Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
684/17.0T8ABT.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: UNIÃO DE FACTO
CESSAÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
LEGITIMIDADE
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 04/29/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O artigo 662.º do CPC confere à Relação o poder – rectius: o poder-dever – de reapreciar e, por conseguinte, de alterar o teor, eliminar ou aditar pontos à decisão sobre a matéria de facto, independentemente da iniciativa das partes.

II. Para o pedido de ampliação do objecto do recurso tem legitimidade exclusiva a parte vencedora quando, apesar de a decisão lhe ser favorável, não tenham sido acolhidos todos ou alguns dos fundamentos de facto ou de direito que tenha invocado (cfr. artigo 636.º, n.º 1, do CPC).

III. A cessação da união de facto não justifica que um dos sujeitos se apodere em exclusivo daquilo que foi adquirido com o esforço e para o proveito comum, devendo considerar-se a aplicação da disciplina do enriquecimento sem causa.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


1. AA, residente em ......., ........, intentou a presente acção declarativa, na forma de processo comum, contra BB, moradora em ..........., peticionando:

I) Declaração de que o autor e a ré viveram em união de facto desde ...05.2011 até ...05.2017;

II) Declaração de cessação da união de facto, com a separação do autor e da ré em .. de março de 2017;

III) Condenação da ré a pagar ao autor:

a. A quantia de € 17.750,00, correspondente a metade das rendas liquidadas pelo casal entre o dia 01.05.2011 e 20.03.2017;

b. A quantia de € 15.000,00, correspondente a metade do valor das benfeitorias aplicadas na casa de morada de família e dos bens que constituem o seu recheio;

c. A quantia de € 1.000,00, a título de danos morais, quantias acrescidas de juros de mora contados desde a citação até efetivo e integral pagamento;

IV) Subsidiariamente ao pedido formulado em III), alínea b), no que às benfeitorias diz respeito:

a) Declarar-se e reconhecer-se que o autor é titular de um direito de crédito sobre a ré no valor de € 10.450,00 respeitante às benfeitorias realizadas no imóvel;

b) Condenar-se a ré a reconhecer esse seu direito e a pagar ao autor a quantia referida na alínea anterior, acrescida de juros de mora contados desde a citação até efetivo e integral pagamento;

V) Subsidiariamente ao pedido formulado em III) b), no que aos bens móveis respeita:

a) Declarar-se e reconhecer-se que os bens móveis descritos no artigo 30.º integram o património comum da autora e do réu, na proporção de metade para cada um;

b) Condenar-se a ré a reconhecer esse seu direito, a restituir ao autor os bens referidos na alínea anterior e a liquidar tal património logo que pelo autor seja chamado a fazê-lo.


2. Em 7.06.2019 foi proferida sentença condenando a ré a pagar ao autor:

- o montante de € 16.125,00 (desaseis mil cento e vinte e cinco euros), correspondente a metade das rendas liquidadas pelo autor e pela ré, entre 01.05.2011 e o mês de janeiro de 2017;

- o montante de € 7.000,00 (sete mil euros), pelas benfeitorias referidas em 13) da factualidade provada e pelos bens móveis referidos em 15) da factualidade provada;

- os juros de mora vencidos, à taxa legal de 4%, sobre os montantes de € 16.125,00 e de € 7.000,00, referidos em c) e em d), desde a citação até efetivo e integral pagamento;

Na mesma sentença foi a ré absolvida dos demais pedidos formulados pelo autor.


3. Inconformada com o assim decidido, recorreu a demandada BB para o Tribunal da Relação .......

4. O autor AA contra-alegou e requereu a ampliação do objecto do recurso.

5. Em ...05.2020 este Tribunal proferiu um Acórdão que julgou a apelação procedente e revogou a decisão de condenação da ré / demandada BB.

6. Desta vez, é o autor AA quem, irresignado, interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Termina as suas alegações formulando as seguintes conclusões:

A) Da conjugação dos artigos 635.º, n.ºs 3 a 5, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, resulta que as conclusões efectuadas pelo recorrente no seu recurso delimitam o objecto do mesmo, o que significa que o tribunal recorrido não poderia ter remetido o facto 19 para o rol dos factos não provados, uma vez que tal facto não foi impugnado e tão-pouco é contraditório com a resposta dada pelo tribunal recorrido ao facto 16, na sua nova redacção.

B) Consequentemente, o Tribunal da Relação, ao remeter para os factos não provados o facto 19, quando o mesmo não foi impugnado pela Ré, nem é contraditório com a resposta dada ao facto 16.º, excedeu os seus poderes de cognição, violando o disposto nos artigos 635.º, n.º 3 a 5, e 639.º, n.º 1 e 2, do CPC, o que importa a sua nulidade por excesso de pronúncia, atento o disposto no artigo 615.º, n.º 1 alínea d), do CPC, que deve ser verificada e declarada, com todas as consequências legais.

C) Sendo certo que o Tribunal da Relação não pode fazer um mau uso dos poderes de modificabilidade da decisão de facto conferidos pelo citado artigo 662.º, quando, como é o caso, inexiste a contradição que a mesma aponta para justificar a remessa do facto 19 da matéria assente para o rol dos factos não provados.

D) Com efeito, decorre dos factos provados 13 e 15 que o Autor e a Ré realizaram as obras descritas no ponto 13 e compraram o mobiliário descrito no ponto 15, assim como está provada a União de Facto entre A. e R. (FACTO PROVADO 8) e a relação afectiva de namoro antes desta (FACTO PROVADO 1), e o propósito de constituírem a união de facto (FACTO PROVADO 3).

E) O facto de não se ter demonstrado qual o valor concreto que o Autor comparticipou na realização das aludidas obras e na aquisição do mobiliário não significa que não tenha havido comparticipação do Autor, muito pelo contrário atento precisamente a redacção dos FACTOS PROVADOS 13 e 15, sendo certo que o facto 19 nem sequer é sequencial do facto 16., nem dele sequer tem dependência lógica.

F) Deve, assim, manter-se na matéria provada aludido facto 19, não impugnado pela Ré no seu recurso e que nada tem de contraditório com a nova redacção do facto 16, porquanto a comparticipação do Autor é uma evidência em face dos citados factos 13 e 15 e que a mesma foi realizada no pressuposto de que a relação com a Ré se manteria, decorre além do mais das regras da experiência comum e das declarações do Autor e da própria Ré.

G) Consequentemente, o mau uso dos aludidos poderes pelo Tribunal recorrido é sindicável por este Venerando Tribunal que, repondo a legalidade, deverá ordenar que o facto 19 ingresse ao rol dos factos provados, o que se requer.

H) Por outro lado, sendo o Recorrente parte vencedora (ainda que apenas parcialmente) quanto ao pedido principal, decaindo quanto aos pedidos subsidiários, forçoso será concluir que tal situação se enquadra no n.º1 do artigo 636.º do CPC que prevê a possibilidade da parte vencedora que decaiu requerer a ampliação do objecto do recurso, no caso de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa.

I) Sendo certo que esta situação é, aliás, idêntica a que foi objecto do acórdão desta mesma Relação de 17/05/2007, relatado pela Senhora Desembargadora Maria Alexandra Santos (Proc 1151/05-3), disponível em www.dgsi.pt, em que se extrai do seu sumário precisamente a conclusão de que «tendo uma parte obtido vencimento quanto ao pedido principal e decaído no pedido subsidiário, se a parte contrária interpuser recurso, deverá o recorrido pedir a ampliação do âmbito do recurso quanto ao pedido subsidiário e não interpor recurso subordinado.»

J) Pelo exposto, deveria o tribunal recorrido ter admitido a ampliação do objecto do recurso requerida pelo ora Recorrente, pelo que, não o fazendo, violou a aludido artigo 636.º do CPC.

K) Ora, a requerida ampliação do objecto do recurso foi solicitada para o caso de proceder a alegação da Recorrente, no que à questão da indemnização dos €7.000,00 diz respeito, como procedeu, o que impunha que o tribunal recorrido apreciasse os fundamentos em que se basearam os pedidos subsidiários formulados na PI pelo Autor, quando às benfeitorias e quanto aos bens móveis.

L) Assim, quanto às benfeitorias, improcedendo o pedido de indemnização nos termos do enriquecimento sem causa, tendo as mesmas sido realizadas pelo A. e R., em comum (FACTO PROVADO 13.), e no caso do Autor, no pressuposto de que a relação entre ambos se manteria (FACTO PROVADO 19.), dúvidas não podem existir de que, cessada a união de facto e ficando a R. a viver na casa que era morada de família e a beneficiar, em exclusivo (na perspectiva do dissolvido casal unido de facto), de todos os melhoramentos que o casal fez na casa, casa essa que, inclusivamente passou a ser da R., em compropriedade, ainda antes da separação, o Autor tem direito a que lhe seja reconhecido o direito a reclamar da R. um crédito equivalente a metade do valor das benfeitorias (€10.450,00), ou, pelo menos, do valor que o mesmo despendeu para a realização das mesmas, a determinar em execução de sentença, por não estar definido, nos factos provados, qual o valor concreto despendido pelo Autor nas benfeitorias.

M) Quanto aos bens móveis, tendo em conta o disposto no FACTO PROVADO 15., ou seja, de que, entre 1 de Maio e 30 de Setembro de 2019, A. e R. adquiriram o mobiliário aí descrito, forçoso será concluir que tal mobiliário foi adquirido em compropriedade por A. e R., em partes iguais, nos termos do artigo 1403.º, n.º2, do CC.

N) Também está provado que a R. ficou na posse de tais bens (FACTO PROVADO 25.) e que se recusa a pagar o valor despendido pelo A. na aquisição dos mesmos (FACTO PROVADO 29.).

O) Nessa medida, terá de proceder o pedido subsidiário formulado pelo A., declarando-se que os bens constantes do FACTO PROVADO 15. pertencem em compropriedade ao A. e à R, em partes iguais, condenando-se a mesma a restituir tais bens ao A. e a liquidar tal património logo que, pelo Autor, seja chamado a fazê-lo.

P) Não tendo o tribunal recorrido admitido a ampliação do pedido, e consequentemente, não a tendo apreciado, na sequência da procedência do recurso do Autor, quanto à questão da indemnização da quantia de €7.000,00, violou o citado artigo 636.º do CPC, impondo-se, por conseguinte, a baixa do processo ao tribunal da Relação para que o mesmo se pronuncie quanto à ampliação do pedido formulada pelo Autor nas suas contra-alegações, o que se requer.

Q) Sempre sem conceder, em face da matéria provada, forçoso será concluir que a cessação da união de facto ocorreu em final de Janeiro de 2017, em consonância com o FACTO PROVADO 22, tendo sido nesta data que a R. comunicou ao A. que se queria separar dele e que o mesmo teria de procurar outra casa para viver, porque aquela era sua.

R) Quanto à convenção assinada pelo A. e pela R., constante do facto provado 6., o que foi acordado entre A. e R., ao abrigo da liberdade negocial (artigos 397º, 398º, 405º e 406º do CC), foi que, em caso de separação do Autor e da Ré, esta restituiria ao Autor metade da quantia liquidada a título de rendas no âmbito do acordo referido no FACTO PROVADO 5.

S) Ora, provando-se que o acordo constante do FACTO PROVADO 6 teve início em 01/05/2019, que entre tal data e o mês de Janeiro de 2017, foram pagas 69 rendas pelo A. e pela R., no valor de 250€ nos meses de Setembro de 2014 a Maio de 2015, e no valor de 500,00€ nos meses seguintes (FACTO PROVADO 26.) e que o casal se separou em final de Janeiro de 2017 (FACTO PROVADO 22.), dúvidas não existem de que se verificou a condição (suspensiva) aposta na aludida convenção, pelo que a R. terá de devolver as quantias liquidadas pelo Autor (artigo 270º do CC).

T) Sendo certo que a restituição das quantias acordadas na convenção tinha por base o que fosse liquidado pelo A. de rendas no âmbito do acordo constante do FACTO PROVADO 5, ou seja, até à data da separação.

U) Aliás, não se consegue vislumbrarem que é que uma convenção como a constante do FACTO PROVADO 6., atenta contra os bons costumes ou é contrária à ordem pública (???!!!...), conforme consta da fundamentação do Tribunal da Relação, quando na nossa ordem jurídica, são plenamente aceites desequilíbrios constantemente entre o “dar” e o “receber”, para usar os termos utilizados pelo tribunal recorrido, até no âmbito da instituição do casamento, que têm consequências nas relações patrimoniais entre os cônjuges aquando da ruptura do casamento (em caso de divórcio ou morte).

V) Senão vejamos:

PRIMEIRO: a convenção de separação foi assinada livremente pelo A. e pela R..

SEGUNDO: a referida convenção foi assinada precisamente NO MESMO DIA em que o foi a promessa de doação constante o FACTO PROVADO 7, em favor da R., pelo que quer o A. quer a R. tinham perfeito conhecimento que, de uma forma ou de outra, A TITULARIDADE DO IMÓVEL PASSARIA, COMO PASSOU, PARA A RÉ, fosse por doação, como estava previsto, fosse por venda, como veio ao correr, pelo que era absolutamente natural que as partes, designadamente, oAutor se quisessem acautelar, em caso de ruptura da união de facto.

TERCEIRO: a ruptura da união de facto veio a ocorrer por DECISÃO UNILATERAL da Ré (FACTO PROVADO 22.), pelo que, se ainda pudesse haver alguma ponderação da validade da condição em caso de ruptura da união de facto por causa não imputável à R. (que impusesse uma eventual redução do âmbito da mesma), não se vislumbra, atento o contexto da ruptura, que a validade da condição possa estar em causa.

QUARTO: a Ré ficou a viver na casa de morada de família (FACTO PROVADO 25.) com todos os melhoramentos feitos pelo casal (FACTOS PROVADOS 13. e 25.) e com todo o recheio que nela se encontrava (FACTOS PROVADOS 15. e 25.), ao passo que que o Autor foi posto literalmente na rua, de mãos a abanar e teve de ir viver para casados pais (FACTO PROVADO 24.).

QUINTO: não se consegue entender qual é moral social dominante em que o tribunal se funda que não aceita actualmente que a eficácia de um negócio esteja condicionado à cessação de uma união de facto, quando é certo que a mesmíssima moral aceita e com força de lei, convenções antenupciais entre nubentes, nas quais é possível estipular cláusulas de comunicabilidade de bens sem reciprocidade, e até, no caso dos casamentos celebrado após 01/09/2018, no regime da separação de bens (imperativo ou não), a renúncia à condição de herdeiro do outro cônjuge (renúncia essa que nem precisa de ser recíproca); acordos de pensão de alimentos entre ex-cônjuges e ex-unidos de facto, sem reciprocidade, em que um deles pode prescindir de alimentos do outro, mesmo que deles careça, e ficar obrigado ao pagamento de alimentos ao outro (mesmo que deles não careça); doações entre unidos de facto (sem reciprocidade e sem cláusula de salvaguarda de livre revogabilidade), entre outros.

W) Sendo certo que a convenção foi estabelecida e assinada na mesma data da assinatura do contrato de arrendamento (FACTOS PROVADOS 5. e 6) e da promessa de doação (FACTO PROVADO 7.) em que já se previa que a Ré viesse a ser a dona do apartamento, como efectivamente acabou por ser, ainda que como comproprietária, sendo a interligação entre todos estes acordos UMA EVIDÊNCIA e sem esquecer que foi a Ré que rompeu com a União de facto, sem qualquer justificação (FACTO 22.).

X) Mas, ainda que procedessem os argumentos do tribunal recorrido, o que, só por mera cautela de patrocínio se admite, sempre procederia A EXCEPÇÃO DE ABUSO DE DIREITO (artigo 334º do CC) atempadamente invocada pelo Autor nas suas Contra-Alegações (e na Audiência Prévia) e sobre a qual o tribunal recorrido não se pronunciou, o que importa, desde logo, a nulidade do douto acórdão recorrido, por omissão de pronúncia (artigo 615º, n.º1, alínea d) do CPC), nulidade que aqui desde já se invoca.

Y) Com efeito, a invocação da nulidade de uma tal convenção pela R. - e sem esquecer que os argumentos avançados pela Ré no seu recurso, nem foram os mesmos avançados em sede de Contestação - sempre se traduziria numa atitude abusiva por parte da R., em clara violação dos ditames da boa fé e do princípio da confiança, não tolerada pelo direito, uma vez que nunca foi posta em causa a validade da convenção pela R., durante todo o tempo em que durou a união de facto e em que o Autor contribuiu para o pagamento da renda, e só agora, depois da Ré ter rompido a união de facto e ter colocado o A. na rua, verificada que está condição nela aposta e quando o A. dela se fez valer, vem invocar uma tal nulidade.

Z) Face ao exposto, quanto ao pedido principal fundado na convenção de separação, quer por não se verificar a nulidade invocada e declarada pelo tribunal recorrido, quer por, sendo-o, se verificar a excepção de abuso de direito, terá de manter-se o valor arbitrado pelo tribunal na sentença de 1.ª instância, na alínea c)do dispositivo, ou seja, terá de proceder o pedido de condenação da Autora no pagamento da quantia de €16.125,00, correspondente a metade das rendas liquidadas pelo Autor e pela Ré, entre 01/05/2011 e o mês de Janeiro de 2017, juros acrescidos desde a citação até efectivo e integral pagamento, como peticionado.

AA) Quanto pedido principal fundado no enriquecimento sem causa, está provado que as benfeitorias foram realizadas pelo A. e pela R. (FACTO PROVADO 13.) e que o recheio descrito em 15. foi comprado por ambos, no pressuposto, no caso do A., que a sua relação com a R. se manteria (FACTO PROVADO 19.), relação esta que a R., por sua iniciativa, rompeu assim que se viu comproprietária do imóvel (FACTO PROVADO 22.),ficando ela(R.), a viver na casa que era morada de família e a beneficiar, em exclusivo(na perspectiva do dissolvido casal unido de facto), de todos os melhoramentos que o casal fez na casa de morada de família e dos bens que compõe o seu recheio.

BB) Está também provado que as benfeitorias valorizaram o imóvel em €12.000,00 (FACTO PROVADO 18).

CC) Ora, se o empobrecimento do A. é notório, tão evidente é o enriquecimento da R., na exacta medida do empobrecimento daquele, quando é certo que a A. ficou a residir na casa de morada de família, da qual é até actualmente comproprietária, e a beneficiar dos bens que compõe o seu recheio.

DD) Acresce que o pressuposto em que assentou a comparticipação do Autor na realização das benfeitorias e na aquisição dos móveis - a manutenção da relação com a Ré, a que esta colocou fim da forma que é sabida (FACTO PROVADO 22.) – desapareceu, caindo a sua causa justificativa, pelo que, verificados todos os pressupostos do enriquecimento sem causa, tema Ré de indemnizar o Autor, pelo valor com que se enriqueceu à sua custa.

EE) Sendo certo que, ao nível da união de facto, e tendo em conta os FACTOS PROVADOS 13. e 15., o que até é de presumir é que cada um dos participantes da união de facto contribuíram em igual percentagem para a aquisição desse património efectuado e adquirido por ambos.

FF) Não estando provado a medida desse enriquecimento, deverá o mesmo ser apurado no competente incidente de liquidação e não simplesmente julgado improcedente o pedido do Autor.

GG) Quanto à subsidiariedade invocada pelo tribunal recorrido para afastar a indemnização fundada no enriquecimento sem causa, também não podemos aceitar a argumentação do tribunal, pois a jurisprudência maioritária dos nossos tribunais superiores vai no sentido precisamente de considerar que é com fundamento no enriquecimento sem causa que, cessada a união de facto, o membro empobrecido deve fundar a acção tendente a obter a indemnização para obter a restituição de bens ou valores com que o outro membro da união de facto se tenha indevidamente locupletado à custa do seu património (473.º e 479.º do CC).

HH) Decidindo, como decidiram, violaram os Exmos. Juízes Desembargadores, designadamente, o disposto nos artigos 270.º, 334.º, 397.º, 398.º, n.º 1 e 2, 405.º, 406.º, 473.º, 479.º do CC e 615.º, n.º 1, al. d), 635.º, n.º 3 e 5, 636.º, 639.º, n.º 1 e 2, e 662.º, n.º 3, al.c), do CPC”.


7. A demandada BB veio, por sua vez, apresentar resposta às alegações do recorrente, dizendo, em conclusão:

A. Entende o Autor, ora Recorrente, sem que lhe assista razão, que incorreu o Tribunal a quo na nulidade por excesso de pronúncia prevista no artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC, ao fazer o ponto 19 dos factos provados ingressar no rol de factos não provados a fim de evitar contradições na sequência da alteração da redação do ponto 16 dos fatos provados.

B. Sucede que o Tribunal a quo apreciou unicamente os pontos da matéria de facto impugnados pela Ré, procedendo à alteração de alguns deles ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº 1 do CPC, entre os quais do ponto 16 da matéria de facto, alteração que fundamentou e, por considerar que se verificava contradição entre este ponto na sua nova formulação e o ponto 19 da matéria de facto provada, procedeu à integração deste último na matéria de facto não provada.

C. Ou seja, a decisão do Tribunal a quo de fazer o facto provado 19 integrar o elenco de factos não provados foi fundamentada de molde a evitar contradição, que de resto existia, entre este e o facto provado 16 com a sua nova redação e surge precisamente na sequência lógica deste, decorrendo de resto da apreciação e formação da sua própria convicção com base na prova produzida em 1ª instância, tendo inclusivamente fundamentado a decisão de fazer o facto 19 ingressar nos factos não provados.

D. Tem sido este o entendimento dominante na doutrina do Supremo Tribunal de Justiça, designadamente nos acórdãos de 12/09/2013, processo nº 2154/08.9TBMGR.C1.S1 e de 07/11/2019, processo nº 2929/17.8T8ALM.L1.S1, ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt, concluindo que “Cumprido pelo recorrente o ónus de impugnação a que alude o artigo 640º do CPC e tendo a Relação reapreciado os meios de prova indicados relativamente aos pontos de facto impugnados pelo recorrente, não está o Tribunal da Relação impedido de alterar outros pontos da matéria de facto, cuja apreciação não foi requerida, desde que essa alteração tenha por finalidade ou por efeito evitar contradição entre a factualidade que se pretendia alterar e foi alterada e outros factos dados como assentes em sede de julgamento.”, e que “Não existe nulidade do Acórdão por excesso de pronúncia, uma vez que o conhecimento oficioso da Relação, no que respeita à matéria de facto, foi determinado pelo objectivo de evitar contradição entre os pontos de facto alterados e aqueles que com eles tinham atinência e, se mantidos, inexoravelmente evidenciariam contradição.

E. Assim, não existe qualquer nulidade do acórdão do tribunal a quo por excesso de pronúncia, uma vez que, tal como resulta explícito no douto acórdão recorrido, o conhecimento oficioso da Relação, no que respeita à matéria de facto, foi determinado pelo objetivo de evitar contradições entre os pontos de facto alterados (ponto 16 da matéria de facto provada) e aqueles que com eles tinham atinência e, se mantidos, inexoravelmente existiria contradição (ponto 19 da matéria de facto).

F. Não merecendo pois razão ao Autor, devendo improceder o recurso interposto quanto à alegada nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia, que inexiste.

G. Vem ainda o Autor recorrer da decisão do Tribunal a quo que julgou inadmissível a ampliação do âmbito do recurso por si requerida em sede de contra-alegações de recurso, entendendo que tal decisão viola o disposto no artigo 636º do CPC.

H. Sucede que confunde o Autor o procedimento de ampliação do âmbito do recurso previsto no artigo 636º do CPC, com o procedimento de interposição de recurso subordinado previsto no artigo 633º do CPC, que visam fins diferentes.

I. Conforme resulta do disposto no artigo 636º do CPC, a ampliação do âmbito do recurso é requerida pela parte vencedora quanto ao pedido cujo fundamento subsidiário foi julgado improcedente e em que, face do recurso apresentado pela contraparte e prevenindo a sua procedência, pretende ver apreciados outros fundamentos subsidiários àquele que foi julgado procedente, na situação em que o pedido “vencedor” tem pluralidade de fundamentos subsidiários entre si, isto é, em que são invocadas várias causas de pedir distintas face a um mesmo pedido.

J. E resulta do artigo 633º do CPC que o recurso subordinado é apresentado para apreciação de pedidos julgados improcedentes e, também assim, dos respetivos fundamentos, na situação em que existem vários pedidos, cada um dos quais com um ou mais fundamentos ou causas de pedir.

K. Ora, em sede de petição inicial o Autor formulou o pedido de condenação principal III), al. b) com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa e, já subsidiariamente a este, formulou dois pedidos subsidiários (pontos IV) e V)), o primeiro com fundamento na titularidade de um direito de crédito sobre a Ré e o segundo com fundamento na existência de um património comum.

L. Ou seja, cada pedido subsidiário é baseado em fundamentos distintos entre si e distintos face àquele que é o fundamento do pedido principal (ponto III) alínea b)), existindo, assim, uma pluralidade de pedidos, cada um dos quais com um distinto e único fundamento.

M. Acresce que em sede de sentença da 1ª instância o pedido principal III), al. b) foi julgado parcialmente procedente e os pedidos subsidiários foram apreciados e julgados improcedentes, por entender o douto Tribunal que não procediam os respetivos fundamentos.

N. Ora, tendo a Ré recorrido para a Relação da decisão de procedência parcial do pedido principal III, al. b) e pretendendo o Autor, no caso de procedência do recurso, ver reapreciados os pedidos subsidiários IV. e V. que houveram sido julgados improcedentes, com a particularidade de os fundamentos neles apostos serem distintos do fundamento único do pedido principal III, al. b), devia o Autor ter intentado o competente recurso, designadamente o recurso subordinado (artigo 633º do CPC), e não requerer a ampliação do âmbito do recurso (artigo 636º do CPC).

O. Sendo que, não o fazendo, a decisão proferida na sentença sobre os pedidos subsidiários IV) e V) já produziu caso julgado, nos termos dos artigos 621º e 628º do CPC.

P. É efetivamente esta a solução que resulta da lei, nos artigos 633º e 636º do CPC, como aliás tem sido já sublinhado pela doutrina e jurisprudência elencada em sede de motivações de recurso, designadamente da invocada pelo douto Tribunal da Relação.

Q. De resto, aquando do requerimento de ampliação do âmbito do recurso aproveitou o Autor para alterar o fundamento em que assenta o pedido V) inicialmente formulado e ampliar este pedido, conforme em sede de resposta se referiu, aproveitando para invocar no que ao ressarcimento dos bens móveis respeita, não o facto de aqueles integrarem o património comum do Autor e da Ré, mas antes a aquisição dos bens móveis em compropriedade pelo Autor e pela Ré em partes iguais, o que representam situações manifestamente distintas, sendo tal alteração manifestamente inadmissível nos termos dos artigos 264º e 265º do CPC.

R. Pelo que andou o bem o douto Tribunal a quo ao julgar inadmissível a ampliação do objeto de recurso requerida, devendo neste ponto improceder o recurso interposto pelo Autor.

S. Vem ainda o Autor, adiante-se sem razão, opor-se à decisão do Tribunal da Relação que julgou nula a denominada convenção prévia de separação porque a condição nela aposta é contrária à ordem pública e ofensiva dos bons costumes.

T. Ora, Autor e Ré sujeitaram a referida convenção prévia de separação a uma condição suspensiva (facto provado 6), por via da qual a Ré ficou obrigada, no caso de dissolução da união de facto, por qualquer causa, a restituir ao Autor metade da quantia liquidada a título de rendas no âmbito do contrato de arrendamento que ambos celebraram com CC, e que tenham sido pagas até à data da separação, estipulação que à partida lhes seria permitida ao abrigo do disposto nos artigos 270º, 405º e 398º do CC.

U. Sucede, porém, que a autonomia privada e a liberdade contratual das partes conhece limites inultrapassáveis, designadamente os dispostos nos artigos 271º, nº 1, 280º, nº 2 e 294º do CC, não podendo a estipulação das partes e a condição aposta na convenção ser contrária à lei ou à ordem pública ou ofensiva dos bons costumes, nem violar norma(s) legal(is) imperativa(s), sob pena de nulidade.

V. Ora, resulta do teor literal e da ponderação e interpretação da convenção prévia de separação no seu conjunto que, em suma, esta convenção obriga a que, em caso de dissolução da relação de união de facto entre os outorgantes – e independentemente do motivo subjacente a esta rutura – a Ré, e apenas esta, fica obrigada a pagar ao Autor metade do valor das rendas pagas no âmbito de um contrato de arrendamento válido, celebrado por ambos na qualidade de arrendatários.

W. Tal estipulação conduz efetivamente a um resultado manifestamente ilegal e que é também contrário à ordem pública por ofender princípios fundamentais subjacentes ao sistema jurídico português e aos bons costumes, por repudiar aquilo que é a atual moral social dominante no que concerne quer à relação contratual do arrendamento, quer os efeitos da sua extinção, quer à ligação deste tipo contratual com a relação pessoal entre co-arrendatários.

X. Note-se que a relação de união de facto é manifestamente diferente da relação de casamento quanto aos efeitos patrimoniais de ambas as relações, ou de qualquer uma das situações elencadas pelo Autor em sede de alegações de recurso.

Y. A estipulação desta condição, e aliás de toda esta convenção prévia de separação considerada no seu conjunto, serve o fim da restituição por um co-arrendatário das rendas pagas no âmbito e em cumprimento de um contrato, caso a relação de união de facto entre estes termine. E tal repudia manifestamente os princípios mais basilares do sistema jurídico português, em especial em matéria contratual, e choca, é absurda no que àquilo que hoje é moralmente aceite pela comunidade portuguesa.

Z. Conforme concluiu o douto Tribunal a quo e por nós inteiramente se subscreve, “[…] as partes associaram o fim união de facto, “por qualquer causa”, à obrigação de pagamento por parte da recorrente/demandada, BB, somente ao recorrido/demandante, AA, do valor de metade das rendas pagas, durante a vigência da referida união.

Ora, a dissolução de uma união de facto não tem, nem pode ter um “preço”, com a agravante deste beneficiar, apenas, um dos seus antigos membros – o recorrente/demandado, AA, -, independentemente da causa que lhe está subjacente.

O esforço pedido à recorrente/demandada, BB, é, no caso concreto, do ponto de vista económico, pelo menos, injustificado ou, mesmo que não o seja, excessivo. Não há um mínimo de equilíbrio no “dar e receber”, com acontece “nas convenções privadas”, na área dos negócios patrimoniais, com exceção dos dominados por um espírito de liberalidade, o que, manifestamente, está longe de ser o caso dos autos.

Além disso, a “moral social dominante” não aceita, atualmente, que a eficácia de um negócio esteja condicionado à cessação de uma união de facto. Pela natureza das coisas esta não desencadeia, nem pode desencadear, uma prestação pecuniária em favor de um dos seus antigos membros, sob pena de, a curto prazo, se correr o risco da sua comercialização.”(itálico e sublinhado nossos).

AA. Assim, entendemos que andou bem o douto Tribunal a quo ao julgar nula a convenção prévia de separação, porque a condição nela aposta ser contrária à ordem pública e ofensiva dos bons costumes.

BB. Mas, mais ainda, consideramos que a convenção prévia de separação é manifestamente ilícita por a condição nela aposta ser contrária à lei, nos termos do artigo 271º, nº 1 do CC, porquanto viola o disposto nos artigos 1022º e 1038º, al. a) do CC, e está na sua totalidade ferida de nulidade nos termos do artigo 294º do CC, por violar norma legal imperativa, designadamente os mesmos artigos 1022º e 1038º, al. a) do CC) que constituem normas de cariz imperativo em matéria de arrendamento.

CC. E tal questão não ficou alheia ao douto Tribunal a quo, que deu porém predominância à nulidade da convenção com fundamento na contrariedade à ordem pública e ofensividade dos bons costumes da condição suspensiva nela aposta, como se depreende da afirmação final quanto a este ponto de direito “Assim sendo, e abstraindo-se da circunstância de o recorrido AA ter sido, também, inquilino da fração autónoma, durante os cerca de cinco anos da vigência da união de facto, com a inerente obrigação de pagar a renda (ou parte dela) ao senhorio, entende esta Relação que a condição em causa é contrária à ordem pública e ofensiva dos bons costumes, com a consequente nulidade da “convenção prévia de separação”. (itálico e sublinhado nossos)”.

DD. É que mediante a celebração de um contrato de arrendamento, ficam os arrendatários obrigados ao pagamento de renda, sendo este um elemento essencial e caracterizador deste tipo contratual, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1022º, 1023º ab initio e 1038º, al. a) do CC, elemento que o caracteriza e sem o qual não existe verdadeiro contrato de arrendamento, e corresponde a uma obrigação que recai sobre o(s) arrendatário(s). Faltando este elemento – esta obrigação de pagar a renda – tratar-se-ia de outro tipo contratual, nomeadamente de um contrato de comodato (artigo 1129º do CC).

EE. Por outro lado, não existe qualquer norma na lei, como de resto se compreende, que preveja que extinto o contrato de arrendamento ou terminada a relação conjugal/de união de facto entre as partes, no caso de pluralidade de arrendatários, deva ou sequer possa haver lugar à restituição das rendas, por um co-arrendatário ao outro, na proporção de metade (artigo 1081º a contrario sensu do CC).

FF. Assim, também por ser contrária à lei e violar norma legal imperativa do regime de arrendamento, nos parece evidente a nulidade da convenção prévia de separação, devendo também neste ponto improceder a alegação do Autor, ora Recorrente.

GG. Sem prescindir, acrescente-se ainda que o fim subjacente à estipulação das partes na convenção prévia de separação, de restituição – como se de uma sanção se tratasse – dos montantes pagos a título de rendas por um co-arrendatário (o Autor, ora Recorrente) durante a vigência de contrato de arrendamento, na proporção do seu pagamento (metade), em consequência do termo de uma relação conjugal com outro co-arrendatário (a Ré, ora Recorrida),é também ele contrário à lei e à ordem pública e ofensivo dos bons costumes, nos termos já explanados, sendo por isso nula a convenção também por via do disposto nos artigos 280º e 281º do CC.

HH. É que cai esta convenção no absurdo de sancionar a Ré, e só esta, por terminar a relação de união de facto, seja por que motivo for, sendo esta penalização equivalente à devolução/pagamento de metade das rendas pagas no âmbito de um contrato de arrendamento daquela que foi a morada de família do casal, ao longo do tempo em que durou relação de união de facto.

II. Assim impondo um insuportável limite à constituição de família e da sua composição, um verdadeiro direito de escolha de companheiro, em violação do direito constitucional à família consagrado no artigo 36º, nº 1 da CRP.

JJ. E, sendo este fim partilhado por ambas as partes e subscrito na referida convenção, ou seja, sendo um fim comum a ambas as partes, não se vislumbra qualquer abuso de direito, designadamente na modalidade de venire contra factum proprium por parte da Ré quando alega a referida nulidade, pois não há aqui nenhuma fundada expectativa ou confiança legítima do Autor que mereça proteção, pelo contrário.

KK. É evidente que a nulidade de que padece a convenção prévia de separação, independentemente do fundamento que lhe subjaz, não foi provocada pela Ré. Pelo contrário, foi o Autor quem quis e incentivou a celebração da dita convenção prévia de separação, que foi celebrada com a concordância dele para sua salvaguarda em caso de a relação de união de facto terminar, como o próprio alegou nos pontos 15 e 16 da petição inicial.

LL. Aliás, tal facto foi levado em linha de conta pelo Tribunal a quo aquando da apreciação de erro na aplicação do direito aos factos, não se verificando a alegada nulidade do acórdão do Tribunal a quo por omissão de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC.

MM. Ou seja, a situação de invalidade tem origem censurável, logo na sua génese, houve desde logo por parte do Autor uma atitude contrária às regras jurídicas, incluindo a própria boa fé, que não merece tutela à luz do instituto do abuso de direito, não devendo de todo em todo manter-se os seus efeitos, conforme ensina igualmente Menezes Cordeiro.

NN. Atuou, portanto, a Ré dentro dos limites e de acordo com os juízos de valor normativamente consagrados relativamente à invocação da nulidade da convenção prévia de separação.

OO. Inexiste, como tal, abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium por parte da Ré, devendo também neste ponto improceder o recurso interposto pelo Autor, bem como deve improceder a alegada nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.

PP. Por fim, vem ainda o Autor recorrer da decisão do Tribunal a quo que julgou não verificado o alegado enriquecimento sem causa da Ré, não merecendo porém qualquer razão já que o Autor nem sequer levou em linha de conta a alteração da matéria de facto produzida pelo Tribunal da Relação.

QQ. Com efeito, procedeu o Tribunal da Relação à reapreciação dos factos provados nºs 16 e 20 e dos factos não provados n) e o), analisando novamente a prova produzida e, assim, procedendo à alteração da redação do facto 16 e consequentemente fazendo ingressar o facto 19 na matéria de facto não provada, e aditando aos factos provados o facto o), não se provando a comparticipação do Autor, no sentido de não ter pago ou despendido qualquer valor para o pagamento das benfeitorias/obras realizadas na fração.

RR. É que uma coisa é a realização das obras no sentido de querer e mandar realizar as obras (facto provado 13), outra é pagá-las e, assim, nelas comparticipar. São duas atuações distintas que o Autor persiste em confundir. E se provado está que as obras foram efetuadas pelo pai e por um primo da Ré e que estes não cobraram nada ao Autor, que nada lhes pagou (factos provados o) e 31), então afinal que empobrecimento é que este obteve?

SS. Mais, sabia o Autor que as benfeitorias nunca seriam ressarcidas pela à data senhoria, porque assim constava do contrato de arrendamento (parte final do facto provado 5), então porque haveria de ser ressarcido no caso de venda do imóvel pela(s) nova(s) proprietária(s)? Porque no fundo é esse o efeito pretendido pelo Autor.

TT. Já no que se refere aos bens móveis adquiridos para a fração e discriminados no facto provado 15, também não ficou provado que o Autor tenha despendido qualquer montante para o pagamento dos mesmos, nem que os 7.000,00€ emprestados pela mãe da ré tenham sido afetos aos mesmos (facto provado 16 e factos não provados 19, f), g) e h)).

UU. E se nem nos articulados nem na fase instrutória do processo, que seriam os momentos próprios para apuramento da comparticipação do Autor na aquisição de mobiliário e, em caso afirmativo, para quantificação da respetiva comparticipação, o Autor nunca requereu a produção de prova pericial ou por inspeção para comprovar aquela factualidade, e o Tribunal da 1ª instância nada conseguiu apurar através da prova à sua disposição (factos não provados f), g) e h), não será com toda a certeza em fase de liquidação da sentença que tal investigação e análise será efetuada, não devendo repetir-se sob pena de violação do princípio do caso julgado.

VV. De resto, parece o Autor ignorar, tal como o fez a 1ª instância, um facto essencial e que se prende com o facto de a propriedade da fração ter sido transferida quer para a Ré, quer para a filha de ambos, que também reside no imóvel (facto provado 21). Ou seja, as benfeitorias/obras efetuadas na fração autónoma e os bens móveis que o integram pertencem e estão na posse não só da Ré mas também da filha de ambos, que é co-proprietária do imóvel e ali reside, o que deverá ter-se em linha de conta se se entender que existiu enriquecimento – o que não se concede – pois não será apenas da Ré mas também da filha de ambos e, consequentemente, a obrigação de ressarcimento das benfeitorias e do mobiliário, a existir, recairá sobre ambas.

WW. Face ao exposto, conclui-se que, apesar de investigado, não ficou provado qualquer empobrecimento do Autor, nem sequer o valor desse alegado empobrecimento, muito menos ficando provado um alegado correspetivo enriquecimento da Ré, nem a respetiva medida (factos não provados 19, f), g) e h)), pelo que não poderá haver obrigação de restituir.

XX. Aliás, a obrigação de restituir nos termos peticionados pelo Autor só se imporia se, verificados os demais pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa – entre os quais a inexistência ou desaparecimento de “causa justificativa” que também não parece preenchido – a vantagem patrimonial for quantificável pecuniariamente (artigos 473º e 479º do CC), tarefa que se mostrou de todo em todo inexequível.

YY. Mas mais, o artigo 474º do CC confere ao enriquecimento sem causa natureza subsidiária ou residual, consagrando assim o chamado princípio da subsidiariedade daquele instituto em relação a outros meios específicos de tutela.

ZZ. E no caso concreto avançou o Autor de imediato com este fundamento e apenas subsidiariamente recorreu a outros fundamentos que entende e confessa serem admissíveis para se ver ressarcido das benfeitorias e dos bens móveis, parecendo-nos evidente que na hipótese de concurso entre o instituto do enriquecimento sem causa e a invocada titularidade de um direito de crédito (quanto às benfeitorias) ou de um património comum (quanto aos bens móveis), a solução residirá normalmente nos segundos, em detrimento do primeiro ou, pelo menos, aqueles sempre deveriam ser alegados em primeiro lugar, assim respeitando o princípio da subsidiariedade do enriquecimento sem causa.

AAA. Face ao exposto, deverá também neste ponto improceder o recurso do Autor e manter-se o decidido pelo Tribunal a quo sob pena de violação do princípio da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa, inscrito no artigo 474º do CC.

BBB. Face a todo o exposto, andou bem o douto Tribunal a quo ao absolver a Ré dos pedidos formulados pelo Autor, devendo ser julgado totalmente improcedente o Recurso interposto pelo Autor, ora Recorrente, para o venerando Supremo Tribunal de Justiça, com as legais consequências”.


7. Em 20.11.2020 foi proferido o seguinte despacho no Tribunal da Relação de ......:

Admito o recurso, que é de revista, com efeito meramente devolutivo.

Notifique.

Subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça”.


*


Distribuídos os autos, cumpre decidir.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber se:

1.ª) o Acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia e/ou por omissão de pronúncia;

2.ª) o Tribunal recorrido fez um uso desadequado dos poderes previstos no artigo 662.º do CPC;

3.ª) o Tribunal recorrido violou a lei processual ao julgar inadmissível a ampliação do objecto do recurso requerida pelo apelante / recorrente; e

4.ª) o Tribunal recorrido violou a lei substantiva ao revogar a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1 – O Autor AA e a Ré BB começaram a namorar, em junho de 2009;

2 - O primeiro residia em ....... e a segunda em ..........., o que implicava que aquele se tivesse de deslocar, com frequência, a ..........., para estar com esta;

3 - No ano de 2011, o Autor AA e a Ré BB decidiram arranjar uma casa, em ..........., para poderem residir juntos, como se fossem marido e mulher, a fim de partilharem a mesma casa, o mesmo leito e tomarem junto as refeições;

4 - Quando procuravam uma casa para arrendar ou adquirir, com recurso ao crédito bancário, CC, tia da demandada, propôs ao Autor AA e à Ré BB a cedência do gozo da fração autónoma, destinada a habitação, designada pela letra A, do prédio, em regime de propriedade horizontal, sito na avenida .............., lote .., freguesia ..........., inscrito na matriz, sob artigo .....37, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..........., sob o n° .......95, mediante o pagamento de uma renda mensal de € 500,00, até ao dia 31 de dezembro de 2027;

5 - Por escrito, outorgado em .. de maio de 2011, a CC cedeu ao Autor AA e à Ré BB o gozo e fruição fração autónoma, destinada a habitação, designada pela letra A, do prédio, em regime de propriedade horizontal, sito na avenida .............., lote .., freguesia ..........., inscrito na matriz, sob artigo ....37, e descrito na Conservatória do Registo Predial ..........., sob o n° ......95, mediante o pagamento da quantia de € 500,00 mensais, a título de renda, com início no dia .. de maio de 2011 e termo no dia 31 de dezembro de 2027, e acordaram, além do mais, que "quaisquer que sejam as obras ou benfeitorias realizadas não darão lugar ao pagamento de qualquer indemnização por parte da senhoria";

6 - Por escrito outorgado em 1 de maio de 2011, designado "Convenção Prévia de Separação", a Ré BB acordou com o Autor AA que, no caso de se verificar a separação, colocando fim à união de facto, por qualquer causa, restituirá aquela metade da quantia liquidada a título de rendas e que tenham sido pagas até à data da separação;

7 - Por escrito outorgado em 1 de maio de 2011, designado "Promessa de doação", CC prometeu dar à Ré BB, com aceitação desta, a fração autónoma antes mencionada, comprometendo-se a primeira a outorgar o contrato definitivo até 31 de dezembro de 2027;

8 - No dia 21 de setembro de 2011, as partes foram viver para a fração autónoma antes referida e iniciaram a vida em comum, como se fossem marido e mulher, partilhando o mesmo leito, relacionando-se afetiva e sexualmente e tomando juntos as suas refeições;

9 - Tinham uma conta bancária em comum e contribuíam com o que auferiam para a aquisição em conjunto de bens alimentares, para o pagamento das despesas domésticas e de água, luz e gás;

10 - Desta relação nasceu, em 15 de maio de 2014, uma filha, de nome DD;

11 - Após a outorga do mencionado arrendamento, as partes decidiram proceder a uma remodelação profunda da fração arrendada e equipá-la;

12 - Tomaram esta decisão, para proporcionar condições de habitação, porque a fração iria ser a casa de morada da família;

13 - No período compreendido entre 1 de maio e 30 de setembro de 2011, o Autor AA e a Ré BB efetuaram as seguintes obras, na fração arrendada: substituição do chão, com colocação de piso flutuante, e remodelação das paredes da sala, quartos e cozinha (substituição do chão, colocação de uma massa lavável, por cima dos azulejos, aquisição e colocação de novas bancadas e equipamentos); remodelação de duas casas de banho (substituição do chão, colocação de uma massa lavável, por cima do azulejos, nas paredes de uma casa de banho, e colocação de pedra, na parede de outra casa de banho, substituição de chuveiros, sanitários e banheira); pintura interior de toda a fração; colocação de massa lavável, por cima dos azulejos do corredor; substituição de todas as portas interiores da casa e das três portas que dão acesso às varandas; substituição dos estores das janelas, por estores de alumínio; alargamento da varanda, com colocação de um novo gradeamento; substituição dos móveis da cozinha, lava loiças e pedra da bancada;

14 - As obras de remodelação antes referidas importaram um custo, no montante total de € 20.900,00;

15 - Entre 1 de maio e 30 de setembro de 2011, compraram o seguinte mobiliário, no valor não concretamente apurado: um espelho de entrada e um aparador, um móvel de televisão, uma mesa e seis cadeiras de sala, um candeeiro, uma televisão, um sofá, um móvel da casa de banho, uma mesa de escritório e sapateira, uma mobília do quarto do casal, composto por cama, cómoda, mesa-de-cabeceira, cortinado e candeeiro de teto, e, para a cozinha, uma máquina de lavar roupa, frigorífico, micro-ondas, forno, placa de indução, máquina de lavar roupa, exaustor, mesa e cadeira de cozinha;

16 - O Autor AA devolveu, até 2014, os € 7.000,00 que lhe foram emprestados por EE[1];

17 - As obras valorizaram a fração autónoma no montante de € 12.000,00;

18 - Antes da realização das obras, a fração autónoma tinha o valor de mercado de € 78.500,00 e, depois delas, passou a ter o de € 90.500,00;

19 – [2];

20 - No final de 2016, a Ré BB disse ao Autor AA que a CC iria transmitir a propriedade da fração autónoma para si e para a filha de ambos, DD[3];

21 - Por escritura outorgada em 3 de janeiro de 2017, a CC declarou transmitir a fração autónoma, à Ré BB e à DD, em comum e partes iguais, pelo preço de € 20.000,00;

22 - No final de janeiro de 2017, a Ré BB comunicou ao Autor AA que queria separar-se e teria de arranjar outra casa para viver, porque a casa era dela;

23 - Viveu na fração autónoma até março de 2017 e nessa data, saiu dessa casa e deixou de viver com a Ré BB;

24 - Reside, atualmente, em casa de seus pais, em .......;

25 - A Ré BB continua a viver na fração autónoma e ficou com o mobiliário adquirido;

26 - Entre 1 de maio de 2011 e janeiro de 2017, foram pagas pelo Autor AA e pela Ré BB, na proporção de metade por cada um, 69 rendas, no valor de € 250,00 mensais, nos meses de setembro de 2014 a maio de 2015, e no valor de € 500,00, nos restantes meses;

27 - Nos meses de fevereiro e março de 2017, o Autor AA pagou, em cada um desses meses, metade do valor da renda;

28 - Para pagamento das rendas, o Autor AA provisionou mensalmente a conta conjunta do casal, com a quantia de, pelo menos € 250,00, após o que a Ré BB efetuava o pagamento dessas rendas mensais à CC;

29 - A Ré BB recusa pagar ao Autor AA metade do valor das rendas por ele pagas, e recusa pagar o valor que despendeu nas obras e mobiliário da fração autónoma;

30 - As partes residiram, cada um, em casa de seus pais, até ao dia 21 de setembro de 2011;

31 - As obras acima referidas foram realizadas por um primo da demandada;

32 - A mobília do quarto da DD foi oferecida por EE;

33 - As obras referidas em 13), na parte respeitante aos trabalhos de pedreiro, foram realizadas pelo pai e um primo da ré, não cobrando o primeiro qualquer montante pela realização dessas obras[4].


Entre os factos não provados, deu-se relevo no Acórdão recorrido aos seguintes:

M - CC e a ré acordaram que o preço referido em 21 fosse pago e prestações mensais e sucessivas de € 500,00 até perfazer aquele montante;

N - A relação do autor e da ré entrou em rutura logo após o nascimento da filha de ambos e, em junho de 2014, o casal deixou de se relacionar afetiva e sexualmente e passaram a dormir em camas separadas.


O DIREITO

Como se verá, as três primeiras questões estão interligadas pelo facto de respeitarem todas, no essencial, à relegação do descrito no facto 19 para o elenco dos factos não provados.

Para melhor compreensão destas questões, recorde-se o teor do facto provado 19 tal como consta do rol de factos provados oriundos da decisão do Tribunal de 1.ª instância e inicialmente reproduzidos no Acórdão recorrido:

O Autor AA comparticipou nas obras e na aquisição do mobiliário, no pressuposto de que a relação se manteria”.

A eliminação do facto 19 foi justificada com base na alteração / foi imputada à alteração introduzida no teor do facto 16.

O raciocínio apresentado no Acórdão é o seguinte:

Pontos 16 dos factos provados

(…)

Verifica-se, assim, que o Tribunal [recorrido] desconsiderou, pura e simplesmente, os depoimentos das testemunhas CC e FF e a referência a uma oferta de €15.000,00 feita pela testemunha EE, mãe da Ré BB, a esta, por ocasião das obras.

De referir, também, que os "documentos juntos a fls. 30, 31, 156 a 161" provam, apenas, com segurança, a devolução do dinheiro e não, também, o destino que lhe foi dado.

Restam, praticamente, as "declarações de parte do autor que confirmou tais factos", consideradas "seguras, objetivas, consistentes, plausíveis e sem contradições" e, por isso, "credíveis".

Ora, as declarações de parte, sem segmento confessório, não podem deixar de ter um relevo muito residual, para efeitos de convicção do Tribunal, devendo ser tidas como inócuas para o efeito, quando confirmam "tais factos" - os alegados pelo declarante, como normalmente acontece, como foi o caso dos autos.

A fazer fé, como faz, este Tribunal de 2a Instância, nos desconsiderados depoimentos das testemunhas CC e FF, na parte onde aludiram, nomeadamente, que a mão-de-obra foi custeada pelos pais da recorrente/demandada, BB, com a achega, ainda, da aquisição de alguns materiais e oferta de €15.000,00,-porque, em princípio, é típico que assim aconteça -, é normal a sua dúvida sobre se a dita quantia dos €7.000,00 foi toda gasta nas obras de remodelação da fração autónoma e aquisição de mobiliário, tanto mais, ainda, que o recorrido/demandante AA refere ter gasto, também, €8.000,00 seus.

Ou seja: Esta Relação não consegue, ultrapassar, de forma fundada, o seu non liquet.

Importa, pois, decidir contra o recorrido AA, por estar sujeito ao ónus da prova.

Procede, pelo exposto, esta parte da impugnação da matéria de facto, pelo que o artigo 16° dos factos provados passa a ter a seguinte redação: " O Autor AA devolveu, até 2014, os €7.000,00 que lhe foram emprestados por EE".

De referir que esta resposta implica que o ponto 19 dos factos assentes, ingresse no rol dos factos não provados, a fim de evitar contradições, o que se determina”.


1.ª) Da alegada nulidade do Acórdão recorrido

Alega o autor/recorrente que existe violação do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC [cfr. conclusão HH)], ou seja, sustenta que o Acórdão recorrido é nulo com base em dois fundamentos: excesso de pronúncia e omissão de pronúncia.

Aprecie-se.

a) Do excesso de pronúncia

Alega o recorrente que o Tribunal a quo excedeu os seus poderes de cognição, precisamente, quando remete o facto 19 para o elenco dos factos não provados, sendo certo que o mesmo não havia sido impugnado pela ré nem era contraditório com a resposta dada ao facto 16, violando ainda o disposto nos artigos 635.º, n.ºs 3 a 5, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC [cfr. conclusões A) e B)].

É visível que não há qualquer violação do tipo alegado.

Como melhor se verá a propósito da questão seguinte, o artigo 662.º do CPC confere à Relação o poder – rectius: o poder-dever – de reapreciar e, por conseguinte, de alterar o teor, eliminar ou aditar pontos à decisão sobre a matéria de facto. Como decorre claramente da norma, este é um poder oficioso, que não está dependente da iniciativa das partes[5].

Na sequência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto apresentada pela recorrente, e como lhe permite aquela norma, o Tribunal recorrido procedeu à reapreciação e à alteração desta decisão. Neste processo não se restringiu – nem tinha de se restringir – aos pontos expressamente impugnados, podendo e devendo alterar quaisquer pontos que, numa reapreciação conjunta e global dos factos, resultasse necessário alterar a bem da coerência daquela decisão.

Em conclusão, nada impedia o Tribunal recorrido de eliminar o facto 19 ao elenco de factos provados ainda que este não tivesse sido directa ou expressamente impugnado pela recorrente. Consequentemente, não existe, tão-pouco, violação das normas dos artigos 635.º, n.ºs 3 a 5, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC. Numa palavra: o disposto nestas normas não está, pura e simplesmente, em causa.


b) Da omissão de pronúncia

Alega o recorrente que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a excepção de abuso de direito por ele atempadamente invocada nas contra-alegações da apelação [cfr. conclusões X) e Z)].

Como é do conhecimento geral, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC). Invertendo os termos, as contra-alegações do recorrido (ou conclusões das contra-alegações) não relevam para o efeito da definição do objecto do recurso.

Decorre disto que o Tribunal recorrido não tinha senão que atender às questões suscitadas pela recorrente nas conclusões da apelação. Não há, pois, a alegada omissão de pronúncia.


2.ª) Do alegado mau uso ou uso indevido dos poderes de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto

Alega o autor / recorrente que existe violação do artigo 662.º do CPC, pretendendo que o Tribunal recorrido fez um mau uso ou um uso indevido dos poderes de reapreciação da matéria de facto [cfr. conclusão C)].

Antes de se apreciar e decidir esta questão, torna-se oportuno um esclarecimento. Sendo certo que a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça é meramente residual no que respeita à apreciação e à fixação da matéria de facto realizada pelas instâncias, tem sido entendido que é possível apreciar o uso que a Relação faz dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662.º do CPC, sendo o “mau uso”[6] (uso indevido, insuficiente ou excessivo) susceptível de configurar violação da lei de processo e, portanto, de constituir fundamento do recurso de revista, nos termos do art. 674º, nº 1, al. b), do CPC[7]. Isto é, naturalmente, diferente da hipótese de este Supremo Tribunal sindicar os resultados a que chegou o Tribunal recorrido, isto é, de este Supremo Tribunal controlar a decisão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto e se imiscuir na valoração da prova feita pelo Tribunal recorrido segundo o critério da sua livre e prudente convicção, tudo coisas que lhe estão e permanecem interditas[8].

Quanto à questão: em face daquele que foi o percurso do Tribunal da Relação de ...... (reproduzido atrás), não é possível acompanhar o autor / recorrente quando diz que existe violação da norma do artigo 662.º do CPC.

Aquilo que se verifica é que o Tribunal recorrido procedeu à reavaliação dos meios de prova sujeitos à livre apreciação e reponderou a questão de facto em discussão, formando uma convicção própria e autónoma, fundada na prova documental e na prova testemunhal.

Este processo conduziu a Relação a um resultado diferente daquele que havia sido atingido na 1.ª instância, mas isso é perfeitamente natural, no sentido de admissível bem como de desejável nos termos dispostos no artigo 662.º do CPC.

Veja-se, desde logo, que se dispõe no n.º 1 desta norma que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. É, portanto, indiscutível, que a Relação é titular de um genuíno poder-dever de alterar a decisão sobre a matéria de facto.

É, pois, manifesto que o Tribunal da Relação ...... fez um uso adequado dos poderes que lhe são conferidos artigo 662.º do CPC.


3.ª) Da alegada violação da lei processual por não admissão da ampliação do objecto do recurso

Alega o autor / recorrente que existe violação do artigo 636.º do CPC pelo facto de ter rejeitado a ampliação do objecto do recurso quando não podia fazê-lo [cfr. conclusões H), J) e P)]. Ainda com relação a esta questão – presume-se –, é possível encontra, adiante, referência a violação do artigo 662.º, n.º 3, al. c), do CPC [cfr. conclusão HH)].

Veja-se com que fundamentos decidiu o Tribunal a quo rejeitar aquele pedido:

O demandante/recorrido, AA, requereu a ampliação do âmbito do recurso, "no que à questão da indemnização dos 7.000,00 € diz respeito (...), por forma a apreciar-se os fundamentos em que se basearam os pedidos subsidiários formulados na PI pelo Autor, quanto às benfeitorias e quanto aos bens móveis".

Na sentença impugnada, refere-se, nomeadamente, o seguinte:" E, nessa medida e pela mesma razão, improcedem igualmente os pedidos subsidiários formulados pelo autor sob os pontos IV) alíneas a) e b), uma vez que não resultou provado que o autor tivesse contribuído em montante superior a €7.000,00 para a realização de benfeitorias do imóvel e para a aquisição do respetivo recheio. De igual modo, e no que concerne aos pedidos subsidiários formulados pelo autor sob o ponto V), alíneas a) e b), respeitante ao reconhecimento de que os bens móveis descritos no artigo 30°. da petição inicial integram o património comum do autor e da ré, na proporção de metade, impõe-se referir que a união da facto, só por si, não é título ou modo jurídico legalmente reconhecido para a aquisição do direito de propriedade. (...) Pelo que, em face do exposto e em face da procedência parcial do pedido principal formulado pelo autor sob o ponto III), alínea b), improcedem os pedidos subsidiários formulados pelo autor sob o ponto V), alíneas a) e b)".

E, pois, inequívoco que o requerente AA é parte vencida, relativamente aos pedidos subsidiários vertidos nos pontos IV e V da sua pretensão, e não vencedora, ainda que com o não acolhimento de um outro fundamento invocado para "escorar", nessa área, uma decisão favorável, que acabou por beneficiar.

Como tal, deveria ter recorrido e não requerer a ampliação do recurso.

Equivale isto a dizer que não estão reunidos os pressupostos da ampliação do objeto do recurso.

Pelo exposto, não se admite a pretendida ampliação”.

Também neste ponto é impossível reconhecer razão ao autor / recorrente.

A possibilidade de ampliação do âmbito do recurso está prevista no artigo 636.º do CPC, dispondo-se, em especial, no seu n.º 1:

No caso de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhecerá do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação”.

Para este pedido de ampliação do objecto do recurso tem legitimidade exclusiva a parte vencedora quando, apesar de a decisão lhe ser favorável, não tenham sido acolhidos todos ou alguns dos fundamentos de facto ou de direito que tenha invocado.

Esta possibilidade é concebida como que para “compensar” a parte vencedora atendendo a que esta, em face do sentido da decisão e da sua qualidade de vencedora, fica, em princípio, impossibilitada de interpor recurso – é concebida, numa palavra, para prevenir a hipótese de, no recurso interposto pela parte vencida, lograrem vencer, afinal, os fundamentos opostos[9].

Ora, o autor e aqui recorrente tinha, na apelação, quanto ao pedido em causa, a posição de parte vencida e não a posição de parte vencedora.

Além disso, como se vê da discriminação dos pedidos na petição inicial e dos segmentos decisórios da sentença reproduzidos atrás, o que o autor e aqui recorrente pretendia era que o Tribunal da Relação conhecesse de um pedido que havia sido julgado improcedente pelo Tribunal de 1.ª instância e não que ele conhecesse simplesmente de um fundamento em que tivesse decaído.

Visto isto, logo se conclui que o pedido de ampliação do objecto do recurso não era, de forma alguma, o instrumento adequado; o instrumento próprio atendendo à posição e à pretensão do autor e recorrente, e que ele devia ter usado, era, sim, o recurso.

Não procede, assim, mais esta alegação do recorrente.


4.ª) Da alegada violação da lei substantiva

Alega o autor / recorrente, por fim, que existe violação das normas dos artigos 270.º, 334.º, 397.º, 398.º, n.ºs 1 e 2, 405.º, 406.º, 473.º e 479.º, todos do CC [cfr. conclusão HH)].

A título de fundamentação da decisão final pode ler-se no Acórdão ora impugnado o seguinte:

Dúvidas inexistem que o Autor/recorrido AA e a demandada/recorrente BB viveram em união de facto, entre 21 de setembro de 2011 e finais de janeiro de 2017.

Também não restam dúvidas que o primeiro fundamentou seu pedido de condenação no pagamento da quantia de €17.750,00, na 'convenção prévia de separação', onde a dita demandada/recorrente se comprometeu a restituir ao referido demandante/recorrido, com a concordância deste e para sua salvaguarda, 'metade da quantia liquidada a título de rendas no âmbito do contrato de arrendamento referido supra, e que tenham sido pagas até à data da separação', no caso 'de se verificar a separação dos outorgantes, colocando fim à união de facto referida supra, por qualquer causa'.

Ou seja: as partes associaram o fim união de facto, 'por qualquer causa', à obrigação de pagamento por parte da recorrente/demandada, BB, somente, ao recorrido/demandante, AA, do valor de metade das rendas pagas, durante vigência da referida união.

Ora, a dissolução de uma união de facto não tem, nem pode ter um 'preço', com a agravante deste beneficiar, apenas, um dos seus antigos membros - o recorrente/demandante, AA -, independentemente da causa que lhe está subjacente.

O esforço pedido à recorrente/demandada, BB, é, no caso concreto, do ponto de vista económico, pelo menos, injustificado ou, mesmo que não o seja, excessivo. Não há um mínimo de equilíbrio no 'dar e 'receber', com acontece 'nas convenções privadas', na área dos negócios patrimoniais, com exceção dos dominados por um espírito de liberalidade, o que, manifestamente, está longe de ser o caso dos autos.

Além disso, a 'moral social dominante' não aceita, atualmente, que a eficácia de um negócio esteja condicionado à cessação de uma união de facto. Pela natureza das coisas, esta não desencadeia, nem pode desencadear, uma prestação pecuniária, em favor de um dos seus antigos membros, sob pena de, a curto prazo, se correr o risco da sua comercialização.

Assim sendo, e abstraindo-se da circunstância de o recorrido AA ter sido, também, inquilino da fração autónoma, durante os cerca de cinco anos da vigência da união de facto, com a inerente obrigação de pagar a renda (ou parte dela) ao senhorio, entende esta Relação que a condição em causa é contrária à ordem pública e ofensiva dos bons costumes, com a consequente nulidade da 'convenção prévia de separação'.

Por outro lado, o recorrido /demandante, AA, alicerçou o outro pedido principal - condenação no pagamento da quantia de €15.000,00, 'correspondente a metade do valor das benfeitorias aplicadas na casa de mora de família e dos bens que constituem o seu recheio (...)', apelando às regras do enriquecimento sem causa.

Esta sua pretensão foi acolhida pelo Tribunal recorrido, limitada, porém, à importância de €7.000,00, correspondente 'ao valor do enriquecimento do património da ré em detrimento do património do autor'.

Acontece, porém, que, na sequência do sucesso da impugnação da matéria de facto constante do ponto 16 dos factos assentes, o referido enriquecimento de € 7.000,00 deixou de verificar-se.

Além disso, obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa, tem natureza subsidiária. Ora, no caso dos autos, como decorre dos pedidos subsidiários deduzidos, pelo demandante/recorrido, AA, são referidos outros meios de ser indemnizado, por eventuais benfeitorias úteis e/ou por uma alegada titularidade de um património comum de bens móveis.

É, assim, de ratificar a pretensão da demandada/ recorrente, BB, veiculada através do recurso.

Em síntese : a dissolução de uma união de facto não tem, nem pode ter um 'preço', com a agravante deste beneficiar, apenas, um dos seus antigos membros, independentemente da causa que lhe está subjacente; o esforço pedido ao outro antigo membro é, no caso concreto, do ponto de vista económico, pelo menos, injustificado ou, mesmo que não o seja, excessivo; além disso, a 'moral social dominante' não aceita, atualmente, que a eficácia de um negócio esteja condicionado à cessação de uma união de facto; pela natureza das coisas, esta não desencadeia, nem pode desencadear, uma prestação pecuniária, em favor de um dos seus antigos membros, sob pena de, a curto prazo, se correr o risco da sua comercialização; a condição em causa é contrária à ordem pública e ofensiva dos bons costumes, com a consequente nulidade do contrato, onde está inserida, a denominado 'convenção prévia de separação'”.

Resumindo: o Tribunal da Relação  ..... decidiu julgar improcedente o pedido de condenação da ré no pagamento de metade das rendas liquidadas pelo casal porque considerou nula a convenção em que se havia consignado esta obrigação; e decidiu julgar improcedente o pedido de condenação da ré no pagamento da quantia correspondente a metade do valor das benfeitorias e dos bens adquiridos para a casa porque considerou que não estavam reunidos os requisitos do enriquecimento sem causa, nomeadamente o enriquecimento do autor.

Aprecie-se agora, uma por uma, as alegações do autor / recorrente no que respeita à violação da lei.

Tocam elas, antes de mais, aos fundamentos do pedido de condenação da ré no pagamento de metade das rendas liquidadas pelo casal, mais precisamente, à “Convenção Prévia de Separação”.

Recorde-se que, através dela, a ré acordou com o autor que, no caso de se verificar a separação, colocando fim à união de facto, por qualquer causa, restituiria metade da quantia liquidada a título de rendas e que tivessem sido pagas até à data da separação (cfr. facto provado 6).

O autor / recorrente chama à colação, primeiro, os artigos 270.º, 397.º, 398.º, n.ºs 1 e 2, 405.º, 406.º do CC do CC. No seu entender, a convenção foi validamente celebrada, ao abrigo da liberdade negocial [cfr. conclusão R)], estando subordinada a uma condição suspensiva; tendo-se verificado esta condição, a ré deve cumprir o acordado, restituindo ao autor a referida quantia [cfr. conclusão S)].

A “convenção prévia de separação” aqui em apreço configura um acordo subordinado a uma condição (condição suspensiva). Ora, “os membros da união não estão impe­didos de celebrar contratos que regulem os aspetos patrimoniais dessa mesma união[10]. Nada impede, portanto, em princípio, as partes de regularem previamente os efeitos patrimoniais de uma eventual cessação da união de facto.

É verdade que esta liberdade não é absoluta, conhece limites e, desde logo, os limites decorrentes das normas imperativas de que são exemplos, na lei civil, os artigos 271.º, 280.º, 281.º e 294.º.

Um destes limites concretiza-se na impossibilidade de determinar sanções pecuniárias ou cláusulas penais para a ruptura da relação por um dos membros, uma vez que isso constituiria uma excessiva, logo inadmissível restrição da liberdade – da liberdade de ruptura – e de um direito de personalidade[11].

Reconhecendo embora a sensibilidade da questão[12], os dados disponíveis nos autos não permitem afirmar com segurança que a condição em causa corresponda a uma sanção deste tipo. Sendo assim, não é possível concluir pela ilicitude da condição nem pela nulidade do acordo com fundamento em ofensa aos bons costumes ou contrariedade à ordem pública. O estipulado pelas partes deve, pois, ser cumprido.

Nos termos da convenção prévia de separação, a ré deverá pagar ao autor de acordo com a factualidade provada (cfr., especialmente, factos 5, 22 e 26) o montante de € 16.125,00, correspondente a metade das rendas liquidadas pelo autor e pela ré entre 1.05.2011 (data do início de vigência do contrato de arrendamento) e o mês de janeiro de 2017 (data da separação).

O segundo grupo de alegações prende-se já com o pedido de condenação da ré no pagamento da quantia correspondente a metade do valor das benfeitorias aplicadas na casa de morada de família e dos bens (mobiliário) que constituem o seu recheio.

Ora, desde logo quanto às benfeitorias, a decisão sobre a matéria de facto não permite inferir que o autor tenha realizado o pagamento de metade das obras; da decisão sobre a matéria de facto resulta somente que o autor e a ré efectuaram obras, que as obras custaram 20.900 euros e valorizaram a fracção autónoma em 12.000 euros e que a ré se recusa a pagar ao autor o valor que despendeu nas obras (cfr. factos provados 13, 14, 17, 18 e 29).

Depois, quanto ao mobiliário, a decisão sobre a matéria de facto não permite, tão-pouco, inferir que o autor tenha realizado o pagamento de metade do valor do mobiliário; da decisão sobre a matéria de facto resulta somente que o autor e a ré compraram o mobiliário, que a ré vive na fracção e desfruta daquele mobiliário e que, tal como no caso das benfeitorias, a ré se recusa a pagar ao autor o valor que despendeu no mobiliário (cfr. factos provados 15, 25 e 29).

Quando às obras, deve atentar-se, desde logo, em que, de acordo com o regime aplicável (cfr., em particular, artigos 1046.º e 1273.º do CC), seria à senhoria quem competiria, em princípio, indemnizar o autor pelo esforço por ele despendido. Todavia, decorre da factualidade provada que do contrato de arrendamento consta uma cláusula segundo a qual “quaisquer que sejam as obras ou benfeitorias realizadas não darão lugar ao pagamento de qualquer indemnização por parte da senhoria” (cfr. facto provado 5). Esta estipulação impede o autor de, na qualidade de locatário, reclamar da senhoria indemnização por obras ou benfeitorias. Considerando isto, não há como acolher a pretensão do autor / recorrente, não se lhe podendo reconhecer o direito de exigir da ré / recorrida uma compensação pelo valor que terá despendido com aquelas obras.

Já quanto ao mobiliário, o problema respeita tão-só ao valor da obrigação de restituição. Quer dizer: inferindo-se dos factos provados que o autor despendeu dinheiro seu na aquisição do mobiliário, pode considerar-se verificado o enriquecimento – o enriquecimento injustificado – da ré à custa do autor: a ré enriqueceu porque ficou com o uso exclusivo dos bens, sendo que os bens não foram integralmente pagos por ela, portanto, beneficiando ela do dinheiro despendido pelo autor; por sua vez, o autor empobreceu porque se viu destituído da possibilidade de desfrutar ou usufruir dos bens. Ora, nada justifica ou legitima – nem a cessação da união de facto – que a ré se aproveite em exclusivo daquilo que foi adquirido com o esforço e para o proveito comum[13]. Deve, pois, a ré ser condenada numa obrigação de restituição, nos termos dos artigos 473.º e s. do CC, como vem sendo sustentado pelo autor.

Persiste, no entanto, uma / aquela questão: é que o autor não logrou provar, como lhe cabia, o grau de comparticipação no pagamento do mobiliário e, não tendo o autor logrado provar este grau de comparticipação, fica a faltar a condição indispensável para se condenar a ré num montante (pré-)determinado.

Mas nada disto impede a condenação da ré, estando previsto, justamente para acautelar os interesses em presença neste tipo de casos, a possibilidade de remeter o apuramento do valor para momento posterior, ou seja, de condenar a ré no que vier a ser liquidado posteriormente, nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, concede-se provimento parcial à revista, julgando-se a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos:

I. Condena-se a ré:

a) na obrigação de pagar ao autor o montante de € 16.125,00 (dezasseis mil cento e vinte e cinco euros), correspondente a metade das rendas liquidadas pelo autor e pela ré entre 1.05.2011 e o mês de janeiro de 2017, acrescido de juros a contar da citação até efectivo e integral pagamento;

b) na obrigação de restituir ao autor o montante que vier a ser liquidado a título da comparticipação deste na aquisição do mobiliário referido no facto provado 15;

II. Confirma-se, no mais, o Acórdão recorrido.


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Custas pelo recorrente e pela recorrida na proporção do respectivo decaimento.

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Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano


Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1.05, declaro que o presente Acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Exmos. Senhores Juízes Conselheiros que compõem este Colectivo.

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[1] O teor deste facto foi alterado pelo Tribunal recorrido.
[2] Este facto foi eliminado do elenco dos factos provados pelo Tribunal recorrido.
[3] O teor deste facto foi alterado pelo Tribunal recorrido.
[4] Este facto foi aditado ao elenco dos factos provados pelo Tribunal recorrido.
[5] Cfr., sobre este poder da Relação, Abrantes Geraldes, Recursos em processo civil, Coimbra, Almedina, 2020 (6.ª edição), pp. 332 e s.
[6] Partilha-se a expressão usada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.07.2015, Proc. 284040/11.0YIPRT.G1.S1.
[7] Sobre isto cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.05.2019, Proc. 156/16.0T8BCL.G1.S2.
[8] Cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.10.2009, Proc. 1834/03.0TBVRL-A.S1.
[9] Comentando a norma do artigo 636.º do CPC, onde se prevê a possibilidade de ampliação, diz Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, cit., p. 148): “apesar de a parte ter conseguido vencimento na ação, pode ter interesse em acautelar-se contra a eventual procedência das questões suscitadas pelo recorrente, mediante a modificação da decisão da matéria de facto no sentido que lhe seja mais favorável, a fim de continuar a beneficiar do mesmo resultado que foi declarado na primeira decisão, na eventualidade de serem acolhidos os argumentos arrolados pelo recorrente”.
[10] Cfr. Júlio Vieira Gomes, “Enriquecimento sem causa e união de facto”, in: Cadernos de Direito Privado, 2017, n.º 58, pp. 9-10.
[11] Segundo Júlio Vieira Gomes (“Enriquecimento sem causa e união de facto”, cit., pp. 10-11), é esta a orientação da doutrina especializada. Num plano mais geral veja-se o que dizem, por exemplo, Pedro Pais de Vasconcelos / Pedro Leitão Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra; Almedina, 2021, p. 607): “[a] ilicitude da condição depende do seu resultado, por exemplo, de acarretar uma excessiva limitação da liberdade”.
[12] Adverte Júlio Vieira Gomes (“Enriquecimento sem causa e união de facto”, cit., p. 11) que“o conteúdo lícito destes contratos é muito polémico: não só alguma doutrina, ao mesmo tempo que condena as cláusulas penais, admite cláusulas ditas "premiais" (o direito a receber uma certa importância do outro membro se a união persistir durante determinado número de anos), como se pode questionar se (…) a solução não poderia ser diversa consoante uma cláusula fosse puramente sancionatória ou antes de liquidação antecipada dos danos (…) não queremos deixar de afirmar que nos parece que certas cláusulas poderão ser válidas, mesmo que impliquem indiretamente algum custo no caso de rutura e, neste sentido, limitem, em alguma medida, a liberdade de rutura”.
[13] Quer dizer: podem considerar-se verificados os três requisitos de que falam Pires de Lima e Antunes Varela, (Código Civil Anotado, volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, pp. 454-456) ou Júlio Vieira Gomes (Comentário ao Código Civil – Direito das obrigações – Das obrigações em geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p. 250). Diz este último autor que “[o] artigo 473.º coloca os seguintes requisitos para a restituição fundada no enriquecimento sem causa: que alguém tenha enriquecido, que esse enriquecimento tenha ocorrido à custa de outrem, e que tenha ocorrido sem causa justificativa”. Para um tratamento desenvolvido do instituto e dos seus pressupostos cfr. Luís Teles de Menezes Leitão, O enriquecimento sem causa no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1996, e Júlio Vieira Gomes, O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, Universidade Católica Portuguesa, 1998.