Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3655/06.9TVLSB.L2.S1-A
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: COMPRA E VENDA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
OBRIGAÇÃO GENÉRICA
COISA INDETERMINADA
DENÚNCIA
PRAZO
DIREITO DE AÇÃO
PRAZO DE CADUCIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
NULIDADE
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Referência de Publicação: DRE N.º 149/2023, I SÉRIE DE 02-08-2023, P. 115-142 (ACÓRDÃO N.º 7/2023).
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFOMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA (CÍVEL).
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

A ação de indemnização fundada na venda de coisa indeterminada de certo género defeituosa está submetida ao prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do Código Civil, a tanto não se opondo o disposto no artigo 918.º do mesmo Código.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 3655/06.9TVLSB.L2.S1-A

Recurso Extraordinário para Uniformização de Jurisprudência

                                                           +

Acordam no Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça:

I - RELATÓRIO

1. PETRÓLEOS DE PORTUGAL – PETROGAL S.A. demandou oportunamente, perante o Tribunal Cível da Comarca de Lisboa e em autos de ação declarativa com processo na forma ordinária, VALLOUREC & MANNESMANN TUBES - V&M FRANCE e XL - INSURANCE COMPANY LIMITED, pretendendo: (i) a condenação da 1ª Ré no pagamento de € 5.824.787,99, acrescendo juros de mora à taxa legal desde a citação, ou (ii) a condenação da 2ª Ré nesses mesmos efeitos, no caso de existir seguro que cubra a situação danosa que descreve, ou (iii) a condenação da 2ª Ré no pagamento do montante coberto pelo seguro e a 1ª Ré no pagamento do remanescente até à quantia total de € 5.824.787,99 e juros de mora desde a citação.

Alegou para o efeito, em apertada síntese, que:

- Comprou à 1ª Ré um lote de 429 tubos de aço de distintas características e especificações ((i) aço carbono ASTM A106 Gr B, (ii) aço ligado ASTM A335 P11 (iii) aço ligado ASTM A335P9);

- Os tubos foram adquiridos com vista à substituição dos tubos das câmaras de convecção dos dois fornos (fornos CC-H1A e CC-H1B) de destilação atmosférica da Unidade de Destilação Atmosférica da Refinaria de Sines da Autora;

- Instalados que foram os tubos, veio-se mais tarde a verificar a existência de fissuras passantes de grande extensão em tubos de três serpentinas de um dos fornos;

- A fissuração deveu-se ao facto de os tubos, no seu processo de fabrico, levado a cabo pela 1ª Ré, não haverem sido submetidos a um tratamento térmico de revenido adequado próprios da especificação ASTM A335 P9;

- A Autora denunciou à 1ª Ré os defeitos detetados, declarando, desde logo, a sua intenção de assacar a esta as responsabilidades pelos danos que a situação lhe causou;

- A Autora teve de proceder a trabalhos de reparação dos fornos e à substituição dos tubos danificados, suportando os inerentes custos;

- A aludida fissuração implicou a paralisação dos fornos, o que levou a que a Autora sofresse o inerente prejuízo.

2. Contestaram as Rés, concluindo pela improcedência da ação.

Entre o mais, excecionaram com a caducidade do direito de ação da Autora, nos termos do art. 917.º do Código Civil (diploma a que pertencerão as normas legais que daqui em diante forem citadas sem indicação de outra proveniência).

3. Seguindo a causa seus devidos termos, veio, a final, a ser proferida sentença que, julgando improcedente a exceção da caducidade, condenou a 1ª Ré a pagar à Autora a quantia de € 2.982.143,00, acrescendo juros de mora; a 2ª Ré foi condenada a pagar à Autora a quantia a liquidar em execução de sentença relativa aos trabalhos de reparação e substituição, acrescendo juros de mora.

4. Por efeito do parcial provimento da apelação que as Rés interpuseram para a Relação de Lisboa, foi a sentença alterada parcialmente quanto à 2ª Ré, ficando esta condenada no pagamento à Autora da quantia que se liquidasse em execução de sentença relativa aos prejuízos sofridos (acrescendo juros de mora) e da quantia que se liquidasse em execução de sentença relativa aos trabalhos de reparação (acrescendo juros de mora desde a liquidação). Quanto à exceção da caducidade, foi esta de igual forma considerada improcedente.

5. Inconformadas com o assim decidido, recorreram as Rés para o Supremo Tribunal de Justiça.

Entre outros demais fundamentos do recurso, e que para aqui não importam, pugnaram pela procedência da exceção da caducidade do direito de ação.

Por acórdão de 1 de julho de 2021 foi decidido conceder a revista, reconhecendo-se a caducidade do direito de ação da Autora, isto pelo facto de o direito ter sido exercido para além do prazo de seis meses (sobre a denúncia dos defeitos) estabelecido no art. 917.º.

6. Transitado em julgado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, apresenta-se agora a Autora a interpor o presente recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.

Alega para o efeito que o acórdão recorrido está em direta contradição, quanto à questão da atendibilidade do prazo de caducidade do art. 917.º em sede de venda de coisa defeituosa objeto de obrigação genérica, com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de maio de 2020[1], proferido no processo n.º 2142/15.9T8CTB.C1.S2, também transitado em julgado.

7. São as seguintes as conclusões que a Autora extrai da sua alegação:

A. A Autora interpõe o presente recurso de uniformização de jurisprudência do Acórdão proferido pelo STJ, que julgou o recurso de revista procedente, “atenta a procedência da invocada caducidade do direito de acção”, absolvendo assim os Réus dos pedidos;

B. A Autora entende que se verifica uma contradição com jurisprudência anterior deste Alto Tribunal, que apreciou a mesma questão fundamental de direito, pelo que se encontram reunidos os requisitos de admissibilidade do recurso de uniformização de jurisprudência, previstos na norma do artigo 688.º do CPC;

C. Com efeito, o presente recurso, interposto de acórdão já transitado em julgado proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), tem como fundamento a contradição de julgados entre aquele acórdão - Acórdão Recorrido, e um outro acórdão do STJ sobre a mesma questão fundamental de direito no domínio da mesma legislação - Acórdão Fundamento: o recente acórdão do STJ, datado de 5 de maio de 2020, proferido no processo n.º 2142/15.9T8CTB, transitado em julgado em 13/07/2020;

D. São requisitos de admissibilidade do recurso de uniformização de jurisprudência: i) contradição entre o acórdão recorrido e outro anteriormente proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça relativamente à mesma questão fundamental de direito; ii) decisões proferidas no domínio da mesma legislação; iii) qualquer dos acórdãos deve ter transitado em julgado, presumindo-se este relativamente ao Acórdão-fundamento;

E. A questão fundamental de direito apreciada pelo STJ em ambos os Acórdãos supra identificados consiste na questão de saber se, em virtude do disposto no artigo 918.º do CC, será de excluir do âmbito de aplicação do artigo 917.º do CC a compra e venda de coisas genéricas (correspondente ao tipo de compra e venda assumidamente em causa nos dois arestos), aplicando-lhe, consequentemente, a regra geral do artigo 309.º do CC, que estabelece o prazo de vinte anos para a prescrição do direito;

F. Quer no Acórdão Fundamento, quer no Acórdão Recorrido, está em causa um pedido de indemnização com fundamento na compra e venda de coisas genéricas defeituosas, tendo já decorrido mais de seis meses desde a denúncia do defeito da coisa;

G. Sucede que, no Acórdão Fundamento, entendeu o STJ que o prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do CC não é aplicável aos casos de compra e venda de coisas genéricas, em virtude de o artigo 918.º do CC remeter para as regras relativas ao não cumprimento das obrigações. Ao caso deve aplicar-se, pois, o prazo geral da prescrição do direito previsto no art. 309.º do CC;

H. Diversamente, no Acórdão Recorrido, entendeu o STJ que o prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do CC é aplicável seja a obrigação específica ou genérica. Que no caso concreto, ainda que esteja em causa a venda de coisa genérica, se aplica o curto prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do CC;

I. Pelo exposto, conclui-se que tanto no Acórdão Fundamento como no Acórdão Recorrido foi apreciada a mesma questão fundamental de direito, a qual foi objeto de decisões contraditórias;

J. Constata-se que as decisões constantes do Acórdão Recorrido e do Acórdão Fundamento resultaram da interpretação e aplicação do mesmo quadro normativo, pelo que se conclui que o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento foram proferidos no âmbito da mesma legislação, dos pontos de vista formal e material;

K. Quer o Acórdão Recorrido, quer o Acórdão Fundamento, já transitaram em julgado;

L. O Acórdão Recorrido transitou em julgado no dia 15/07/2021, tendo a Recorrente interposto o presente recurso tempestivamente, dentro dos trinta dias posteriores ao respetivo trânsito em julgado (artigo 689.º, n.º 1, do CPC);

M. Por seu turno, o Acórdão Fundamento transitou em julgado a 13/07/2020, como se atesta pela respetiva certidão junta com o presente recurso;

N. Estando verificados os requisitos da uniformização de jurisprudência, deverá ser proferido Acórdão do STJ a fixar o sentido jurisprudencial sobre esta matéria, no sentido de o prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do Código Civil não ser aplicável aos casos de compra e venda de coisas genéricas, em virtude de o artigo 918.º do Código Civil remeter para as regras relativas ao não cumprimento das obrigações, devendo, por isso, ao caso aplicar-se o prazo geral da prescrição previsto no artigo 309.º do Código Civil;

O. A interpretação das normas contidas nos artigos 913.º a 918.º conduz à orientação adotada pelo Acórdão Fundamento nos termos da não aplicação do prazo constante do artigo 917.º do CC às obrigações genéricas;

P. A tal nos conduz, desde logo, o elemento literal. A letra do artigo 918.º do CC é clara ao afirmar que à venda de “coisa indeterminada de certo género, são aplicáveis as regras relativas ao não cumprimento das obrigações”. A remissão é realizada para o regime do não cumprimento, constante dos artigos 799.º e ss. do CC, no âmbito do qual tem aplicação o prazo ordinário de prescrição do artigo 309.º do CC;

Q. O elemento sistemático é um dos argumentos essenciais em que assenta a posição acolhida no Acórdão Recorrido quanto à questão que aqui se discute. Ora, não é verdade que o elemento sistemático imponha uma conclusão de sujeição da venda de coisa genérica ao prazo do artigo 917.º do CC. Com efeito, resulta claro dos regimes definidos no Código Civil que o legislador optou por consagrar soluções diversas consoante se esteja perante venda de coisa específica – à qual se aplica o regime constantes dos artigos 913.º e ss. - ou venda de coisa futura ou genérica – à qual se aplica o regime do não cumprimento, ex vi art. 918.º;

R. A destrinça entre as duas situações justifica-se porque, a constatação do defeito na coisa genérica só ocorre na fase de cumprimento, mais precisamente na escolha pelo vendedor da coisa em concreto a entregar. Trata-se assim de um cumprimento imperfeito do contrato - entrega de coisa que não reúne as características do género. Neste caso aplicam-se as regras gerais do não cumprimento, por remissão do art. 918.º do CC;

S. No que respeita ao elemento histórico, como salienta o STJ no Acórdão Fundamento, “o invocado espírito do sistema ou a unidade do sistema jurídico no que respeita ao contrato de compra e venda não pode ser erigido em critério único” (p. 44 do Acórdão Fundamento);

T. A norma do art. 918.º do Código Civil foi uma inovação do Código Civil de 1966 proposta no art. 44.º, n.º 1, do capítulo dedicado ao Contrato de Compra e Venda, do Projeto apresentado por Inocêncio Galvão Telles, com a seguinte redação: “Se a coisa, depois de vendida e antes de entregue, se deteriorar, adquirindo vícios ou perdendo qualidades, ou se a venda respeitar a coisa futura ou a coisa indeterminada de certo género, aplicam-se as regras relativas ao não cumprimento das obrigações; mas, não havendo dolo do vendedor, os direitos do comprador ficam sujeitos às disposições dos dois art.s precedentes, sobre denúncia e caducidade.” (p. 44 do Acórdão Fundamento);

U. Esta redação, proposta por Galvão Telles, manteve-se no Anteprojeto saído da 1.ª Revisão Ministerial - art. 891º -, tendo sido amputada da sua segunda parte na 2.ª Revisão Ministerial -art. 918º - que lhe conferiu a redação atual (p. 44 do Acórdão Fundamento);

V. Donde, como conclui o STJ no Acórdão Fundamento: “se algo se pode inferir daqui é que os direitos do comprador no caso do artigo 918.º do Código Civil deixaram de ficar sujeitos às disposições dos dois artigos precedentes sobre denúncia e caducidade (art.s 916.º e 917.º do CC)”;

W. A interpretação defendida de não aplicação do prazo do artigo 917.º à venda de coisas genéricas e, desta forma, ao caso sub judice, é posição que, saliente-se, é defendida por parte substancial da doutrina e por parte da jurisprudência nos Tribunais superiores.

X. Em face do exposto, deverá ser uniformizada jurisprudência no sentido de o prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do Código Civil não ser aplicável aos casos de compra e venda de coisas genéricas, em virtude de o artigo 918.º do Código Civil remeter para as regras relativas ao não cumprimento das obrigações, devendo, por isso, ao caso aplicar-se o prazo geral da prescrição previsto no artigo 309.º do Código Civil.

8. As Rés contra-alegaram, concluindo pela improcedência do recurso e pugnando pela uniformização da jurisprudência nos seguintes termos: «O prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do Código Civil é aplicável a todas as ações emergentes de cumprimento defeituoso, seja genérica ou específica a obrigação subjacente.»

9. O recurso foi liminarmente admitido.

10. Distribuído o processo, foram os autos com vista ao Mistério Público, que, pela pessoa do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da uniformização da jurisprudência nos seguintes termos:

“O disposto no artigo 918.º, do Código Civil, não obsta a que se aplique à compra e venda de coisa genérica defeituosa, os prazos de caducidade de curta duração previstos no artigo 917.º, do mesmo Código Civil, pois a redação daquele artigo visa apenas referir-se às regras gerais relativas ao risco no incumprimento das obrigações.”

11. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – Quanto à questão prévia da admissibilidade do recurso

Uma vez que a admissão liminar do recurso não vincula este Pleno das Secções Cíveis, importa começar por verificar se estão verificados no caso os requisitos específicos de que depende a admissibilidade do presente recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, e que são (art. 688.º do CPCivil): (i) a existência de contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento sobre a mesma questão essencial de direito; (ii) o trânsito em julgado desses acórdãos; (iii) terem os acórdãos sido proferidos no domínio da mesma legislação; (iv) inexistência de jurisprudência uniformizada sobre a questão de direito em causa.

Ora, é manifesto que se verificam todos esses requisitos, apresentando-se por isso correto o que a propósito consta das conclusões B a N (parte inicial) do recurso.

Com efeito:

Os acórdãos em confronto transitaram em julgado, tal como revelado documentalmente nos autos.

A questão de direito em causa não foi objeto de anterior uniformização por parte do Supremo Tribunal de Justiça.

Os acórdãos em questão foram proferidos no domínio da mesma precisa legislação, com enfoque direto na interpretação e aplicação dos art.s 917.º e 918º do CCivil.

E as decisões neles tomadas encontram-se na mais frontal contradição.

Quanto a este último ponto, é patente que, perante enquadramentos factuais similares, as respostas dadas pelos acórdãos, com reporte ao mesmo preciso conjunto normativo, se apresentam inconciliavelmente divergentes.

No caso do acórdão recorrido estava em causa a venda de coisa - tubos, a incorporar em fornos das instalações fabris da Autora - que padeciam de defeito. O contrato de compra e venda subjacente teve por objeto a prestação de coisa indeterminada do género da que foi depois entregue à compradora. Discutia-se, tendo em conta o disposto no art. 918.º e partindo precisamente do pressuposto de que se tratava de venda de coisa indeterminada do respetivo género, se a ação de indemnização (por despesas com reparações, substituição dos tubos e por certas vantagens que deixaram de ser recebidas) resultante da deficiente execução do contrato estava sujeita ao prazo de caducidade aludido no art. 917.º .

O acórdão recorrido respondeu afirmativamente a tal questão, interpretando esta última norma de modo a compreender nela todas as ações emergentes de cumprimento defeituoso do contrato, incluindo pois a ação de indemnização por danos advindos ao comprador. O sumário do acórdão - que traduz fielmente a fundamentação que este encerra - é eloquente nesse ponto: “13. O prazo de caducidade do direito de acção previsto no artigo 917.º do Código de Civil deve abranger todas as acções emergentes de cumprimento defeituoso, sendo, como tal, aplicável não unicamente à acção de anulação, ali referida, mas a todas as pretensões e acções decorrentes da compra e venda de coisa defeituosa - seja genérica ou específica a obrigação subjacente. 14. A este entendimento não se opõe o artº 918º do CC, pois não se justifica que nas obrigações genéricas o regime da responsabilidade por cumprimento defeituoso seja diverso das específicas (…). 15. Assim, o artigo 918.º do Código Civil não deve ser interpretado no sentido de conduzir a um regime diferente, quanto ao prazo de caducidade, consoante se trate de obrigações específicas ou de obrigações genéricas.”

E tal perspetiva jurídica foi essencial para a decisão tomada, na medida em que foi em função dela que foi depois considerado (esta a ratio decidendi da decisão tomada) caduco o direito de ação da Autora, com a consequente absolvição das Rés do pedido.

No caso do acórdão-fundamento estava em causa a venda de coisa - fosfato monocálcico, a incorporar nos produtos alimentares que a compradora fabricava - que padecia de defeito e que de igual forma tivera subjacente uma obrigação de natureza genérica. Discutia-se, e tendo também em conta o disposto no art. 918.º e partindo do pressuposto que se tratava de venda de coisa indeterminada do respetivo género, se a ação de indemnização por danos (nomeadamente os resultantes de despesas com operações logísticas e de eliminação do produto defeituoso, e da perda do valor do produto que foi retirado do mercado ou retido em armazém) resultantes da violação do contrato estava sujeita ao prazo de caducidade aludido no art. 917.º.

O acórdão-fundamento respondeu negativamente a tal questão, interpretando esta última norma de modo a excluir do seu âmbito a possibilidade de extensão à ação de indemnização desses danos. Pode ler-se da respetiva fundamentação que “ (…) independentemente da interpretação extensiva ou não que se possa fazer do art. 917º do Código Civil, entendemos que a referida norma não tem aplicação ao caso sub judice, pelo facto de o art. 918.º do mesmo diploma, ao remeter para as regras relativas ao não cumprimento das obrigações, excluir do seu âmbito de aplicação o art. 917º.” Concordantemente, da respetiva síntese conclusiva pode ler-se que “4. Os prazos de caducidade previstos nos art.s 916.º e 917.º do Código Civil não são aplicáveis aos casos de compra e venda de coisas genéricas, em virtude de o art. 918.º do Código Civil remeter para as regras relativas ao não cumprimento das obrigações. 5. Ao caso deve aplicar-se, pois, o prazo geral da prescrição do direito previsto no art. 309.º do Código Civil.”

E tal perspetiva jurídica foi essencial para a decisão tomada, pois que foi precisamente em função dela que foi considerado (esta a ratio decidendi da decisão tomada) não caduco o direito de ação da aí autora, com a consequente manutenção da condenação da vendedora a indemnizar o prejuízo reclamado.

Conclusão: estão cumpridos os requisitos legais específicos da admissibilidade do presente recurso, razão pela qual nada obsta a que se conheça do respetivo objeto.

III - FUNDAMENTAÇÃO

1. Pressupostos de facto

São os seguintes os factos que o acórdão ora recorrido elenca como provados:

A) - A Autora é uma sociedade que se dedica à refinação de petróleo bruto e seus derivados; transporte, distribuição e comercialização de petróleo bruto e seus derivados e de gás natural, exploração de petróleo bruto e gás natural, e a quaisquer outras atividades industriais, comerciais, de investigação ou prestação de serviços conexos com as anteriormente referidas, levando a cabo a atividade de refinaria de petróleo bruto e seus derivados nas suas refinarias de Sines e do Porto.

A-1) - A 1ª Ré é uma sociedade de direito francês, que se dedica à fabricação e comercialização de tubos de aço para utilização industrial e que se integra na multinacional de renome VALLOUREC & MANNESMANN TUBES.

B) - A indústria petroquímica é umas das indústrias especializadas, que constitui o mercado alvo deste grupo empresarial.

B-1) - A Autora efetua em cada quatro anos uma intervenção de manutenção generalizada em todas as unidades produtivas da refinaria que implicam a paragem geral da mesma por cerca de 30 a 40 dias.

C) - A 1ª Ré, de entre as empresas do grupo, que inclui, no âmbito das suas atividades fabris, tem por objeto a produção de tubos especificamente destinados a satisfazer as necessidades do mercado da indústria química e petroquímica referida em A) e que, por esse motivo, constitui a Divisão Petroquímica do grupo VALLOUREC & MANNESMANN TUBES.

D) - A FWF negociou e a Autora veio a celebrar com a 1ª Ré, um contrato de compra e venda de um lote de 429 tubos de aço de distintas características e especificações, aço carbono ASTM A106 Gr B, aço ligado ASTM A335 P11 aço ligado ASTM A335P9, nos termos e nas condições estipuladas no documento de fls. 602 a 641, constituído por nota de encomenda, condições gerais e especiais do contrato, cujo teor se dá por reproduzido.

D-1) - Nos termos do contrato referido em D), na cláusula 19.2 das suas condições gerais consta:

“Até ao termo do prazo da garantia o fornecedor fará e suportará o custo de qualquer modificação de qualquer substituição de parte defeituosa ou qualquer acabamento necessário para assegurar que o fornecimento cumpre todas as condições da encomenda. A FWF não terá de antemão que averiguar o tipo de defeito de que padece a instalação defeituosa. No entanto, tanto quanto possível, a FWF compromete-se a informar o fornecedor das anomalias.

Todo e qualquer defeito sistemático dará lugar à substituição por peças mais adequadas à realização das mesmas funções e nas mesmas condições que as peças defeituosas, ainda que não tenha ocorrido qualquer incidente.

Em caso de incidente, a FWF deverá comunicar prontamente ao fornecedor por qualquer meio confirmado subsequentemente por escrito.

Todos os trabalhos a cargo do fornecedor nos termos da garantia deverão ser realizados o mais rapidamente possível, tendo em vista os constrangimentos operacionais. Com este propósito o fornecedor deverá suportar todas as medidas necessárias, nomeadamente reparações temporárias. O Fornecedor deverá ainda suportar todos os custos gerados por essas operações.

A FWF reserva-se o direito de reparar o fornecimento defeituoso, mandá-lo reparar por um terceiro, à custa do fornecedor, caso o fornecedor não tenha comunicado à FWF medidas tomadas e o plano de reparação no prazo de 4 dias a contar da comunicação por escrito do defeito, ou caso o fornecedor haja feito a comunicação do plano de reparação, mas não tenha levado a cabo as medidas ou não haja cumprido o plano de reparação. Neste caso a FWF reserva-se o direito de exigir do fornecedor uma indemnização, na proporção dos prejuízos causados por negligência do fornecedor.

O fornecedor não terá legitimidade para solicitar a intervenção do FWF e ou de terceiro por ela mandatado para alterar a forma, duração ou âmbito da presente garantia.”

E) - Por fax datado de 26/07/2002, a Autora deu a conhecer à 1ª Ré os defeitos detetados nalguns tubos referidos em D), nomeadamente ASTM A-335 P9 declarando, desde logo, a sua intenção de assacar da 1ª Ré as responsabilidades pelos danos causados, solicitando a marcação de uma reunião para o efeito.

F) - A 1ª Ré respondeu ao fax referido em E), por fax datado de 29/07/2002, solicitando informações sobre o incidente, nomeadamente os relatórios produzidos pelo ISQ e pela FWF.

G) - Naquele mesmo dia, a Autora respondeu à 1ª Ré, por e-mail, prestando as informações solicitadas e esclarecendo que colocaria à sua disposição os relatórios do ISQ e pela FWF na reunião a realizar entre as partes.

H) - Por fax datado de 11/10/2002, a 1ª Ré veio a declinar junto da Autora qualquer responsabilidade pelo sucedido, alegando, que, segundo os testes por ela realizados, o acidente se deveu a um sobreaquecimento dos fornos e pela impossibilidade de ter sido ela a fornecer tubos naquelas condições.

I) - A Autora enviou a carta, de fls. 766, à 1ª Ré, cujo teor se reproduz.

I)1 - A 1ª Ré, por meio de fax, do dia 14/01/2003, e em resposta àquela carta referida em I) esclareceu que procederia à análise dos argumentos apresentados pela Autora.

J) - Em 07/07/2003, depois do envio do fax referido em I1), a Autora respondeu por carta cujo teor se dá por reproduzido – cf. doc fls. 508 cujo teor se dá por reproduzido.

J-1) - A resposta veio por fax datado de 09/07/2003 no qual a 1ª Ré remeteu à Autora cópia de relatório dos testes por esta encomendados, que concluíam pela tese do sobreaquecimento dos fornos referida em H). – cf. doc fls.771 a fls. 790, cujo teor se reproduz.

K) - Por fax, datado de 6/10/2003, a 1ª Ré explica à Autora que os referidos testes haviam sido iniciados, mas não se encontravam ainda concluídos.

L) - Após a data referida em K), a 1ª Ré nada pagou e nada disse, relativo ao facto descrito em E).

M) - A 1ª Ré, quando confrontada com insistências da Autora, solicitou informação sobre os danos, já anteriormente fornecida.

N) - No dia 29-06-2005, a 1ª Ré comunicou por e mail à Autora que declinava o pagamento de qualquer indemnização, por lhe haver sido comunicado pela 2ª Ré que considerava ter caducado o direito de ação da Autora.

O) - Por e-mail de 20/09/2004, que a 1ª Ré envia à A. consta que “na sequência da nossa troca de correspondência e da nossa reunião em Sines de 29.06.2004 continuamos à espera que a G... nos envie: registo da temperatura em CD: que não foi dado nem durante a reunião anterior ao Sr. AA nem a nós desde a nossa última reunião; lista detalhada dos danos directos e indirectos que reclamam a sequência do acidente; para que a nossa seguradora os possa examinar. Quando tivermos esses documentos estaremos em posição de agendar uma data para uma nova reunião convosco detalhada sobre os prejuízos incorridos” – cf. doc de fls. 522 cujo teor se dá por reproduzido.

P) - Situação que se mantém até à presente data.

Q) - A 1ª Ré participou à 2ª Ré o sinistro em apreço nos presentes autos.

R) – (eliminada).

S) - Os incidentes de rutura dos tubos tiveram lugar nos dias 29.06.2002 e 30.06.2002.

T) - A Autora tomou conhecimento da rutura nos referidos dias 29.06.2002 e 30.06.2002;

U) - A Autora recebeu o relatório preliminar do ISQ no dia 12.07.2002;

V) - A Autora comunicou à 1ª Ré o incidente no dia 26.07.2002;

W) - A Autora propôs a presente ação no dia 22 de Junho de 2006.

X) - A 1ª Ré não substituiu nem reparou os tubos descritos em E).

Y) - A solicitação da 1ª Ré, foram ainda disponibilizadas pela Autora, amostras dos tubos danificados com vista à realização de testes por aquela, bem como os registos de laboração dos fornos de destilação atmosférica, CC-H1A e CC-H1B.

Z) - Por carta datada de 6/01/2004, a 1ª Ré remeteu à Autora cópia do relatório final levado a cabo pelos seus serviços, declarando quanto ao seu teor o seguinte:

“(…) Todos os testes foram efetuados. Os resultados da investigação levada a cabo pelo MFI (Mannesmann Forschunginstitut) encontram-se reportados com os estudos anteriores no relatório final do MFI n.º 131/2003 (que se junta).

Estes testes de alinhamento não provaram que a V&M TUBES não pudesse ter fornecido tubo T9 com estrutura martensitica. (…) ”(fls. 797 a 814).

AA) - A Autora enviou a carta datada de 04/03/2004 à 1ª Ré, cujo teor de fls. 512 se dá por reproduzido.

BB) - A Autora e 1ª Ré reuniram pela primeira vez em Sines, a 06/08/2002, tendo a 1ª Ré se feito representar pelos Senhores AA e BB, a quem foram apresentadas as conclusões finais dos relatórios ISQ e da FWF e, ainda, a solicitação destes, de amostras de tubos danificados com vista à realização de testes pela 1ª Ré, bem como os registos de laboração dos fornos de destilação atmosférica CC-H1A e CC-H1B.

BB-1) - A Autora agendou nova reunião com os representantes da 1ª Ré, que veio a ter lugar em Sines, nas instalações da refinaria, no dia 1-08-2003, na qual a Autora rebateu a tese, perante a 1ª Ré, do sobreaquecimento dos fornos de destilação atmosférica face ao facto de apenas alguns tubos apresentarem fissuras, sendo que no forno CC-H1A, os tubos ASTM A-335 P9 fissurados nem sequer eram os mais próximos das fontes de calor.

BB-2) - A 1ª Ré acordou na marcação de uma nova reunião, que teve lugar em Sines no dia 26 de Junho de 2004, tendo nela comparecido em representação da 1ª Ré CC, AA e DD em representação da 2ª Ré EE.

BB-3) - Nesta reunião em que participou EE, perito da 2ª Ré a quem a 1ª Ré tinha participado o sinistro, a Autora fez uma descrição geral do processo de arranque dos fornos e do acidente em causa; forneceu esclarecimento sobre os prejuízos reclamados, tendo ficado acordado que iria enviar documentação de suporte aos esclarecimentos prestados.

CC) - A 1ª Ré transferiu, por meio de contrato de seguro, a responsabilidade emergente do contrato de compra e venda celebrado com a Autora para a 2ª Ré, no termos e condições do contrato, de fls. 1002 a 1053, cujo teor se dá por reproduzido.

DD) - Para o contrato referido em D), a Autora exigiu à 1ª Ré que esta lhe prestasse uma garantia bancária on first demand.

EE) - A 1ª Ré apresentou à Autora, que aceitou, com data de 6 de Janeiro de 2000, a garantia bancária n.º ...90 da Société Générale, com data limite de validade até ao dia 6 de Abril de 2002.

FF) - Nas instalações da Autora ocorreram, pelo menos duas greves, por motivos laborais, entre o período de Janeiro de 2000 e Junho de 2002, sendo uma delas em 27-06-2002, que conduziu a uma paragem geral da Refinaria da Autora.

GG) - A montagem do equipamento entre Janeiro e Abril de 2000 foi realizada por uma empresa terceira que não qualquer uma das Rés.

Da base instrutória:

1. A refinaria de Sines é composta por 25 unidades principais de produção, nas quais são produzidos gás, gasolina, gasóleo, petróleo, fuel-óleo, betume e enxofre. (3º)

2. A Autora efetua, em cada quatro anos uma intervenção de manutenção generalizada em todas as unidades produtivas da refinaria, nomeadamente, designadamente, abertura limpeza e reparação/substituição de tubos, refratários e queimadores em fornos. (4º).

3. Para efeitos da intervenção de manutenção de 2000, a Autora celebrou, em 08/06/1999, um contrato de aprovisionamento com a sociedade Foster Wheeler France (doravante FWF). (5º).

4. Por meio do qual esta se comprometeu a negociar, com vista à conclusão pela Autora, a contratação de todas as matérias-primas e serviços, necessários à realização da manutenção prevista para Março e Abril de 2000. (6º)

5. A FWF presta serviços de aprovisionamento para outras sociedades em obras de grande envergadura e que o contrato descrito em D) foi negociado entre FWF e a 1ª Ré. (7º e 8º)

6. Os tubos de especificação ASTM A335P9, encomendados pela Autora à 1ª Ré, foram expedidos para a Refinaria de Sines em 03.03.2000. (9º)

7. Os tubos referidos em 9º foram adquiridos pela Autora com vista à substituição dos tubos das câmaras de convecção dos dois fornos de destilação atmosférica, da Unidade de Destilação Atmosférica da Refinaria de Sines, respetivamente o forno CC-H1A e CC-H1B. (10º)

8. Os referidos fornos de destilação atmosférica constituem peça fundamental do processo de refinação. (11º)

9. É nessas unidades (referidas em 11) que, por meio da destilação fracionada do petróleo bruto que neles se opera, se obtém a decomposição do petróleo em diversos componentes (referidos em 3º), atividade essencial de toda a Refinaria. (12º)

10. Os fornos referidos em 11º são constituídos por duas câmaras, (i) uma câmara de convecção onde é realizado o pré-aquecimento do crude e (ii) uma câmara de radiação na qual é realizado o aquecimento final. (13º)

11. O petróleo bruto é aquecido nos fornos a uma temperatura entre 360ºC e 380ºC entrando numa coluna de destilação onde se processa a separação em diversas frações. (14º)

12. Nas câmaras de convecção dos fornos de destilação atmosférica da Autora, os tubos de diferentes especificações são soldados entre si e dispostos em forma de serpentina. (15º)

13. Cada câmara de convecção contém 8 serpentinas. (16º)

14. Cada serpentina, por sua vez, contém 12 fileiras de tubos de passo de crude, no interior dos quais o crude atinge temperaturas compreendidas entre os 200ºC e os 300º. (17º).

15. A cada uma dessas fileiras é dado o nome técnico de “passo”. (18º)

16. O tipo de tubos utilizado em cada passo (ou fileira), da câmara de convecção dos fornos de destilação atmosférica da A. varia, consoante a sua maior ou menor proximidade das fontes de calor. (19º)

17. Face às altas temperaturas a que o crude circula dentro dos tubos (entre os 200ºC e os 300ºC), é necessário que estes assumam determinadas características de resistência espessura e dureza. (20º)

18. No último e penúltimo passo (ou fileira) de cada forno, respetivamente o 12º e 11º, são utilizados tubos de aço ligado com a especificação ASTM A335 P9 (21º)

19. Estes dois passos (ou fileiras) são os localizados mais próximo da fonte de calor, situada imediatamente abaixo do passo 12º. (22º)

20. Nos três passos seguintes, respetivamente 8º, 9º e 10º, são utilizados tubos de aço ligado com a especificação ASTM A335 P9 (23º)

21. Nos restantes 7 passos, tubos aço carbono. (24º)

22. O aço ligado com este tipo de especificações é especialmente indicado para utilização em fornos e caldeiras industriais. (25º)

23. Os tubos de especificação ASTM A335 P9 caracterizam-se por terem uma dureza na ordem dos 241HB. (26º)

24. No processo de fabrico dos tubos ASTM A335 P9 os tubos são submetidos a um tratamento térmico de revenido, destinado a conferir-lhes uma maior ductibilidade e diminuição de dureza, por forma a terem um valor de dureza na ordem dos 241HB, correspondentes à sua especificação. (27º)

25. Face aos factos 18º a 20º, a Autora utiliza tubos desta especificação nos passos 11º e 12º dos fornos de destilação atmosférica atenta a sua proximidade das fontes de calor, e por serem os mais adequados, seguros e resistentes, quer a altas temperaturas, quer ao choque térmico. (28º)

26. Os trabalhos de manutenção geral da Refinaria de Sines tiveram o seu início no início de Março de 2000. (29º)

27. Os trabalhos de manutenção da Refinaria, no âmbito dos quais foram encomendados à 1ª Ré os tubos referidos em 9º, foram concluídos no início de Abril de 2000. (30º)

28. Durante a operação de manutenção referida em 29º e 30º e no que aos fornos de destilação atmosférica respeita, a Autora procedeu à substituição dos tubos da câmara de convecção de ambos os fornos (CC-H1A e CC-H1B). (31º)

29. Substituiu-os pelos tubos adquiridos à 1ª Ré nomeadamente, os tubos tipo ASTM A335 P9, descritos em D), que instalou nos passos 11º e 12º dos fornos de destilação atmosférica CC-H1A e CC-H1B. (32º)

30. No dia 27/06/2002, a Autora procedeu a uma paragem geral da Refinaria, por «motivos de greve laboral». (33º)

31. Às 0h00 do dia 29/06/2002, a Autora deu início ao processo de re-arranque da unidade de destilação atmosférica da Refinaria. (34º)

32. Colocando crude a circular na câmara de convecção do forno CC-H1A, inicialmente, sem chama. (35º)

33. Quando o operador dos fornos fazia a ronda de inspeção prévia à ligação da chama, verificou que havia crude no fundo do forno CC-H1A, junto às zonas de combustão. (36º)

34. Face os elevados riscos de combustão emergentes da situação, se fosse iniciado o aquecimento dos fornos, foi de imediato abortado o arranque da Unidade. (37º)

35. Face ao facto 37º, a Autora ordenou a realização de uma inspeção ao referido forno CC-H1A e detetou a existência de fissuras passantes em tubos de três serpentinas daquele forno, respetivamente, as serpentinas 2, 4 e 5. (38º)

36. A Autora, para não comprometer, na totalidade, a atividade da Unidade de Destilação Atmosférica, considerou a hipótese de se tratar de um problema específico daquele forno. (39º)

37. E criou condições para o arranque isolado, do forno CC-H1B, o que veio a suceder no dia 30/06/2002. (40º)

38. Ainda na fase de testes de arranque do referido forno CC-H1B, a Autora verificou a existência de vestígios de petróleo bruto no fundo neste forno, em tudo semelhante à ocorrida no forno CC-H1A. (41º)

39. A Autora abortou também, de imediato, o arranque do forno CC-H1B. (42º)

40. E parou toda a Unidade de Destilação Atmosférica da Refinaria de Sines, e conduziu ao funcionamento irregular de todas as restantes Unidades que, de algum modo, se encontram dependentes daquela. (43º)

41. Os tubos fissurados no forno CC-H1A encontravam-se todos eles localizados no 11º passo das referidas serpentinas, i.e., na penúltima fileira de tubos da câmara de convecção. (44º)

42. Também a inspeção levada a cabo pela Autora, no forno CC-H1B, detetou a existência de uma fissura passante na serpentina 6, em tubo localizado no 12º passo, i.e., na última fileira de tubos da câmara de convecção. (45º)

43. A Autora solicitou ao Instituto de Soldadura e Qualidade (doravante ISQ) e à FWF a análise da situação e emissão de parecer técnico sobre a causa da fissuração dos tubos. (46º)

44. Toda a atividade de produção da Refinaria de Sines se encontra dependente e interligada à atividade levada a cabo na Unidade de Destilação Atmosférica. (47º)

45. É nesta unidade que o crude, matéria-prima, utilizada na atividade da Autora, é decomposto em diversos componentes referidos em 3º. (48º)

46. Componentes esses que são consecutivamente processados nas restantes unidades de produção. (49º)

47. Face aos factos 47º e 49º a paragem da Unidade de Destilação Atmosférica, implica, a curto prazo, que certas unidades da Refinaria fiquem fortemente afetadas e a paragem total de outras, por inexistência de matéria-prima a processar nas restantes unidades. (50º)

48. Afeta todo o processo produtivo da Autora. (51º)

49. Face aos factos 49º e 50º, urgia solucionar o problema e retomar a atividade produtiva o quanto antes para evitar mais prejuízos. (52º)

50. Face ao facto 50º, a Autora iniciou, de imediato, o processo com vista à identificação do problema e uma vez detetada a fissuração dos tubos iniciou o processo de reparação dos fornos e substituição dos tubos danificados. (53º)

51. Tendo utilizado para o efeito tubos de especificação ASTM335P9, igualmente adquiridos à 1ª Ré, de que dispunha em stock, e que haviam sobrado da manutenção anterior, realizada em 1996. (54º)

52. A substituição dos tubos fissurados no forno CC-H1A foi concluída em 17/07/2002 e a do forno CC-H1B em 11/07/2002. (55º)

53. Após a substituição dos tubos fissurados, a Autora iniciou o processo de re-arranque do forno CC-H1B no dia 11/07/2002, e do forno CC-H1A no dia 17/07/2002. (56º)

54. O processo de re-arranque do forno CC-H1A encontrava-se finalizado pelas 16:00 horas do dia 18/07/2002. (57º)

55. Em 12/07/2002, o ISQ, dirigiu à Autora um Relatório Preliminar relativamente à análise da falha ocorrida na câmara de convecção dos fornos CC-H1A e CC-H1B. (59º)

56. Onde se referia que a fissuração ocorrida nos tubos em referência se deveu ao facto de estes não haverem sido “submetidos a um tratamento térmico de revenido adequado” próprios da especificação dos tubos ASTM A335 P9 (60º)

57. Por apresentarem, tais tubos, índices de dureza superiores aos correspondentes à sua especificação. (61º)

58. E que em consequência os tubos fissurados e fornecidos pela 1ª Ré padeciam de defeito de fabrico. (62º)

59. Após 08/08/2002, o ISQ remeteu à Autora o seu Relatório Final, no qual confirmava o seu Relatório referido em 59, onde se refere que os tubos fornecidos pela 1ª Ré que falharam em serviço, padeciam de defeito de fabrico, consubstanciado na sua não submissão a tratamento térmico de revenido adequado por forma a conferir valores de dureza na gama 220HV±20 à semelhança do que foi obtido nos tubos sem fissuração e em outras intervenções anteriores. (63º)

60. A FWF remeteu à Autora, com data de 19/07/2002, o seu Relatório, concluindo que o incidente verificado nos fornos de destilação atmosférica da Autora se devia a “um tratamento térmico defeituoso que provocou as fissuras microscópicas e a entrada em ruptura dos tubos fragilizados”. (64º)

61. (Eliminado)

62. A Autora respondeu ao e-mail descrito em O, em 13/10/2004, remetendo a informação referida a fls. 910 a 916. (66º)

63. A 1ª Ré, na posse da informação referida em 66º, apenas respondeu à Autora em Abril de 2005. (67º)

64. Os trabalhos de reparação dos fornos e substituição dos tubos danificados foram contratados pela Autora com entidades terceiras. (68º)

65. E consistiram na realização dos seguintes trabalhos:

(i) reparação da zona de convecção dos fornos CC-H1A e CC-H1B;

(ii) reparação de termopolares pele nos fornos CC-H1A e CC-H1B

(iii) apoio elétrico aos trabalhos efetuados nos fornos CC-H1A e CC-H1B;

(iv) substituição dos tubos da zona de convecção dos fornos CC-H1A e CC-H1B;

(v) aquisição de materiais necessários aos trabalhos de reparação e substituição;

(vi) serviços de inspeção dos fornos posteriores aos trabalhos de reparação e substituição. (69º)

66. A Autora despendeu no pagamento dos trabalhos referidos em 69º quantia não apurada. (70º)

67. A Autora adquiriu novos tubos de especificação ASTM P9, com vista a substituir o seu stock usado na manutenção referida em 53º, na qual despendeu quantia não apurada. (71º)

68. Cada uma das 25 unidades de produção distintas da refinaria de Sines é responsável pela transformação e produção de uma multiplicidade de matérias, destinadas ao consumo (como matéria-prima) noutras unidades da Refinaria. (72º)

69. E na Unidade de Destilação Atmosférica que se processa a refinação do crude – primeira separação do petróleo bruto em distintos componentes – dela resultando os seguintes produtos finais: GPL, nafta ligeira, nafta pesada, petróleo, gasóleo ligeiro, gasóleo pesado, resíduo atmosférico. (74º)

70. A Autora tem capacidade de escoamento total da sua produção destes produtos, por meio de venda a terceiros ou de transferência para outra refinaria do grupo e pelo consumo noutras unidades de produção da própria Refinaria. (75º)

71. A Unidade de Destilação Atmosférica esteve totalmente paralisada, em virtude do referido em 34º a 45º, desde as 00:00 horas do dia 29/06/2002 até às 21:00 horas do dia 11/07/2002, isto é, durante 12,88 dias (12 dias e 21 horas). (76º)

72. E funcionou apenas com um dos fornos de destilação atmosférica em laboração, isto é, com metade da sua capacidade produtiva, desde as 21:00 do dia 11/07/2002 até às 16:00 do dia 18/07/2002, isto é durante 6,79 dias (6 dias e 19 horas). (77º)

73. Durante aquele período, caso os fornos tivessem podido funcionar em condições normais, teriam refinado (ou processado) um total de 420.345 toneladas de crude (petróleo bruto), produzindo, em consequência, os produtos enunciados supra no art. 74. (79º)

74. As proporções de cada produto resultantes da refinação do crude sofrem ligeiras variações e as cotações (ou valor de mercado). (81º)

75. Nos 2 dias completos (29 e 30) do mês de Junho que a Unidade de Destilação Atmosférica esteve totalmente paralisada, a Autora deixou de aí poder processar (ou refinar) um total de 23.000 toneladas de crude. (82º)

76. No mês de Junho de 2002, o crude tinha um valor de mercado (cotação) de 174,59 USD a tonelada e os componentes produzidos pela Autora na Unidade de Destilação Atmosférica (resultantes da refinação), tinham as seguintes cotações: (i) GPL - 210,70 USD por tonelada; (ii) Nafta ligeira - 206,70 USD por tonelada; (iii) Nafta pesada - 214, 20 USD por tonelada; (iv) Petróleo - 216,80 USD por tonelada; (v) Gasóleo ligeiro - 206,1 USD por tonelada; (vi) Gasóleo pesado - 206,10 USD por tonelada; (vii) Resíduo atmosférico - 131,70 USD por tonelada. (83º)

77. Ao longo do mês de Junho de 2002 e até à paralisação (nos dias 29 e 30), por cada tonelada de crude processado nos fornos da Unidade de Destilação Atmosférica, foram obtidas as seguintes quantidades de cada um dos produtos resultantes da refinação: (i) GPL – 19,58 Kg; (ii) Nafta ligeira – 72,68 Kg; (iii) Nafta pesada – 116,26 Kg; (iv) Petróleo – 119,15 Kg; (v) Gasóleo ligeiro – 151,75 Kg; (vi) Gasóleo pesado - 117 Kg; (vii) Resíduo atmosférico – 401,62 Kg. (84º)

78. Fazendo uso das cotações referidas em 83º e as quantidades da refinação do crude referidas em 84º, verifica-se que a Autora teria conseguido produtos com um valor de mercado total de 178,17 USD por cada tonelada de crude processado na referida unidade. (85º)

79. O preço de mercado do crude naquela data era de 174,59 USD por tonelada. (86º)

80. A Autora ao ver-se impedida de refinar 23.000 toneladas de crude nos dias 29 e 30 de Junho de 2002, deixou de auferir montante não apurado (alteração operada pela Relação).

81. Quanto ao mês de Julho, a laboração dos fornos de Destilação Atmosférica esteve afetada durante 17 dias e 16 horas. (88º)

82. Durante este período, a Autora deixou de refinar ou processar um total de 379.274 toneladas na sua Unidade de Destilação Atmosférica. (89º)

83. No mês de Julho de 2002, o valor de mercado do crude era de 186,678 USD a tonelada. (90º e 94º)

84. Os componentes produzidos pela Autora na Unidade de Destilação Atmosférica (resultantes da refinação do crude) apresentavam, naquele mesmo período, as seguintes cotações de mercado: (i) GPL - 210,60 USD por tonelada; (ii) Nafta ligeira - 220,50 USD por tonelada; (iii) Nafta pesada - 224,20 USD por tonelada; (iv) Petróleo - 225,10 USD por tonelada; (v) Gasóleo ligeiro - 220 USD por tonelada; (vi) Gasóleo pesado - 220 USD por tonelada (vii) Resíduo atmosférico - 147,10 USD por tonelada. (91º)

85. Ao longo do mês de Julho de 2002, no período em que a Unidade de Destilação Atmosférica esteve a funcionar normalmente – isto é, do dia 19 em diante – com a refinação ou processamento de cada tonelada de crude eram produzidas as seguintes quantidades de produtos:

(i) GPL - 21 Kg; (ii) Nafta ligeira - 86 Kg; (iii) Nafta pesada - 103 Kg; (iv) Petróleo - 122 Kg; (v) Gasóleo ligeiro - 131 Kg; (vi) Gasóleo pesado - 95 Kg; (vii) Resíduo atmosférico - 442 Kg. (92º).

86. Fazendo uso das cotações de cada produto e tendo por base as quantidades resultantes da refinação do crude, verifica-se que a Autora teria conseguido produtos com um valor de mercado total de 188,68 USD por cada tonelada de crude processado na referida unidade. (93º)

87. Ao ver-se impedida de refinar 379.474 toneladas de crude entre os dias 01 e 19 de Julho de 2002, a Autora deixou de auferir montante não apurado (alteração operada pela Relação).

88. A Unidade de Platforming da Refinaria de Sines utiliza como matéria-prima a nafta pesada. (96º)

89. Esse produto é obtido na Unidade de Destilação Atmosférica da A. mas também pode ser adquirido no mercado. (97º)

90. Na Unidade de Platforming, do processamento de nafta pesada resultam os seguintes produtos finais: (i) Hidrogénio; (ii) Fuel-gas; (iii) GPL; (iv) Gasolina Platformada. (98º)

91. Em virtude das paragens na Unidade de Destilação Atmosférica, a Autora deixou de ter matéria-prima – nafta pesada – para manter a Unidade de Platforming a laborar normalmente. (100º)

92. Em concreto, entre os dias 1 e 11 de Julho a Unidade de Platforming esteve a funcionar a uma cadência inferior à normal. (101º)

93. Não era possível adquirir nafta pesada no mercado, por forma a manter a laboração da Unidade de Platforming, pois um fornecimento deste tipo levaria sempre cerca de 3 semanas. (102º)

94. A Unidade de Platforming deixou de processar entre os dias 1 e 11 de Julho de 2002, um total 12.971 toneladas de nafta pesada. (103º)

95. No mês de Julho de 2002, os produtos obtidos através do processamento da nafta pesada na Unidade de Platforming, tinham as seguintes cotações de mercado: (i) Hidrogéno - 440,30 USD por tonelada; (ii) Fuel-gas - 123,10 USD por tonelada; (iii) GPL -210,60 USD por tonelada; (iv) Gasolina Platformada - 277,80 USD por tonelada. (104º)

96. Por cada tonelada de Nafta Pesada, processado na Unidade de Platforming, eram obtidas as seguintes quantidades dos mencionados produtos finais: (i) Hidrogéno - 85 Kg; (ii) Fuel-gás - 1 Kg; (iii) GPL - 19 Kg; (iv) Gasolina Platformada - 893 Kg. (105º)

97. Com referência a Julho de 2002, com o processamento de cada tonelada de nafta pesada na Unidade de Platforming, a Autora obtinha produtos com um valor de mercado de 289,63 USD. (106º)

98. A matéria-prima utilizada (nafta pesada) tinha, em Julho de 2002, um valor de 224,20 USD por tonelada. (107º)

99. A Autora deixou de processar um total de 12.971 toneladas de nafta pesada na Unidade de Platforming, tendo um prejuízo de montante não apurado.

100. A Unidade de Craqueamento Catalítico em Leito Fluidizado (Unidade FCC) utiliza como matérias-primas:

(i) Gasóleo de Vácuo, obtido na Unidade de Destilação sob Vácuo por transformação do resíduo atmosférico obtido na Unidade de Destilação Atmosférica;

(ii) Resíduo Atmosférico, obtido na Unidade de Destilação Atmosférica. (109º)

101. Estes produtos são obtidos na Refinaria de Sines, respetivamente, na Unidade de Destilação sob Vácuo e na Unidade de Destilação Atmosférica – Gasóleo de Vácuo e Resíduo Atmosférico, mas o Gasóleo de Vácuo pode ser adquirido no mercado. (110º)

102. Na Unidade FCC, do processamento do gasóleo de vácuo e do resíduo atmosférico obtêm-se os seguintes produtos finais: (i) Fuel-gás; (ii) Propileno; (iii) Butileno; (iv) Gasolina; (v) Swing Cut (componente de gasóleo); (vi) LCO; (vii) Slurry (componente de fuel-óleo); (viii) Coque. (111º)

103. A Autora vende o Propileno e a Gasolina a terceiros e os restantes produtos são transferidos internamente (entre refinarias), com preços de transferência. (112º)

104. Em virtude das paragens na Unidade de Destilação Atmosférica, a Autora deixou de ter matéria-prima – Gasóleo de Vácuo e Resíduo Atmosférico – para manter a Unidade de FCC a laborar normalmente. (113º)

105. Entre os dias 1 e 11 de Julho a Unidade de FCC esteve a funcionar a uma cadência inferior à normal. (114º)

106. Não era possível adquirir Gasóleo de Vácuo ou Resíduo Atmosférico no mercado, por forma a manter a laboração da Unidade de FCC, pois um fornecimento deste tipo levaria sempre cerca de 3 semanas. (115º)

107. A Unidade de FCC deixou de processar entre os dias 1 e 11 de Julho de 2002, um total 22.847 toneladas de Gasóleo de Vácuo e Resíduo Atmosférico. (116º)

108. No mês de Julho de 2002, os produtos obtidos através do processamento do Gasóleo de Vácuo e do Resíduo Atmosférico na Unidade FCC, tinham as seguintes cotações de mercado: (i) Fuel-gás - 123,10 USD por tonelada; (ii) Propileno - 289,90 USD por tonelada; (iii) Butileno - 204,10 USD por tonelada; (iv) Gasolina - 236,60 USD por tonelada; (v) Swing Cut (componente de gasóleo) - 215,20 USD por tonelada; (vi) LCO - 193,50 USD por tonelada; (vii) Slurry (componente de fuel-óleo) - 154,10 USD por tonelada; (viii) Coque - 93,60 USD por tonelada; (117º)

109. Por cada tonelada processada na Unidade FCC, composta por 817 Kg de Gasóleo de Vácuo e 183 Kg de Resíduo Atmosférico, eram obtidas as seguintes quantidades dos mencionados produtos finais: (i) Fuel-gás – 55,26 Kg; (ii) Propileno – 62,52 Kg; (iii) Butileno – 109,38 Kg; (iv) Gasolina – 394,59 Kg; (v) Swing Cut (componente de gasóleo) – 102,97 Kg; (vi) LCO – 87,47 Kg; (vii) Slurry (componente de fuel-óleo) – 138,51 Kg; (viii) Coque – 48,16 Kg. (118º).

110. Com referência a Julho de 2002, com o processamento de cada tonelada de Gasóleo de Vácuo e Resíduo Atmosférico na Unidade FCC, a Autora obtinha produtos com um valor de mercado de 205,55 USD. (119º)

111. Cada tonelada de matéria-prima – composta de Gasóleo de Vácuo e Resíduo Atmosférico – processada na Unidade FCC, tinha em Julho de 2002, a cotações de mercado, um valor médio de 183,07 USD. (120º)

112. Tendo a Autora deixado de processar um total de 22.847 toneladas de Gasóleo de Vácuo e Resíduo Atmosférico na Unidade FCC, sofreu com isso um prejuízo de montante não apurado (alteração operada pela Relação).

113. A Unidade de Alquilação da Refinaria de Sines utiliza como matérias-primas: (i) Isobutano, obtido na Unidade de Destilação Atmosférica; (ii) Butileno, obtido na Unidade FCC. (122º)

114. Estes produtos (produtos cotados) Isobutano e Butileno são obtidos, respetivamente, na Unidade de Destilação Atmosférica e na Unidade FCC da Refinaria de Sines, mas podem ser adquiridos no mercado. (123º)

115. Na Unidade de Alquilação, do processamento do Isobutano e do Butileno resultam os seguintes produtos finais: (i) N – Butano; (ii) Gasolina Alquilada. (124º )

116. A Autora vende estes produtos a terceiros e transfere-os internamente, com preços de transferência. (125º)

117. Em virtude das paragens na Unidade de Destilação Atmosférica, a Autora deixou de ter matérias-primas – Isobutano e Butileno – para manter a Unidade de Alquilação a laborar normalmente. (126º)

118. Em concreto, entre os dias 1 e 3 de Julho a Unidade de Alquilação esteve a funcionar a uma cadência inferior à normal. (127º)

119. E entre os dias 4 e 10 de Julho esteve mesmo paralisada. (128º)

120. Não era possível adquirir Isobutano e Butileno no mercado, por forma a manter a laboração da Unidade de Alquilação, pois um fornecimento deste tipo levaria sempre cerca de 3 semanas. (129º)

121. A Unidade de Alquilação deixou de processar entre os dias 1 e 11 de Julho de 2002, um total de 5.777 toneladas de Isobutano e Butileno. (130º)

122. No mês de Julho de 2002, os produtos obtidos através do processamento do Isobutano e do Butileno na Unidade de Alquilação tinham as seguintes cotações de mercado: (i) N - Butano - 216,20 USD por tonelada; (ii) Gasolina Alquilada - 308,60 USD por tonelada. (131º)

123. Por cada tonelada processada – composta por 431 Kg de Isobutano e 569 g de Butileno – na Unidade de Alquilação eram obtidas as seguintes quantidades dos mencionados produtos finais: (i) N - Butano - 245 Kg; (ii) Gasolina Alquilada - 755 Kg. (132º)

124. Com referência a Julho de 2002, com o processamento de cada tonelada de Isobutano e Butileno na Unidade de Alquilação, a Autora obtinha produtos com o valor de mercado de 285,96 USD. (133º)

125. A matéria-prima utilizada – Isobutano e Butileno – tinha à data um valor médio de mercado de 216,20 USD por tonelada. (134º)

126. Tendo a Autora deixado de processar um total de 5.777 toneladas de Isobutano e Butileno na Unidade de Alquilação, a Autora sofreu um prejuízo não apurado.

127. A Unidade de Viscorredutor da Refinaria de Sines utiliza como matéria-prima o Resíduo de Vácuo. (136º)

128. Este produto – Resíduo de Vácuo – é obtido na Unidade de Vácuo, por transformação do Resíduo Atmosférico resultante da refinação do Crude realizada na Unidade de Destilação Atmosférica da Refinaria de Sines (137º)

129. Na Unidade de Viscorredução, do processamento do Resíduo de Vácuo resultam os seguintes produtos finais: (i) Off-gás; (ii) Nafta; (iii) Gasóleo de visbreaker; (iv) Resíduo de visbreaker. (138º)

130. A Autora vende esses produtos a terceiros e transfere-os internamente (entre refinarias), com preços de transferência. (139º)

131. Em virtude das paragens na Unidade de Destilação Atmosférica, a Autora deixou de ter matéria-prima – Resíduo de Vácuo – para manter a Unidade de Viscorredutor a laborar normalmente. (140º)

132. Em concreto, entre os dias 1 e 4 de Julho a Unidade de Viscorredutor esteve funcionar a uma cadência inferior à normal. (141º)

133. Entre os dias 5 e 10 de Julho esteve mesmo paralisada. (142º)

134. não era possível adquirir Resíduo de Vácuo no mercado, por forma a manter laboração da Unidade de Viscorredução. (143º)

135. A Unidade de Viscorredução deixou de processar entre os dias 1 e 11 de Julho de 2002, um total de 23.521 toneladas de Resíduo de Vácuo. (144º)

136. No mês de Julho de 2002, os produtos obtidos através do processamento do Resíduo de Vácuo na Unidade de Viscorredutor tinham as seguintes cotações de mercado: (i) Off-gás - 151,30 USD por tonelada; (ii) Nafta - 203,60 USD por tonelada; (iii) Gasóleo de visbreaker - 210,70 USD por tonelada; (iv) Resíduo de visbreaker - 88,50 USD por tonelada.(145º)

137. Por cada tonelada de Resíduo de Vácuo processada na Unidade de Viscorredutor, eram obtidas as seguintes quantidades dos mencionados produtos finais: (i) Off-gás – 17,45 Kg; (ii) Nafta – 18,81 Kg; (iii) Gasóleo de visbreaker – 65,45 Kg; (iv) Resíduo de visbreaker – 893,94 Kg. (146º)

138. Com referência ao mês de Julho de 2002, com o processamento de cada tonelada de Resíduo de Vácuo na Unidade de Viscorredutor, a Autora obtinha produtos com um valor de mercado de 99,38 USD. (147º)

139. A matéria-prima utilizada – Resíduo de Vácuo – tinha, em Julho de 2002, um valor de 83,40 USD por tonelada. (148º)

140. Tendo a Autora deixado de processar um total de 23.521 de toneladas de Resíduo de Vácuo na Unidade de Viscorredutor teve um prejuízo de montante não apurado.

141. Como consequência da paralisação dos Fornos de Destilação Atmosférica da Autora, nas distinta unidades afetadas, a Autora deixou de auferir lucros em montante não apurado.

142. Os tubos fornecidos pela 1ª Ré, após o processo de fabrico e a entrega dos materiais, para que estes fiquem aptos à realização do fim a que se destinam, é necessário um processo de montagem (corte e soldadura), que apenas poderá ser levado a cabo no local da entrega da mercadoria. (153º)

143. Os tubos referidos em D), quando entregues à Autora na Refinaria de Sines foram ali soldados, entre si, de modo a formar as referidas serpentinas; e instalados nos fornos de destilação atmosférica CC-H1A e CC-H1B. (154º)

143.(Repetido) Os tubos de especificação ASTM A-335 P9 ficaram inutilizados em 29/06/2002 e 30/06/2002 (respetivamente no que respeita aos tubos instalados no forno CC-H1A e CC-H1B). (155º)

144. No pedido de orçamento enviado pela FWF à 1ª Ré, em 24.06.1999 consta o seguinte: “II.3. CONDIÇÕES ESPECIAIS 4. Garantia dos equipamentos: (é requerido ao vendedor que leia o correspondente artigo das “FWF’S General Purchase Conditions”) e as condições especiais de compra da FWF segundo a edição de Junho 1999 Rev.0 24 meses desde o início da laboração industrial do equipamento (preparado para operar) e terminará o mais tardar 36 meses após a entrega no local”. (156º)

145. É frequente no tipo de equipamento – tubos – descritos em D) os compradores guardarem em stock o material fornecido, tal como fez a Autora relativamente aos tubos de manutenção de 1996. (157º)

146. A 1ª Ré aceitou a garantia referida em 156º e que a prática habitual da 1ª Ré é conceder garantia para os equipamentos descritos em D. a partir do início de laboração dos equipamentos, com um prazo máximo a partir da data de entrega quando os equipamentos não são logo utilizados, ou seja, quando o equipamento fica armazenado no local do destino. (158º)

147. A 1ª Ré nos certificados de material menciona ter procedido aos seguintes tratamentos térmicos: “10 minutos a 940 graus em ar; 60 minutos a 790 graus em ar; empera e revenido”. (160º a 163º)

148. De acordo com os certificados de material os tubos P9 devem apresentar uma microestrutura mantensítica. (164º)

149. A dureza pretendida com o tratamento térmico de revenido é na ordem de 240HV10. (165º)

150. A produção da 1.ª ré é certificada de acordo com a “Norma ISO” 9001/2000”. (166º)

151. Desde o dia 4 de Abril de 2000 até ao dia 30.06.2002, os referidos fornos sofreram diversas paragens decorrentes de greves laborais. (168º e 169º).

152. A Autora conhece as regras e procedimentos para paragem dos fornos e seu arrefecimento e que não pode sujeitar os fornos a temperaturas superiores a 730ºC. (181º)

153. A greve laboral que existiu conduziu à paralisação da refinaria e o desligar da unidade de destilação e o seu re-arranque. (182º).

154. Os trabalhos de substituição de tubos, depois de feita a preparação dos fornos e expulsão de gases, não se prolongam por mais de 3 dias, neles se incluindo aquecimento, soldaduras e testes. (183º)

155. As partes acordaram que a garantia bancária apresentada pela 1ª R à Autora, referida em EE, seria devolvida “no final do período de garantia previsto no capítulo II.2” da nota de encomenda. (189º)

156. Alguns dos tubos com a especificação técnica ASTMA-335 P9, não foram sujeitos ao tratamento térmico de revenido da sua especificação. (193º)

157. E cederam. (194°)

2. A questão de direito

Está em questão saber se o prazo de caducidade fixado no art. 917.º é atendível no caso de se estar perante venda de coisa defeituosa decorrente de obrigação genérica. Mais propriamente, se a ação de indemnização que foi proposta com fundamento na venda de coisa defeituosa está sujeita a tal prazo.

O acórdão recorrido decidiu que sim.

O acórdão-fundamento decidiu que não.

A ora Recorrente procura uma resposta igual à dada pelo acórdão-fundamento.

Cremos que a resposta que se impõe a esta questão é aquela que foi dada pelo acórdão recorrido, razão pela qual o presente recurso deve improceder.

Justificando:

Quando se verifique que a coisa vendida enferma de defeito - traduzindo-se este em algum vício que a desvaloriza ou impede a realização do fim a que é destinada, ou a coisa não apresenta as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização das respetivas finalidades - admite a lei a favor do comprador uma série de direitos. Conforme os casos, esses direitos são o direito à anulação do contrato por erro[2] (simples ou qualificado por dolo), à reparação da coisa, à substituição da coisa, à redução do preço e à indemnização.. É o que resulta do art. 913.º e seguintes, por aplicação direta ou mediante a aplicação remissiva do regime da venda de bens onerados (art. 905.º e seguintes).

A indemnização surge aqui associada à anulação do contrato (no sentido de que pressupõe a anulação) nos casos de erro, simples ou qualificado por dolo. Já a indemnização em caso de redução do preço e de reparação ou substituição da coisa passa à margem da existência de erro e da anulação do contrato. Fundando-se a anulação em erro simples apenas os danos emergentes do contrato (e não já os lucros cessantes) são atendidos; fundando-se a anulação em erro qualificado por dolo é atendido apenas o prejuízo que o comprador não teria sofrido se o contrato não tivesse sido celebrado (interesse contratual negativo ou de confiança); violando-se o dever de reparação ou de substituição da coisa ou sendo caso de redução do preço, nenhuma particularização indemnizatória é expressamente fixada. É o que se retira dos arts. 908.º, 909.º, 911.º, 914.º e 910.º.

Cremos - isto por estrita vinculação aos princípios dogmáticos inerentes aos correspondentes institutos - que o direito à anulação do contrato por erro, por um lado, e os demais mencionados direitos do comprador, por outro, assentam em fontes jurídicas diversas, ainda que subjacente lhes esteja sempre a mesma circunstância ou pressuposto: a venda de uma coisa defeituosa. Deste modo, embora se possa dizer que o regime da venda de coisas defeituosas é construído a expensas do erro, isto por referência a uma pressuposta garantia de que a coisa é entregue isenta de vícios, não se pode já dizer que todos os direitos assinalados ao comprador assentam no erro e na anulação do contrato. Trata-se de dois blocos juridicamente diferenciados, podendo inclusivamente haver uma relação de exclusão entre os direitos respetivos (o exercício do direito à reparação da coisa, por exemplo, exclui a anulação por erro, e vice-versa).

Na realidade, o direito à anulação do contrato conferido ao comprador, conquanto possa ser visto como tendo uma natureza distinta do direito à anulação por erro propriamente dito[3], tem por substrato um vício na formação da vontade (erro-vício), e não o conteúdo obrigacional vinculativo do contrato[4]. O direito à anulação tem como referência, pois, o momento estipulativo, normativo ou constitucional do contrato, ou seja, é contemporâneo da formação do contrato (que está inquinado ab initio), tendo como efeito próprio apenas a desconstrução (invalidação) do contrato.

Já os demais meios de tutela da posição do comprador, mesmo quando aparecerem associados ao erro e à consequente anulação do contrato, só podem ser vistos como encontrando a sua razão de ser ou justificação na não realização da prestação como seria contratualmente devida, ou seja, na inexecução (execução imperfeita ou imprópria) do programa contratual estabelecido ou pressuposto pelas partes[5]. Estes direitos têm por referência, pois, o mérito funcional da prestação (momento executivo ou de cumprimento do contrato), constituindo o correlato da obrigação contratual nuclear de entrega de uma coisa que preencha o que foi contratado. A reparação ou a substituição da coisa visa a um tempo a restauração in natura[6] e a realização específica da prestação contratada (direito ao cumprimento); a redução do preço visa uma adaptação do preço ao valor da coisa efetivamente prestada[7] (ajustamento do sinalagma); a indemnização visa a reparação do dano que do imperfeito desempenho contratual (em sentido lato; inclui-se aqui a responsabilidade in contrahendo identificável no art. 908.º, geradora do dano negativo ou de confiança aí admitido) advém ao comprador, tendo por fonte a responsabilidade civil do vendedor.

Isto posto, passemos ao cerne da questão.

Reportando-se ao exercício do direito de ação em caso de venda de coisa defeituosa, estabelece o art. 917.º que a ação de anulação por simples erro caduca findos os prazos de denúncia do defeito fixados no art. 916.º sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses (aqui sem prejuízo do disposto no n.º 2 do art. 287.º).

O acórdão recorrido decidiu que o art. 917.º era passível de aplicação, por interpretação extensiva, a qualquer outra pretensão – incluindo, portanto, a concreta pretensão indemnizatória que a Autora veio deduzir com base no interesse do cumprimento (prejuízo que para ela adveio do defeito e em consequência da não reparação ou substituição da coisa) - fundada no cumprimento inadequado do contrato. Mais decidiu que a obrigação em que a Autora estribou a ação tinha a natureza de obrigação genérica. Estes dois assentamentos não são objeto de discussão no presente recurso, muito pelo contrário, pois que é na pressuposição deles que o recurso é interposto. Trata-se, portanto, de dois pressupostos jurídicos que estão estabilizados, e é em função deles que importa, sem tergiversações ou adendas, decidir o recurso.

Contra o que a Recorrente se insurge é apenas contra a aplicação do prazo de caducidade fixado no art. 917.º à ação de indemnização que, como é pois o caso, tem por base o incumprimento de uma obrigação genérica. No seu entender tal norma aplica-se, sim, à ação de indemnização fundada na violação do contrato, mas apenas quando se está perante uma obrigação específica.

Mas afigura-se que não lhe assiste razão.

Efetivamente, não se encontra razão juridicamente atendível para dizer que o prazo de caducidade do art. 917.º vale no caso de venda de coisa determinada (obrigação específica[8]), e já não deve valer no caso de venda de coisa indeterminada de certo género (obrigação genérica[9]).

Segundo a orientação doutrinária e jurisprudencial a que deu a sua adesão o acórdão-fundamento, e que a Recorrente subscreve, o art. 917.º não teria aplicação em caso de obrigação genérica. Essa orientação, que vê no regime especial da venda de coisas defeituosas (art. 913.º e seguintes) uma vinculação à clássica garantia edilícia (que é própria da venda de coisas determinadas - “aquela coisa enquanto tal” - e logo transmitidas ao comprador), atribui ao art. 918.º a propriedade de afastar de tal regime a venda de coisa genérica (“uma coisa daquelas”).

Nesta base, a caducidade da ação fixada no art. 917.º seria de aplicação restrita aos direitos do comprador resultantes da venda de coisa determinada, mais propriamente da venda de coisa determinada defeituosa ao tempo da celebração do contrato e da coeva transmissão da propriedade. Já quando fosse caso de venda de coisa indeterminada de certo género nenhum prazo de caducidade teria lugar, pois que se trataria então de defeito não preexistente ou contemporâneo da venda. A situação seria de incumprimento do contrato, caso em que seriam aplicáveis as regras de direito comum relativas ao não cumprimento das obrigações. Nesta hipótese, por aplicação justamente das regras relativas ao não cumprimento das obrigações (art. 918.º), estaria o exercício dos direitos do comprador apenas limitado pelo prazo ordinário de prescrição de vinte anos (art. 309.º).

Esta clivagem de regimes, que corresponde aliás à visão tradicional sobre o tema, é afirmada por basta doutrina. Assim, João Calvão da Silva[10], escreve que a lei reporta a clássica garantia edilícia apenas aos vícios preexistentes ou contemporâneos da conclusão do contrato e que tem presente a venda de coisa específica, certa e determinada, e daqui que nos casos “de cumprimento imperfeito contemplados no art. 918.º e em que não há lugar à clássica garantia edilícia, as correspondentes acções de direito comum não estão sujeitas aos prazos curtos de denúncia e de caducidade estatuídos nos art.s 916.º e 917.º (…). [E]m termos práticos, a diferença e o grande alcance do art. 918.º relativamente ao regime da dita garantia por vícios, modelado este para a coisa específica, reside na preclusão da opção pela anulação do contrato, em coerência com a circunstância de os defeitos não serem preexistentes ou contemporâneos da venda, mas posteriores á sua conclusão. No restante, como a lei estabelece um regime bifásico da garantia decorrente do erro ou do cumprimento imperfeito, sempre que o comprador opte por se situar e defender os seus interesses neste segundo pólo não se divisam diferenças significativas de disciplina, para além da relativa aos prazos curtos de denúncia e caducidade a que a acção de garantia está sujeita (art.s 916.º e 917.º).”

Dentro da mesma linha, apresenta Jorge Morais Carvalho[11] a seguinte justificativa: “Quanto às coisas indeterminadas de certo género, é necessário perceber que coisa defeituosa e coisa genérica são dois conceitos que, por definição, dificilmente se podem conjugar. Assim, as características com que as partes moldam o género não incluem defeitos, excepto no caso anómalo de as partes terem definido um género em que as coisas que devem ser entregues são, segundo os usos do comércio, defeituosas, mas, ainda assim, não são defeituosas para as partes, pelo que não se trata de coisa defeituosa (…). O preceito [artigo 918.º] estabelece, portanto, um regime diverso em relação ao que resulta do art. 913.º (…). Neste caso são aplicáveis as normas que tratam do não cumprimento das obrigações, solução adequada, tendo em conta que o devedor não cumpre a obrigação genérica com a entrega de uma coisa que não tenha as características (…).”

No mesmo sentido se movem António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto[12] ao escreverem que “A subtração do regime da venda de coisa genérica defeituosa aos arts. 913.º e sgts. e a aplicação das regras sobre não cumprimento das obrigações, é (…) justificada (…)” e que “(…) diferentemente do que acontece na venda de coisa específica, não existirá, na venda de coisa genérica, concurso entre as disposições sobre a venda de coisas defeituosas, dos arts. 913.º e segs., e as regras gerais do não cumprimento das obrigações (artigo 798.º e segs.), porque só estas serão aplicáveis nos termos da remissão do artigo 918.º. E isto, em conformidade com a diversa configuração da situação, que faz com que na venda de coisa genérica se não verifique o pressuposto que levou a eliminar a relevância autónoma dos defeitos, remetendo para o erro ou dolo, mas antes uma situação de cumprimento imperfeito.”

Por último, cite-se Luis Menezes Leitão[13]: “Daqui [do artigo 918.º] resulta que, sempre que os defeitos da coisa específica comprada, já existentes no momento da venda, não é aplicável o regime dos arts. 913.º e ss., baseado primordialmente na consideração da situação como erro ou dolo, que viciou o contrato. Antes se manda aplicar o regime do não cumprimento das obrigações.”

Cremos, porém, que a devida interpretação da lei deve levar a conclusões diferentes.

Como já decorreria do que acima se mencionou, é aceitável a ideia, comummente afirmada aliás[14], de que entre o regime da venda de coisa específica e o regime da venda genérica há uma “distinção fundamental de regime”, na medida em que o art. 913.º do Código Civil constrói o regime da venda de coisa específica a partir do regime do erro[15] e o art. 918 constrói o regime da venda de coisa genérica defeituosa a partir do regime do não cumprimento. Todavia, e como também já se tem observado[16] e que de igual forma se mencionou acima, os arts. 913.º a 917.º não se limitam a regular sobre o erro, antes combinam efeitos próprios da disciplina do erro (com a consequência da anulabilidade) e efeitos próprios da disciplina do não cumprimento (com os consequentes demais direitos assinalados ao comprador).

Ora, estes últimos direitos, onde se inclui nomeadamente o direito à indemnização pelo dano da violação do contrato, não se fundam no erro mas sim no não cumprimento (no figurino de cumprimento defeituoso ou imperfeito) do contrato. A indemnização visa aqui reparar um dano, tem como fonte a responsabilidade civil e supõe naturalmente a não invalidação do contrato por erro. De facto, e parafraseando Pedro Romano Martinez[17], com o que não se pode deixar de concordar, “o regime do erro mostra-se impotente para explicar os direitos de eliminação dos defeitos, de substituição da coisa, de redução do preço e de indemnização, que se fundam unicamente no cumprimento defeituoso”. O direito à indemnização, diz-nos de igual forma Nuno Pinto Oliveira[18], “funda-se no contrato e no seu incumprimento, não depende do erro”.

E se o regime do erro sobre o objeto (que é o tipo de erro que as hipóteses do art. 913.º podem elicitar) não parece mostrar-se apto a regular para a venda de coisa indeterminada de certo género, já o regime do incumprimento do contrato se mostra inteiramente apto a regular tanto para a venda de coisa determinada como, após a determinação da coisa, para a venda de coisa indeterminada de certo género. Não há a menor razão para distinguir, a não ser à luz de uma perspetiva puramente conceptual.

Tudo exatamente como aponta Nuno Pinto Oliveira[19], ao escrever que «Os efeitos próprios da disciplina do erro, simples ou qualificado, não podem aplicar-se à compra e venda de coisa genérica; os efeitos próprios da disciplina do não cumprimento (= do cumprimento defeituoso), sim.

Os efeitos próprios da disciplina do erro não podem (logicamente) aplicar-se, porque não há erro; não havendo erro, simples ou qualificado, há um obstáculo intransponível à aplicação do art. 251 ou dos arts. 253 e 254, por remissão dos arts. 905 e 913; os efeitos próprios da disciplina do não cumprimento (= do cumprimento defeituoso) podem aplicar-se, porque há não cumprimento (= cumprimento defeituoso) do contrato de compra e venda; havendo não cumprimento (= cumprimento defeituoso), não há nenhum obstáculo intransponível à aplicação, p. ex., do art. 914.”

Por isso, acrescenta o mesmo autor, “Em vez de se perguntar se os arts. 913 a 917 do Código Civil devem aplicar-se à compra e venda de coisa genérica, deve perguntar-se se os efeitos próprios da disciplina do não cumprimento, consagrados nos arts. 913 e 917, devem aplicar-se à compra e venda de coisa genérica, depois de a coisa devida ter sido determinada, através da concentração.»

E a resposta a esta pergunta não poderá, quanto a nós, deixar de ser afirmativa.

Como resulta inclusivamente do que acima se transcreveu de João Calvão da Silva (“…não se divisam diferenças significativas de disciplina, para além da relativa aos prazos curtos de denúncia e caducidade a que a acção de garantia está sujeita…”), seja a obrigação genérica seja a obrigação específica, o que é facto é que, apresentando a coisa vendida e entregue defeito imputável contratualmente ao vendedor, estamos sempre perante um mesmo preciso fenómeno jurídico: o não cumprimento (rectius cumprimento imperfeito) da obrigação.

Daqui que o regime jurídico que esse incumprimento possa suscitar deva ser o mesmo em qualquer um dos casos, não se logrando inteligir por que razão iria o legislador determinar que uma parte desse regime – com projeção no regime de caducidade fixado nos art.s 916.º e 917.º - devesse ser excetuado. O próprio autor que acaba de ser citado (João Calvão da Silva) apresta-se logo[20] como que a significar que uma diversidade de regimes carece de sentido, aí onde passa a expender que “(…) a boa fé impõe ao comprador [de coisa genérica] que accione o vendedor sem delongas desmesuradas e injustificadas no circunstancialismo concreto do caso, sob pena de poder incorrer em abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium. (…) Assim, pela boa fé, superar-se-á a exagerada diferença de regime no tocante aos prazos na venda de coisa específica e na venda de coisa genérica – os prazos estatuídos nos art.s 916.º, n.º 2 e 917.º são excessivamente curtos, ao passo que o prazo ordinário da prescrição é muito longo (art. 309.º) – pressentindo-se a necessidade de uma nova e uniformizadora configuração geral da matéria (…)”.

Ora, exatamente como afirma Nuno Pinto Oliveira[21] «o alcance da “distinção fundamental de regime” entre a venda de coisa específica e a venda de coisa genérica deve relativizar-se: Entre os direitos relacionados com o erro, simples ou qualificado, há uma “distinção fundamental de regime”. Entre os direitos relacionados com o não cumprimento, na modalidade de cumprimento defeituoso (…) não há distinção alguma. Entre o não cumprimento, na modalidade de cumprimento defeituoso, do contrato de compra e venda de coisa específica e o não cumprimento, na modalidade de cumprimento defeituoso, do contrato de compra e venda de coisa genérica não haveria nenhuma “diversidade de situações” impeditiva de uma aplicação indirecta (de uma “aplicação analógica”) ou sequer de uma aplicação directa dos arts. 913 ss. ao contrato de compra e venda de coisa genérica.»

É certo que, diferentemente do que sucede com a venda e coeva entrega de coisa determinada, na venda de coisa indeterminada de certo género a venda não coenvolve a presença de uma coisa defeituosa. Porém, com a individualização da coisa a transmitir e com a concentração da obrigação a eventualidade do defeito ressuma, e a partir daí pode-se falar com inteira propriedade em venda de coisa defeituosa.

Na realidade, específica ou genérica a obrigação, o que é certo é que o vendedor está em qualquer dos casos vinculado desde o início a uma prestação que, dentro do programa contratual estabelecido ou pressuposto, seja perfeita, isto é, que cumpra os propósitos do contrato e satisfaça os correspondentes interesses do comprador. E nesse perímetro inclui-se, em qualquer um desses casos, a idoneidade, qualidade ou adequação da prestação. E tanto assim é no tocante também à obrigação genérica, que o art. 400.º, n.º 1 dispõe que a determinação da prestação deve ser feita, salvo acordo em contrário, segundo juízos de equidade. Obedecer à equidade significa, diz-nos Antunes Varela[22], que o devedor (neste caso o vendedor) não pode, por princípio, entregar, em prejuízo do credor (neste caso o comprador), coisas de pior qualidade. Enfim, não deixa de valer aqui o que escreve Luis Menezes Leitão[23]: “(…) independentemente de a coisa ser específica ou genérica, o vendedor tem sempre a obrigação de a entregar em conformidade com o contrato, considerando-se existir incumprimento, sempre que se verifique alguma falta de conformidade”.

Como sobredito, os direitos que para o comprador advêm do cumprimento imperfeito do contrato têm por referência o momento executivo, funcional ou de cumprimento do contrato. O regime indemnizatório inerente à venda de coisa defeituosa, seja a obrigação específica seja genérica, opera nesse domínio. Tratando-se de obrigação genérica, a concentração, individualização, escolha ou especificação da coisa ocorre nessa fase ou antes (v. art. 541.º), tornando-se então determinada a coisa. Determinada a coisa, e como nos diz Antunes Varela[24], a obrigação genérica passa a obrigação específica, com a consequente vinculação do obrigado à adequada prestação da coisa determinada dentro do género.

A conclusão a extrair do que fica dito é que, à parte a questão da anulabilidade fundada no erro, o regime especial do art. 913.º e seguintes, que corresponde na realidade apenas a uma explicitação ou particularização do regime geral do não cumprimento[25], é de aplicação tanto à venda de coisa determinada como à venda de coisa indeterminada de certo género. Tal regime especial não se opõe ao regime geral, que também admite, por exemplo, a reparação ou substituição da coisa[26] e a sucedânea indemnização por danos resultantes da inobservância desses deveres (como é o caso vertente). Do mesmo passo que as regras gerais relativas ao não cumprimento das obrigações (por exemplo as que se referem à resolução do contrato por incumprimento do devedor[27]) não deixam de ser passíveis de aplicação tanto à venda de coisa específica como à venda de coisa indeterminada de certo género.

Dentro deste registo, escreve Nuno Pinto Oliveira[28] que «O princípio de que o regime da compra e venda de coisa genérica devia construir-se através de uma aplicação cumulativa do regime geral do não cumprimento dos contratos e do regime especial do não cumprimento, na modalidade de cumprimento defeituoso, do contrato de compra e venda, exige uma distinção entre os casos em que há (pode haver) concurso – em que estão (podem estar) preenchidos os pressupostos da aplicação dos dois regimes – e os casos em que não há (não pode haver) concurso.

Entendendo-se, como deve entender-se, que “as normas específicas dos arts. 913 ss. dependem, por natureza, da entrega da coisa” concluir-se-á que, antes da entrega da coisa ao comprador não há (não pode haver) concurso - à compra e venda de coisa genérica aplicar-se-á exclusivamente a disciplina geral do não cumprimento -; depois da entrega da coisa ao comprador há (pode haver) concurso entre os dois regimes.»

Vistas as coisas com esta linearidade, como se afigura que devem ser vistas, não se logra identificar um racional que justifique uma diferenciação de regimes consoante a prestação imperfeitamente cumprida tenha na origem uma obrigação específica ou uma obrigação genérica. Exatamente como acaba por concluir Nuno Pinto Oliveira[29], ao escrever que: “O regime especial do não cumprimento, na modalidade de cumprimento defeituoso, do contrato de compra e venda, consagrado no art. 913.º e ss do Código Civil, deve aplicar-se à compra e venda de coisa genérica, depois de a coisa devida ter sido determinada/individualizada, através da concentração”.

Sobre esta matéria diz-nos ainda Pedro Romano Martinez[30]:

“Tem sido frequente admitir-se que o regime é diverso, consoante a coisa esteja ou não determinada; mais concretamente, considera-se que, faltando a qualidade, a teoria dos vícios redibitórios tem aplicação sendo a obrigação específica, mas não se for genérica, pois, neste último caso, o problema é de incumprimento do contrato. (…)

No sistema jurídico português, tal distinção não pode ser aceita.

Tanto no caso de a coisa ser determinada como indeterminada, os atributos de qualidade fazem parte da prestação devida.

Por outro lado, a obrigação genérica transforma-se em específica com a concentração e esta, por via de regra, verifica-se aquando do cumprimento, mas nunca depois deste (art. 541.º). Assim sendo, não pode haver cumprimento defeituoso de obrigação genérica; o defeito da prestação só se pode reportar a uma coisa específica. (…) na compra e venda de coisa específica ou genérica, a garantia derivada do cumprimento defeituoso tem sempre o mesmo conteúdo.”

Impõe-se concluir, portanto, que a atuação dos direitos, entre estes o direito à indemnização, que emergem do deficiente cumprimento da obrigação genérica está, tal como sucede com a obrigação específica, submetida ao prazo de caducidade do art. 917.º. É a consequência lógica de se considerar que o fundamento desses direitos reside na violação do contrato e de se ter por aplicável tal norma a todas as pretensões emergentes da venda de coisas defeituosas.

E nem poderia ser de outra forma, sob pena de se cair num inaceitável absurdo. Se é comprado e entregue aquela concreta coisa que se encontra disponível na loja, mas que apresenta defeito de funcionamento, o comprador teria seis meses, sob pena de caducidade, para acionar o vendedor; se na mesma ocasião o mesmo comprador compra uma segunda coisa da mesma marca, modelo e com as mesmas funcionalidades, e que, dentro da sua embalagem de fabrico, vai ser retirada do stock da loja e assim entregue ao comprador, mas que apresenta idêntico defeito, só ao fim de quarenta vezes mais tempo (vinte anos) é que o comprador seria normalmente confrontado com um obstáculo ao exercício do seu direito. Não se afigura que o legislador, de quem se espera que tenha consagrado soluções sensatas e racionais (v. art. 9.º, n.º 3)[31], tenha pretendido uma tal diferenciação de regimes. Cabe aqui referir que não faz sentido, segundo cremos, tentar solucionar este anacronismo à luz da figura do abuso do direito (como há quem faça). O abuso do direito (questão subsequente) funciona como um remédio numa situação concreta, não podendo ser convocado utilmente para justificar ou dar sentido à bondade de uma certa interpretação da lei (questão precedente).

De outro lado, vem a propósito observar que em outros demais instrumentos jurídicos nacionais, como é o caso do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro (que regula sobre os direitos do consumidor na compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais, transpondo as Diretivas (UE) 2019/771 e (UE) 2019/770), o legislador não procede a qualquer diferenciação em matéria de caducidade (de curto prazo) dos direitos do comprador fundada na natureza (específica ou genérica) da obrigação. E isto é sinal eloquente, que vale como critério de interpretação à luz da unidade do sistema jurídico (art. 9.º, n.º 1), de que o legislador entende que nada se justifica diferenciar a esse nível. E o mesmo se diga do (entretanto revogado) Decreto-Lei n.º 67/2003, que, transpondo a Diretiva 1999/41/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, estabelecia o regime legal aplicável à defesa dos consumidores. O mesmo se diga ainda (isto até à alteração que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, que transferiu para o domínio deste diploma a questão do prazo do exercício dos direitos do comprador) da chamada Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de Julho).

Também neste sentido se pronuncia Nuno Pinto de Oliveira. Escreve este autor[32] que «Entendendo-se – como deve entender-se – que seria de todo em todo absurdo que uma lei – a Lei 24/96, de 31 de Julho – que estabelece um regime jurídico de “defesa dos consumidores” tivesse o efeito de consagrar uma solução que em nada os defende ou que um decreto-lei – o Decreto-Lei 67/03, de 08 de Abril, que estabelece um regime jurídico de “garantia” dos consumidores, com a “preocupação central” de “evitar que a transposição da directiva pudesse ter como consequência a diminuição do nível de protecção […] reconhecido […] ao consumidor”, tivesse o efeito de consagrar uma solução que em nada os “garante”, deve retirar- -se dos antigos arts. 4 e 12 da Lei 24/96, de 31 de Julho, e dos novos arts. 5 e 5-A do Decreto-Lei 84/08, de 21 de Maio, um argumento sistemático intransponível no sentido de que os arts. 916, ns. 2 e 3, e 917 do Código Civil devem aplicar-se à compra e venda de coisa genérica.»

Enfim, resta dizer que as razões que estão na base da fixação do curto prazo de caducidade do art. 917.º tanta razão de ser têm no caso da obrigação específica como no caso da obrigação genérica.

Como se escreve no Acórdão Uniformizador n.º 2/97 deste Supremo Tribunal de Justiça[33], “A caducidade tem por objetivo evitar o protelamento do exercício de certos direitos por lapsos de tempo dilatados, levando-os a que se extingam pelo decurso do prazo fixado. Prevalecem considerações de certeza e de ordem pública, no sentido de ser necessário que, ao fim de certo tempo, as situações jurídicas se tornem certas e inatacáveis. Estão em causa prazos peremptórios de exercício do direito. (…)[T]endo a caducidade por objectivo conferir certeza às situações jurídicas e solucionar com brevidade os conflitos, não pode deixar de se concluir que os prazos a ela respeitantes, incluindo os do direito de acção, são normalmente curtos”. No caso da venda de coisa defeituosa, pretende-se, mais concretamente, evitar no interesse do vendedor, do comércio jurídico e da paz social a pendência por um período dilatado de um estado de incerteza sobre o destino do contrato ou cadeia negocial e as dificuldades de prova dos vícios anteriores ou contemporâneos à entrega da coisa[34].

Ora, isto tão válido e útil se apresenta no caso da venda de coisa determinada como no caso de venda de coisa indeterminada de certo género. Aliás, num mundo atual globalizado, com um comércio largamente apoiado em produção e distribuição em massa[35], e em contratação à distância e mediante o recurso a plataformas digitais (em que a compra tem invariavelmente por referência, não uma qualquer coisa concreta ou individualizada, mas sim fotografias, catálogos e especificações técnicas de coisas do género), poderá até dizer-se que tais razões valem com maior acuidade para a obrigação genérica que para a obrigação específica. É certo que uma das justificativas que têm levado à extensão do aludido prazo de caducidade (da ação de anulação) aos restantes meios jurídicos postos à disposição do comprador assenta na ideia de que, de outra forma, poderia ser iludida a caducidade da ação de anulação mediante a obtenção de resultados equivalentes[36], e a verdade é que hipótese de anulação não se coloca no caso da obrigação genérica. Contudo, mesmo fora dessa hipótese se justifica a extensão, na medida em que nem por isso deixam de estar em causa na obrigação genérica exigências de estabilização do contrato e de paz social, bem como são igualmente atendíveis as dificuldades de prova dos vícios à data da individualização e entrega da coisa. Convir-se-á que nada disso se cumpriria adequadamente se o vendedor se pudesse ver confrontado ao fim de quinze ou vinte anos com o exercício de um direito à reparação, substituição ou indemnização, ainda que o comprador apenas na véspera tivesse descoberto o defeito.

Também neste particular será pertinente trazer à colação a argumentação adicional avançada por Nuno Pinto Oliveira[37], e que não pode deixar de ser subscrita. Escreve este autor que «Em relação aos prazos de caducidade, ainda que nenhum argumento pudesse retirar-se dos trabalhos preparatórios da lei, a aplicação do art. 916, ns. 2 e 3, e do art. 917 do Código Civil à venda de coisa genérica sempre se justificaria por razões sistemáticas e teleológicas. (…) Os dois argumentos decisivos para que o legislador sujeitasse o comprador de coisa específica aos prazos curtos de caducidade dos arts. 916 e 917 procedem plenamente para o comprador de coisa genérica. (…) Em primeiro lugar, ainda que o contrato de compra e venda de coisa genérica não seja anulável por erro, o comprador tem ou, pelo menos, pode ter um direito potestativo de resolução do contrato. Em termos em tudo semelhantes à venda de coisa específica, a venda de coisa genérica defeituosa causa incerteza sobre a atribuição/distribuição dos direitos de propriedade. (…) Em segundo lugar, ainda que o contrato de compra e venda de coisa genérica não seja anulável por erro – e não possa, por isso, falar-se em “procedência da anulação” –, o comprador tem o encargo de provar que a coisa tem o defeito e o vendedor tem ou, pelo menos, pode ter o encargo de provar que o comprador conhecia o defeito ou que, desconhecendo-o, devia conhecê-lo. Em termos em tudo semelhantes à venda de coisa específica, a venda de coisa genérica defeituosa causa incerteza sobre os factos de que depende a atribuição/distribuição dos direitos de propriedade. (…) O art. 921 do Código Civil, sobre a garantia de bom funcionamento, constitui a contraprova da adequação sistemática e teleológica da aplicação do art. 916, ns 2 e 3, e do art. 917 à venda de coisa genérica. (…) O dever (do vendedor) de garantir o bom funcionamento da coisa vendida pode aplicar-se à venda de coisa específica ou à venda de coisa genérica. Em regra, aplicar-se-á à venda de coisas genéricas (…). Estando em causa a venda de coisa específica, os prazos de garantia, de denúncia e para o exercício dos direitos aplicáveis à venda com garantia de bom funcionamento – art. 921 – coincidem com os prazos de garantia, de denúncia e para o exercício dos direitos aplicáveis à venda sem garantia de bom funcionamento – arts. 916, ns. 2 e 3, e 917 –; estando em causa a venda de coisa genérica, os prazos de garantia, de denúncia e para o exercício dos direitos coincidirão desde que os arts. 916, ns. 2 e 3, e 917 se apliquem, e não coincidirão desde que não se apliquem. (…) Entre uma interpretação da lei adequada para alcançar a coerência e uma interpretação da lei desadequada para a alcançar, deve preferir- -se a primeira – ou seja, deve preferir-se a interpretação de que decorre a aplicação dos arts. 916, ns. 2 e 3, e 917 do Código Civil à venda genérica.»

Chegados a este ponto, e como já se pode intuir, é de dizer que a boa interpretação do art. 918.º não leva à inaplicabilidade do art. 917.º à venda de coisa indeterminada de certo género.

Estabelece-se nessa primeira norma, e entre o mais, que se a venda respeitar a coisa indeterminada de certo género, são aplicáveis as regras relativas ao não cumprimento das obrigações.

Observe-se desde logo, e repetindo, que à venda de coisa determinada também não deixam de ser aplicáveis as regras gerais relativas ao não cumprimento das obrigações, de sorte que a suposta clivagem de regimes jurídicos à luz do art. 918.º seria na verdade pouco compreensível.

Mas, à parte isso, é de dizer que o art. 918.º não visa estabelecer qualquer diversidade de regimes relativamente ao incumprimento da obrigação consoante esta seja específica ou genérica. Na realidade, e como resulta da exposição de Manuel Carneiro da Frada[38], tal norma não pretende excluir a aplicação dos direitos relacionados com o não cumprimento, na modalidade de cumprimento defeituoso, à venda de coisa genérica. Não faria, na verdade, sentido algum que o comprador de coisa genérica não pudesse, por exemplo, exigir, tal como permite o art. 914.º, a reparação ou a substituição da coisa defeituosa que lhe foi entregue, ou a indemnização sucedânea, efeitos estes, e como sobredito, também alcançáveis em sede das regras relativas ao não cumprimento das obrigações.

O real sentido da norma há de ser outro.

Pires de Lima e Antunes Varela como que acabam por desvalorizar objetivamente as diferenças entre uma e outra hipótese, ao aduzirem[39] que o princípio da justiça comutativa subjacente a todos os contratos onerosos, em geral, e à compra e venda, em especial, determina que o regime da venda de coisas defeituosas se aplique indistintamente a situações em que nenhum erro existe, por parte do comprador, na formação do contrato.

E mais adiante[40] escrevem que os preceitos de maior interesse sobre o não cumprimento das obrigações, aplicáveis por força do art. 918.º, são os relativos ao risco. Escrevem estes mestres, a propósito, que “Tendo havido transferência da propriedade ou da titularidade do direito (cfr. art. 408.º, n.º 1), o risco corre por conta do adquirente, salvo se a deterioração for imputável ao vendedor. É a regra do n.º 1 do artigo 796.º. (…) Tratando-se de coisa indeterminada de certo género (…) os princípios são outros, visto não haver, por efeito imediato do contrato, transferência da propriedade ou do direito (arts. 408.º, n.º 2 e 880.º). (…) há que atender ao disposto no artigo 540.º: genus nunquam perit. A deterioração das coisas com que o vendedor se dispunha a cumprir não afecta o negócio, nem limita a responsabilidade dele.”

Dentro da mesma linha, aporta Manuel Carneiro da Frada[41] que o art. 918.º pretende sobretudo salvaguardar a distribuição legal do risco. Escreve este autor que “O alcance desta disposição é sobretudo o de salvaguardar, quanto aos vícios redibitórios, a distribuição legal do risco da perda ou deterioração da coisa, disseminada por diversos locais do Código. Daqui resulta que, em princípio, as disposições da venda de coisa defeituosa só se aplicarão quando o risco da perda das qualidades se tiver transferido já para o comprador de acordo com as regras gerais. Só então o comprador poderá invocar que a perda dessas qualidades resultava de defeito que onerava a coisa ao tempo da passagem do risco, em termos de lançar mão contra o vendedor dos meios de tutela que a lei lhe confere nos arts. 913º e seguintes”.

Também Pedro Romano Martinez[42] aduz, a propósito, o seguinte:

“Na medida em que o referido preceito [artigo 918.º] manda aplicar as regras relativas ao cumprimento das obrigações quando a coisa for indeterminada de certo género, poderia concluir-se, a contrario sensu, que, nos demais casos, tal regime não teria aplicação. Esta dualidade seria absurda e não pode estar consagrada na lei. Não se justifica que nas obrigações genéricas o regime da responsabilidade por cumprimento defeituoso seja diverso do das específicas. (…)

Como seria absurdo que o art. 918.º pretendesse estabelecer, para a compra e venda de coisas futuras e indeterminadas, um regime de responsabilidade por cumprimento defeituoso diverso do previsto nos arts. 913.º ss, há que retirar outro sentido ao preceito. No art. 918.º, o legislador pretendeu unicamente esclarecer que, nos casos previstos na disposição legal, encontram aplicação as regras gerais relativas à transferência da propriedade e do risco; ou seja, o regime do cumprimento defeituoso, previsto nos arts. 913.º ss, destina-se também a regular os casos de venda de coisa indeterminada, após a transferência da propriedade ou do risco. Nestes termos, do preceito em causa não é lícito retirar qualquer conclusão a contrario, no sentido de ter sido estabelecido um regime diverso, porque tal ilação opor-se-ia ao espírito do sistema.”

Tendo em conta o que já ficou dito acima, cremos que o art. 918.º, à parte a questão do direito à anulação do contrato, nem pela sua letra nem pelo seu espírito está a estabelecer uma clivagem radical de regimes entre a venda de coisa genérica e a venda de coisa específica em matéria dos direitos que assinala ao comprador em decorrência da imperfeita execução do contrato. Portanto, o sentido útil que se pode retirar da norma ao remeter para as regras relativas ao não cumprimento das obrigações, é justamente o de se ter pretendido diferenciar esses dois tipos de venda em termos de risco da perda ou deterioração da coisa.

Mas a par desta estatuição, afigura-se que o sentido da norma, porventura até o mais precípuo, se traduz ainda em significar que quando a venda respeita a coisa indeterminada de certo género não se aplica o regime da venda de coisas defeituosas fundado no erro (sobre que, repete-se, é construída a venda de coisa determinada), mas sim o regime obrigacional que do cumprimento defeituoso resulta. Regime este que, repetindo, tanto vale para a venda de coisa determinada como para a venda de coisa indeterminada de certo género, e que é integrado pelo regime especial respeitante à imperfeita execução imputável ao vendedor e pelo regime geral do não cumprimento das obrigações. Isto mesmo nos diz Nuno Pinto de Oliveira[43], ao escrever que “O art. 918 do Código Civil quer, seguramente, significar que o comprador de uma coisa indeterminada de certo género não tem o direito potestativo de anulação do contrato por erro simples ou por erro qualificado (por dolo)” e que “o art. 918 consagra, explícita ou implicitamente, o princípio de que o regime da compra e venda de coisa genérica deve construir-se através de uma aplicação cumulativa do regime geral do não cumprimento dos contratos e do regime especial do não cumprimento, na modalidade de cumprimento defeituoso, do contrato de compra e venda.”

Pelo exposto, impõe-se a conclusão de que o curto prazo de caducidade previsto no art. 917.º também é aplicável à venda de coisa indeterminada de certo género, não sendo essa aplicação prejudicada pelo disposto no art. 918.º. Exatamente como acaba por concluir Nuno Pinto Oliveira[44]: “Entre as disposições do regime especial do não cumprimento, na modalidade de cumprimento defeituoso, do contrato de compra e venda que devem aplicar-se à venda de coisa genérica estão os arts. 916.º e 917.º do Código Civil.”

O que vem de ser dito está, no essencial, em linha com a jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal de Justiça[45]. Assim, escreve-se no acórdão de 30 de junho de 2020 (Processo n.º 3007/16.2T8LRA.C1.S1, com sumário disponível em www.stj/jurisprudência/sumários) que «(…) há a considerar que a interpretação do artigo 918.º do Código Civil, no sentido de conduzir a um diferente regime quanto ao prazo de caducidade, consoante se trate de obrigações específicas ou genéricas, não deixa de ser (…) “bizarra”, distinguindo-se onde nada há que justifique a distinção (…). Na verdade, compreende-se muito mal que, quer quanto à denúncia dos defeitos, quer quanto à tempestividade da vinda a tribunal, a venda de coisas específicas com defeito tenha um regime bastante “apertado” e que tais prazos repousem no prescricional geral de vinte anos, se se tratar de coisas genéricas. (…) Em vinte anos muda tanto no que respeita ao comum das coisas genéricas, à evolução de quem vendeu ou de quem comprou que uma ação intentada perto do fim do prazo raiava, por regra, o absurdo. (…) É certo que poderíamos estar perante situações de abuso de direito na modalidade da “supressio” (…). Só que, o próprio abuso do direito é um remédio atenta a situação concreta e não um contrabalanço relativamente a uma interpretação da lei.»

E no acórdão de 16 de março de 2011 (Processo n.º 558/03.2TVPRT.P1.S1, com texto disponível em www.dgsi.pt) entende-se que (transcreve-se o sumário, na parte relevante): “2. O artigo 918.º do Código Civil não deve ser interpretado no sentido de conduzir a um regime diferente, quanto ao prazo de caducidade, consoante se trate de obrigações específicas ou de obrigações genéricas. 3. O artigo 917.º do mesmo código deve ser interpretado em ordem a abranger todas as ações emergentes de cumprimento defeituoso.”

Foi a uma tal conclusão que, com fundamentação no essencial coincidente com a que fica exposta, chegou o acórdão recorrido, e, pelo que fica dito, afigura-se que o fez de forma juridicamente correta.

Argumenta a Recorrente, todavia, que os elementos literal, sistemático e histórico a levar em linha de conta para a devida interpretação dos art.s 913.º a 918.º imporiam a conclusão de que o prazo de caducidade do art. 917.º não tem lugar em caso de venda de coisa defeituosa que assenta em obrigação genérica.

No que tange aos elementos literal e sistemático, basta remeter para o que acima se expôs, do que decorre que tais elementos de interpretação não dão respaldo ao entendimento da Recorrente. Pelo contrário, a pretendida diferenciação do regime aplicável ao incumprimento (imperfeita execução) é que não encontra apoio na letra da lei (ou, no limite, esse apoio seria meramente aparente) nem na unidade do sistema jurídico.

No que respeita ao elemento histórico, é certo que no projeto inicial de Inocêncio Galvão Telles se propunha a sujeição da venda de coisa indeterminada de certo género ao curto prazo de caducidade que veio depois a constar do art. 917.º, como certo é que, aquando da 2ª Revisão Ministerial, a menção a tal sujeição foi suprimida. Na perspetiva da Recorrente, apoiada literalmente no acórdão-fundamento, “se algo se pode inferir daqui é que os direitos do comprador no caso do art. 918.º do Código Civil deixaram de ficar sujeitos às disposições (…) sobre denúncia e caducidade (arts. 916.º e 917.º do CC)”.

Cremos, todavia, que a supressão de tais dizeres não esclarece muito.

É que não há mais razão para pensar que tal supressão teve como propósito o afastamento da caducidade, como para pensar que isso aconteceu porque era desnecessária a especificação em causa, que sempre decorreria da leitura conjugada das normas envolvidas no regime da venda de coisas defeituosas.

Sobre esta matéria concordamos mais uma vez com Nuno Pinto Oliveira[46] quando afirma que «Em geral, os argumentos retirados da comparação entre o texto dos (ante)projectos e o texto da lei não são (nunca são) decisivos. O princípio de que os argumentos retirados da comparação entre o texto dos (ante)projectos e o texto da lei não são (nunca são) decisivos deve aplicar-se, a pari ou a fortiori, à comparação entre os anteprojectos e o Código Civil: Estando em causa o Código Civil, a doutrina e a jurisprudência são unânimes, ou quase unânimes, em afirmar que o facto de o texto dos anteprojectos divergir do texto do Código Civil é insuficiente para se sustentar seja a tese de que as regras convergem, seja a tese de que as regras divergem (…)».

Mais afirma este autor[47], e isto vai no sentido que acima defendemos, que «O facto de o texto do art. 44 do anteprojecto de Código Civil dizer que a compra e venda de coisa genérica (“de coisa indeterminada de certo género”) estava sujeita às disposições dos dois artigos anteriores e de o texto do art. 918 do Código Civil não o dizer só pode explicar-se pela circunstância de o legislador histórico considerar desnecessário dizê-lo. (…). Os argumentos sistemáticos e teleológicos deduzidos para sustentar que o regime da venda de coisa genérica deve construir-se através de uma aplicação cumulativa do regime geral dos arts. 790-808 e do regime especial dos arts. 913-922 seriam suficientes para que se sustentasse que os arts. 916 e 917 se aplicam à venda de coisa genérica; ainda que, por absurdo, os argumentos deduzidos não fossem suficientes, o resultado poderia sustentar-se em argumentos adicionais ou complementares.»

Do que fica dito resulta que improcede tudo aquilo que, de sentido contrário, se contém nas conclusões O. a X. do recurso.

Sendo assim, como é, improcede o recurso, impondo-se confirmar o acórdão recorrido. Pois que se constata, e como decidido nesse acórdão, que a Autora denunciou em 26 de julho de 2002 os defeitos da coisa que adquiriu à 1ª Ré, mas a ação indemnizatória pelos danos que lhe advieram foi intentada apenas em 22 de junho de 2006. Portanto, muito para além do prazo de seis meses assinalado no art. 917.º

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes do Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Julgar improcedente o recurso, confirmando o acórdão recorrido;

b) Condenar a Recorrente nas custas do recurso;

c) Uniformizar a jurisprudência no seguinte sentido:

“A ação de indemnização fundada na venda de coisa indeterminada de certo género defeituosa está submetida ao prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do Código Civil, a tanto não se opondo o disposto no artigo 918.º do mesmo Código”.

                                                           +

Lisboa, 20 de abril de 2023

José Rainho (Relator)

Maria da Graça Trigo

Pedro de Lima Gonçalves

Fátima Gomes

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

Oliveira Abreu

Maria João Vaz Tomé

Ricardo Alberto Santos Costa

José Maria Ferreira Lopes

João Cura Mariano

Manuel Capelo

António Barateiro Martins

Fernando Baptista de Oliveira

José Manuel Cabrita Vieira e Cunha

Luís Espírito Santo

Jorge Arcanjo

António Isaías Pádua

Nuno Ataíde das Neves

Ana Maria Resende

Ana Paula Lobo

Manuel José Aguiar Pereira

Afonso Henrique Cabral Ferreira

Maria José Mouro Marques da Silva

José Maria Sousa Pinto

Isabel Maria Manso Salgado

Jorge Leal

Maria Amélia Alves Ribeiro

Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza

António Magalhães (Junto Declaração)

Fernando Jorge Dias (Vencido, subscrevi o acórdão fundamento e argumentos aí aduzidos)

Maria Clara Sottomayor (vencida de acordo com declaração que junto.)

++

AUJ n° 3655/06.9TVLSB.L2.S1-A

Declaração de voto:

Voto vencido.

No acórdão-fundamento sustentei a posição oposta - ou seja, a de que os prazos de caducidade previstos nos arts. 916° e 917° do CC não são aplicáveis aos casos de compra e venda de coisas genéricas- pelos fundamentos que aí foram expostos e que colheram a anotação favorável dos Profs. António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, na RLJ ano 151.°, n° 4031, a pág. 99 e segs.. Posição que mantenho por se me afigurar a mais correcta em termos de iure constituto.

António Magalhães

++

Processo n.º 3655/06.9TVLSB.L2.S1-A (Recurso para Uniformização de Jurisprudência)
Voto vencida, por entender que a posição adotada no acórdão fundamento é a que resulta, de forma mais clara e direta, da vontade do legislador e da letra da lei, e também a mais ajustada em termos de um juízo de ponderação interesses.
Tem sido relativamente consensual que o Código Civil nesta matéria precisa de reforma, dada a disparidade de regimes entre a venda de coisas específicas e a venda de coisas genéricas. Mas entendo que esta desarmonia de regime deve ser apenas corrigida pelo legislador e que as normas que preveem prazos excessivamente curtos não podem ser objeto de interpretação extensiva nem de aplicação analógica, por implicarem um cerceamento injustificado de direitos contra legem, isto é, no caso concreto, contra o estipulado no artigo 918.º do Código Civil, norma que remete, em relação às obrigações genéricas para as regras do incumprimento das obrigações, incluindo o prazo geral de prescrição fixado no artigo 309.º do Código Civil.
A aplicação dos prazos curtos previstos nos artigos 916.º e 917.º do Código Civil, conduz a um resultado desajustado nos casos em que a coisa genérica vai ser incorporada num processo produtivo complexo, como acontece, quer no acórdão fundamento, quer no acórdão recorrido, e em que os compradores não se apercebem logo do defeito, pois, só depois de o produto final ser lançado no mercado e de os consumidores se queixarem, é que podem fazer a denúncia. Acresce que, para estarem em condições de intentar ação, precisarão de estudos para determinar a causa do defeito, o que pode impedir na prática a proposição da ação dentro do prazo de seis meses após a denúncia. Haverá, pois, casos, em que o comprador nunca chegará sequer a estar em condições de exercer judicialmente o direito, apesar dos avultados prejuízos sofridos.
Os argumentos do acórdão fundamento (e da doutrina em que ele se sustenta) constituem, a meu ver, uma melhor alternativa para decidir a questão de direito a uniformizar. O facto de o prazo geral de prescrição ser longo facilmente será temperado pela aplicação do instituto do abuso do direito, permitindo fazer justiça, objetivo que não será alcançado se for aplicada a tese que fez vencimento, que determina a aplicação extensiva dos prazos curtíssimos fixados nos artigos 916.º e 917.º do Código Civil aos casos de cumprimento defeituoso na venda de coisas genéricas.
Maria Clara Sottomayor

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[1] Por lapso manifesto a Autora menciona a data de 30 de junho de 2020.

Em breve nota, é de dizer que no direito romano, que de alguma forma parece ainda influenciar um tal ponto de vista, os vícios ocultos da coisa vendida eram objeto (em decorrência da chamada garantia edilícia, assim denominada por provir de certos éditos de regulação do comércio de escravos e animais) sobretudo da actio redhibitoria (a exercer no prazo curto de seis meses) que visava desfazer o contrato mediante a devolução da coisa e do preço pago (o equivalente, no direito moderno, a uma espécie de anulação do contrato ou a uma resolução do contrato por cumprimento imperfeito) e da actio quanti minoris (também denominada ação estimatória), a exercer no prazo de um ano, que visava obter a redução do preço (algo semelhante a uma anulação parcial ou a uma resolução parcial).
[2] Como é frequentemente salientado na literatura (assim, João Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas - Conformidade e Segurança, p. 49), o recurso legal à figura do erro em sede de venda de coisa defeituosa reflete o entendimento de uma corrente doutrinária, então dominante na doutrina, acerca dos chamados vícios redibitórios (vícios ocultos da coisa). Como é também frequentemente assinalado (assim, por exemplo, Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso – Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, pp. 261 e 265), a doutrina maioritária tem considerado que a matéria dos defeitos da coisa se integra no instituto geral do erro.
[3] Cfr. Manuel Carneiro da Frada, “Erro e Incumprimento na não conformidade da coisa com o interesse do comprador”, in O Direito, 121, n.º 3, p. 481.
[4] João Calvão da Silva, ob. cit., pp. 52 e 53.
[5] Cfr. João Calvão da Silva, ob. cit., pp.51 e 52.
[6] Cfr. Pedro Romano Martinez, ob. cit., p. 272; João Calvão da Silva, ob. cit., p. 57.
[7] Cfr. Pedro Romano Martinez, ob. cit., p. 263.
[8] Por coisa determinada entende-se aquela que no momento da celebração do contrato está perfeitamente definida, sendo com reporte à respetiva individualidade que, em maior ou menor grau, o comprador contrata. Diz-se específica a obrigação que tem por objeto mediato uma tal coisa, isto é, uma coisa que está concretamente fixada (Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 10ª ed., p. 819). Neste caso o vendedor fica vinculado a prestar ao comprador aquela coisa concreta e não qualquer outra.
[9] Por obrigação genérica entende-se aquela cujo objeto mediato está apenas determinado pelo seu género (mediante a indicação das notas ou características que o distinguem) e pela sua quantidade (idem).
[10] Ob. cit., p. 81 e seguintes.
[11] Código Civil Anotado (Coord. de Ana Prata), Vol. I, anotação ao artigo 917.º.
[12] Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 151, pp. 135 e 136 (em anotação precisamente ao ora acórdão-fundamento, cuja bondade subscrevem).
[13] Direito das Obrigações, Vol. III, 5ª ed., p.126.
[14] Assim, Nuno Pinto Oliveira, Compra e Venda de Coisa Genérica - Defeito do Produto e Tutela do Comprador (Curitiba - Juruá Editora, 2015), pp. 21 e seguintes.
[15] Inocêncio Galvão Telles, autor do anteprojeto referente ao contrato de compra e venda, escrevia (Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. 9, 1953, pp. 161 e 162) que  “[o]s vícios da coisa, como os do direito, e à semelhança do legislado no actual Código (art. 1582) não constituem […] fundamento autónomo de anulação: integram-se nos institutos jurídicos do erro e do dolo”. O tratamento dos vícios da coisa e dos vícios de direito deveria construir-se a partir do regime do erro, pois que “Entendeu-se que a solução mais simples e mais razoável seria a recondução da matéria à doutrina geral do erro e do dolo.”
[16] Assim, Nuno Pinto Oliveira, ob. cit., p. 34.
[17] Ob. cit., p. 262.
[18] Ob. cit., pp. 34 e 66.
[19] Ob. cit., p. 38.
[20] Ob. cit., p. 83.
[21] Ob. cit., pp. 90 e 91.
[22] Ob. cit., p. 822.
[23] Ob. cit., p. 118.
[24] Ob. cit., p. 822.
[25] O que é explicável pela circunstância de o regime geral não tratar destacadamente do cumprimento defeituoso.
[26] Cfr. João Calvão da Silva, ob. cit., p. 82.
[27] Cfr. João Calvão da Silva, ob. cit., pp. 67 e 68.
[28] Ob. cit., pp. 94 e 95.
[29] Ob. cit., p. 111.
[30] Ob. cit., p. 201.
[31] José de Oliveira Ascensão (O Direito – Introdução e Teoria Geral, p. 366) escreve, com aproveitamento para o caso vertente: “A ratio legis será (…) o resultante de todos os elementos, mas iluminada por uma pretensão de máxima racionalidade, que permitirá escolher entre possibilidades divergentes de interpretação”.
[32] Ob. cit., p. 110.
[33] Diário da República, I Série-A de 30 de janeiro de 1997. Este acórdão firmou jurisprudência no sentido de que “A acção destinada a exigir a reparação de defeitos de coisa imóvel vendida, no regime anterior ao Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de Outubro, estava sujeita à caducidade nos termos previstos no artigo 917.º do Código Civil”.
[34] Cfr. João Calvão da Silva, ob. cit., p. 74; Pires de Lima-Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, anotação ao artigo 917.º.
[35] E com uma filosofia que é largamente apoiada no princípio da chamada obsolescência programada. Vem a propósito dizer que, como judiciosamente se significa no acórdão recorrido, não faz grande sentido erigir como princípio de aplicação geral (não submissão a prazo curto de caducidade, mas apenas ao prazo de prescrição ordinária de vinte anos) um princípio que, em muitíssimos casos, implicaria que o tempo dentro do qual se poderia reclamar contra os defeitos da coisa excederia dramaticamente o próprio tempo da vida útil dessa mesma coisa.
[36] Cfr. João Calvão da Silva, ob. cit., p. 74.
[37] Ob. cit., p. 103.
[38]Ob. cit., pp. 478, 479 e 480.
[39] Ob. cit., anotação ao artigo 913.º.
[40] Ob. cit., anotação ao artigo 918.º.
[41] “Perturbações Típicas do Contrato de Compra e Venda”, in Direito das Obrigações, III volume (Coord. de António Menezes Cordeiro), 2ª ed., AAFDL, pp. 82 e 83.
[42] Ob. cit., pp. 202 e 203.
[43] Ob. cit., p. 39.
[44] Ob. cit., p. 111.
[45] Em sentido diverso, cite-se, porém, o acórdão de 22 de maio de 2003 (processo n.º 03B1433, com texto disponível em www.dgsi.pt).
[46] Ob. cit., pp. 42 e 43.
[47] Ob. cit., p. 102.