provada e disciplinarmente relevante.

Contudo, o novo instrutor nomeado veio a entender que os autos deveriam prosseguir com audição da autora perante o Plenário e assim indeferiu as diligências instrutórias requeridas, mais consignando que o CSM deveria atender ao relatório final de 30.01.2012. Quer dizer: perfilhou o entendimento segundo o qual da deliberação do Plenário de 23.04.2019 resultava afinal que os autos de revisão deveriam prosseguir apenas com a audição da autora pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura, por ser esse o vício que havia fundado o juízo rescindente formulado naquela deliberação, e que não cabia nos seus poderes apreciar da admissibilidade dos documentos juntos com o pedido de revisão, proceder à inquirição da arguida e do participante nos termos pugnados pela ora demandante, nem sequer elaborar novo relatório, pois que o vício que fundou o juízo rescindente ocorreu em momento posterior ao relatório final pretérito, elaborado pelo instrutor do processo disciplinar revisto. E, nessa medida, entendeu que, na audição da autora, o Plenário haveria que considerar o relatório final constante de fls. 1142 a 1178 verso, datado de 21.12.2011, com as rectificações decorrentes do despacho de fls. 1289 a 1298, datado de 30.01.2012, ambos subscritos pelo Senhor Juiz Desembargador OOO, ao tempo inspector judicial nomeado para os autos de processo disciplinar em causa, acto este que, na sua concepção, não teria sido incluído no juízo rescindente da referida deliberação do Plenário da entidade demandada de 23.04.2019.

Deixem-se de lado, por ora, quaisquer considerações mais desenvolvidas sobre a observância, nesta recusa instrutória, dos propósitos do artigo 6.º da CEDH e dos comandos contidos na decisão do TEDH (que serão abordadas infra), e centre-se a atenção, exclusivamente, na observância do modelo procedimental estrito constante do Estatuto dos Magistrados Judiciais (doravante EMJ), por um lado, e na “credencial” plasmada na deliberação da entidade demandada de 23.04.2019.

De acordo com o artigo 129.º, n.º 2, do EMJ, se o Conselho Superior da Magistratura decidir pela revisão, “é nomeado novo instrutor para o procedimento, seguindo-se os termos dos arts. 119.º a 123.º, com as necessárias adaptações. O artigo 119.º do EMJ, para que remete o artigo 129.º, n.º 2, in fine, reporta-se à defesa do arguido.

Não obstante não ser aplicável subsidiariamente (porque o artigo 83.º-E do EMJ exclui da aplicação subsidiária em matéria disciplinar a lei da relação jurídica de emprego público), é possível, ainda assim, efectuar aqui, por afinidade de enunciados gramaticais, por proximidade histórico-teleológica e por identidade de regimes, um paralelismo com o regime jurídico de emprego público. O artigo 238.º, n.º 1, da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas estatui que, “quando seja concedida a revisão, o requerimento e o despacho são apensos ao processo disciplinar, nomeando-se instrutor diferente do primeiro, que marca ao trabalhador prazo não inferior a 10 dias nem superior a 20 dias para responder por escrito aos artigos da acusação constantes do procedimento a rever, seguindo-se os termos dos artigos 222.º e seguintes”. Como esclarece a doutrina em anotação a este preceito, “neste caso, o instrutor nomeado deve obrigatoriamente deduzir a acusação, visto que do despacho que autoriza a revisão resulta, necessariamente, a dedução da nova acusação, sem que o mesmo deixaria de fazer sentido. Após ser notificado da acusação, o trabalhador tem a oportunidade de demonstrar, no prazo concedido, que existem circunstâncias ou meios de prova que não pôde utilizar no processo disciplinar e que são suscetíveis de asseverar a injustiça da sua condenação […] Na verdade, a tramitação do processo de revisão é semelhante à da fase da defesa do trabalhador em sede de processo disciplinar, revista nos art. 214.º e ss, incluindo a produção da prova oferecida pelo visado. Finda a fase da defesa do trabalhador, o instrutor deve elaborar o relatório final, tal como no processo comum […][43].

Em síntese: decorre daquele artigo 238.º da LTFP, que, tendo sido concedida revisão (juízo rescindente), a entidade que anteriormente aplicara a pena dá início à segunda fase deste processo especial, nomeando um novo instrutor e mandando apensar o despacho autorizador da revisão aos autos do processo disciplinar a rever.

À semelhança do estabelecido para os trabalhadores da função pública, também no contencioso do EMJ, havendo juízo rescindente, o novo instrutor nomeado deve proceder de imediato à reabertura da fase da defesa do arguido, notificando-o para responder novamente à acusação que anteriormente fora contra si deduzida, seguindo-se a partir daí toda a tramitação prevista para a defesa no processo disciplinar. Logo, ao arguido será permitido recorrer a todos os meios de prova legalmente admissíveis para demonstrar que não praticou os factos constantes da acusação.

Decorre do exposto, pois, que a nomeação de novo instrutor pressupõe, por isso mesmo, a reabertura da defesa do arguido. Em fase rescisória, de nada serviria a nomeação de novo instrutor se a fase da defesa não pudesse ser reaberta, com a possibilidade do arguido demonstrar que não praticou os factos pelos quais foi acusado, com recurso a todos os meios de prova legalmente admissíveis.

Começa a perceber-se que o despacho do Senhor Instrutor, reconduzindo o papel novo instrutor a um mero corolário legal do juízo rescindente antes proferido, não se compagina com o espírito da norma estatutária que impõe a sua nomeação.

Acresce que a credencial resultante da deliberação do Plenário da entidade demandada de 23.04.2109, apesar de poder sugerir o contrário ao aludir ao aproveitamento de actos administrativos, não limitou – nem podia limitar, sob pena de violação da lei – o exercício cabal das funções de instrução.

Por outras palavras: a deliberação de 23.04.2019 não justifica que não se exerçam, de facto, funções de instrução (que foi o que, no fundo, sucedeu no caso em apreço).

Atente-se no segmento daquela deliberação quando que se refere: “No âmbito do procedimento de revisão do ato administrativo sancionatório, sem prejuízo de outros atos e formalidades admissíveis, deverão ser observados os seguintes trâmites: a nomeação de um novo instrutor para o processo (art. 129.º/2 do E.M.J); a verificação da existência de algum vício da decisão administrativa ou do procedimento a ela conducente (juízo rescindente); e a elaboração pelo novo instrutor de uma proposta final que antecede a audição da requerente perante o órgão deliberativo, com observância do princípio do aproveitamento do ato administrativo”.

Resulta disto que a audição da autora perante o órgão deliberativo (Plenário do CSM) devia ter sido antecedida da elaboração de uma nova proposta final elaborada pelo novo instrutor, pelo que dificilmente se vislumbra justificação, nem à luz da deliberação em causa, para a recusa de actos instrutórios e de meios de prova oferecidos pela arguida ou para a recusa de elaboração de novo relatório e para a proposta de que, na audição da autora pelo Plenário do CSM, o órgão deliberativo considerasse o relatório final elaborado pelo instrutor do processo disciplinar revidendo.

Só uma nova proposta final permitiria a observância cabal das finalidades normativas da medida da revisão de procedimento disciplinar, atento o modelo processual (artigos 119.º a 123.º, ex vi do artigo 129.º, n.º 2, in fine, todos do EMJ), como seria compatível com a deliberação do CSM de 23.04.2019. Como se viu, esta não obstava sequer à realização de outros actos (de instrução) e formalidades admissíveis, sem prejuízo do aproveitamento dos actos de instrução que permanecessem válidos e que não necessitassem de ser renovados pelo novo instrutor.

Tudo isto para dizer que assiste razão à autora: nos presentes autos de revisão, para demonstrar que não praticou os factos constantes da acusação, seria imperioso que o novo instrutor nomeado tivesse procedido de imediato à reabertura da fase da defesa da arguida, que a tivesse notificado para responder novamente à acusação contra si deduzida, que tivessem sido admitidos os documentos que juntou com o pedido de revisão, que ela e o participante tivessem sido (re)inquiridos, por forma a que o novo instrutor ficasse habilitado a formar a sua própria convicção sobre a factualidade controvertida e, com base nela apresentar a nova proposta final. E, caso o relatório final elaborado pelo novo instrutor mantivesse a proposta de condenação da recorrente pela violação do dever de lealdade, que fosse então designada pelo Plenário do CSM data para a realização de uma audiência pública, no âmbito da qual a autora pudesse expor oralmente a sua argumentação sobre a factualidade provada, sobre o relevo disciplinar da conduta que lhe é censurada e sobre a pena, na qual este órgão pudesse formar a sua própria convicção sobre a credibilidade relativa da demandante e do Senhor participante, quanto ao conteúdo da aludida conversa particular.

1.6. Revisite-se, por fim, a decisão do TEDH.

Aí se consignou, nos §§ 197, 198 e 214, além do mais, que “os procedimentos perante o plenário do CSM, foram apresentados por escrito e a Requerente não pôde participar nas sessões, em nenhum dos três conjuntos de procedimentos em relação a ela; […], aquelas sessões também não foram abertas à pessoa visada pelos procedimentos ou a membros do público […] Da mesma forma, a formação do plenário do CSM não ouviu qualquer depoimento prestado pelas testemunhas, embora não fosse só a credibilidade da Requerente que estava em risco mas também a das testemunhas cruciais, em particular do inspetor judicial BB e do investigador CC Nestas circunstâncias o Tribunal considera que o CSM não exerceu os seus poderes discricionários numa base factual adequada […]”, sendo ademais “[…] a necessidade de aceder à evidência factual para determinar a credibilidade da Requerente e das testemunhas e […] um aspeto decisivo do caso”.

Pois bem, à luz das exigências do artigo 6.º, § 1.º, da CEDH, preceito ao abrigo do qual foi proferida a decisão do TEDH, e dos artigos 20.º, 32.º e 269.º da CRP, nos termos vistos antes, e numa visão teleológica, não pode este Supremo Tribunal deixar de acompanhar a autora quando sustenta a invalidade da deliberação impugnada, por violação da decisão da Grande Chambre do TEDH de 06.11.2018, no segmento em que, apesar de ter permitido à demandante o direito a prestar declarações/alegações orais perante o órgão decisório, lhe vedou a possibilidade de produzir — seja perante o órgão decisório (CSM), seja perante o novo instrutor nomeado — a prova que se mostrava essencial para a evidenciação da sua inocência, em ambiente de contraditório, imediação e publicidade. Tanto mais que, como se denota dos excertos citados da decisão da Grande Chambre do TEDH, não resulta apenas que a autora tinha o direito de ser ouvida, em alegações orais, perante o órgão decisório; dessa decisão resulta ainda que a autora tinha o direito de produzir a prova — considerada essencial à evidenciação da sua alegada inocência — perante o órgão decisório.

Ou seja, no âmbito da fase rescisória deste processo de revisão, por mais que se dê uma aparência de cumprimento da diligência preterida, através da realização da audiência pública, a autora continua a carecer da oportunidade de exercício dos poderes numa base factual adequada, dado que, quer perante o novo instrutor nomeado, quer perante o próprio Plenário, não lhe foi concedida a possibilidade de ouvir novamente o participante e de lhe pedir esclarecimentos.

Estes esclarecimentos eram (são) tanto mais relevantes, quanto: i) segundo a demandante, o próprio participante já terá relatado noutros processos factualidade aparentemente incompatível com aquela que, com base nas suas próprias declarações, foi dada como provada nos autos revidendos; e ii) tendo a autora posto em causa a factualidade dada como provada pela entidade administrativa (CSM), bem como a suficiência probatória em que a mesma se alicerçou (visto que a condenação se baseava exclusivamente no depoimento do participante), era essencial para o resultado deste procedimento disciplinar o efeito combinado daqueles dois factores (audiência pública e extensão dos poderes de cognição do órgão decisório), na medida em que teria permitido à entidade administrativa aceder a nova factualidade e porventura formar uma diferente convicção sobre a credibilidade da demandante em confronto com a versão do Senhor participante.

Ora, sendo certo que, como refere a doutrina penalista, “o facto relevante para o direito penal não é o mero evento naturalístico, mas o evento impregnado de um sentido, de um desvalor [e que] o mesmo juízo de desvalor pode ser comum a diversas normas, a diversos tipos, que mantendo em comum o juízo de ilicitude divergem apenas na sua quantidade, não na sua essência, mas na gravidade […][44], não é menos certo que essas versões supostamente incompatíveis poderiam, se devidamente apreciadas, levar a um juízo de censura disciplinar diverso daquele que fora adotado no procedimento, quer previamente à decisão do TEDH, quer mesmo na deliberação impugnada.

Importa recordar que o punctum saliens e a controvérsia factual subjacentes à censura disciplinar se prendem com o contexto (circunstâncias, motivações, etc.) em que ocorreu a conversa entre a autora e o participante descrita nos pontos 80 e s. da participação (maxime ponto 94), nomeadamente com o apuramento do teor, o mais exacto possível, da afirmação imputada à aqui autora que originou os procedimentos disciplinares em apreço, designadamente se i) sugeriu ou pediu ao Senhor Participante que expurgasse algum elemento do PD 333/..., nomeadamente a notificação para o envio de uma certidão, ii) afirmou, insistindo, em retirar algum elemento da participação ou iii) se se propôs desistir da impugnação se o assistente não participasse do Senhor Juiz GG. Também está em causa apurar se, em caso de resposta afirmativa a alguma das questões enunciadas, a autora prefigurou como necessário que, para que inexistisse perseguição disciplinar ao Senhor Juiz GG, tivesse de ser necessariamente expurgado do PD 333/... algum elemento ou que aquele procedimento tivesse de ser de alguma forma deturpado, ou o Senhor Participante poderia prefigurar alguma vantagem na circunstância de a autora se propor alegadamente desistir da impugnação da matéria reportada no processo. E ainda estará em causa apurar se o Senhor Participante relatou à ora autora, na aludida conversa, que não vislumbrava fundamento legal para extrair consequências criminais ou disciplinares do depoimento do Senhor Juiz GG, visto que a testemunha não estava ajuramentada. Por último, estará ainda em causa apurar o exacto circunstancialismo das ocorrências processuais verificadas entre 18.03.2011 (data da conversa descrita nos pontos 80. ss. da participação) e 28.04.2011 (data da participação) (matéria genericamente enunciada nos artigos 146.º a 170.º da PI) — e, em particular, se, em caso de resposta negativa a alguma das questões enunciadas a montante, se pode concluir que a participação disciplinar, ao relatar a conversa descrita nos pontos 80. ss. da participação nos termos em que o fez, traduziu qualquer espécie de retaliação pelo incidente de recusa que a autora formulara contra o participante.

Neste contexto, a recusa da entidade demandada em apreciar a pretensão da autora no sentido de serem reproduzidas, em audiência pública, as declarações que o Senhor Participante prestou num processo judicial em que foi Assistente, sobre o mesmo objecto do procedimento disciplinar, onde relatou o teor da conversa particular em termos aparente e alegadamente incompatíveis com aqueles que são dados como provados nestes autos disciplinares, traduz efectivamente uma violação das garantias de defesa da arguida e da própria decisão do TEDH que originou o processo de reabilitação. Esta falha não pode considerar-se suprida, ainda que o Senhor Relator do projecto que veio a ser votado eventualmente tenha ouvido o teor dessas declarações, pois que, sendo um meio de prova absolutamente essencial na perspetiva da defesa, impunha-se a sua reprodução em plena audiência pública, perante todos os membros que integram o órgão decisório.

Tal como afirma a autora, não se trata de especular sobre o resultado a que o Plenário do CSM teria chegado se tivesse ouvido o participante em audiência pública, tivesse autorizado que a demandante lhe solicitasse os esclarecimentos que tivesse por adequados ou, pelo menos, tivesse autorizado a reprodução em audiência de declarações que o mesmo já prestou, sobre o mesmo assunto, noutras sedes. Trata-se tão-só de reconhecer que essas garantias procedimentais, que foram preteridas neste caso, se revelavam susceptíveis de demonstrar a inexistência do núcleo essencial da factualidade que determinou a punição da autora ou a existência de alguns factos que a afastariam, já que os membros do CSM poderiam formar uma diferente convicção sobre a factualidade e suficiência probatória que conduziu à condenação da arguida.

E, porque assim é, entende-se que a deliberação impugnada é nula por preterição de diligências essenciais para a descoberta da verdade (artigo 123.º, n.º 1, ex vi 129.º, n.º 2, in fine, ambos do EMJ) e por ofensa de caso julgado (artigo 161.º, n.º 2, alínea i), do CPA, aqui aplicável ex vi do artigo 83.º-E do EMJ), além de que faz incorrer o órgão decisório (CSM), mais uma vez, em violação do artigo 6.º, § 1.º, da CEDH.

Procede, por conseguinte, a pretensão da autora, cumprindo anular a deliberação impugnada e mandar devolver os autos à entidade demandada para retomar a tramitação subsequente à deliberação de 23.04.2019, nos termos impostos pelos artigos 119.º a 123.º, ex vi dos artigos 129.º, n.º 2, todos do EMJ.

2. Das demais questões suscitadas: conhecimento prejudicado

Em função do julgado anulatório efectuado supra, que anula o acto impugnado por vicissitude e nulidade insuprível verificada a montante do juízo decisório efectuado na própria deliberação impugnada, ficam prejudicadas as demais pretensões (processuais e substantivas) da autora.

Como é comummente sabido, as decisões dos tribunais são obrigatórias e prevalecem sobre as decisões de quaisquer autoridades, públicas ou privadas (cfr. artigos 205.º, n.º 2, da CRP e 158.º, n.º 1, do CPTA, aqui aplicável ex vi dos artigos 166.º, n.º 2, e 169.º, ambos do EMJ), e que, nos termos do artigo 619.º, n.º 1, do CPC, uma vez “transitada em julgado a sentença […] que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580. ° e 581.º […]”, a entidade demandada ficará obrigada, em estrita observância à presente decisão, a retomar a tramitação subsequente à deliberação de 23.04.2019, nos termos impostos nos artigos 119.º a 123.º, ex vi dos artigos 129.º, n.º 2, todos do EMJ.

Como tal, e mesmo tendo presente o comando do artigo 95.º, n.º 3, do CPTA, não se impõe conhecer da preterição de garantias de imparcialidade.

Assim é por três motivos distintos, a saber:

i) porque, tendo por referência o último requerimento de ampliação objetiva da instância, em que se alude ao suposto “impedimento” do relator originário, impondo-se à entidade demandada, em cumprimento desta decisão, a realização de novos actos instrutórios e de novo relatório final por outro instrutor, perderá relevância a suposta falta de imparcialidade do relator originário;

ii) porque as aludidas violações ou derrogações das garantias de imparcialidade apenas se verificariam a jusante da tramitação devida do procedimento de revisão do processo disciplinar, após defesa da arguida, elaboração de relatório final, eventual audiência pública perante o Plenário do CSM (em que a arguida deveria, se nisso vislumbrasse interesse, suscitar oportunamente a escusa ou suspeição de algum dos membros da entidade demandada, nos termos impostos pelo CPA, ex vi do artigo 147.º, n.º 10, do EMJ) e posterior deliberação da entidade demandada; e

iii) porque, em rigor, só perante a composição do Plenário à data dessa eventual deliberação é que se poderá verificar situação de escusa, suspeição ou impedimento, sendo que pelo menos um dos elementos da entidade demandada suscitados na petição inicial já não poderá participar dessa deliberação, posto que se jubilou (in casu, o então Senhor Presidente deste Supremo Tribunal de Justiça e, por inerência, também da entidade demandada).

Sem que se possa conhecer de uma suposta violação dos princípios da imparcialidade, fica também prejudicado o conhecimento da inerente questão relativa à suposta violação de quórum, que dela dependia.

Também fica prejudicado o erro sobre os pressupostos e o pedido de produção de prova em audiência final perante este Supremo Tribunal de Justiça.

Importa, porém, esclarecer esta asserção. Não se contesta que o actual contencioso dos actos do CSM é de plena jurisdição, pelo que não há violação do princípio da separação de poderes no reexame, por este Supremo Tribunal de Justiça, da prova efectuada pela entidade demandada em sede de procedimento disciplinar (em função da revisão do EMJ ocorrida em 2019, também na sequência precisamente da decisão da Grande Chambre do TEDH em apreço nos presentes autos).

Porém, cumpre dizer que, se deve ser reconhecido ao Supremo Tribunal de Justiça o papel de sindicar essa validade de juízo probatório e até de a anular, já não lhe pode ser reconhecido o papel de se substituir ao CSM e, sem que este tenha feito tal juízo, emitir desde logo um juízo probatório e disciplinar primário, em substituição tout court da entidade demandada.

Em suma, terá de ser o CSM a apreciar os meios de prova ora requeridos pela autora e sobre eles emitir juízo probatório e disciplinar; só depois desse juízo efectuado é que caberá ao Supremo Tribunal de Justiça, em reexame, se for caso disso, pronunciar-se e apreciar o mesmo, confirmando-o ou anulando-o. O que não pode fazer-se desde já é, sem que a prova requerida tenha sido efetuada perante a entidade com competência disciplinar, apreciar a mesma prova e, substituindo-se desde já à entidade demandada, extrair dessa prova ilações. Tal consubstanciaria, vendo bem, operação vedada pelo artigo 3.º do CPTA, desde logo por traduzir intolerável entorse ao princípio da separação de poderes, plasmado no artigo 111.º, n.º 1, da CRP, nos termos do qual “os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição”, e elevado a limite material da revisão constitucional (cfr. artigo 288.º, alínea j), da CRP).

Por isso, quanto a estas causas de pedir, constantes da petição inicial bem do articulado superveniente, fica este Tribunal impedido de aceder, conhecer e pronunciar-se, nos termos precisamente do artigo 95.º, n.º 3, do CPTA, no segmento em que se refere “exceto quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito”.

Por último, o pedido formulado pela autora a final, no sentido de se ordenar desde já o arquivamento do procedimento disciplinar tão-pouco não pode ser conhecido, desta feita também por força do n.º 5 do artigo 95.º do CPTA. É que a reconstituição da situação actual hipotética devida pelo julgado anulatório impõe a retoma do procedimento de revisão, nos termos impostos pelos artigos 119.º a 123.º, ex vi dos artigos 129.º, n.º 2, todos do EMJ (defesa da arguida, elaboração de relatório final, eventual audiência pública perante o Plenário do CSM e posterior deliberação da entidade demandada, com recurso também a prerrogativas de discricionariedade administrativa que se lhe têm de reconhecer).


VIII. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se procedente a pretensão da autora nos termos expostos, determinando-se a anulação da deliberação impugnada e a devolução dos autos à entidade demandada para retomar a tramitação subsequente à deliberação de 23.04.2019, nos termos impostos pelos artigos 119.º a 123.º, ex vi dos artigos 129.º, n.º 2, todos do EMJ.

***

Custas pela entidade demandada (cfr. artigo 536.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC), fixando-se a taxa de justiça em 6 unidades de conta, de acordo com o artigo 6.º, n.º 1, e Tabela I-A, ambos do Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 20-5-2022




Catarina Serra (Relatora)
Nuno Gonçalves
Ramalho Pinto
Eduardo Loureiro
Ricardo Costa
Ferreira Lopes
Maria João Tomé
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Presidente da Secção)


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[1] Cfr. Mário Esteves de Oliveira / Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cit., pp. 348-349.
[2] Cfr., por todos, o Acórdão do TCAN de 27.09.2019, Pro. 00094/12.6BECBR (http://www.dgsi.pt/jtcn).
[3] Cfr. o recente (e ainda inédito) Acórdão de 2.12.2021, Proc. 37/20.3YFLSB).
[4] Cfr. Fernandes Cadilha, “Aceitação da normação versus aceitação do ato administrativo. Anotação ao Ac. do TCA – 1.ª Secção, de 7/3/2002, P. 10 554”, in: Cadernos de Justiça Administrativa, 2003, n.º 37, pp. 42 e s., e Mário Aroso de Almeida / Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, Almedina, 2021 (5.ª edição), pp. 416-417.
[5] Cfr. Vieira de Andrade, “Aceitação do Ato Administrativo”, Separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Volume Comemorativo, 2003, p. 10.
[6] Cfr., no mesmo sentido, Fernandes Cadilha, “Aceitação da normação versus aceitação do ato administrativo Anotação ao Ac. do TCA – 1.ª Secção, de 7/3/2002, P. 10 554”, cit., p. 46.
[7] Cfr. Vieira de Andrade, “Aceitação do Ato Administrativo”, cit., pp. 27-28.
[8] Cfr. Aroso de Almeida / Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cit., pp. 415-416.
[9] Cfr. os Acórdãos de 7.05.1992 (in: Apêndice ao Diário da República de 16.04.1996, p. 2850) e de 27.06.1995 (Pleno) (in: Apêndice ao Diário da República de 10.04.1997, p. 408, bem como in: Acórdãos Doutrinais, n.º 408, p. 1367, e Boletim do Ministério da Justiça, n.º 448, p. 207). Mais recentemente, deixou-se consignado no Acórdão de 23.11.2010, Proc. 0985/09 (http://www.dgsi.pt/jsta) que, “para que se verifique a aceitação tácita […] a lei exige que a conduta levada a cabo tenha um significado unívoco, de modo que dele se depreenda, sem margem para dúvidas o propósito de não recorrer pelo acatamento da determinação contida no ato administrativo, só relevando a aceitação que seja posterior à sua prática”.
[10] Cfr. Aroso de Almeida / Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cit., p. 416. Também o Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo o mesmo. Cfr. o Acórdão de 22.04.2009, Proc. 0165/08 (http://www.dgsi.pt/jsta), no qual se decidiu que, “por força do princípio da impugnação unitária […] os atos anteriores à decisão final do procedimento, que não sejam imediatamente lesivos, não são contenciosamente recorríveis, apenas o sendo o ato que põe termo ao procedimento, fixando a posição definitiva da Administração perante os particulares. // Assim, nunca se poderá dizer que a Recorrente – que impugnou contenciosamente o despacho do membro do Governo que negou provimento ao recurso hierárquico necessário da lista de classificação final, onde figura como não aprovada – aceitou tacitamente os métodos de seleção, os meios de divulgação e os programas das provas do concurso, por, anteriormente, os não ter impugnado ou manifestado qualquer reserva acerca dos mesmos”.
[11] Cfr. Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, Coimbra, Almedina, 2020 (6.ª edição), pp. 183-184.
[12] Queixa n.º 8544/79, de 21.02.1984, A 73, pp. 17-18, § 47.
[13] Idem, p. 187 (sublinhados nossos).
[14] Idem, pp. 187-191.
[15] Cfr. Acórdãos do TEDH Dombo Beheer B. V., Queixa n.º 1448/88, de 27.10.1993, A 274, p. 19, § 33; Refinarias Gregas Stran e Stratis Andreadis, Queixa n.º 13427/87, de 09. 12.1994, A 301-B, § 46; Salov, Queixa n.º 65518/00, de 06.09.2005,R05-VIII, p. 219, § 87.
[16] Cfr. Acórdãos do TEDH Barberà, Messegué e Jabardo, Queixa n.º 10590/83, de 06.12.1988, A 146, p. 33, § 78; Kostovski, Queixa n.º 11454, de 20.11.1989, A 166, p. 20, § 38.
[17] Cfr. Acórdão do TEDH Regner, Queixa n.º 35 289/11, de 19.09.2017, § 142.
[18] Cfr. Acórdãos do TEDH Feldebruggem, Queixa n.º 8562/79, de 29.05.1986, A 99, p. 17, § 44; Unterpertinger, Queixa n.º 9120/80, de 24.11.1986, A 110, pp. 14-15, § 31; Barberà, Messegué e Jabardo, Queixa n.º 10590/83, de 06.12.1988, A 146, pp. 33-34, § 78; Kostovski, Queixa n.º 11454, de 20.11.1989, A 166, p. 19, § 39; Bendenoun, Queixa n.º 12 547/86, de 24.02.1994, A 384, pp. 21-22, § 52; Kerojärvi, Queixa n.º 17 506/90, de 19.07.1995, A 322, p. 16, § 42; Mantovanelli, Queixa n.º 21 497/93, de 18.03.1997, R97-II, p. 433, § 24.
[19] Cfr. Acórdão do TEDH Regner, Queixa n.º 35 289/11, de 19.09.2017, §§ 149 e s.
[20] Cfr. Acórdão do TEDH Kraska, Queixa n.º 13 942/88, de 19.04.1993, A 254-B, p. 49, § 30; Decisão de 20.05.1996, Queixa n.º 24 667/94, Déc. Rap. 85-A, p. 103.
[21] Cfr. Jorge Miranda, “Constituição e processo civil”, in: Direito e Justiça, 1994, volume VIII, tomo 2, p. 21.
[22] Neste sentido cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 492 e s., e Jorge Miranda, “Constituição e processo civil”, cit., p. 10.
[23] A noção de “processo equitativo” portuguesa não se afasta muito da de “giusto processo”consagrado e definido pelo legislador constitucional italiano. Mais do que a língua portuguesa, a língua italiana presta-se bem à identificação: a palavra italiana “giusto” não significa apenas justo, mas também certo, exacto, apropriado, oportuno, o que facilita a interpretação de “giusto processo” como “processo adequado”. Cfr., em confirmação, Giuseppe Tarzia, “Il giusto processo di esecuzione”, in: Rivista di Diritto Processuale, 2002, n.º 2, pp. 339-340. “Adequado” é, apesar de tudo, também o termo escolhido por alguma doutrina portuguesa para caracterizar o processo equitativo e o direito à tutela jurisdicional. Cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 491 e s.
[24] José Lebre de Freitas (Introdução ao processo civil — Conceito e princípios gerais à luz do código revisto, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 77) defende a necessidade de, em obediência ao artigo 16, n.º 2, da CRP, interpretar e integrar o artigo 20.º da CRP de harmonia com o artigo 10.º da DUDH.
[25] Cfr., neste sentido, Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, cit., p. 203.
[26] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.2021, Proc. 15/20.2YFLSB, (http://www.dgsi.pt).
[27] Cfr. Jorge Miranda / Rui Medeiros (coord.), Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora 2010 (2.ª edição), p. 443.
[28] Cfr. Pedro Fernández Sanchéz, “Notas sobre o Enquadramento Constitucional do regime Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas”, in: Pedro Fernández Sanchéz / Luís M. Alves (coord.), O Regime Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas, Advogados e Magistrados Judiciais, Lisboa, AAFDL, 2020, pp. 9-10.
[29] Cfr. João Castro Neves, “O Novo Estatuto Disciplinar (1984) Algumas Questões”, in: Revista do Ministério Público, ano 5, vol. 20 (Dezembro/84), pp. 7-39, e ano 6, vol. 21 (Abril/85), pp. 7-42 (passim).
[30] Cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Coimbra, Almedina, 1971, p. 37.
[31] Cfr. José Beleza dos Santos, Ensaio Sobre a Introdução ao Direito Criminal, Lisboa, Atlântida, 1968, pp. 113-116.
[32] Cfr. Ana Fernanda Neves, O Direito Disciplinar da Função Pública, volume II, 2007 (dissertação de doutoramento, disponível para consulta em
 https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/164/1/ulsd054620_td_vol_1.pdf), pp. 151-152. Cita a autora, nesta oração final, Karl Larenz (Metodologia da Ciência do Direito (tradução de José Lamego), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983 (5.ª edição), p. 564).
[33] Cfr. Marcello Caetano, Do Poder Disciplinar no Direito Administrativo Português. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932, p. 175.
[34] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/95, de 16.02.1995 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 10.03.1995).
[35] Cfr. Ana Fernanda Neves, O Direito Disciplinar da Função Pública, volume I, 2007 (dissertação de doutoramento, disponível para consulta em
 https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/164/1/ulsd054620_td_vol_1.pdf), p. 34.
[36] Veja-se o teor do artigo 32.º do Regulamento Disciplinar dos Funcionários Civis, aprovado pelo Decreto de 22.02.1913, do artigo 48.º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários Civis do Estado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 32 659, de 9.02.1943, do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 191-D/79, de 25 de Junho, do artigo 42.º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de janeiro, do artigo 37.º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro, e, finalmente, do artigo 203.º, n.º 1, da LGTFP.
[37] Cfr. Castro Neves, ob. cit., p. 24.
[38] Manuel Leal-Henriques, Procedimento Disciplinar. Função pública. Outros Estatutos. Regime de Férias, Faltas e Licenças. Lisboa: Reis dos Livros, 2002 (4.ª edição), p. 261 (sublinhados nossos).
[39] A propósito do poder de conformação do direito à defesa cfr., entre outros arestos relevantes, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 338/2010, de 22.09.2010, onde se diz: “[p]arece claramente ofensivo das garantias que a Constituição considera inerentes a qualquer processo sancionatório o facto de se colocar nas mãos da parte acusadora o poder de decidir se a parte acusada tem direito à realização das diligências probatórias destinadas ao apuramento da verdade dos factos”.
[40] Cfr. Raquel Carvalho, Comentário ao Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2012, p. 120.
[41] Nestes exactos termos, cfr. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 17.09.2009, Proc. n.º 00233/00-Porto, e os recentes Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça proferidos a 30.06.2020, Proc. 49/19.0YFLSB e Proc. 62/19.7YFLSB e a 24.02.2021, Proc. 15/20.2YFLSB (cuja exposição, aliás, aqui se seguiu de perto).
[42]Cfr. Paulo Veiga e Moura, Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, 2011 (2.ª edição), p. 250.
[43] Cfr. Abel Antunes / David Casquinha, Direito Disciplinar Público – Comentário ao Regime Jurídico-Disciplinar da LTFP, Lisboa, Rei dos Livros, 2018, p. 874.
[44] Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de processo penal, Vol. I, Noções gerais, elementos do processo penal, Lisboa, Verbo, 2010, p. 359.