Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1306/14.7TBACB-T.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
CASO JULGADO MATERIAL
FALÊNCIA
LIQUIDATÁRIO JUDICIAL
REMUNERAÇÃO
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / EFEITOS DA SENTENÇA.
Doutrina:
-Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, p. 307;
-Carvalho Fernandes e João Labareda, Código dos Processos Especial e de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado,1994, p.114 e 115;
-João Castro Mendes, Direito Processual Civil, A.A.F.D.L, 1980, III Volume, p. 276;
-Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 304;
-Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 578;
-Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, 3.°, p. 253.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 620.º.
CÓDIGO DOS PROCESSOS ESPECIAIS DE RECUPERAÇÃO DA EMPRESA E DE FALÊNCIA (CPEREF), APROVADO PELO DL N.º 132/93, DE 23 DE ABRIL: - ARTIGOS 34.º, N.º 3, 34.º, 132.º, N.º 1, 133.º, 135.º, 138.º, 143.º, 146.º, 155.º, N.º 2, 180.º E 219.º.
ESTATUTO DO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA, APROVADO PELA LEI N.º 32/2004, DE 22 DE JULHO: - ARTIGO 5.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


- DE 18-04-2002, IN CJ/02, TOMO II, P. 108.


-*-


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


- DE 15-07-2004, PROCESSO 0432886, IN WWW.DGSI.PT.


-*-


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:


- DE 05-02-2003, IN CJ/03, TOMO I, P. 282.
Sumário :

I. Pressuposto essencial do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida, seja objecto de repetida decisão. Se assim for, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão.

II. É discutido o alcance do caso julgado, sobretudo, quando está em causa o caso julgado material, mas a ponderação também releva, quanto ao caso julgado formal: se duas decisões, versando sobre a mesma questão, são proferidas sob previsões legais que autorizam, fundamentam a alteração de uma decisão inicial, como é caso, por exemplo, de a lei conferir ao julgador a possibilidade de alteração da remuneração do Administrador Judicial, consoante a fase do proecesso.

III. Não sendo a remuneração do Liquidatário da falência inalterável, antes cometendo a lei ao julgador, segundo critérios definidos, a possibilidade de alteração, não viola o caso julgado a decisão que a modifica: o despacho inicial assume provisoriedade e não viola o princípio da confiança inerente à res judicata se o Juiz, no uso de um poder legal altera, ainda que para menos, a remuneração.

Decisão Texto Integral:
Proc.1306/14.7TBACB-T.C1.S1

R-645 [1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Nos autos de falência de AA, S. A., que se iniciaram sob o n.º412/2000, no extinto 3º Juízo Cível de Alcobaça, foi nomeado, em 5.11.2001, gestor judicial o agora Recorrente, BB, tendo-lhe sido fixada a remuneração de 100.000$00.

Por despacho proferido em 18.2.2002 foi a remuneração fixada alterada para o montante mensal de € 600,00, acrescidos de IVA.

Por despacho proferido em 2.2.2010 e, na sequência de requerimento apresentado pelo liquidatário judicial para obter pagamento dos seus honorários referentes ao período compreendido entre Outubro de 2008 e Novembro de 2009 e no montante global de € 10.080,00, foi decidido reduzir a partir de Janeiro de 2009 a retribuição fixada, passando a mesma para a quantia mensal de € 250,00.

Por requerimento de 8.6.2012 o liquidatário requereu o pagamento dos honorários referentes ao período compreendido entre Dezembro de 2009 e Junho de 2012, pedido que foi reiterado em 22.7.2013, alargando o período dos honorários devidos até Julho de 2013.

Por despacho de 11.9.2013 foi autorizado o pagamento dos honorários devidos ao liquidatário judicial, no período compreendido entre Dezembro de 2009 e Julho de 2013, considerando o valor mensal de € 250,00.

Na sequência de requerimento do liquidatário a solicitar o pagamento de honorários referentes ao período compreendido entre Agosto de 2013 e Julho de 2015 foi, com data de 9.9.2015, proferido despacho que indeferiu o requerido por a cessação das suas funções ter ocorrido em 12.3.2010 – data do trânsito da sentença que aprovou as contas da liquidação da massa falida.

Em Fevereiro de 2017 veio o liquidatário judicial requerer que lhe fosse arbitrada e paga a remuneração devida, contabilizando esse montante em € 50.400,00, alegando serem-lhe os honorários devidos desde Novembro de 2009 até à data do requerimento, e que a mesma lhe foi fixada, por despacho de fls. 1418 em € 600,00 acrescidos de IVA.

Esta pretensão foi objecto do despacho proferido em 16.2.2017 com o seguinte teor:

Requer o Sr. Liquidatário nomeado nos presentes autos que se proceda ao pagamento da remuneração devida no montante de € 50.400,00, pelo trabalho desenvolvido desde Novembro de 2009.

Sucede, porém, que sobre a questão agora suscitada o Tribunal já tomou posição pelo despacho proferido nos autos a fls. 1856-1857, o qual já se encontra transitado em julgado.

Termos em que nada mais cumpre conhecer a propósito.

Notifique.


***


                                            

O Senhor Liquidatário interpôs recurso deste último despacho, para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por Acórdão de 26.9.2017 – fls. 251 a 260, – julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida.


***


De novo inconformado, o Recorrente, invocando a violação do caso julgado, interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, e alegando, formulou as seguintes conclusões:

A) O recurso de apelação teve por base o indeferimento do pedido de remuneração formulado pelo ora recorrente, enquanto Liquidatário designado nos presentes autos, em violação do caso julgado constituído pelo despacho em que o ora recorrente foi designado Liquidatário nos presentes autos em 2001, tendo-lhe sido fixada, por despacho de fls. 1418, a remuneração mensal de € 600, acrescida de IVA à taxa legal vigente, que ao tempo era de 17%, a suportar pelo CGT, constituindo tal despacho caso julgado formal que se impõe até ao tribunal.

B) Ao confirmar o despacho proferido pela 1ª Instância, o acórdão da Relação de Coimbra de 26 de Setembro de 2017, violou igualmente o caso julgado formado por aquela decisão e, embora com fundamentação diversa, a recorribilidade mantém-se.

C) Esta decisão do Tribunal da Relação de Coimbra é recorrível, independentemente do valor e da dupla conforme, com fundamento na ofensa de caso julgado, que o ora recorrente expressamente invoca, atento o disposto nos artigos do artigo 629.º do actual Código de Processo Civil (art.° 678.º Código de Processo Civil 1961) e art°. 671°, nº3, do actual Código de Processo Civil.

D) Como se referiu, o ora requerente foi designado Liquidatário nos presentes autos em 2001, tendo-lhe sido fixada, por despacho de fls. 1418, a remuneração mensal de € 600,00 acrescida de IVA à taxa legal vigente, que ao tempo era de 17%, a suportar pelo CGT.

E) Tal despacho, segundo as normas processuais vigentes ao tempo, era susceptível de recurso ordinário e não o tendo sido, transitou em julgado 2001, constituindo, nos presentes autos, caso julgado formal, que se impõe até ao tribunal.

F) Entre Novembro de 2009 e o momento actual, medeiam 86 meses, durante os quais, o ora requerente teve que acompanhar a evolução da gestão dos dinheiros obtidos na liquidação do património da sociedade falida, rentabilizando essa massa monetária, através da constituição de depósitos a prazo, verificando mensalmente os extractos de conta, a fim de poder tomar as melhores decisões quanto a essa rentabilização, procedendo ao arquivamento desses extractos bancários e demais documentação relativa à presente insolvência, a fim de serem colocados em pastas próprias para serem apresentadas aos credores, como o foram todas as contas, livros e demais papéis, prestando a estes as informações por eles solicitadas sobre a evolução da referida conta bancária, respondendo ao tribunal e juntando os documentos ordenados pelo tribunal, pagando as despesas da responsabilidade da massa falida, nomeadamente as custas judiciais, devendo proceder agora à emissão dos respectivos cheques de pagamento das quantias apuradas e a que cada credor tem direito.

G) Acresce que não é verdade o que consta de um despacho proferido pela 1ª Instância, junto com as alegações do recurso de apelação, para melhor localização do mesmo, segundo o qual as contas da liquidação da massa foram encerradas em 12/03/2010.

H) É que, o ora recorrente, como liquidatário, continuou a efectuar diligências na falência tendo reapresentado as contas em 2013 (documento 2 – em anexo) e em 2015 (documento 3 em anexo), tendo sido em 2015, o ano em que foram pagas as custas finais (documento 3). Aliás, em 2012, foi reelaborado o Mapa de Rateio em conformidade com o despacho proferido pela juíza a 25/02/2011 no Apenso H (documento 4 – em anexo).

I) Durante esse período o administrador continuou a exercer as suas funções de gestão da massa insolvente nos seus mais diversificados aspectos, nomeadamente controlo das contas bancárias, gestão das aplicações financeiras, arquivo de documentos relacionados com a falência, contactos com os muitos credores que solicitaram informações sobre o estado do processo tendo sido imediatamente informados, pagamentos efectuados por conta da massa nesse período com a colaboração do Presidente da Comissão de credores, deslocações a Alcobaça para assinatura de cheques, etc.

J) Ou seja, desde 2009 o ora recorrente desempenhou na medida do necessário todas as suas funções como liquidatário, não tendo qualquer responsabilidade no atrasar da resolução do processo.

K) Em consequência reclamou o ora recorrente a quantia de € 50.400 pelo seu trabalho desde Novembro de 2009 até ao momento actual, com fundamento na decisão transitada em julgado, pelo trabalho em 84 meses à razão mensal de € 600, acrescido de IVA à taxa legal devida em cada mês, a pagar pelo CGT.

L) O despacho proferido pela 1ª. Instância indeferiu essa pretensão com o fundamento que o tribunal já tomou já posição pelo despacho proferido nos autos a fls.1856-1857, o qual já se encontra transitado em julgado, mas não fixou qualquer remuneração ao ora recorrente, pelo que nada foi arbitrado ao ora recorrente, pelo que o mesmo foi no entender do julgador obrigado a trabalhar pro bono para o tribunal.

M) Verifica-se, porém, que ambas as decisões transitaram em julgado, o que é aliás o entendimento do julgador que proferiu o despacho proferido pela 1^. Instância, ou seja, se a última decisão transitou em julgado, também o mesmo aconteceu com a decisão de decisão de 2001 que fixou a remuneração mensal do ora requerente como liquidatário.

N) Estamos, por isso, perante casos julgados contraditórios pois como iá foi decidido no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 8/3/2001, proferido no processo 00A3277, disponível em http://www.dgsi.pt/ist. VI- Para que se verifique a situação de casos julgados contraditórios preceitua no nº2, do artigo 675, Cód. Proc. Civil, é essencial que as duas decisões contraditórias incidam sobre o mesmo objecto, o que vale por dizer que a parte dispositiva das duas decisões há-de ter resolvido o mesmo ponto concreto, de direito ou de facto.

O) É manifestamente o que se passa nos presentes autos, em que as duas decisões pronunciam sobre o mesmo ponto concreto, ou seja, a remuneração mensal a pagar ao ora recorrente enquanto Liquidatário designado nos presentes autos.

P) Face ao exposto, a questão tem de ser resolvida por aplicação do art°. 625º do actual Cod. Proc. Civil, anterior art. 675º conforme referido nos acórdãos citados, ou seja, “havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar”.

Q) Conforme determina o nº 2 desse mesmo art°. 625° do Código de Processo Civil, “é aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta do relação processual”, pelo que não há dúvidas de que tem de ser aplicada a decisão que transitou em primeiro lugar, ou seja, o despacho em que o ora requerente foi designado Liquidatário nos presentes autos em 2001, tendo-lhe sido fixada, por despacho de fls. 1418, a remuneração mensal de € 600, acrescida de IVA à taxa legal vigente, que ao tempo era de 17%, a suportar pelo CGT.

R) Foi a confiança nas decisões dos tribunais que levou o ora recorrente a manter-se em funções ao longo destes 7 anos, porque se soubesse que receberia pouco mais de € 50 por mês pelo seu trabalho, há muito que teria renunciado às funções para que foi designado e aceitou.

S) Este princípio consagrado no art°. 625°. do Cod. Proc. Civil, mais que um princípio de estabilidade das decisões judiciais é um princípio de confiança nos tribunais por parte de quem colabora com a justiça.

T) O acórdão ora em recurso, num jogo de tautologia, começa por dizer que a questão das remunerações já estava decidida por despacho anterior com trânsito em Julgado e que o despacho recorrido não se pronunciou sobre remunerações.

U) O requerimento do ora requerente era exactamente no sentido de que praticara actos que enumera, que o tribunal nem sequer se deu ao trabalho de verificar, onde concluía que lhe fosse paga a remuneração que atrás refere e foi exactamente esse pedido de pagamento que foi indeferido.

V) O despacho para o qual se remete até reconhece expressamente que houve actividade do ora requerente e até lhe reduz a remuneração que despacho proferido em 9/9/2015 resulta que houve trabalho do ora requerente após 2010 e esse trabalho tem de ser remunerado, sendo que a divergência diz respeito ao valor, pois, nesse despacho fixa-se o valor € 250 mensais até 2013 e nada daí em diante, embora admita pagar deslocações e despesas, pelos vistos em serviço pro bono.

X) Verifica-se a violação do caso julgado formado pelo despacho de 2001 quer pelos despachos da 1ª Instância, quer pelo acórdão da Relação de Coimbra ora impugnando, pelo que deve ser substituída por outra decisão, que defira o pedido de pagamento do ora requerente da quantia de € 50.400 pelo seu trabalho desde Novembro de 2009 até ao momento actual, com fundamento na decisão transitada em julgado, pelo trabalho em 84 meses à razão mensal de €600, acrescido de IVA à taxa legal devida em cada mês, a pagar pelo CGT ou então ordene a baixa do processo para ampliação da matéria de facto relativamente à actividade do ora requerente desde 2009 até à data em que formulou o pedido, ou seja, 6/2/2017, pois só assim se cumprirá a lei e se fará JUSTIÇA!

O Ministério Público, através do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Coimbra, contra-alegou pugnando pela confirmação do Acórdão.


***


Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou factualmente relevante o que consta do Relatório, e ainda: “No apenso de prestação de contas apenso ao processo de falência foi em 2.2.2010 proferida sentença que transitou em julgado a julgar boas as contas prestadas”.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber (tal como no Acórdão recorrido) – se existe violação do caso julgado formal entre os despachos proferidos em 18.2.2002 e 16.2.2017, por, alegadamente terem versado sobre a mesma questão: a remuneração do Recorrente, na veste de liquidatário judicial de processo falimentar, diminuindo-a.

As instâncias foram concordes no entendimento que não existe violação do caso julgado. O Recorrente pretende que a remuneração mensal de € 600,00 mais IVA à taxa então em vigor de 17%, fixada por despacho de 18.2.2001 – fls. 1418 –, transitou em julgado pelo que não poderia ter sido alterada para menos, daí que a segunda decisão, também transitada em julgado, não pode prevalecer sobre a primeira nos termos do artº 625º do Código de Processo Civil, normativo a que corresponde o anterior art.675º.

O preceito encerra:

 “1. Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.

 2. É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual”

Pressuposto essencial do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida seja objecto de repetida decisão. Se assim for, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão.

Se assim acontecer, para evitar repetições inúteis e o risco de decisões contraditórias, o Tribunal deve indeferir a segunda pretensão.

Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed. -307:

 “Caso julgado é a alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por deci­são de mérito que não admite recurso ordinário.

É material o que assenta sobre decisão de mérito proferida em processo anterior; nele a decisão recai sobre a relação material ou substantiva litigada; é formal quando há decisão anterior proferida sobre a relação pro­cessual.

Ele pressupõe a repetição de qualquer questão sobre a relação pro­cessual dentro do mesmo processo (ob. cit., 308).

 Ambos pressupõem o trânsito em julgado da decisão anterior”.

Como ensina Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 304, o caso julgado formal consiste na força obrigatória que os despachos e as sentenças possuem relativa unicamente à relação processual, dentro do processo, excepto se não for admissível o recurso de agravoconsiste na preclusão dos recursos ordinários, na irrecorribilidade, na não impugnabilidade”.

 João Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, A.A.F.D.L, 1980, III vol. pág. 276, ensina que o “caso julgado formal traduz a força obrigatória dentro do processo”, contrariamente ao caso julgado material, cuja força obrigatória se estende para fora do processo em que a decisão foi proferida.

No caso em apreço estamos perante a figura do caso julgado, não material mas formal, já que está em causa uma decisão proferida no processo que, alegadamente, já tinha sido decidida com trânsito em julgado e que foi de novo suscitada.

Desde logo, importa dizer que o caso julgado formal, tal como o caso julgado material, visa evitar a repetição de decisões judiciais sobre a mesma questão.

O art. 620º do Código de Processo Civil dispõe:

1. As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força, obrigatória dentro do processo.

2. Excluem-se do disposto no número anterior os despachos previstos no artigo 630”.

É discutido o alcance do caso julgado, sobretudo, quando está em causa o caso julgado material, mas a ponderação também releva, quanto ao caso julgado formal, se duas decisões, versando sobre a mesma questão, são proferidas sob previsões legais que autorizam a alteração de uma decisão inicial, como é caso, por exemplo, de a lei conferir ao julgador a alteração a remuneração do Administrador Judicial, consoante a fase do proecesso.

Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág. 578, (lição que se mantém actual):

 “O caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos (art. 659.°, n.º 2, “in fine”, e 713.° n.º 2), que pode ser, por exemplo, a condenação ou absolvição do réu ou o deferimento ou indeferimento da providência solicitada. Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos.

Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto o pressupostos daquela decisão” – (destaque nosso)

“A economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportando à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidas por aquele critério ecléctico, que sem tomar extensiva a eficácia de caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado” – Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, 3.°-253.

Como refere o Ex.mo Magistrado do Ministério Público, nas doutas contra-alegações apresentadas no recurso de apelação (fls.204), e o processo demonstra, foram proferidas cinco decisões sobre a remuneração do Liquidatário Judicial.

- a decisão de 18.02.2002, que fixou “em 600 euros mensais, acrescidos de IVA à taxa de 17%, a remuneração do Sr. Liquidatário Judicial nomeado nestes autos”;

- a decisão de 2.02.2010, proferida o apenso B, deferindo parcialmente o requerido, foi determinado o pagamento global de 4.900 € ao Sr. Liquidatário Judicial relativo ao período de Outubro de 2008 a Novembro de 2009;

- a decisão de 11.09.2013, proferida no apenso B, foi fixada “em € 250,00 mensais a retribuição devida ao Sr. Liquidatário, no período compreendido entre Dezembro de 2009 e Julho de 2013”;

- a decisão de 09.09.2015, proferida no processo principal, foi indeferido ao Sr. Liquidatário Judicial “o pagamento da quantia de € 7.380,00 a título de honorários referentes ao período de Agosto de 2013 a Julho de 2015 e da quantia de € 3.768,64 a título de deslocações e despesas do liquidatário judicial”;

- a decisão de 16.02.2017 (recorrida) em que apenas se refere “”sobre a questão agora suscitada o Tribunal tomou já posição pelo despacho proferido nos autos a fls.1856-1857, o qual já se encontra transitado em julgado.”

A longa pendência do processo no Tribunal, que, obviamente, não é de imputar responsabilidade ao Recorrente, levou a que, no quadro legal convocável, a alteração da remuneração tivesse fundamento na lei.

No despacho de 2.2.2010, proferido no apenso B) e transitado em julgado, consta:

“ […] Neste conspecto, decide-se manter a retribuição inicialmente fixada até Janeiro de 2009 e, afigurando-se injustificada tal quantia mensal a partir do mês subsequente, reduzir, ao abrigo das normas conjugadas previstas nos artigos 34.°, n°3, e 133.° do CPEREF e no artigo 5.°, n°l, do D.L. n°254/93, de 15.07, a remuneração do Sr. Liquidatário Judicial, a partir de Fevereiro de 2009, para a quantia mensal de 250 €.

Por todo o exposto, defere-se parcialmente o requerido, determinando-se o pagamento da quantia global de 4.900 € (acrescida de LVA à taxa legal aplicável), correspondente à remuneração do Sr. Liquidatário Judicial relativa aos meses de Outubro de 2008 a Novembro de 2009, a efectuar nos termos do artigo 5.°, n°s 1 e 2, do D.L. n°254/93, de 15.07.”. (destaque e sublinhado nosso)

Temos, assim, que concluir que não existe violação do caso julgado formal se, por força da lei e na pendência do processo, a remuneração inicial é alterada.

O art. 5º do Decreto-Lei nº 254/93 de 15.07.1993 - Remuneração do liquidatário judicial – estatuía:

1 - A remuneração do liquidatário judicial é fixada pelo juiz, nos termos previstos no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência para a fixação da remuneração do gestor judicial e é suportada pelo Cofre Geral dos Tribunais, por verba para o efeito disponível no tribunal.

  2 - As verbas despendidas com a remuneração de liquidatários judiciais devem ser reembolsadas ao Cofre Geral dos Tribunais pela massa falida, aplicando-se a este reembolso o estipulado no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência para o reembolso dos adiantamentos de fundos feitos pelos credores destinados à remuneração do gestor judicial e ao reembolso das despesas feitas por este.”

No “Código dos Processos Especial e de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado” – Carvalho Fernandes e João Labareda – 1994 – em anotação ao art. 34º, versando sobre a remuneração do gestor judicial, págs. 114/115, pode ler-se:

“Na fixação da remuneração manda a lei atender a três factores: o parecer dos credores, a prática de remunerações seguida na empresa e as dificuldades estimadas das funções cometidas ao gestor. Atendendo à importância e gravidade das funções que lhe cabem, é natural que ao gestor judicial seja fixada uma remuneração compatível com a dos que exercem os mais elevados cargos na empresa, nomeadamente os administradores que se mantêm em funções.

Por outro lado, não pode ser indiferente a circunstância de ao gestor judicial serem ou não cometidos poderes de gestão corrente, uma vez que, se isso acontecer, acrescem, naturalmente, as dificuldades próprias do cargo.

Na estimativa destas dificuldades não pode também deixar de ser tida em conta a dimensão da empresa e dos respectivos passivo e activo, bem como a natureza e o regime da actividade económica exercida. Tudo isto o juiz procurará esclarecer nas diligências que deve promover nos termos do art.° 24.°. Uma vez que o despacho de fixação da remuneração é constitutivo de direitos e obrigações — e não se conforma, por isso, como um despacho de mero expediente —, ele é recorrível nos termos gerais de direito.”

Que a remuneração atribuída ao Liquidatário não era imutável, dependendo de factores que ao Juiz competia ponderar segundo critérios legais, pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15.7.2004, Proc. 0432886 – in www.dgsi.pt:

“O liquidatário judicial é nomeado pelo juiz (art. 132, n.º1, do CPEREF), pelo mesmo devendo ser fixada a sua remuneração, tendo como referência os critérios estatuídos naquele código para a remuneração do gestor judicial (arts. 5º, do DL n.º 254/93, de 15.7 e 133º e 34º do CPEREF).

E, por força do art. 34, n.º 1, daquele código, a remuneração em referência tem como parâmetros da sua quantificação o parecer dos credores, a prática de remuneração seguida na empresa e as dificuldades inerentes às tarefas àquele cometidas.

O liquidatário judicial, uma vez nomeado, assume de imediato as suas funções (art. 135º), entre elas se destacando a de preparação do pagamento das dívidas do falido, cobrando, se necessário, os créditos do falido sobre terceiros (arts. 134º e 146º); o exercício da administração ordinária em relação à massa falida (art.143º); liquidação do activo (art. 180º); apresentação de relatórios semestrais sobre o seu estado (art. 219º); confirmação dos negócios do falido posteriores à declaração de falência, quando nisso haja interesse para a massa (art. 155º, n.º 2), cessando as funções em causa com o trânsito em julgado da decisão que aprova as contas da liquidação da massa falida (art. 138º) – v., neste sentido, o Ac. da RG, de 5.2.03, in CJ/03, tomo 1, pág. 282.

Ainda no domínio da fixação da remuneração a favor do liquidatário deverá atender-se que a mesma, como sucede para o gestor judicial, pode ser alterada a todo o tempo, em função das dificuldades e dos resultados alcançados com o exercício desse cargo (art. 34, n.º 3 do citado código), o que parece permitir a constatação de que a remuneração não tem carácter imutável, possibilitando a sua adequação às dificuldades acrescidas ou diminuídas do exercício do respectivo cargo, mediante um juízo feito “a posteriori” – v., a propósito, o Ac. da RL, de 18.4.02, in CJ/02, tomo 2, pág. 108.” (destaque e sublinhado nosso)

Já no despacho de 9.9.2015, a questão da remuneração do Liquidatário fora decidida, sem que a ela tivesse reagido o ora Recorrente.

Aí pode ler-se (fls. 173/174):

“Notificado para comprovar nos autos o pagamento das custas em dívida, bem como indicar o saldo disponível para efeitos do rateio final, veio o Sr. Liquidatário reclamar o pagamento da quantia de € 7.380,00 a título de honorários referentes ao período de Agosto de 2013 a Julho de 2015 e da quantia de € 3.768,64 a título de deslocações e despesas do liquidatário judicial.

Cumpre apreciar e decidir:

Nos termos do disposto no artigo 138.°, do CPEREF, “O liquidatário judicial cessa funções depois de transitada em julgado a decisão que aprove as contas da liquidação da massa”

Como resulta dos autos, a decisão que aprovou as contas da liquidação da massa foi proferida a 02.02.2010, tendo transitado em julgado a 12.03.2010.

Pelo que, a cessação das funções do Sr. Liquidatário judicial ocorreu em 12.03.2010.

Não obstante tal circunstancialismo legal, pelo despacho proferido a 11.09.2013 foi fixada uma remuneração mensal de € 250,00 no período compreendido entre Dezembro de2009e Julho de 2013.

Desde então o Sr. Liquidatário não desenvolveu quaisquer diligências nos autos.

Dos dispositivos legais aplicáveis decorre que as suas funções já se encontram cessadas.

O atraso processual dos autos na elaboração da respectiva conta de custas e elaboração do mapa de rateio não pode de forma alguma implicar em acréscimo de retribuição do Sr. Liquidatário, pois tal lapso temporal não tem subjacente qualquer actividade da sua parte.

 Termos em que se indefere o requerido pelo Sr. Liquidatário quanto ao pagamento de tais montantes por ausência de qualquer fundamento legal.

 Notifique.

Quanto às despesas reclamadas pelo Sr. Liquidatário no valor de € 3.768,64, determino a notificação do Sr. Liquidatário para, no prazo de 10 dias, apresentar os documentos comprovativos das mesmas e justificar a sua realização.”

No despacho recorrido que, ao invés do afirmado, não foi o que contrariou a remuneração inicial, afirmou-se:

“Requerimento de fls. 1891:

 Requer o Sr. Liquidatário nomeado nos presentes autos que se proceda ao pagamento da remuneração devida no montante de € 50.400,00, pelo trabalho desenvolvido desde Novembro de 2009.

Sucede, porém, que sobre a questão agora suscitada o Tribunal tomou já posição pelo despacho proferido nos autos a fls.1856-1857, o qual já se encontra transitado em julgado.

Termos em que nada mais cumpre conhecer a propósito.

Notifique.

Mais notifique o Sr. Liquidatário para dar cumprimento ao já ordenado no despacho proferido a fls. 1890.”

Aproximando a conclusão, importa considerar que, não sendo a remuneração do Liquidatário da falência inalterável, antes a lei cometendo ao julgador, segundo critérios definidos, a possibilidade de alteração, não viola o caso julgado a decisão que a modifica.

O despacho inicial assume provisoriedade e não viola o princípio da confiança inerente à res judicata se o Juiz, no uso de um poder legal altera, ainda que para menos, a remuneração.

A fundamentação das decisões, alegadamente em violação do caso julgado, in casu, é relevante para que não se possa considerar, cruamente, que, apenas porque houve alteração da remuneração, a segunda decisão viola o caso julgado formado pela primeira.         

Assentando a segunda decisão em alterações consentidas pela lei, importaria que fosse atacada a decisão de fundo com base na contestação dos seus fundamentos, alegando-se e demostrando-se erro de direito na decisão que alterara o despacho inicial, não estando, pois, presente a violação do caso julgado formal.

Ainda que com fundamentação não totalmente coincidente o Acórdão recorrido deve manter-se.

Sumário – art. 663º, nº7, do Código de Processo Civil

Decisão:

Pelo exposto, nega-se a revista.

Custas pelo Recorrente.

 Supremo Tribunal de Justiça, 8 de março de 2018

Fonseca Ramos (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

______________________
[1] Relator – Fonseca Ramos
Ex.mos Adjuntos:
Conselheira Ana Paula Boularot
Conselheiro Pinto de Almeida