Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
825/21.3T8VCT.G1.S1-A
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO
CONTRATO DE TRABALHO EM FUNÇÕES PÚBLICAS
Data do Acordão: 06/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :
Invocando o autor uma relação de trabalho regulada pelo regime do Código do Trabalho e não pela Lei Geral do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, é competente o tribunal do trabalho e não o tribunal administrativo, ainda que o réu seja uma pessoa coletiva de direito público.
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 825/21.3T8VCT.G1.S1
MBM/JG/RP

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.

1. AA e outros intentaram ação declarativa de condenação, com processo comum, contra INSTITUTO DO EMPREGO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL, I.P., pedindo, nomeadamente, que os autores sejam reconhecidos e declarados como trabalhadores do réu durante os períodos em que trabalharam para o mesmo, com todas as consequências legais inerentes.

2. Na 1ª instância, foi proferido despacho saneador, a julgar procedente a exceção dilatória de incompetência material do tribunal de trabalho e, consequentemente, a absolver o R. da Instância (por se ter entendido que a competência cabe aos Tribunais Administrativos).

3. Os autores apelaram, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães, julgando o recurso procedente, revogado a decisão recorrida e declarado a competência em razão da matéria do juízo do trabalho, mais determinando o prosseguimento dos autos.

4. Inconformado, interpôs o R. a presente revista, dizendo, em síntese, nas conclusões da sua alegação:

- O Acórdão recorrido, errando na lei processual aplicável, qualificou incorretamente o feixe de relações jurídicas existentes entre o Recorrente e cada um dos Recorridos previamente à sua integração no mapa de pessoal do Recorrente, através do PREVPAP, não aplicando o artigo 12.º da LTFP, a alínea e) do n.º 1 e a alínea b) do n.º 4 (esta última a contrario sensu), ambas do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e, em consequência, desconsiderando os artigos 1.º, 3.º, 6.º e 10.º, todos da citada LTFP, a alínea f) do artigo 18.º da Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, que então aprovou o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, a alínea b) do n.º 1 do artigo 42.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho (Lei preambular e o n.º 1 do artigo 2.º e o n.º 1 do artigo 14.º, ambos da lei n.º 112/2017, de 29 de dezembro, LPREVPAP.

- Contrariamente ao entendimento do Acórdão recorrido, não estamos perante "questões emergentes de relações de trabalho subordinado" nem de "relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho", mas perante "litígios emergentes de contratos de prestação de serviço, celebrados nos termos da LTFP, ou vínculo de emprego público".

- O Recorrente é uma "pessoa coletiva de direito público", à qual não é, desde 1 de janeiro de 2009, legalmente permitida a celebração de contratos individuais de trabalho.

- Pretendendo os ora. Recorridos exercitar direitos que se reportam ao lapso temporal compreendido entre 2013 e 30 de abril de 2020, jamais poderia vigorar entre as partes qualquer contrato individual de trabalho.

5. Os AA. não contra-alegaram.

6. Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser concedida a revista.

7. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), em face das conclusões da alegação de recurso, a única questão a decidir é a de saber
 se o juízo do trabalho tem competência em razão da matéria para conhecer da ação em apreço.

Decidindo.

II.

8. É a seguinte a argumentação expendida no acórdão recorrido:

“Nos termos do art. 126.º, n.º 1, al. b) da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho.

Por seu turno, nos termos conjugados do art. 4.º, n.º 1, al. o) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, e do art. 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho), são da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes do vínculo de emprego público.

Em conformidade, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais esclarece no n.º 4, al. b) do citado art. 4.º que está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público.

Refere-se na decisão recorrida:
«Os AA., para fundamentarem estas pretensões, invocam a existência desde Março de 2013 a Outubro de 2014, consoante os casos, de contratos de trabalho com o R., que é o Instituto de Emprego e Formação Profissional, IP.
A invocação da incompetência material deste tribunal por parte do Réu parte do princípio que nunca existiu uma relação laboral entre ele e os AA., mas apenas e tão-só um contrato de avença.
Pois bem, afigura-se-nos líquido que, independentemente da forma como originariamente foi criada a relação laboral, todos os contratos de trabalho estabelecidos com o Estado ou outros entes públicos, como o IEFP, se converteram, ope legis, em contratos de trabalho em funções públicas a partir de 1 de janeiro de 2009, por força do disposto na Lei 12-A/2008, de 27/2, e da Lei 59/2008, de 11/9.
Este regime legal, por força da Lei 35/2014, de 20/6, importa a sua extensão aos “contratos” em análise nestes autos, tanto mais que o Réu está legalmente impedido de celebrar contratos individuais de trabalho.
Dito de outra forma, a ter sido celebrado um contrato de trabalho subordinado entre as partes, necessariamente, face ao regime legal citado, este teria de ser um contrato em funções públicas.
Assim, salvo melhor entendimento, as relações laborais entre os AA. e o Réu, a existirem, regem-se pelo disposto no regime dos contratos em funções públicas e não na lei geral laboral.
A delimitação negativa da competência dos tribunais administrativos e fiscais, empreendida pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro (na redacção que lhe foi dada pelo art. 10.º da Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro), aponta claramente no sentido de que todos os litígios decorrentes de contratos de trabalho competem à jurisdição laboral, excepto exactamente aqueles que estão sujeitos ao citado regime.
Dispõe o artigo 4.º, n.º 3, al. d), da citada lei, que:
“Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:

“d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção de litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas”.
Tratando-se no nosso caso, como vimos, de contratos de trabalho em funções públicas, este tribunal de trabalho é incompetente, em razão da matéria, para o apreciar e decidir.
Só assim não seria se os AA. formulassem qualquer pedido referente ao período anterior a 1 de Janeiro de 2009, pois que então, por força do princípio da conexão, este tribunal adquiria competência para apreciação de toda a matéria em causa (cfr., neste sentido, Ac. do STJ de 16 de Junho de 2015, in www.dgsi.pt).
No caso, como também vimos, os AA. não formulam quaisquer pedidos que se reportem a data anterior àquela. Aliás, face aos contratos alegados, posteriores à mesma, também tal não poderia acontecer, pelo que a apreciação das questões suscitadas compete exclusivamente à jurisdição administrativa.»

Ora, salvo o devido respeito, o despacho recorrido confunde a base de que deve partir a afirmação da competência material do tribunal – a relação material controvertida tal como configurada pelos Autores na petição inicial – com a apreciação do mérito ou acerto desta configuração, através da análise e enquadramento jurídico dos contratos outorgados pelas partes, sem atender a que os Autores invocam relações jurídicas que, pelas características que alegam, acima descritas sinteticamente, se reconduzem em abstrato ao conceito de contrato de trabalho tal como definido nos arts. 11.º e 12.º do Código do Trabalho.

Acresce que, para além de inaplicável ao caso dos autos o regime da conversão ope legis dos contratos de trabalho em contratos de trabalho em funções públicas a partir de 1 de janeiro de 2009, posto que estão em causa relações jurídicas vigentes desde datas entre Março de 2013 e Outubro de 2014 até 30 de Abril de 2020, a invocada proibição legal de o Réu celebrar contratos individuais de trabalho não significa que o mesmo não tenha violado essa proibição legal, importando nesse caso – face ao pedido e à causa de pedir – apreciar se é aplicável o regime da nulidade previsto nos arts. 121.º a 125.º do Código do Trabalho, como se decidiu, v.g., no Acórdão da Relação de Évora de 28 de Junho de 2017, em cujo sumário se diz que “[s]e os contratos de prestação de serviços são declarados nulos por consubstanciarem contratos de trabalho e como tal declarados, embora nulos por não terem sido celebrados de acordo com a forma prevista legalmente para a contratação em funções públicas, devem aproveitar-se todos os efeitos decorrentes da prestação de trabalho dos autores durante esse período de tempo como se estivéssemos perante contratos de trabalho válidos, incluindo a contagem do tempo para efeito de cálculo da antiguidade.”

Isto sem prejuízo, evidentemente, de ser julgada correta outra solução, incluindo a de, efetivamente, não terem vigorado entre as partes quaisquer contratos de trabalho de direito privado, ainda que inválidos, designadamente por se estar perante relações jurídicas de emprego público, caso em que se imporá a improcedência da ação e a absolvição do pedido.

Em suma, quando se diz que a competência material do tribunal deve aferir-se pela relação material controvertida tal como configurada pelo autor, quer significar-se precisamente que deve atender-se à causa de pedir invocada e ao pedido formulado, não sendo correto, para apreciação desta questão, fazer um juízo de prognose sobre o mérito ou viabilidade da pretensão deduzida. Isto é, não deve indagar-se se a natureza que o autor confere à relação de trabalho, pública ou privada, está de acordo com o direito aplicável, já que isso concerne à apreciação do mérito da causa.

É o que, de modo pacífico e constante, vem entendendo a jurisprudência, designadamente a do Tribunal de Conflitos, conforme se exemplifica com o Acórdão de 3 de novembro de 2020, em que se refere, além do mais:
“(…) como se atentou no Ac. deste TC de 1/10/2015, proferido no Conflito n.º 08/14, se é certo que o tribunal é livre na indagação e na qualificação jurídica dos factos, não pode antecipar esse juízo para o momento da apreciação do pressuposto da competência, pelo menos numa situação como a presente em que a causa de pedir e o pedido vão dirigidos ao reconhecimento dos efeitos resultantes de uma relação laboral de direito privado. É que “para a apreciação desta questão o que releva é a alegação do autor de que está ligado à ré através do regime de contrato individual de trabalho e de que é esse contrato de direito privado o fundamento da pretensão de ver reconhecidos direitos que a lei estabelece para os trabalhadores vinculados por contratos desse tipo e que não seriam, porventura, suportados pelo regime de contrato de trabalho em funções públicas. Isto é, o autor tem direito a que seja apreciado se tem ou não o direito que se arroga, emergente do contrato individual de direito privado que defende vinculá-lo à ré. E para tanto os órgãos jurisdicionais competentes são os tribunais do trabalho, não os tribunais administrativos, independentemente da natureza pública ou privada da entidade empregadora (…)” – cf., no mesmo sentido, os Acs. deste Tribunal de 10/3/2016, Conflito n.º 10/15, de 17/11/2016, Conflito n.º 17/16 e de 8/3/2017, Conflito n.º 012/15.
Assim, se a A. caracteriza o vínculo jurídico entre si e o R., durante a sua vigência e no momento da sua cessação, como relação laboral de direito privado e é nesta caracterização que assenta as pretensões que deduz, pertence ao mérito da causa saber se aquele vínculo assumiu efectivamente tal natureza e teve as consequências que dele pretende retirar (cf. citado Ac. de 17/11/2016).
Nestes termos, atento ao regime legal invocado na petição inicial para enquadrar a questão e ancorar os créditos que a A. pretende ver reconhecidos pelo tribunal, não cabe aos tribunais da jurisdição administrativa, mas aos tribunais judiciais (…) a competência para conhecer a presente acção.”

Este entendimento tem sido também sufragado por esta Relação de Guimarães, como se alcança dos Acórdãos de 22 de Outubro de 2015, proferido no processo n.º 45/14.1T8VRL.G1, de 16 de Junho de 2016, proferido no processo n.º 86/15.3T8TVRL.G1, de 20 de Outubro de 2016, proferido no processo n.º 871/15.6T8VRL.G1, de 23 de Maio de 2019, proferido no processo n.º 1740/18.3T8VRL.G1, e 3 de Dezembro de 2020, proferido no processo n.º 306/19.5T8BGC-A.G1.

Aliás, o processo n.º 1740/18.3T8VRL.G1 refere-se a ação proposta por formadores do Centro de Emprego e Formação Profissional ... contra o ora Réu, o Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P., com vista à condenação deste em pedido semelhante e por causa de pedir similar aos dos presentes autos, dizendo-se no mencionado Acórdão desta Relação de 23 de Maio de 2019:
“A competência material dos Tribunais deve aferir-se pela causa de pedir exposta pelo demandante na sua petição inicial, pela natureza da relação jurídica tal como descrita pelo autor. Seja, deve ser apreciada em função dos termos em que a ação é colocada pelo autor, pelo “quid disputatum”, considerando-se o pedido e a causa de pedir. Não é correto para apreciação desta questão fazer um juízo (um prognóstico sobre o mérito) sobre a viabilidade do alegado.
Em sede de apreciação da competência do tribunal, não deve fazer-se qualquer apreciação ou prognose quanto ao mérito da pretensão deduzida.
Não deve nesta fase indagar-se se a natureza que o autor confere à relação de trabalho, pública ou privada, está de acordo com as normas legais, e com as alterações legislativas ocorridas, já que isso implicaria entrar no mérito da causa.
(…)
No caso presente os autores configuram o seu direito como um vínculo de natureza privada, invocando o CT e formulando pedido em conformidade com essa caraterização. Consequentemente, saber se os vínculos assumem tal natureza, e podem extrair-se as consequências que os autores pretendem, respeita ao fundo da causa. O tribunal nunca será colocado na posição de apreciar uma relação jurídica administrativa, pois se concluir pela errada caraterização, tal implicará a absolvição do pedido.”

Em face do exposto, porque os juízos do trabalho são os competentes para conhecer da questão de mérito colocada nos presentes autos, atento o preceituado no art. 126.º, n.º 1, al. b) da Lei da Organização do Sistema Judiciário, procede o recurso dos Autores.”

9. Perante a sólida e exaustiva fundamentação transcrita, não se vislumbra qualquer necessidade/utilidade em proceder a desenvolvimentos argumentativos adicionais, sendo desde logo indiscutível – e determinante – que: o despacho da 1ª  Instância “confunde a base de que deve partir a afirmação da competência material do tribunal – a relação material controvertida tal como configurada pelos Autores na petição inicial – com a apreciação do mérito ou acerto desta configuração, através da análise e enquadramento jurídico dos contratos outorgados pelas partes, sem atender a que os Autores invocam relações jurídicas que, pelas características que alegam, acima descritas sinteticamente, se reconduzem em abstrato ao conceito de contrato de trabalho tal como definido nos arts. 11.º e 12.º do Código do Trabalho” (“não sendo correto, para apreciação desta questão, fazer um juízo de prognose sobre o mérito ou viabilidade da pretensão deduzida; isto é, não deve indagar-se se a natureza que o autor confere à relação de trabalho, pública ou privada, está de acordo com o direito aplicável, já que isso concerne à apreciação do mérito da causa”).

Aceitando que em princípio assim é, entende, no entanto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, no seu Parecer, que “no caso em apreço afigura-se-nos curial admitir que a relação jurídica configurada pelos Autores radica na contratação de serviços por um ente público, ou seja a causa de pedir – justamente os referidos contratos de aquisição – implicam procedimentos e normas de direito público que regulam o respetivo regime substantivo bem como a discussão da relação jurídica administrativa, matéria arredada da competência dos tribunais do trabalho”.

Para além de nos parecer que esta alegação é insuscetível de abalar o princípio segundo o qual a competência do tribunal se afere em função da forma como o autor configura a relação jurídica  controvertida, acresce, como também bem nota o tribunal a quo, que  “a invocada proibição legal de o Réu celebrar contratos individuais de trabalho não significa que o mesmo não tenha violado [não pudesse ter violado] essa proibição legal, importando nesse caso – face ao pedido e à causa de pedir – apreciar se é aplicável o regime da nulidade previsto nos arts. 121.º a 125.º do Código do Trabalho”.

III.

10. Em face do exposto, acorda-se, negando a revista, em confirmar o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 22 de junho de 2022



Mário Belo Morgado (Relator)

Júlio Manuel Vieira Gomes

Ramalho Pinto


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[1] Diploma ainda em vigor, apesar da sucessiva publicação da Lei 52/2008, de 28 de Agosto, e da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.
[2] In www.dgsi.pt, como todos os demais arestos citados sem menção em contrário.
[3] P. 492/09.2TTPRT.P1.S1 (Gonçalves Rocha).
[4] Sobre esta problemática, v.g. Ac. de 12-09-2013 desta Secção P. 204/11.0TTVRL.P1.S1 (Maria Clara Sottomayor).