Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
692/11.5TBVNO.E1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: RECURSO DE REVISTA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
DIREITO CANÓNICO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OFENSA DE CASO JULGADO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Data do Acordão: 04/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO SE ADMITE O RECURSO DE REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / DECISÕES QUE ADMITEM RECURSO / RECURSO DE REVISTA / DECISÕES QUE COMPORTAM REVISTA.
Doutrina:
- António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2018, p. 61, 62, 351, 352 e 358;
- Antunes Varela e J. Miguel Bezerra/ Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 715;
- Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, p. 599, 600, 621, 622, 633, 634, 637 e 638;
- João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, p. 231 ; Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Almedina, Coimbra, 1968, p. 357;
- João de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, Lisboa, 1968 p. 157, 347, 354 e 357;
- José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Almedina, Coimbra, 2018, p. 766;
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 293, 307 e 308;
- Mariana França Gouveia, A causa de pedir na acção declarativa, Almedina, Coimbra, 2004, p. 427-428;
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 586 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 629.º, N.º 2 E 671.º, N.º ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 04-05-2010, PROCESSO N.º 3272/04.8TBVISC.1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 11-11-2014, PROCESSO N.º 542/14.0YLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 17-11-2015, PROCESSO N.º 34/12.2TBLMG.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 15-02-2017, PROCESSO N.º 2623/11.3TBSTB.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-03-2017, PROCESSO N.º 1375/06.3TBSTR.E1.S1;
- DE 07-06-2018, PROCESSO N.º 2877/11.5TBPDL-D.L2.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 12-07-2018, PROCESSO N.º 2917/15.3T8PDL-B.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - Não é admissível recurso de revista de acórdão que recaiu sobre decisão interlocutória (qualificação da BB como associação pública ou privada de fiéis de acordo com o Código de Direito Canónico de 1983). Contudo, o princípio da irrecorribilidade tem as exceções previstas no art. 629.º, n.º 2 do CPC, designadamente quando estejam em causa as hipóteses de ofensa do caso julgado e de contradição de julgados.
II - Quanto ao primeiro fundamento, uma vez que se trata de uma decisão intermédia que serve de fundamento à decisão do Tribunal da Relação e, por isso, não se reveste nem da força e nem da autoridade de caso julgado, não se verifica, assim, o fundamento excecional a que alude o art. 629.º, n.º 2, al. a), in fine, do CPC.
III - Quanto ao segundo fundamento, a admissibilidade do recurso está dependente da verificação de efectiva contradição. No caso em apreço, não ocorre oposição entre os acórdãos (acórdão fundamento e acórdão recorrido) pressuposta pelo art. 671.º, n.º 2, al. b), do CPC, tanto mais que inexiste uma relação de identidade das situações de facto e de direito subjacentes a cada uma das decisões.
Decisão Texto Integral:

       

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório

A Diocese de AA e a BB (doravante BB) propuseram ação declarativa contra a CC, alegando, em síntese, o seguinte:

-  que a BB é uma Associação Pública de Fiéis, ereta canonicamente por Decreto de 2 de março de 1959, emitido pelo então Bispo ..., D. DD, tendo sido depois feita comunicação de participação de ereção ao Governador Civil de ... e registada na Secretaria do Governo Civil de ... sob o n.º 181, a 6 de março de 1959;

- que esta associação se reveste de natureza pública e prossegue fins religiosos;

-  que, a 18 de outubro de 2005, Dom EE, então Bispo da Diocese de AA emitiu um documento no qual declarou, inter alia, a existência de personalidade jurídica no foro canónico e civil da Superiora da BB e indicou os seus poderes para a prática de atos necessários à constituição de uma fundação de natureza social e afetação de património, assim como para conferir os mesmos poderes a FF, na qualidade de procurador da BB;

- que, a 19 de outubro de 2005, a Irmã GG, considerando-se superiora Geral da BB, outorgou procuração notarial a favor de seu sobrinho FF, conferindo-lhe poderes para a constituição de uma fundação de natureza social, com fins meramente civis, bem como poderes para administrar e alienar bens;

- que, no uso dessa mesma procuração, FF constituiu, a 22 de junho de 2006, mediante escritura pública, a CC, à qual afetou todo o património eclesiástico da BB, nomeadamente bens imóveis que identifica e respetivo recheio, assim como a quantia de € 150.000,00, tudo no valor global de € 285.588,8l;

- que não tendo essa fundação existência canónica e não prosseguindo os mesmos fins religiosos da BB, de um lado e, de outro, sendo os referidos bens eclesiásticos, a sua transmissão para fins não religiosos carece de autorização da entidade competente, in casu, o Bispo AA, sujeita a audição e parecer vinculativo do Conselho para os Assuntos Económicos e do Colégio dos Consultores;

- que a credencial, supra mencionada, emitida a 18 de outubro de 2005, apesar de consentir na transmissão de bens eclesiásticos para fins não religiosos, não foi, todavia, precedida daquela audição e parecer vinculativo e, por isso, encontra-se ferida de nulidade. Por consequência, são também nulos os atos praticados com base nessa credencial, designadamente a procuração outorgada a 19 de outubro de 2005 e subsequente escritura de instituição da CC.

Concluindo pela procedência da ação, pedem:

1 - Seja declarada nula ou ineficaz a credencial de 18 de outubro de 2005 e, em consequência, a nulidade da pública forma da procuração da superiora geral de 19 de outubro de 2005, conferida com base nessa credencial.

2 - Seja declarada nula a escritura pública outorgada a 22 de junho de 2006 em que instituiu uma fundação de solidariedade social que denominou de "CC", a que foram afetos os prédios indicados.

3 - Seja declarada a nulidade dos respetivos atos de registo e cancelamento correspondentes às respetivas apresentações.

Na sua contestação, a CC invocou a ilegitimidade da Diocese de AA por a mesma não ter interesse direto em demandar, suscitou a questão de falta de poderes de representação da BB, por não se mostrar junta procuração, impugnou os factos e aflorou a eventual caducidade do direito de arguir de anulabilidade por omissão de formalidades no procedimento de autorização por parte da BB para a transmissão de bens.

Conclui pela procedência das exceções e pela absolvição da R da instância, ou pela improcedência da ação por não provada e consequente absolvição da R dos pedidos.

As AA responderam, pugnando pela não verificação das exceções, porquanto a BB é uma associação pública de fiéis e se encontra regularmente representada. Acresce que o vício de omissão de formalidades fere o ato de nulidade e não de mera anulabilidade e, por conseguinte, a sua invocação não está sujeita a prazo de caducidade.

No saneador-sentença, de 2 de setembro de 2013, a ação foi julgada improcedente e a R absolvida do pedido.

Inconformadas, as AA recorreram da sentença.

Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20 de maio de 2014, foi a decisão anulada pela insuficiência de factos provados para conhecer do mérito da ação em sede de despacho saneador, remetendo-se os autos para o respetivo prosseguimento.

O Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que: “Os tribunais eclesiásticos são os competentes em razão da matéria para determinar a natureza canónica de uma associação de fiéis como pública ou privada. Tal não significa, contudo, que o tribunal a quo seja incompetente para, em concreto, fazer tal apreciação nestes autos, na medida em que a avaliação e qualificação da natureza canónica da BB como pública ou privada, surge como questão necessária relativamente à decisão da causa. Por força da extensão da competência estabelecida no art. 91.º nº 1 do C.P.C. para o conhecimento dos incidentes e das questões que o réu suscite como meio de defesa, o tribunal sendo competente para a acção, tem competência para apreciar e decidir da natureza canónica da BB em divergência nos autos, ainda que, por força do nº 2 da norma mencionada a decisão proferida neste processo não constitua caso julgado fora do mesmo. Para se determinar a natureza jurídico-canónica de uma associação de fiéis, enquanto pública ou privada temos de socorrer-nos do que dispõe para o efeito o Código de Direito Canónico, já que é o mesmo que estabelece as regras necessárias a considerar. Para a distinção entre associação pública e privada de fiéis, é fundamental considerar a forma de constituição da associação de fiéis, bem como os fins prosseguidos pela mesma e forma como são prosseguidos- em nome da Igreja ou em nome próprio”.

De novo na 1ª instância, por despacho foi dispensada a realização de audiência prévia.  No despacho saneador decidiu-se pela legitimidade de ambas as AA e fixou-se o objeto do litígio, com enunciação dos temas de prova, que não foram objeto de reclamação.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.

A 5 de dezembro de 2016, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu a R dos pedidos.

Inconformadas com a sentença, as AA interpuseram recurso da mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição): ”1º Entende a ora recorrente que da prova produzida nos presentes autos, vista no seu conjunto e pelo que resultou do depoimento da testemunha Padre HH, resultou demonstrada mais fatualidade que deveria ter sido dada como provada e que se enquadra nos temas de prova 1º, 2º, 3º e 4º, sendo que a este respeito a douta decisão dos pontos 1º a 24º dos fatos provados corresponde a uma mera reprodução de documentos sem devido enquadramento fatual, com outros fatos resultantes do sobredito depoimento gravado, sobre como foi praticado o que consta nesses documentos, ordem cronológica e motivação subjacente à produção dos documentos que são espelhados nos ditos pontos. 2º Para além disso do dito depoimento da testemunha Padre HH resultaram igualmente provados outros fatos que não têm diretamente a ver com os documentos a que se referem os pontos 1º a 24º dos fatos provados mas que relevam e são essenciais para os temas de prova 1º, 2º, 3º e 4º, os quais, por erro na apreciação da prova gravada a Mma Sra Juiz a quo desconsiderou decidindo nada mais ter sido provado além da matéria que consta dos pontos 1º a 28º dos fatos provados. 3º Em concreto, os meios probatórios que se evocam como fundamento no erro notório na apreciação da prova e do incorreto julgamento da matéria de fato (mais concretamente os fatos não considerados  na douta decisão recorrida), cuja reapreciação se requer constam no depoimento gravado e acima transcrito da testemunha HH que ficou registado no sistema digital de gravação integrado H@bilus Média Studio no nº 00:00:00 a 01:10:56 no período das 10:05:46 horas às 11:16:59 horas na audiência de julgamento do dia 21/09/2015. 4º Em face do depoimento supra e após a reapreciação da prova gravada por V. Exmas. Venerandos Desembargadores, que para o efeito se requer, deverá ser alterada a decisão sobre a matéria de fato e, nos termos do disposto no art. 662º nº 1 do CPC, serem julgados como provados os seguintes factos:

1º O decreto formal de ereção da BB foi precedido de contactos formais por parte do Bispo de ... e bem assim por parte do seu Fundador Padre II, constando de troca de correspondência enviada ao Bispo AA no sentido de que o propósito e os fins a prosseguir por parte das irmãs era de trabalho apostólico, nas paróquias e em várias outras actividades assistenciais em cooperação com a outra instituição religiosa em que o Fundador se integrava.

2º A intenção das senhoras que pretendiam integrar a BB era a formação de uma congregação religiosa, vivendo ao serviço da igreja em comunidade religiosa, com despojo da vida material e entrega ao serviço religioso de oração e de assistência aos pobres.

3º As senhoras que passaram a integrar a BB viveram sempre em comunidade religiosa, denominavam-se como irmãs e passavam a ter um nome religioso.

4º A intenção e propósito das irmãs da BB era de nem sequer terem bens, e de viverem completamente despojadas, dedicadas a Deus e de serem pessoas que fazem o bem ao seu próximo e que usem os bens unicamente para essa finalidade.

5º A actividade das irmãs da BB, nomeadamente na angariação de fundos junto de paróquias nos Estados Unidos da América e nas práticas religiosas junto das paróquias com quem colaboravam, foi sempre feita ao abrigo das orientações e por recomendação do Bispo AA que confirmava junto dessas outras instituições da Igreja que as irmãs actuavam no âmbito daquela Igreja Diocesana.

6º O serviço de evangelização das irmãs da BB era feita no dia a dia, tanto numa dimensão espiritual de oração, de estilo de vida e de colaboração com as paróquias e com outros Institutos Religiosos, como numa dimensão caritativa e de acção junto dos pobres.

7º Todas as eleições das Superioras da BB eram e foram sempre presididas por representante do Bispo AA e após essa eleição a Superiora marcava audiência com o Bispo para presencialmente fazer juramento de fidelidade e para ser por ele confirmada a eleição.

8º Todas as alienações de bens da BB, até à outorga de Procuração da Superiora Irmã JJ ao seu sobrinho FF, eram e foram precedidas de autorização para o efeito, que era pedida pela respectiva superiora ao Bispo AA, o qual depois emitia credencial autorizando a prática desse acto a fim de possibilitar a outorga das respectivas Escrituras Públicas.

9º A credencial que subjaz à formalização da Escritura Pública de constituição da Fundação, foi emitida na sequência do envio por Fax da respectiva minuta pelo Dr. FF, com grandes insistências e pressas, tendo o então Bispo AA, D. EE, anuído ao pedido mediante a garantia dada pela Irmã Superiora de que a Fundação iria prosseguir os mesmos fins da BB e fruto da longa relação de confiança estabelecida entre aquele e a irmã JJ que se encontrava à frente da BB desde 1991.

10º A ser como se espera, alterada a decisão de fato através da reapreciação da prova gravada de modo a dar como provados os fatos acima enunciados, é por demais evidente que deverá ser, em consequência, revogada a decisão que julgou a ação improcedente.

11º Mas ainda que assim não seja decidido quanto à matéria de fato, sempre deverá ser reapreciada a questão da natureza canónica-jurídica da BB e suas consequências no que toca ao pedido de declaração de nulidade do ato de constituição da R. Fundação, julgando-se a ação procedente, porquanto mesmo a ter em consideração apenas os fatos já dados como provados, impõe-se ser proferida decisão no sentido de reconhecer que a BB se caracteriza como uma Associação Pública de Fiéis.

12º Ao contrário do decidido, a BB reveste-se da natureza de Associação Pública de Fiéis e a sua tutela, a Diocese AA, sempre considerou e sempre se relacionou com a mesma e com as suas Superioras, como se tratando de uma Associação Pública de Fieis, exercendo sobre a mesma a sua autoridade.

13º A BB foi erecta canonicamente por Decreto de 02/03/1959 emitido pelo Bispo Dom DD, tendo sido posteriormente feita comunicação de participação de erecção ao Governador Civil de ... e registada na Secretaria do Governo Civil de ... sob o nº 181 em 06/03/1959.

14º E foi por a autoridade eclesiástica reconhecer que os fins a prosseguir pelas fiéis que se pretendiam associar eram os mesmos prosseguidos pela Igreja Católica, que veio a mesma a erigi-las por decreto bispal como associação de fiéis.

15º A dependência da BB à Diocese ..., fez sempre parte da vivência de ambas, como ilustra o relatório da visita canónica feita em 31/10/2000 exclusiva das associações públicas de fiéis.

16º De onde resulta que a BB sempre foi sujeita ao governo e autoridade eclesiástica do ordinário do lugar (Bispo AA) que era quanto a ela exercido ora directamente pelo Bispo, ora indirectamente pelo capelão ou assistente por ele nomeado.

17º Indo um pouco mais além e apreciando o outro critério distintivo das Associações Públicas ou Privadas de Fieis – o dos fins que prossegue – há desde logo que atentar nos próprios Estatutos da BB.

18º Com efeito e como decorre dos seus Estatutos (art.º 1º) as “«Escravas do LL» é o nome de família das Senhoras que, por sua livre vontade, quiseram viver em comunidade e dar-se totalmente a Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa dos pobres, em todas as obras de Caridade.”

19º A BB é assim uma comunidade religiosa, cujo fim “é, em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e Normas da Igreja; e em segundo lugar, a evangelização dos pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia.”

20º Foi no reconhecimento desses fins religiosos e da sua “grande utilidade para as almas” que, em 02/03/1959, o Bispo ... decretou a erecção da BB, esperando “confiadamente que o Sagrado Coração de Jesus e o Coração Imaculado de Maria, cujas intenções de Misericórdia as Escravas prometem fazer suas, tomem sob a Sua protecção e amparo esta BB e a façam crescer e desenvolver-se no espírito da Mensagem de Fátima.”

21º Ainda a este respeito, note-se que as Irmãs que faziam parte da BB, tinham e têm Capela nas suas casas, para o exercício do culto religioso, da oração, penitência e celebração eucarística, bem como e essencialmente mantinham nessas capelas o Santíssimo Sacramento.

22º Tendo sido essa actividade religiosa proclamada e depois vivenciada pelas Irmãs «Escravas» ao longo dos tempos, sempre na submissão e prossecução dos fins da Igreja, está encontrado o elemento distintivo dos fins religiosos que caracteriza a BB como associação pública de fiéis.

23º Aliás, até mesmo a “prática das Obras de Misericórdia” que seria o meio de, nos termos dos seus Estatutos, a BB atingir a finalidade da “evangelização dos pobres” é algo que está indissociavelmente ligado aos fins prosseguidos pela Igreja no sentido mais amplo, pois inscreve-se na matriz que é a essência da Doutrina Social da Igreja.

24º Mas para além disso e agora no que toca a um outro elemento distintivo que é o da autonomia, também releva a vivência das Irmãs que integravam e integram a Associação, bem como o modo como sempre se consideraram e como se relacionaram com a Autoridade Eclesiásticas no reconhecimento da autoridade e direcção do Bispo AA e no cumprimento das normas de Direito Canónico aplicáveis às Associações Públicas de Fieis.

25º Tendo ao longo de toda a sua vida cumprido na íntegra todos os trâmites canónicos previstos para as Associações Públicas de Fieis, com vista à regularidade de eleição dos seus membros representativos, com excepção da última eleição.

26º As circunstâncias de a BB ter sido erecta canonicamente e de prosseguir fins religiosos, proclamados nos seus Estatutos e vividos pelas irmãs que faziam e fazem parte dessa comunidade religiosa em obediência aos princípios evangélicos de castidade, pobreza e obediência à Igreja, são os elementos indissociáveis qualificativos da BB como associação pública de fiéis, tal como definido pelas normas do Direito Canónico.

27º Quanto à questão da génese, o que releva não é que a Associação tenha partido da iniciativa dos Fieis, pois a sua própria natureza de Associação leva a que sejam os próprios Fieis quem tenham a iniciativa de criar a Associação, não se vislumbrando como é que a Autoridade Eclesiástica decretaria a criação de uma Associação de Fieis sem que estes se propusessem associar-se.

28º No âmbito normativo do actual CDC não é a circunstância de a criação de determinada associação de fiéis ter partido da iniciativa dos fiéis que deverá levar à consideração que a mesma tem natureza privada.

29º O critério distintivo entre associação pública e privada de fiéis, assenta e deverá atender por isso às circunstâncias concretas pelas quais foram constituídas associações de fiéis.

30º Quanto a isso, aquilo que o Cân 301 do CDC, dispõe no seu § 3 é que as associações de fiéis que sejam erectas pela competente autoridade eclesiástica se designam como associações públicas.

31º E é ainda quanto a este critério distintivo que releva a circunstância de, conforme alegado supra, o fundador da BB ter sido um religioso (Padre) e não as associadas por si próprias.

32º É que, pretendendo as mesmas associarem-se, não o fizeram por convénio privado, tendo antes apresentado essa sua pretensão à autoridade eclesiástica; e para isso foi necessária a intervenção de um religioso que veio a pedir à autoridade eclesiástica a erecção da dita associação de fiéis; daí que o mesmo tenha sido considerado como fundador, assumindo as funções de capelão.

33º Tendo sido expresso como motivo da fundação, “Colaborar pelo seu humilde Ministério na renovação da face da terra em união com a Santa Igreja” (Vide o pedido de erecção subscrito pelo Padre fundador que ora se junta como doc. 1 e cuja junção se justifica pelo teor da decisão recorrida e que não foi possível juntar em momento anterior por se tratar de documento existente em arquivo muito antigo da Chancelaria da Diocese AA e que agora é que foi possível encontrar).

34º E foi por a autoridade eclesiástica reconhecer que os fins a prosseguir pelas fiéis que se pretendiam associar eram os mesmos prosseguidos pela Igreja Católica, que veio a mesma a erigi-las por decreto bispal como associação de fiéis.

35º A este respeito, importará referir também que a existência na Ordem Jurídica Canónica – e por força da referida Concordata também na ordem jurídica portuguesa – de Associações de Fieis com natureza Privada é uma novidade introduzida no actual Código de Direito Canónico de 1983, pois no âmbito do anterior todas as Associações de Fieis tinham natureza pública e estavam sujeitas ao respectivo regime.

36º Não tendo o atual CDC aplicação retroativa, a novidade da introdução da figura de associações privadas de fiéis com o regime de autonomia que lhes é caraterístico é insuscetível de aplicação às pessoas jurídicas canónicas existentes à data da sua entrada em vigor cujo regime de sujeição à autoridade eclesiástica era em tudo idêntico ao regime que no novo CDC veio a ser estabelecido (quase repetido) para as associações públicas.

37º Ainda que ao caso se pretendesse aplicar a diferenciação de regimes (Associações Públicas ou Privadas) no âmbito do actual Código de Direito Canónico, sempre se teria de reconhecer que, tendo sido erecta canonicamente pela Autoridade Eclesiástica e não erigida pelos Fieis com aprovação posterior, a BB é, e deverá ser, considerada na ordem jurídica canónica como uma Associação Pública de Fieis e jamais como uma Associação Privada de Fieis.

38º Tanto pela forma como a BB sempre exerceu o seu apostolado, como pelos moldes em que funcionava enquanto Pessoa Colectiva Canónico-Concordatária e se relacionava com a Autoridade Eclesiástica submetendo-se à sua direcção, como ainda pela forma como ela própria se considerava e relacionava com terceiros e praticava actos jurídicos sempre acompanhada de credenciais com poderes específicos para a prática desses actos, a sua natureza enquanto Associação de Fieis sempre foi e é, nos termos do Direito Canónico, uma Associação Pública de Fieis.

39º Enquanto Associação Pública de Fieis, a BB está sujeita à vigilância e à autoridade do Bispo AA, que, em circunstâncias especiais, poderá intervir na sua vida e organização interna, designando – como fez – comissário que em seu nome dirija temporariamente a Associação (Cfr. Cânones 305, 318 e 1276 do Código de Direito Canónico).

40º Sendo que a intervenção Bispal na vida e organização interna da BB foi feita com base em motivos graves e ponderosos para intervir, como fizeram com a emissão dos Decretos de 15/07/2008 e de 29/07/2008 prorrogados em 13/07/2009.

41º E mesmo que se quisesse discutir os fundamentos para a intervenção do Bispo AA na vida e organização interna da BB designando – como fez – comissário que em seu nome dirija temporariamente a Associação, do ora exposto nas alegações supra e dos documentos dos autos resulta claro que essa intervenção não só foi legítima como é fundamentada e necessária.

42º Fica assim demonstrado substancialmente que a BB se reveste da natureza de Associação Pública de Fiéis e sempre esteve – como está – sujeita à Direcção e Autoridade do Bispo AA.

43º Com a mencionada afectação dos bens eclesiásticos à Fundação ora recorrida houve a transferência praticamente de todo o património da BB, a qual transmissão, de acordo com a legislação canónica, para ser válida, tinha de ser sujeita a audição e parecer vinculativo do Conselho para os Assuntos Económicos e do Colégio dos Consultores.

44º A R. FUNDAÇÃO não tem existência canónica, constituindo-se antes como entidade civil que não prossegue os mesmos fins religiosos da A. BB.

45º A criação daquela FUNDAÇÂO, ora R., por acto institutivo outorgado pelo FF em representação da BB, é nula por desse acto resultar uma afectação de bens eclesiásticos a uma entidade de natureza civil que não prossegue fins religiosos, em violação das normas do direito canónico pelas quais se regem os Institutos Religiosos como é o caso da A. BB.

46º  Sendo esses bens bens eclesiásticos, a sua alienação, transmissão, oneração ou afectação para os vários fins, que não os religiosos, carecem de autorização da entidade competente, no caso o Bispo AA, de acordo com os cânones 1277º e 1292º - sendo obrigatória a audição e parecer vinculativo do Conselho para os Assuntos Económicos e do Colégio dos Consultores - bem como nos termos do artigo 47º das citadas Normas Gerais das Associações de Fiéis e Decreto da Conferência Episcopal Portuguesa de 7 de Maio de 2002, que decreta especificamente os limites de competência para autorização de alienação, ou seja: “Requer-se licença do Ordinário do lugar, ouvido o Conselho para os Assuntos Económicos, para alienar bens do património estável de valor compreendido entre €75.000.00 e € 250.000.00”.

47º Acontece, porém, que a credencial emitida pelo Bispo titular de então da Diocese AA, exibida e arquivada na referida escritura pública, não foi precedida da audição e parecer vinculativo do Conselho para os Assuntos Económicos e do Colégio dos Consultores, com vista a validar a outorga da escritura, pela procuração conferida em 19/10/2005, com afectação de bens eclesiásticos a uma entidade civil.

48º Consequentemente, a nulidade da credencial fere de nulidade ou ineficácia os actos subsequentes praticados com base nela, pelo que se encontra ferida também de nulidade a procuração conferida em 19/10/2005.

49º Bem como a mencionada escritura de constituição da Fundação ora R., que é nula, porque revestindo a BB, a natureza de Associação Pública de Fieis, aquela transmissão para ser válida, carecia de autorização da entidade competente, sendo obrigatória a audição e parecer vinculativo do Conselho para os Assuntos Económicos e do Colégio dos Consultores.

50º A constituição da Fundação e subsequente procuração, escritura publica ora colocada em crise e registos efectuados, viola como já foi referido, os cânones 1277º, 1292º, artº 47º das Normas Gerais das Associações de Fieis e o Decreto da Conferencia Episcopal Portuguesa. 46º Para além disso, a constituição daquela FUNDAÇÃO acarreta um prejuízo irreparável para a entidade instituidora, pois ficou despida de todo o seu património (que é património eclesiástico) com a sua afectação à dita FUNDAÇÃO.

51º E configura uma verdadeira supressão da entidade instituidora, ou seja, da ora A. BB, quando a supressão de Institutos Religiosos é da competência exclusiva da Sé Apostólica, de acordo com o cânone 584 do Código do Direito Canónico.

52º Quando muito poderia ter sido instituída uma FUNDAÇÃO PIA, não autónoma e erecta canonicamente, mantendo-se sob a tutela da autoridade eclesiástica que a erigisse, mas jamais uma Fundação de Solidariedade Social com entidade meramente civil.

53º Ao julgar a ação improcedente, a Mma Senhora Juíz a quo violou e fez uma errada interpretação e aplicação das normas ínsitas nos Cânones 301, 305,  315, 317, 318, 319, 323, 325, 584, 1257, 1276, 1277, 1292 e 1301 do CDC, artº 47º das Normas Gerais das Associações de Fieis e o Decreto da Conferencia Episcopal Portuguesa”. Concluem pela procedência do recurso e requerem a reforma da decisão recorrida, alterando-se a decisão sobre a matéria de facto conforme concluído supra, assim como a revogação da decisão recorrida e condenação da R no pedido”.

A R contra-alegou.

Na 1ª instância, foram considerados provados os seguintes factos:

1 - A BB foi ereta canonicamente por Decreto de 2 de março de 1959, emitido pelo bispo ..., Dom DD, tendo sido posteriormente feita comunicação de participação de ereção ao Governador Civil de ... e registada na Secretaria do Governo Civil de ... sob o n° 181, a 6 de março de 1959.

2 – A 8 de março de 1959, o Bispo ... comunicou à Superiora da BB o Registo da BB na secretaria do Governo Civil de ....

3 - Dos Estatutos da BB consta, designadamente:

“Do nome

Art. 1 – “Escravas do LL” é o nome de família das Senhoras quem por sua livre vontade, quiseram viver em comunidade e dar-se totalmente a Nosso Senhor Jesus Cristo na pessoa dos pobres, em todas as obras de caridade.

Dos fiéis

Art. 2° - O fim desta BB é, em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e normas da Igreja, em segundo lugar, a evangelização dos Pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia.

Da dedicação

Art. 3° - Esta BB será consagrada aos Sagrados Corações de Jesus e Maria e propõe-se desagravá-los pela oração, penitência e caridade.

Da superiora

Art. 15° - A BB deve ter uma Superiora eleita por três anos e por todas as associadas já com votos.

Art. 17° - Depois de eleita, a superiora deve escolher, entre as associadas já com votos, duas ou três que sejam suas auxiliares na direcção das Casas que tiverem à sua conta”.

4- No Decreto de 2 de março de 1959, pode ler-se o seguinte: "Tendo-Nos sido pedida a erecção canónica da «BB», depois de termos examinado atentamente os Estatutos que nos foram presentes e julgando que a mesma BB, se for fiel, como esperamos, ao espírito que presidiu à sua organização e fins que se propõe, será de grande utilidade para as almas. Havemos por bem:

1° - Erigir canonicamente em Pessoa Moral, segundo as normas do Cano 100 do Código de Direito Canónico, a BB.

2° - Aprovar à experiência os seus Estatutos (...)

Esperamos confiadamente que o Sagrado Coração de Jesus e o Coração Imaculado de Maria cujas intenções de misericórdia as Escravas prometem fazer suas tomem sob a sua protecção e amparo esta BB e a façam crescer e desenvolver-se no espírito da Mensagem de Fátima".

5 – No que toca à ereção da "BB", por carta de 31 de agosto de 1957, dirigida ao Bispo ..., o Bispo titular da então Diocese de ... referiu, além do mais, "( ... ) que se trata de pessoas sérias e que desejam realmente entregar-se ao serviço de Deus e das almas" - fls. 37

6 – A 21 de novembro de 1957, o Padre MM, Presbítero na Catedral de ... desde 11 de junho de 1936, enviou ao Bispo ... um documento no qual consta, designadamente, ser ele o fundador das Escravas do LL, indicando como motivo da fundação o “colaborar pelo meu humilde Ministério na renovação da face da terra em união com a Santa Igreja".

7 – A 19 de dezembro de 1959, sob a presidência do Monsenhor NN, em representação de Dom DD, então Bispo da Diocese AA, procedeu-se à eleição da Superiora das Irmãs do Divino Coração de Jesus, tendo sido eleita a irmã OO.

8 – A 10 de junho de 1981, o Vigário Geral da Diocese ... confirmou a eleição da Irmã OO para o cargo de Superiora das Irmãs do Divino Coração de Jesus.

9 – A 16 de junho de 1981, a Irmã OO prestou juramento de fidelidade à Santa Igreja Católica.

10 – A 22 de abril de 1984, procedeu-se à eleição da Superiora das Irmãs do Divino Coração de Jesus, tendo presidido ao ato o Padre MM, em religião Frei José da Imaculada e foi eleita a irmã OO. Esta eleição foi confirmada pelo Prelado ..., a 5 de maio de 1984.

11 - Na ata lavrada a 22 de junho de 1990 da reunião das Irmãs Escravas do LL para procederem à eleição da superiora, consta, designadamente, que: "A fundadora da BB, Irmã OO, superiora da comunidade por eleição unânime de mandatos sucessivos (...) partiu para a eternidade a 27 de Abril (...)". Presidiu ao ato da eleição o Padre MM, tendo sido eleita a Irmã GG.

12 – A 4 de julho de 1990, o Bispo AA confirmou a eleição da Irmã GG para o cargo de Superiora.

13 – A 30 de junho de 1996, procedeu-se à eleição da Superiora das Irmãs do Divino Coração de Jesus, tendo presidido ao ato o Padre MM e foi eleita a irmã GG. Esta eleição foi confirmada pelo Prelado da Diocese AA, a 6 de junho de 1996.

14 – A 12 de fevereiro de 1992, o Padre PP, Vigário Geral para a Diocese AA, na sequência do solicitado pela superiora da BB, visando obter isenção do pagamento da Contribuição Autárquica para um prédio sito em ..., emitiu a Declaração na qual fez constar que a BB é um instituto religioso da Igreja Católica, que goza de personalidade jurídica no foro canónico e civil, tendo como finalidade o serviço da Igreja em ordem ao culto, estando abrangido pelo estabelecido na al c) do art. 50.° do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo DL n.º 215/89, de 01-07.

15 - A 17 de janeiro de 1997, a Superiora da BB solicitou ao Chanceler da Cúria Diocesana que emitisse uma credencial para efeitos de doação de uma casa com ermida no sítio de ..., à Fábrica da Igreja Paroquial. Esta doação foi autorizada pelo Bispo.

16 – A 11 de junho de 2005, procedeu-se à eleição da Superiora das Irmãs do Divino Coração de Jesus, tendo presidido ao ato o Rev. Padre Frei QQ (em substituição do Ver. P. Frei II) e foi eleita a irmã GG.

 17 - GG, em religião irmã GG, exerceu funções de Superiora da BB, pelo menos desde 1991, tendo a sua última eleição sido confirmada pelo Bispo AA a 11 de junho de 2005.

18 – A 18 de outubro de 2005, Dom EE, Bispo da Diocese AA declarou, inter alia, que a Associação de Fiéis, ou BB com o NIPC ..., com sede no lugar de Aljustrel, goza de personalidade jurídica no foro canónico e civil e é representada em juízo e fora dele, em todos os assuntos referentes à mesma Associação, segundo as normas do direito, pela sua Superiora Geral, GG, em religião, Irmã GG, nomeadamente (...). Praticar os actos necessários à criação de uma fundação de natureza social que garanta, no futuro a permanência do espírito que presidiu à organização e fins daquela BB, bem como assegurar a continuidade da sua acção social, afectando património para o efeito (...).

19 – A 19 de outubro de 2005, no Cartório Notarial de ..., GG, na qualidade de Superiora Geral da BB, constituiu procurador da Congregação que representa o seu sobrinho FF, conferindo-lhe poderes para, em nome da BB, praticar, além do mais, todos os atos destinados à criação de uma fundação de natureza social que garanta no futuro a permanência do espírito que presidiu à organização e fins da mesma Congregação, bem como assegurar a continuidade da sua ação social, afetando património para o efeito, administrar, adquirir e alienar bens.

20 - A 22 de junho de 2006, FF, na qualidade de procurador, em nome e em representação da "BB", outorgou escritura pública em que constituiu uma fundação de solidariedade social com a denominação "Fundação CC".

21 - Na mesma escritura, FF, em nome da sua representada, declarou transmitir à Fundação CC e destinar-lhe como património um conjunto de bens móveis e imóveis, propriedade da "BB", a título gratuito, em plena propriedade, no valor global de €285.588,81, designadamente:

a) O prédio urbano, composto por casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, sito a ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia de ... e registada a aquisição, por usucapião, a favor de BB, pela inscrição 0-1. Através de Ap. 1128 de 11-03-2009 11:18:56, ficou registada a aquisição, por entrada, a título gratuito, para realização de património para constituição de fundação, a favor da Fundação CC.

b) O prédio misto, composto por casa térrea de habitação, dependência e logradouro, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 445 da freguesia de ... e na matriz rústica sob os artigos 11095 e 11097, e registada a aquisição, por herança, a favor de BB, pela inscrição 0-3. Através de Ap. 1128 de 11-03-2009 11:18:56 UTC, ficou registada a aquisição, por entrada, a título gratuito, para realização de património para constituição de fundação, a favor da Fundação CC.

c) O prédio urbano composto por casa de rés-do-chão e quintal, sito na Rua..., descrito na la Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 2222 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 1413 da freguesia de ..., e registada a aquisição, por sucessão testamentária, a favor de BB, pela inscrição 0- Ap. 55 de 12-01-2006. Através de Ap. 1154 de 13-02-2009 11:12:02 UTC, ficou registada a aquisição, por transferência de património em constituição de fundação, a favor da Fundação CC.

d) O prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão e quintal, sito à ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 381 da freguesia de ... e registada a aquisição, por sucessão testamentária, a favor de BB, pela inscrição 0-1. Através de Ap. 4 de 27-10-2006, ficou registada a aquisição, por transferência de património em constituição de fundação, a favor da Fundação CC.

e) O prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão, sito à ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 383 da freguesia de ... e registada a aquisição, por sucessão testamentária, a favor de BB, pela inscrição 0-3. Através de Ap. 4 de 27 -10- 2006, ficou registada a aquisição, por transferência de património em constituição de fundação, a favor da Fundação BB.

f) O prédio misto composto por uma casa de habitação com rés-do-chão, 1° andar, sótão, dependência e de terra de cultura, sito à ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1471 e na matriz predial rústica sob o artigo 7922 da freguesia de ... e registada a aquisição por sucessão testamentária a favor de BB, pela inscrição 0-1. Através de Ap. 4 de 27-10-2006, ficou registada a aquisição, por transferência de património em constituição de fundação, a favor da Fundação CC.

g) O prédio rústico composto por terra de cultura, sito na ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ... e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 1954 da freguesia de ... e registada a aquisição, por sucessão testamentária, a favor de BB, pela inscrição 0-5. Através de Ap. 4 de 27¬10-2006, ficou registada a aquisição, por transferência de património em constituição de fundação, a favor da Fundação CC.

h) O prédio rústico composto por terra de cultura, sito à ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ... e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 7042 da freguesia de ... e registada a aquisição, por sucessão testamentária, a favor de BB, pela inscrição 0-1. Através de Ap. 4 de 27-10-2006, ficou registada a aquisição, por transferência de património em constituição de fundação, a favor da Fundação CC.

i) O prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão, 1° andar e quintal, sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 111 da freguesia de Matriz e registada a aquisição a favor de BB, pela inscrição 0-2. Através de Ap. 2 de 04-09-2006, ficou registada a aquisição, por transferência de património na criação de fundação, a favor da Fundação CC.

j) O prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão e pátio, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 371 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 442 da freguesia de Conceição e registada a aquisição a favor de BB, pela inscrição 0-2. Através de Ap. 2 de 04-09-2006, ficou registada a aquisição, por transmissão de património, a favor da Fundação CC.

1) O prédio misto composto por casa de habitação com loja térrea, 1° andar e dependência e de terra de lavradio, sito em ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 7 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 150 e na matriz predial rústica sob o artigo 322 da freguesia de ... e registada a aquisição a favor de BB, pela inscrição 0-4. Através de Ap. 2 de 04-09-2006, ficou registada a aquisição, por transmissão de património na criação de fundação, a favor da Fundação CC.

m) todos os bens móveis que constituem o recheio dos identificados mencionados prédios urbanos e mistos, designadamente mobiliário, equipamento e material escolar e didático de diversa natureza no valor atribuído global de €50.000,00;

n) a quantia de €150.000,00.

22- Dos Estatutos da Fundação CC,

designadamente:

“Artigo l°

    1- A Fundação CC é uma fundação de solidariedade social, instituída pela BB para prosseguir a acção social realizada por esta congregação e promover o desenvolvimento e a diversificação das suas actividades junto das comunidades locais.

Artigo 2°

     1- A Fundação prossegue, em ordem à realização dos ideais sociais de solidariedade e de justiça os seguintes fins:

     a) Apoio a crianças, jovens e famílias necessitadas e à integração social e comunitária;

(...)

d) promoção da edução e da formação profissional, nomeadamente nas áreas pré-escolar e escolar e nas actividades de tempos livres.

(...)

2-Consideram-se fins principais da Fundação os prosseguidos no âmbito da segurança social.

Artigo 15°

     1-O Conselho de Administração é constituído por 3 membros, sendo um presidente e dois vogais.

23 - Foram designados como primeiros membros dos órgãos da Fundação, nomeadamente: Para presidente - FF; Vogais: - RR e SS. Para Conselho Fiscal: ¬Presidente GG e Vogais ( ... )”.

24 - A 15 de julho de 2008, o Bispo de Diocese AA, TT, ao abrigo do cân. 318 §l e do art. 23.° das Normas Gerais das Associações de Fiéis da Conferência Episcopal Portuguesa, designou o Padre UU como comissário e o Dr. VV como comissário adjunto para representarem a BB para a instauração de diversas ações judiciais, designadamente a presente, designação esta que foi confirmada e prorrogada a 29 de julho de 2008 e a 13 de julho de 2009.

25 - As casas das irmãs da BB têm capela para uso exclusivo das residentes - irmãs e estudantes internas.

26 - Desde a sua constituição, nas casas das irmãs da BB funcionam escolas onde as irmãs se dedicavam ao ensino oficial infantil e secundário. Para além da lecionação curricular, as irmãs patrocinavam ainda costura e outras atividades extracurriculares, assim como apoiavam os estudantes carenciados.

27 - As contas bancárias da BB eram geridas pelas irmãs, sem necessidade de autorização da Diocese.

28 - Por despacho de 9 de novembro de 2011 do Ministério de Solidariedade e da Segurança Social, foi a CC reconhecida como instituição particular de solidariedade social e o respetivo registo foi lavrado a 17 de novembro de 2011, pela inscrição n° 9/2011, a fls. 33 v., 34 e 34 v. do Livro n° 7 das fundações de Solidariedade Social. - fls. 401

Com interesse para a decisão da causa não se provaram os restantes factos alegados pelas partes.

Quanto à questão de se saber se os factos cujo aditamento se pretende são pertinentes para a decisão e se estão demonstrados, o Tribunal da Relação de Évora considerou que “a matéria em causa, ou já tem expressão na matéria fixada (o ponto 1.º nos factos 5 e 6; pontos 2.º, 3.º e 4.º nos factos 3 e 4), ou tem carácter conclusivo (pontos 5.º e 6.º), ou são irrelevantes (pontos 7.º, 8.º e 9.º), por não se descortinar o seu interesse para a decisão e nem a recorrente o explica. Na verdade, ainda que todos eles fossem considerados provados, não seria afastado o grande argumento da sentença recorrida relativo à “prossecução de outros fins que não estão reservados à autoridade eclesiástica”, que “a prova referida para a alteração pedida é apresentada de forma “generalista” (“prova vista no seu conjunto“), o que não é idóneo para o cumprimento do ónus da impugnação” que “o único depoimento transcrito sempre seria insuficiente para a alteração, já que, no fundo, seria uma interpretação, também ela conclusiva, da realidade”.

No que toca à questão da natureza pública ou privada da BB, o Tribunal da Relação de Évora, na senda do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1de março de 2016[1], discordou “da sentença, pois, no nosso entender, a A. “BB…” tem natureza pública e não privada, uma vez que foi criada antes de 1983, altura em que ainda não era sequer reconhecido o papel do laicado, pois só com o Código de Direito Canónico de 1983 foi criada a figura das Associações de Fiéis com natureza privada (e aí – só aí - a distinção passou a vigorar não tanto por causa do ato de criação, mas sobretudo pelo regime da intervenção da autoridade eclesiástica e pelo regime da sua gestão patrimonial). Se a Associação em causa nasceu numa altura em que a legislação ainda não previa expressamente as associações privadas de fiéis (o que veio a acontecer apenas em 1983, na senda do Concílio Vaticano II, em que se passou a valorizar - de entre outras importantes inovações introduzidas no Direito e na Doutrina Católica - o papel do laicado) temos de concluir que nasceu como associação pública e assim se manteve. E, na sua génese, esteve - como não podia deixar de ser – a autoridade do bispo ..., ainda que por recomendação, o que não retira importância à sua intervenção. Ou seja, no nosso entender, todas as Associações de Fiéis criadas antes de 1983 têm natureza pública, regendo-se pelo direito canónico. Ora, a A “BB…” foi canonicamente erecta na vigência do anterior CDC e, não tendo sido alterada a sua natureza, como decorre dos seus Estatutos e também da sua actuação, conserva essa natureza, estando sujeita à autoridade, direcção e controle da autoridade eclesiástica. As circunstâncias de ter sido erecta canonicamente e de prosseguir fins religiosos, proclamados nos seus Estatutos e vividos pelas irmãs que faziam e fazem parte dessa comunidade religiosa, em obediência aos princípios evangélicos de castidade, pobreza e obediência à Igreja, são elementos caracterizadores como Associação Pública de Fiéis. Pelo exposto, não subscrevemos o entendimento partilhado na sentença recorrida, que reporta a análise da natureza da Associação a um quadro normativo que não existia à data em que a mesma foi criada”.

Relativamente à questão de se saber se há autoridade de caso julgado quanto a tal natureza, o Tribunal da Relação de Évora considerou que “o entendimento supra referido, de que a BB é uma associação canonicamente erecta pela Autoridade Eclesiástica competente, constituída por iniciativa de fiéis, com aprovação pela entidade eclesiástica competente no seio da Igreja Católica, prosseguindo finalidades de ordem religiosa, segundo as normas de direito canónico, e não pode ser considerada Associação Privada de Fiéis, mas Associação Pública de Fiéis, já foi expresso no acima citado Acórdão do STJ de 01.03.2016 (processo nº 2153/06.5TBCBR-C.C1.S1), o que nos leva à questão da existência de uma situação de autoridade de caso julgado, que pensamos aqui verificar-se e que, ainda que não se entendesse como supra referimos, sempre impediria o entendimento da sentença recorrida. A autoridade de caso julgado é aplicável quando, inexistindo identidade de partes, pedidos e causas de pedir, as relações de prejudicialidade entre objectos processuais impõem que o objecto da primeira decisão funcione como pressuposto indiscutível da nova decisão de mérito, a proferir na segunda causa, para impedir a contradição de julgados, constituindo assim a vinculação de um tribunal de uma acção posterior ao decidido numa acção anterior”, “se a decisão do STJ proferida no processo n.º 2153/06.5TBCBR-C.C1.S1 abrangeu tal questão, não pode voltar a ser discutida nestes autos. O sistema não pode admitir, sem limites, a discussão eterna de questões jurídicas”.

No que respeita à questão de se saber se se há caso julgado quanto à competência do tribunal na sequência do anterior Acórdão da Relação de Coimbra proferido nestes autos, o Tribunal da Relação de Évora levou em conta que “embora a natureza pública da associação pudesse ter reflexos na questão da competência internacional por referência ao Tribunal Eclesiástico (saber se, para apreciação do pedido de anulação da escritura pública que instituiu uma fundação de solidariedade social que denominou de "CC", que incidiu sobre vários imóveis é competente, em razão da nacionalidade, o Tribunal português ou o Tribunal Eclesiástico, por a querela dever ser apreciada e dirimida com aplicação do Código de Direito Canónico, por força da Concordata celebrada entre Portugal e a Santa Sé), neste processo já temos uma decisão transitada que considerou este tribunal competente para a causa. Note-se que o anterior Acórdão da Relação de Coimbra proferido nos autos apreciou expressa e concretamente a questão da competência internacional dos tribunais portugueses afirmando que se verifica “a competência dos tribunais comuns para apreciar e decidir a presente acção” e, em termos consequentes, remeteu o processo para a 1.ª instância para prosseguir, o que só é compatível com a competência do tribunal e esta decisão transitou em julgado, ficando arrumada definitivamente a questão da competência”.

Por último, quanto à questão de se saber se estão verificados os pressupostos aa declaração de nulidade dos atos peticionada/insuficiência da matéria de facto fixada, o Tribunal da Relação de Évora considerou que “Como factos constitutivos negativos relevantes para a procedência da acção e cuja prova incumbe às AA, temos os factos alegados nos artigos 53.º e 55.º da petição inicial: “não serem os actos precedidos dessa audição e parecer vinculativo”. Os mesmos não constam da matéria de facto.  Também se alega, como causa de violação do Direito Canónico, o facto de o acto em causa ter deixado a entidade instituidora sem qualquer património (art.º 62.º da petição inicial). O mesmo também não consta da matéria de facto. Cremos que a situação presente se traduz numa carência de ampliação da matéria de facto. Nos termos do artigo 712.º, n.º 4, 1.ª parte do CPC, pode a Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida em 1.ª instância, quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto, por se tratar, em qualquer dos casos, de matéria essencial a uma correcta apreciação e decisão do caso sub judice. Daí que se entenda haver fundamento para a anulação da decisão proferida na 1.ª instância e a determinação da repetição do julgamento, ainda que apenas na parte necessária ao apuramento da nova matéria, ao abrigo do art.º 712.º, n.º 4 do CPC. Procede, assim, parcialmente o recurso, anulando-se parcialmente o julgamento, e a sentença, nos termos do art.º 662.º, n.º 2, al. a) e c) do CPC, ordenando-se a repetição do julgamento para suprimento e apuramento dos elementos supra referidos. Ficam prejudicadas todas as demais questões levantadas no recurso das AA”.

Deste modo, o Tribunal da Relação de Évora julgou parcialmente procedente o recurso das AA, anulando-se a sentença e parcialmente o julgamento e, ao abrigo do art.º 712.º, n.º 4, do CPC, determinando: a) A ampliação da matéria de facto, com vista a apurar os factos alegados nos arts. 53º, 55º e 62º da petição incial; b) A repetição do julgamento, apenas na parte necessária ao apuramento da nova matéria, com a realização pelo tribunal a quo de todas as diligências que se lhe afigure necessárias para alcançar esse desiderato.

Não se conformando com o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, ao abrigo do n.º 1 do art. 671.°, ou, subsidiariamente, à luz do n.° 2, al a) (porquanto é invocada a violação do caso julgado: art. 629.°, n.° 2, al. a), do CPC) ou do n.º 2, al. b), do mesmo preceito (uma vez que, tendo decidido pela natureza pública da BB, decidiu em contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de fevereiro de 2011, transitado em julgado, em que se decidiu no sentido da natureza privada desta instituição), a R interpôs recurso de revista.

A R terminou as respetivas alegações com as seguintes CONCLUSÕES:


“antecedentes processuais
A) A sentença do Tribunal da Comarca de ... - considerando que a BB, como associação privada de fiéis, administra livremente os bens que possui, de acordo com os seus Estatutos - julgou não ter ocorrido qualquer invalidade, nem na credencial, nem na procuração, nem na instituição da FUNDAÇÃO, ora Recorrente, nem na afectação à mesma dos bens da BB, tendo por isso sido lícita e válida a constituição da FUNDAÇÃO, nos termos em que ocorreu, a qual prossegue fins de acção social também realizados pela BB, razão pela qual julgou improcedente a acção.
B) O acórdão ora recorrido, no que ora releva, decidiu, quanto às questões de direito em debate, da seguinte maneira:
Primeiro, no sentido de que a BB seria uma associação pública de fiéis, porquanto todas as associações de fiéis criadas antes de 1983 -ou seja, antes da entrada em vigor do novo C.D.C. - seriam associações públicas de fiéis;
Segundo, no sentido de que ocorreria uma autoridade de caso julgado quanto à caracterização da BB como associação pública de fiéis, por força do que já fora decidido no acórdão do S.T.J. de 01/03/2016, proferido no processo n.° 2153/06.5TBCBR-C.C1.S1 (disponível para consulta em www.dgsi.pt);
Terceiro, no sentido de que, embora a natureza pública da associação pudesse, em tese, ter reflexos na competência internacional do tribunal, a circunstância da Relação de Coimbra, no acórdão proferido nestes autos - transitado em julgado — ter decidido sobre a competência do tribunal deste processo para julgar a presente causa, "arrumava" definitivamente a questão, ficando estabelecida a sua competência;
Quarto, no sentido de que os autos deviam baixar à 1.a instância para ampliação da matéria de facto, uma vez que, mesmo sendo a BB uma associação pública de fiéis, haveria ainda de apurar outra factualidade.
C) O presente recurso de revista, fundado quer na violação da lei substantiva, quer numa errada aplicação da lei de processo, inscreve-se no âmbito do art. 671.°, n.° 1, do C.P.C., uma vez que o acórdão decide sobre alguns segmentos do mérito da causa; porém, entendendo-se que se está perante uma mera decisão interlocutória, ainda assim o recurso seria admissível nos termos do art. 671.°, n.° 2, do C.P.C., uma vez que houve violação de caso julgado e o acórdão recorrido está em contradição com outro, proferido pelo S.T.J., sobre a mesma questão fundamental de direito.
da natureza da BB
D) A questão da natureza da BB deve ser vista à luz do Código de Direito Canónico de 1983, sendo irrelevante que a congregação tenha sido criada ao abrigo do Código de Direito Canónico de 1917 (como justamente sublinham, nos pareceres atrás referidos, VIEIRA DE ANDRADE, BACELAR GOUVEIA, RUI ALARCÃO e JORGE MIRANDA). É, aliás, o que resulta do art. 12.°, n.° 2, do CC.
E) À luz dos Cânones 298, 299 e 301 do CDC de 1983, a natureza privada das associações de fiéis decorre de dois critérios fundamentais:
i) Por um lado, a iniciativa da sua constituição;
ii) Por outro lado, os fins prosseguidos, uma vez que, de acordo com o Cân. 301, § 1, só às associações públicas cabe ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou promover o culto público, ou prosseguir outros fins cuja função esteja reservada à autoridade eclesiástica.
F) Ora, in casu, a BB foi constituída por convénio privado, a partir de uma iniciativa das Senhoras que que se juntaram para esse fim, pelo que nenhuma dúvida se pode colocar quanto ao facto da BB ter resultado de uma iniciativa privada (cfr. facto provado n.° 3 e art. 1.° dos Estatutos da BB, onde se refere que "Escravas do LL é o nome de família das Senhoras que, por sua livre vontade, quiseram viver em comunidade e dar-se totalmente a Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa dos pobre, em todas as obras de caridade."). De resto, no decreto de reconhecimento, de 02/03/1959 (cfr. facto provado n.° 4), afasta-se inequivocamente a origem eclesiástica quando se refere "tendo-nos sido pedida a erecção", acrescentando ainda que se a BB "for fiel, como esperamos, ao espírito que presidiu à sua organização e fins que se propõe, será de grande utilidade", o que revela que não há sombra de iniciativa da autoridade eclesiástica. Não subsiste, assim, qualquer dúvida quanto ao processo de constituição da BB, no que diz respeito à iniciativa privada dessa constituição.
G) Por outro lado, os fins prosseguidos - a santificação individual e a evangelização
dos pobres pelo exemplo e a prática das obras de misericórdia (cfr. art. 2.° dos
Estatutos da BB) - inscrevem-se nos fins gerais previstos no Cân. 298
para todas as associações de fiéis, não se incluindo nos fins reservados às
associações públicas, nos termos do Cân. 301, § 1. Ademais, o art. 55.° das

Normas Gerais das Associações de Fiéis
refere expressamente que a
evangelização e a realização de obras de piedade e de caridade podem constituir
fins das associações privadas, só lhes estando vedados a promoção do culto
público e a transmissão da doutrina cristã em nome da Igreja, o que as irmãs nunca
fizeram, nem se provou que tivessem feito.

H) Relativamente ao ensino ministrado pelas irmãs da BB, ficou assente que se tratava de "escolas onde as irmãs se dedicavam ao ensino oficial infantil e secundário e, para além do ensino curricular, as irmãs ensinavam, ainda, costura e outras extra-curriculares e apoiavam os estudantes carenciados" (facto provado n.° 26), pelo que também é manifesto que à BB nunca coube ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja. Outrossim, as casas da BB têm capela para uso exclusivo das residentes - irmãs e estudantes internas (facto provado n.° 25). Mas isso obviamente não significa que lhes coubesse promover o culto público, que lhes estava vedado. Oratórios e capelas podem ter uma natureza privada, como acontecia nas instalações da BB e está expressamente previsto nos Cânones 1226 a 1229.
I) Em suma, os fins da BB - santificação individual e a evangelização dos pobres como exemplo e prática de obras de misericórdia - são consentâneos com os fins previstos no Cân. 298, sem prejuízo da sua natural raiz religiosa, uma vez que se trata de pessoas morais de direito canónico. Porém, o que releva é que esses fins não se inscrevem no âmbito da previsão do Cân. 301, § 1, o qual define os fins que são privativos e exclusivos das associações públicas: o ensino da doutrina cristã em nome da Igreja, a promoção do culto público ou a prossecução de outros fins reservados à autoridade eclesiástica, o que a BB nunca fez. As Irmãs da BB viveram sempre pobremente e abdicando do conforto de quaisquer bens materiais. Isso é verdade, mas nada tem a ver com a prossecução de fins reservados às associações públicas de fiéis.
J) Assim sendo, quer pela iniciativa da sua constituição, quer pelos fins prosseguidos, é incontornável que a BB é uma associação privada de fiéis, a quem cabe administrar livremente os bens que possui, nos termos do Cân. 325, § 1, sem prejuízo do direito da Autoridade Eclesiástica vigiar no sentido de que esses bens sejam utilizados para os fins da associação.
K) Pelo exposto, nenhuma censura merecia a sentença da 1 .a instância, particularmente quando, depois de ter declarado a natureza privada da BB, julgou improcedente a acção, declarando a inexistência de qualquer invalidade relativamente aos actos sobre os quais era pedido que fosse declarada a sua nulidade, outrossim declarando inválida a intromissão da autoridade eclesiástica na vida da BB, ao abrigo do Cân. 318, § 1, do C.D.C..
L) Finalmente, cumpre ainda arguir a inconstitucionalidade do entendimento
normativo dado ao Cân. 318, § 1, devidamente conjugado com os arts. 2.° e 11.°
da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, no sentido de que, em relação a
associações de fiéis, constituídas a partir da iniciativa dos associados, e que não
prossigam fins exclusivos das autoridades eclesiásticas, tais autoridades possam
designar comissários com funções de administração do património dessas associações, por violação da liberdade de associação, consagrada no art. 46.° da CRP.
dos demais vícios do acórdão recorrido
M) O argumento do acórdão recorrido de que a qualificação da BB como associação pública ou privada não se pode fazer à luz do C.D.C de 1983 - impondo-se qualificar a BB como associação pública, atendendo a que, no C.D.C, de 1917, nem haveria associações privadas - é insubsistente.
N) É o que resulta do art. 12.°, n.° 2, do C.C., que rege a aplicação das leis no tempo, onde se estabelece que, dispondo a lei directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas. Ora, o C.D.C, de 1983 quis precisamente abstrair-se do facto que deu origem às associações de fiéis, passando a qualificá-las como públicas ou privadas, em função da iniciativa da sua constituição e dos fins prosseguidos, não ressalvando nada do que constava do C.D.C, de 1917.
O) É, aliás, aquilo que se retira dos princípios enunciados no prefácio do Código, onde se explica o objectivo de dar à luz um C.D.C, iluminado pelos valores do Concílio Vaticano II, devendo ter-se presente, no que ora releva, sobretudo os Princípios 1.° e 6.°: "Na renovação do direito deve ser conservada a índole jurídica do novo Código que é exigida pela própria natureza social da Igreja."" (Princípio 1.°); "Por causa da igualdade fundamental de todos os fiéis e da diversidade de ofícios e de funções, baseada na própria ordem hierárquica da Igreja importa que se definam adequadamente e se tutelem os direitos das pessoas. Daqui resulta que o exercício do poder apareça mais claramente como serviço, se robusteça mais o seu uso, e se afastam os abusos" (Princípio 6.°).
P) Pelo exposto, o acórdão recorrido, ao considerar que a natureza da BB se deve avaliar em função do C.D.C, de 1917, interpretou erroneamente os Cânones 6, 298, 299, 312, 321 e 322 do CDC de 1983, por si só ou conjugados com o art. 12.°, n.° 2, do CC, quando, aplicando à situação dos autos o C.D.C, de 1983 e tendo em conta os regimes previstos naqueles Cânones, como devia ter feito, a BB é uma associação privada de fiéis, com o direito de administrar livremente os seus bens, nos termos do Cânone 325 do C.D.C..
Q) Acresce que, tendo o acórdão da Relação de Coimbra proferido neste autos, em 20.05.2014, já transitado em julgado, decidido que a qualificação da BB se deve fazer segundo os critérios do C.D.C, de 1983, e tendo determinado o apuramento dos factos necessários para, à luz desse Código, se poder fazer essa qualificação, o acórdão recorrido não o podia ter desconsiderado, o que fez, assim desrespeitando o caso julgado, com força obrigatória nestes autos, nos termos do art. 620.°, n.° 1 do CPC.
R) O entendimento normativo dado aos arts. 619.° e 620.° do CPC, no sentido de que, transitada em julgado, em determinado processo, a decisão sobre qual a lei aplicável no tempo ao caso dos autos, não está o tribunal obrigado a decidir de acordo com tal lei, seria inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica, ínsito ao Estado de Direito, tal como consagrado no art. 2.° da CRP.
S) Por outro lado, também o argumento do acórdão recorrido quanto a uma pretensa autoridade de caso julgado, no sentido da sua tese, não colhe. É que o acórdão do S.T.J. de 01/03/2016 decidiu sobre a incompetência dos tribunais comuns para julgar as questões relativas à representatividade da BB (atribuindo-a aos tribunais eclesiásticos), matéria que nestes autos está resolvida em sentido contrário, uma vez que se entendeu que as questões relativas à disposição patrimonial dos bens da BB e à sua representação para esse efeito devem ser dirimidas pelos tribunais comuns.
T) É verdade que, nesse aresto, na fundamentação, se referiu o pressuposto de que a BB seria uma associação pública de fiéis, mas isso foi efectuado em função de um recurso em que estava a ser tomada uma decisão acerca de um pressuposto processual relativo à competência do tribunal, não incidindo sobre a relação material controvertida, ou seja, sobre o mérito da causa. Depois, não há identidade de causa de pedir e de pedido entre ambas as acções. Acresce que, no acórdão do S.T.J. de 2016, o tema foi abordado em função da constituição da BB ter ocorrido em 1959, à luz do C.D.C, de 1917, sem ter em conta, como acontece nestes autos, a factualidade entretanto apurada quanto à iniciativa da constituição da BB e aos fins por ela prosseguidos, analisados à luz do C.D.C, de 1983, como foi determinado pelo acórdão da Relação de Coimbra de 20/05/2014. Em face disso, perante tão distintos contornos fácticos e de enquadramento jurídico, não pode sustentar-se que o acórdão do S.T.J. de 01/03/2016 constitui um pressuposto lógico que tenha obrigatoriamente de ser considerado para dirimir o conflito destes autos, razão pela qual não é invocável, no caso dos autos, a chamada autoridade do caso julgado, erroneamente convocada pelo acórdão recorrido, em termos que ofendem os regimes consagrados pelos arts. 619.°, 620.° e 621.°, todos do CPC.
U) O entendimento normativo de que o fundamento utilizado em determinada decisão judicial proferida sobre um pressuposto processual se pode impor com autoridade de caso julgado, num outro processo, sem identidade de causa de pedir e pedido, constitui a consagração de um regime de precedente ou de assento, o que é inconstitucional, por desrespeito ao princípio da separação de poderes, ínsito ao Estado de Direito, tal como consagrado no art. 2.° da CRP.
V) Por último, mesmo que se julgasse possível convocar a autoridade do caso julgado decorrente do Acórdão do STJ de 01.03.2016, então, nessa hipótese, e de acordo com o regime do art. 625.°, n.° 1 do CPC, deveria ter-se em conta a supremacia da autoridade de um caso julgado anterior, consubstanciado no já citado Acórdão do STJ de 22.02.2011, proc. n.° 332/09.2TBPDL.L1.S1: "Sendo estes os elementos relevantes, julga-se que deve ser reconhecida razão aos apelantes quando defendem a natureza privada da BB. Pois que a mesma prossegue fins que não estão reservados ã autoridade eclesiástica e, tendo sido erigida numa data em que o Código de Direito Canónico não fazia distinção entre associações públicas e privadas, a sua constituição resultou de uma iniciativa dos seus membros. Ou seja, se fosse constituída na vigência do Código de 1983, sê-lo-ia nos termos dos respectivos cânones 298 e S2T.
W) Pelo exposto, não se aplicando ao caso dos autos o CDC de 1917, nem ocorrendo a autoridade de caso julgado do acórdão do STJ de 01.03.2016, como erroneamente decidiu o acórdão recorrido, não deveria ter sido julgado procedente o recurso da sentença da 1 .a instância, a qual se deve manter na íntegra.
X) Neste contexto, não há que proceder à repetição do julgamento para proceder ao apuramento de qualquer nova matéria, uma vez que a factualidade dada como assente permite dirimir o diferendo dos autos.
Y) O Acórdão recorrido viola a lei substantiva, nos termos supra referidos na conclusão P). Por outro lado, o Acórdão recorrido desrespeita a lei processual, em matéria de caso julgado, nos termos supra referidos nas conclusões Q), S), T) e V).
Z) Entendendo-se que o presente recurso não se compreende no âmbito do art. 671.°, n.° 1 do CPC, sempre o mesmo seria admissível no quadro do seu n.° 2, uma vez que é invocada a violação do caso julgado (cfr. art. 629.°, n.° 2, al. a) do CPC). Por seu turno, também sempre seria admissível nos termos do art. 671.°, n.° 2, b) do CPC, uma vez que, tendo decidido pela natureza pública da BB, decidiu em contradição com o acórdão do STJ de 22.02.2011, igualmente transitado em julgado, supra referido no n.° 94, onde se consagrou a natureza privada da BB (protestando juntar-se, se necessário, certidão do trânsito em julgado de tal acórdão, requerendo-se, nesse caso, prazo de 10 dias para o efeito)”.

           Pediu a Recorrente a revogação do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora e a repristinação da sentença da Comarca de ....

As AA. responderam às alegações de revista.

Tanto as AA. como a R. juntaram pareceres jurídicos.

O Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso de revista interposto pela R. Considerou a relatora, no despacho de 13 de novembro de 2018, desde logo, que o acórdão recorrido não consubstancia uma decisão sobre o mérito ou o fundo da lide, não é uma decisão final, não põe termo ao processo, não absolve da instância a R., não condena nem absolve a R. Em causa estaria apenas uma decisão interlocutória (decisão judicial que, não apreciando o mérito da causa, é proferida antes da decisão final), não se aplicando o art. 671.º, n.º 1, do CPC. Depois, entendeu que não se verificavam, in casu, os pressupostos do art. 671.º, n.º 2, al. a), do CPC, não havendo violação do caso julgado por pretenso desrespeito do decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20 de maio de 2014, porquanto este, com base na insuficiência de factos provados para conhecer do mérito da causa em sede de despacho saneador, limitou-se a remeter os autos à primeira instância em vista do respetivo prosseguimento. Por último, ponderou que também não se preenchiam os requisitos do art. 671.º, n.º 2, al. b), do CPC, não se podendo falar de contradição entre o acórdão Tribunal da Relação de Évora ora recorrido, e também do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de março de 2016, de um lado e, de outro, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de fevereiro de 2011, porquanto este foi proferido no âmbito de um procedimento cautelar instaurado pelo Seminário Pio XII contra três pessoas singulares que também não são partes nos presentes autos. 

Não se conformando com a decisão, a R., ao abrigo do art. 652.º, n.º 3, do CPC, ex vi do art. 679.º, apresentou reclamação para a conferência do despacho que não admitiu o recurso de revista. Renovou também o pedido, constante de requerimento de 19 de novembro de 2018, de que o julgamento deste recurso se faça com intervenção do Pleno da Secções Civis.

              II - Questões a decidir

             Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões formuladas pelos Recorrentes, nos termos dos arts. 635.º, n.os 3-5, e 639.º, n.º 1, do CPC, as questões suscitadas nesta revista respeitam, desde logo, à (in)admissibilidade do recurso de revista ao abrigo  do n.º 1 do art. 671.º, do CPC, da al. a) (ofensa ou não do caso julgado, por pretenso desrespeito do decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20 de maio de 2014[2] quanto à necessidade de proceder à qualificação jurídica da BB de acordo com o Código de Direito Canónico de 1983) ou da al. b) (contradição ou não do acórdão do Tribunal da Relação de Évora com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de fevereiro de 2011[3]  quanto à qualificação da BB como associação pública ou privada de fiéis), do n.º 2 do mesmo preceito e, depois, à determinação da natureza pública ou privada da BB.

              Como questão prévia, surge a da (in)admissibilidade do recurso de revista interposto pela R.

             

              III – Fundamentação

1. Os factos

Relevam para a decisão a proferir os factos mencionados no Relatório.

2. O Direito

     Importa, antes da determinação da natureza jurídica, como associação de fiéis pública ou privada, decidir sobre a (in)admissibilidade do presente recurso de revista.

A) Art. 671.º, n.º 1, do CPC

           De acordo com este preceito, Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.”

No Acórdão ora recorrido, decidiu-se:

“… julgar parcialmente procedente o recurso das AA, anulando-se a sentença e parcialmente o julgamento e ao abrigo do art.º 712.º, n.º 4 do CPC, determinando:
a) A ampliação da matéria de facto, com vista a apurar os factos alegados nos arts. 53º, 55º e 62º da PI.
b) A repetição do julgamento, apenas na parte necessária ao apuramento da nova matéria, com a realização pelo tribunal a quo de todas as diligências que se lhe afigure necessárias para alcançar esse desiderato”.

Decidiram, pois, os Senhores Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, a ampliação da matéria de facto e a repetição do julgamento, apenas na parte necessária ao apuramento da nova matéria.

O acórdão recorrido não consubstancia uma decisão sobre o mérito ou fundo da lide, não é uma decisão final, não põe termo ao processo, não absolve da instância a R, não condena nem absolve a R. Em causa está antes uma decisão interlocutória, intermédia ou intercalar, de natureza meramente processual. Na verdade, as decisões finais suscetíveis de serem objeto do recurso de revista são aquelas que conheçam do mérito da causa e as que ponham termo ao processo por absolvição da instância. O acórdão do Tribunal da Relação de Évora não contém a resolução material (total ou parcial) do litígio, não julgou procedente o pedido ou alguns dos pedidos, assim como não julgou da (im)procedência de alguma exceção perentória. Também não pôs termo, total ou parcialmente, ao processo quanto à R ou quanto a todos ou algum dos pedidos[4].

Do acórdão do Tribunal da Relação de Évora resulta apenas a mera remessa do processo para a 1.ª instância, deixando pendente a apreciação do mérito da causa. Este acórdão limitou-se a anular a sentença e parcialmente o julgamento, determinando a ampliação da matéria de facto e a repetição do julgamento na parte necessária ao apuramento da nova matéria.

Acresce que deste tipo de decisões não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (art. 662.º, n.º 4, n.º 2, al. c))[5]

           Por isso, o recurso de revista em apreço não é admissível ao abrigo do n.º 1, do art. 671.º, do CPC.
B) Art. 671.º, n.º 2, do CPC

Por via de regra, não admitem recurso de revista os acórdãos do Tribunal da Relação que apreciem decisões interlocutórias da 1.ª instância que recaiam unicamente sobre a relação processual. Admite-se, porém, excecionalmente, o recurso de revista desses acórdãos nas situações previstas nas als. a) e b) do mesmo preceito.

    B1) Art. 671.º, n.º 2, al. a), do CPC

            “Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:
a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível”.

           Trata-se, pois, de acórdãos do Tribunal da Relação que apreciem decisões interlocutórias da 1.ª instância sobre questões de natureza processual.

            O n.º 1, do art. 629.º, do CPC, condiciona a admissibilidade do recurso ao valor da causa e à sucumbência. Enquanto o valor da causa deve ser superior à alçada do tribunal recorrido, a sucumbência é aferida pelo decaimento do recorrente, devendo ser superior a metade da alçada desse tribunal.

            Todavia, o n.º 2, do art. 629.º, consagra a admissibilidade do recurso “independentemente do valor da causa e da sucumbência” em várias situações que enuncia taxativamente, importando agora a ofensa de caso julgado, prevista na al. a).

            O recurso excecional, previsto na norma mencionada supra, por remissão para o art. 629.º, n.º 2, al. a), tem em vista apenas decisões sobre a relação processual e não já decisões sobre o mérito relativamente à mesma pretensão[6].

            O presente recurso foi recebido excecionalmente, ao abrigo da al. a), in fine, do n.º 2, do art. 629.º, do CPC[7].

            Por isso, a questão que se coloca é a de se saber se o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, a 20 de maio de 2014, vale ou não como autoridade de caso julgado na presente ação, se se verifica ou não ofensa do caso julgado, por pretenso desrespeito do decidido no mesmo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra[8] quanto à necessidade de proceder à qualificação jurídica – como associação pública ou privada - da BB de acordo com o Código de Direito Canónico de 1983.

            Importa, assim, saber se as decisões em processo civil vinculam os tribunais na ulterior adoção de decisão diferente. Partindo da distinção ente caso julgado absoluto e caso julgado relativo, João de Castro Mendes[9] afirma que a atribuição de força de caso julgado absoluto significa que determinada decisão é, em si mesma, caso julgado, enquanto a atribuição da força de caso julgado relativo significa que determinada decisão só vincula enquanto se relaciona com outra, enquanto seu fundamento.

           Entende-se que as decisões intermédias só têm relevância enquanto fundamento da conclusão e, por isso, raramente terão autoridade de caso julgado em processo futuros. A autoridade de caso julgado abrange quase só a decisão final[10].

            Segundo Manuel de Andrade[11], “O caso julgado só se destina a evitar uma contradição prática de decisões, e não já a sua colisão teórica ou lógica”. A contradição prática é a contradição no caso concreto e a colisão teórica não parece poder referir-se às decisões, mas antes aos fundamentos[12].

            Para efeitos de caso julgado, exige-se a identidade de situações; não basta a mera analogia. É irrelevante a simples repetição da ratio decidendi[13].

            O Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão de 20 de maio de 2014, proferido nos autos, anulou a decisão da 1ª instância, de 2 de setembro de 2013, que havia julgado a ação improcedente e absolvido a R do pedido. Baseou-se, para o efeito, na insuficiência de factos provados para conhecer do mérito da ação em sede de despacho saneador. Afirmando “a competência dos tribunais comuns para apreciar e decidir a presente ação”, remeteu os autos à primeira instância em vista do respetivo prosseguimento.

A decisão respeitante à qualificação da BB como associação pública ou privada de fiéis de acordo com o Código de Direito Canónico de 1983 é apenas uma decisão intermédia que serve de fundamento à decisão do Tribunal da Relação de Coimbra e, por isso, não se reveste nem da força e nem da autoridade de caso julgado.

De resto, não se trata de um acórdão da Relação que aprecie “decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual” (arts. 671.º, n.º 2, e 644.º, n.º 2, do CPC).

A relação processual existe entre sujeitos e incide sobre um objeto. Estabelece‑se entre cada uma das partes (o autor e o réu) e o tribunal. O CPC denomina a relação processual por instância.

A BB foi constituída em 1959, ao abrigo do Código de Direito Canónico de 1917.  Ora, a um mesmo facto concreto podem ser aplicáveis várias leis, conforme o ângulo sob o qual esse facto seja considerado, isto é, conforme a questão jurídica que se cure resolver.

Uma decisão sobre a lei competente para determinar a natureza jurídica de certa associação – como a vazada no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, referido supra, que considerou competente o Código de Direito Canónico de 1983 e o acórdão ora recorrido, que entendeu como competente o Código de Direito Canónico de 1917 -, além de não conhecer do mérito da causa, não pode também considerar-se como recaindo “unicamente sobre a relação processual”. Trata-se de um problema de definição do âmbito de aplicabilidade do Código de Direito Canónico de 1917 e do Código de Direito Canónico de 1983, e não diretamente de um problema de aplicação de normas, isto é, de determinação dos factos a abranger nas hipóteses das normas. O problema da aplicabilidade (ou competência) é, necessariamente, um prius relativamente ao problema da aplicação. Estamos num setor de normas sobre normas ou de normas de segundo grau[14] (as que dirimem os conflitos de leis no tempo).

Pode, porventura, outro tribunal entender que o conflito de leis no tempo em apreço se resolve de acordo com o direito canónico transitório – formal ou material – e, na sua falta, por um princípio de não retroatividade que eventualmente se encontre no Direito Canónico. Pode também, por aplicação do art. 12.º, do Cód. Civil, o tribunal chegar a resultado diferente daquele alcançado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11 de maio de 2014, e considerar que a lei competente para regular a questão em apreço é o Código de Direito Canónico de 1917.

De qualquer modo, o art. 12.º, n.º 2, do Cód. Civil, deve entender-se como uma explicitação do n.º 1. No n.º 1 diz-se que a lei nova não dispõe senão para o futuro, ou seja, que ela não deve aplicar-se a factos passados nem aos seus efeitos. Por conseguinte, no n.º 2, do mesmo preceito, pretende definir-se o que são e o que não são factos passados e efeitos dos factos passados. De um lado, estão as normas relativas à validade de quaisquer factos ou aos efeitos de quaisquer factos (entendendo por efeitos não só os efeitos imediatos sob todos os aspetos, mas ainda o conteúdo de uma situação jurídica duradoura que seja definido ou intrinsecamente modelado em função dos respetivos factos constitutivos) e, de outro lado, estão as normas que dispõem diretamente sobre o conteúdo das situações jurídicas  abstraindo dos factos que lhes deram origem. Isto tem de significar que estes factos (art. 12.º, n.º 2, 2ª parte, do Cód. Civil), mesmo quando se situem no passado, hão-de ser considerados factos do presente; que a lei que se lhes refere toma antes em conta o estado ou qualidade gerada por esses factos, e não os factos em si mesmos, como factos-eventos. Todavia, se os factos a que se refere a lei nova na determinação do conteúdo legal das situações jurídicas podem ser considerados como factos do presente, é porque, na perspetiva da norma reguladora desse conteúdo legal, tais factos não têm uma valoração e efeitos jurídicos próprios que a lei nova deva respeitar.

Resta saber se o Código de Direito Canónico de 1983 regula as Pias Uniões, constituídas antes do seu início de vigência, como factos que têm, na sua perspetiva, uma valoração e efeitos jurídicos próprios que deva respeitar, se estão em causa efeitos intrinsecamente modelados em função daqueles factos que são também factos constitutivos da situação jurídica (art. 12.º, n.º 2, 1ª parte, do Cód. Civil) ou de consequências indiretas desses factos, ditadas diretamente pelo Código de Direito Canónico de 1983 independentemente daqueles factos constitutivos (art. 12.º, n.º 2, 2ª parte, do Cód. Civil)[15].

Esta questão assume particular relevância no âmbito da delimitação dos poderes de administração e de disposição da BB, da determinação da natureza jurídica dos bens (bens próprios ou bens eclesiásticos: cân. 1257, § 1.º, do Código de Direito Canónico de 1983) e da (in)validade dos atos praticados pelas autoridades eclesiásticas (a “nomeação de um representante para a BB”, a “revogação do mandato do procurador da BB”, o requerimento de deserção do processo de reconhecimento da Fundação, a confissão em juízo, em representação da BB, nos processos por esta intentados para reivindicação de bens próprios).

Os efeitos a que se refere o art. 12.º, n.º 2, 1ª parte, do Cód. Civil, traduzem-se no próprio efeito de constituição, modificação ou extinção de uma situação jurídica, ou nos efeitos dos factos modeladores – isto é, nos efeitos intrinsecamente modelados em função daqueles factos que são também factos constitutivos da situação jurídica.

Consequentemente, a decisão interlocutória contida no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14 de maio de 2011, não transitou em julgado. Por isso, não tem, desde logo, força de caso julgado material, pois não se traduz numa decisão sobre o mérito da causa. Não tem força obrigatória dentro do processo e fora dele (art. 619.º, n.º 1, do CPC). Não tem, por outro lado, força de caso julgado formal, pois não versou sobre uma questão de caráter processual. Não tem força obrigatória dentro do processo em que foi proferida (art. 620.º, do CPC).

           Não se admitindo o recurso por inverificado o fundamento excecional do n.º 2, al. a), in fine, do art. 629.º, nada mais poderá ser conhecido nesta sede, porquanto o objeto do recurso se limitava, para já, e esta questão[16].

            B2) Art. 671.º, n.º 2, al. b), do CPC

“Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:
a) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.

Trata-se agora de se saber se se verifica - ou não – uma contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de março de 2016, de um lado e, de outro, o acórdão do Tribunal de Justiça de 22 de fevereiro de 2011, proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

Alega a Recorrente que o acórdão do Tribunal da Relação de Évora ora recorrido e, assim, também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de março de 2016[17], se encontram em contradição com o acórdão deste Tribunal de 22 de fevereiro de 2011[18]. Verificar-se-ia uma contradição relativamente ao núcleo essencial do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2011, já transitado em julgado.

Verifica-se, todavia, que o referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2011, foi proferido no âmbito de um procedimento cautelar instaurado por um Instituto Religioso (o Seminário Pio XII) contra três pessoas singulares que também não são parte nos presentes autos.

Ainda que se admitisse a existência de contradição de julgados sobre a mesma questão de direito entre o acórdão recorrido e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de março de 2016, de um lado e, de outro, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de fevereiro de 2011, não poderia este relevar para efeitos de contradição de julgados porquanto cada um deles foi proferido no âmbito de ação e procedimento de natureza, pressupostos e efeitos distintos[19].

Com efeito, as caraterísticas essenciais da tutela cautelar são a provisoriedade e a instrumentalidade da regulação judicialmente estabelecida. Em virtude do seu caráter provisório, as decisões proferidas no âmbito de um procedimento cautelar são, por via de regra, insuscetíveis de formar caso julgado.

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de fevereiro de 2011[20] não tem, por isso, uma natureza que lhe permita relevar como acórdão fundamento para a demonstração da contradição de julgados. Por conseguinte, não existindo essa verdadeira contradição, o presente recurso de revista também não se enquadra na previsão do n.º 2, al. b), do art. 671.º, do CPC, pelo que deverá ser rejeitado por legalmente inadmissível.

De acordo com o entendimento pacífico na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[21], a contradição de julgados implica a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: 1) a existência de, pelo menos, dois acórdãos em efetiva oposição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, tendo por objeto idêntico núcleo factual; 2) a anterioridade do acórdão-fundamento, já transitado em julgado; 3) a não inclusão da questão fundamental de direito em jurisprudência anteriormente uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Note-se que a averiguação da (in)observância destes pressupostos deve ser efetuada com rigor, em ordem a evitar que, de modo enviesado, se aceda ao terceiro grau de jurisdição em casos que não estão abrangidos pelo âmbito do preceito em apreço[22].

No que respeita ao primeiro requisito, importa que a alegada oposição de acórdãos seja frontal e não apenas implícita ou pressuposta[23]. Do mesmo modo, não se afigura suficiente, para o efeito, uma qualquer contradição relativamente a questões laterais ou secundárias. A questão de direito deve revestir-se de caráter essencial para o resultado que foi alcançado em ambas as decisões, sendo irrelevante a que respeitar apenas a alguns argumentos sem valor decisivo ou obter dicta[24].

Além disso, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a oposição relevante é aquela que se verifique entre as próprias decisões em confronto e não entre uma decisão e a fundamentação de outra, ainda que as respetivas fundamentações sejam pertinentes para apreciar o alcance do julgado[25]. Não se trata de descurar, no domínio da determinação da (in)existência de contradição entre decisões, a respetiva fundamentação, porquanto é esta que permite decidir se existe - ou não - contradição entre as decisões. Em causa está antes a consideração de que o caso julgado se constitui sobre a decisão e já não sobre a sua fundamentação. Por isso, a contradição é sempre entre decisões e não entre uma decisão e os fundamentos de outra decisão (art. 625.º do CPC).

É ainda necessário que a oposição se inscreva no âmbito da mesma legislação, no sentido de que as decisões em confronto tenham convocado um quadro normativo ou regras de conteúdo e alcance substancialmente idênticos.

Por último, essa oposição deve incidir sobre a mesma questão fundamental de direito, o que pressupõe que as decisões em confronto tenham subjacente um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspetiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas[26].

In casu, encontram-se preenchidos os últimos pressupostos, porquanto o acórdão fundamento – o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de fevereiro de 2011 - já transitou em julgado e o acórdão recorrido – do Tribunal da Relação de Évora - não observou ou inobservou qualquer acórdão de uniformização de jurisprudência.

Não pode, contudo, dizer-se o mesmo a respeito do primeiro pressuposto: a identidade da situação subjacente a cada uma das decisões e a contradição do acórdão recorrido com o acórdão fundamento.

Com efeito, da análise comparativa dos dois acórdãos resulta que no acórdão fundamento está em causa a competência do tribunal para apreciar a (in)validade de um certo ato de confissão judicial no âmbito de um procedimento cautelar instaurado pelo Instituto Religioso Pio XII contra três pessoas singulares, de um lado e, de outro, no acórdão recorrido está em causa a declaração de nulidade de determinados atos jurídicos. Inexiste uma relação de identidade das situações de facto e de direito subjacentes a cada uma das decisões.

Ao acórdão fundamento e ao acórdão recorrido não subjaz também um núcleo factual idêntico, pois que, enquanto no primeiro caso se trata da determinação da competência do tribunal e da improcedência de uma providência cautelar, no segundo está em causa a ampliação da matéria de facto, com vista a apurar os factos alegados nos arts. 53º, 55º e 62º da petição inicial e a repetição do julgamento, apenas na parte necessária ao apuramento da nova matéria em vista da declaração de nulidade – ou não - de determinados atos jurídicos.

Deste modo, não se verifica a contradição de julgados pressuposta pelo art. 671.º, n.º 2, al. b), do CPC.

Refira-se ainda que, não existindo qualquer identidade entre as partes naquele procedimento cautelar e as partes na presente ação, e não havendo tido as ora recorridas oportunidade de intervir ou exercer qualquer contraditório naquele procedimento, não poderá ser contra elas invocado o que aí foi decidido, pelo que tal acórdão não constitui caso julgado relativamente a elas e nem se reveste da autoridade de caso julgado que possa ser invocado contra elas.

Coloca-se igualmente a questão de se saber se se verifica - ou não - no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, e no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de março de 2016, ofensa da autoridade de caso julgado do decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,  de 22 de fevereiro de 2011[27],  quanto à qualificação da BB como associação pública ou privada de fiéis, nos termos do n.º 2, al. b), do art. 671.º e se é ou não aplicável o art. 625.º.

           Pode dizer-se que ao art. 625.º está subjacente a exceção de caso julgado e não a autoridade de caso julgado. Exceção que obsta à repetição da causa. Contudo, se não for invocada pela parte nem for oficiosamente conhecida, pode ter lugar a decisão de mérito que a exceção impediria. Ela será ineficaz, devendo a declaração de ineficácia ser feita no processo em que foi proferida[28]. Não pode, com efeito, lançar-se mão do disposto no art. 625.º, do CPC, em ordem a fazer prevalecer o caso julgado transitado em primeiro lugar, como pretende a Recorrente. Na verdade, a contradição de julgados a que se refere aquele preceito pressupõe a verificação da tríplice identidade estabelecida no art. 581.º do mesmo corpo de normas, porquanto deve incidir “sobre a mesma pretensão”, o que, in casu, não se demonstra[29].

Tendo em conta o princípio da incontrovertibilidade da decisão transitada em julgado, a lei consagra a exceção dilatória de caso julgado, assim vedando a propositura de uma nova ação destinada a apreciar questão já resolvida por decisão anterior (arts. 577.º, al i), 578.º, 580.º e 581.º, do CPC), de um lado e, de outro, previne a hipótese de essa exceção, por qualquer motivo, não haver sido oportunamente invocada ou conhecida (e, assim, formarem-se duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão), mediante a prevalência da decisão que transitou em julgado em primeiro lugar (art. 625.º, n.º 1, do CPC). Este princípio aplica-se igualmente à contradição entre duas decisões que, dentro do mesmo processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual (caso julgado formal) (art. 625.º, n.º 2, do CPC). A solução legalmente plasmada funda-se na necessidade de assegurar a força vinculativa (e definitiva) do concreto dictat jurisdicional, refletida na respetiva imodificabilidade[30].

            Embora o preceito do art. 625.º, n.º 1, do CPC, não se aplique à ofensa de autoridade de caso julgado, sempre se poderá dizer que esta autoridade não se estende aos fundamentos ou motivação da sentença (art. 607.º, n.os 1 e 2, do CPC). O juiz deve, certamente, resolver na sentença todas as questões que as partes hajam submetido à sua apreciação (art. 608.º, n.º 2, do CPC), mas só formará caso julgado a resposta final (global) dada à pretensão consubstanciada nos pedidos principal e/ou reconvencional, analisada através das respetivas causas de pedir[31].

           Com efeito, apesar de o tribunal competente para a ação ser também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa (art. 91.º, n.º 1, do CPC), “a decisão das questões e incidentes suscitados (pelo réu ou por qualquer das partes) não constitui caso julgado fora do processo respetivo, exceto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude” (art. 91.º, n.º 2, do CPC).

A resolução da questão prévia respeitante à qualificação da BB como pessoa jurídica pública ou privada, pelos tribunais judiciais, ao abrigo do art. 96.º, do CPC, que estabelece a regra geral da competência do tribunal em relação a questões incidentais - isto é, o princípio da suficiência discricionária, que permite a extensão da competência do tribunal da causa à decisão de questões prejudiciais - não tem força de caso julgado fora do respetivo processo.

O caso julgado reside na firmeza prático-jurídica ou prático-económica da decisão central, que não também na resolução das questões incidentais, instrumentais ou interlocutórias que logicamente a precedem. Daqui resultam dois corolários determinativos dos limites do caso julgado: por um lado, a necessidade da fixação do exato sentido e alcance da resposta jurisdicional à pretensão ou pretensões constantes da decisão final; por outro, a consideração de que eventuais e sucessivos julgamentos de facto e de direito, não compreendidos na decisão final (embora eventualmente louvados na motivação desta), não são abrangidos pela eficácia do caso julgado[32].

Conforme mencionado supra, a decisão sobre a qualificação da BB como associação pública ou privada de fiéis é apenas uma decisão intermédia que serviu de fundamento à decisão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de fevereiro de 2011 e, por isso, não se reveste da força de caso julgado.

Acresce que, em princípio, devem excluir-se da eficácia do caso julgado as qualificações jurídicas adotadas nos fundamentos da decisão[33].

O caso julgado pode também perder a sua eficácia por substituição da decisão transitada[34].

Além do mais, nas providências cautelares não se forma caso julgado definitivo, porquanto de acordo com o art. 364.º, n.º 4, do CPC, nem o julgamento da matéria de facto e nem a decisão final proferida no procedimento cautelar têm qualquer influência no julgamento da ação principal de que aquele depende[35].

Outra é a questão da natureza pública ou privada da BB[36], de se saber se, de acordo com o Codex Iuris Canonici de 1983 – se porventura for ao abrigo deste corpo de normas que a questão há-de ser resolvida -, o critério decisivo para o efeito é, não o do culto público, mas antes o da ereção, da relação com a autoridade e das suas finalidades.  Aquele, nos cânones 298-329, distingue entre associações públicas e associações privadas.

           

            IV – Decisão

           Pelos motivos referidos supra, não se admite o recurso de revista ora interposto. Custas pela Recorrente.

            Lisboa,

            (Maria João Vaz Tomé)

            (Garcia Calejo)

            (António Magalhães) 

----------------------------------


[1] Proc. n.º 2153/06.5TBCBR-C.C1.S1, disponível para consulta em www.dgsi.pt.

[2] (Maria Inês Moura), Proc. N.º 692/11.5TBVNO.C1.

[3] (Silva Salazar), Proc. n.º 332/09.2TBPDL.L1.S1 - disponível para consulta em www.dgsi.pt.

[4] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2018, pp.351-352.

[5] Note-se ainda que a Recorrente o Tribunal da Relação de Évora não incumpriu os deveres estabelecidos no art. 662.º, nem tão pouco a Recorrente invocou uma qualquer inobservância dos mesmos.

[6] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2018, p.358. Em sentido algo diferente, cfr. Acórdão do STJ de 28 de fevereiro de 2012 (Alves Velho), Proc. n.º 42/08.TBMTL.E2.S1.- disponível para consulta em www.dgsi.pt.

[7] Assim, poder-se-ia dizer que , o objeto do recurso se cinge à apreciação da questão que justificou a sua admissão, ou seja, a ofensa do caso julgado, não podendo, por isso, ser consideradas ou conhecidas outras questões, mesmo que não se trate de questões novas, como é doutrina e jurisprudência uniforme. Cfr. Acórdão do STJ de 15 de fevereiro de 2017 (Nunes Ribeiro), Proc. n.º 2623/11.3TBSTB.E1.S1; Acórdão do STJ de 17 de novembro de 2015 (Sebastião Póvoas), Proc. n.º 34/12.2TBLMG.C1.S1 -  disponíveis para consulta em www.dgsi.pt; António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2018, p.51.

[8] (Maria Inês Moura), Proc. N.º 692/11.5TBVNO.C1.

[9] In Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, Lisboa, 1968, p.157.
[10] Cfr. Mariana França Gouveia, A causa de pedir na acção declarativa, Almedina, Coimbra, 2004, pp.427-428.

[11] In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p.293.

[12] Cfr. João de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, Lisboa, 1968 p.347.
[13] Cfr. João de Castro Mendes, In Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, Lisboa, 1968, p. 354, 357. O pedido é diferente, e isso afasta a operatividade do caso julgado.
[14] Cfr. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1987, p.231.
[15] Cfr. João Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Almedina, Coimbra, 1968, p.357.

[16] Cfr. Acórdão do STJ de 15 de fevereiro de 2017 (Nunes Ribeiro), Proc. n.º 2623/11.3TBSTB.E1.S1; Acórdão do STJ de 17 de novembro de 2015 (Sebastião Póvoas), Proc. n.º 34/12.2TBLMG.C1.S1 - disponíveis para consulta em www.dgsi.pt; António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2018, p.51.

[17] (Fonseca Ramos), Proc. n.° 2153/06.5TBCBR-C.C1.S1 - disponível para consulta em www.dgsi.pt.

[18] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (SILVA SALAZAR), Proc. n.º 332/09.2TBPDL.L1.S1 - disponível para consulta em www.dgsi.pt.

[19] Nesse mesmo sentido decidiu já o Supremo Tribunal de Justiça  no acórdão de 5 de maio de 2011 (Sebastião Póvoas), Proc. n.º 657/10.4TVLSB-B.L1.S1: “(…) g) Não há contradição de julgados entre uma decisão proferida em lide definitiva e a decisão de um procedimento cautelar por assentarem em pressupostos distintos, designadamente para esta um mero julgamento indiciário, célere (a evitar o “periculum in mora”), sempre instrumental e sem garantia de contraditório prévio, tratando-se naquela de decisão definitiva assente em prova plena e com todas as garantias processuais” - disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[20] No qual se decidiu que ”Nesta conformidade, julgamos não merecer, portanto, censura o decidido, logo não foi excedida a competência do tribunal ao ajuizar sobre a invalidade do acto de confissão judicial por feito à revelia dos órgãos da sobredita associação privada, ainda que tivesse, então, a respectiva Superiora o seu mandato caducado e em circunstâncias que para além do mais implicariam uma antecipada decisão, por via administrativa, da autoridade eclesiástica em favor de um instituto canónico público num conflito quanto à propriedade de bens que o opunha a uma pessoa jurídica canónica privada”.
[21] Cfr. Acórdão do STJ de 11 de novembro de 2014 (Abrantes Geraldes), Proc. n.º 542/14.0YLSB.L1.S1); Acórdão do STJ de 7 de junho de 2018 (Rosa Tching), Proc. n.º 2877/11.5TBPDL-D.L2.S1 -  disponíveis para consulta em www.dgsi.pt..
[22] Cfr. Acórdão do STJ de 11 de novembro de 2014 (Abrantes Geraldes), Proc. n.º 542/14.0YLSB.L1.S1); Acórdão do STJ de 7 de junho de 2018 (Rosa Tching), Proc. n.º 2877/11.5TBPDL-D.L2.S1 - disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
[23] Cfr. Acórdão do STJ de 7 de junho de 2018 (Rosa Tching), Proc. n.º 2877/11.5TBPDL-D.L2.S1 - disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[24] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2018, pp.61- Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2018, p.62; Acórdão do STJ de 7 de junho de 2018 (Rosa Tching), Proc. n.º 2877/11.5TBPDL-D.L2.S1 - disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[25] Cfr. Acórdão do STJ de 17 de fevereiro de 2009 (Salazar Casanova), Proc. n.º 08A3761 JSTJ000 - disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[26] Cfr. Acórdão do STJ de 7 de junho de 2018 (Rosa Tching), Proc. n.º 2877/11.5TBPDL-D.L2.S1; Acórdão do STJ de 4 de maio de 2010 (Sebastião Póvoas), Proc. n.º 3272/04.8TBVISC.1.S1 - disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.

[27] (Silva Salazar), Proc. n.º 332/09.2TBPDL.L1.S1 - disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[28] Cfr. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Almedina, Coimbra, 2018, p.766.
[29] Cfr. Acórdão do STJ de 30 de março de 2017 (Tomé Gomes), Proc. 1375/06.3TBSTR.E1.S1.
[30] Cfr. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, pp.599-600.
[31] Cfr. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, p.621.
[32] Cfr. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, p.622; Manuel de Andrade, In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pp.307-308; Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/ Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p.715.
[33] Cfr. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, pp.637-638.
[34] Cfr. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, pp.633-634; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pp. 586 e ss.
[35] Cfr. Acórdão do STJ de 12 de julho de 2018 (Gonçalves Rocha), Proc. n.º 2917/15.3T8PDL-B.L1.S1 - disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[36] Ainda que o Código de Direito Canónico de 1983 não contenha uma definição específica do modelo de associação tradicionalmente contido na fórmula de BB, o Código de Direito Canónico de 1917 estabeleceu-a no cânone 707: “As associações de fiéis que tenham sido erectas para o exercício de alguma obra de piedade ou de caridade, denominam-se Pias Uniões (piarum unionum), as quais, se estiverem constituídas em corpo orgânico (modum organici corporis) se denominam Irmandades (Sodalícios)”. De acordo com o Codex Iuris Canonici de 1917, existem, fundamentalmente, quatro tipos de associações de fiéis: as Ordens Terceiras Seculares (cc. 702-706), que são associações approbatae, as Confrarias (cc. 707-719), que podem ser constituídas apenas “por formal erecção de decreto” (cân. 708), as Pias Uniões, que podem ser eretas (cân. 708), apesar de ser suficiente a aprovação e as Arquiconfrarias e uniões primárias (cc. 720-725).