Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
864/18.1T8VFR.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: SIMULAÇÃO DE CONTRATO
PREÇO
ADMISSIBILIDADE DE PROVA TESTEMUNHAL
CONFISSÃO
ESCRITURA PÚBLICA
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
CONVENÇÃO ADICIONAL
DECLARAÇÃO
VALOR PROBATÓRIO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA VINCULADA
MATÉRIA DE DIREITO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DE COGNIÇÃO
LEI PROCESSUAL
VIOLAÇÃO DE LEI
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
PROCESSO
Data do Acordão: 09/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - É admissível julgar o modo de exercício dos poderes de reapreciação da matéria de facto que são confiados à Relação pelo art. 662.º do CPC uma vez que esta previsão legal constitui “lei de processo” para os efeitos do art. 674.º, n.º 1, al. b), do CPC; determinando a ocorrência de uma questão desta natureza a inoperância da dupla conformidade.

II - Saber se é ou não admissível exclusivamente prova testemunhal para a demonstração do preço simulado numa escritura pública é matéria que se inscreve na previsão legal dos arts. 682.º, n.º 2, e 674.º, n.º 3, do CPC por constituir indagação de ofensa pelo tribunal recorrido de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova (prova tarifada ou legal).

III - Se na escritura pública de compra e venda, com base nas declarações dos contraentes perante o notário se fez constar o preço do imóvel, essa declaração vale como confissão.

IV - Quando houver princípio de prova por escrito, que torne verosímil o facto a provar, contrário à declaração confessória ou a qualquer convenção contrária ou adicional ao conteúdo da escritura, é admissível prova testemunhal para complementar a demonstração, de modo a fazer a prova do facto contrário ao constante dessa declaração, o que decorre da interpretação do art. 394.º do CC.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Relatório

AA e BB instauraram acção declarativa sob a forma comum contra CC e mulher, DD, pedindo a condenação dos Réus na restituição/indemnização aos Autores na quantia de 54.850,00€, correspondente a diferença do valor entre a compra e o valor do imóvel supracitado, em 20 de Abril de 2005 por 7.500€ e o valor da venda em maio de 2006 por 62.350,00€, acrescido dos respectivos juros legais desde a data da citação até integral pagamento.

Alegam um contencioso quer com os Réus quer com EE e marido, FF, referente a um contrato promessa de compra e venda, cujo contrato definitivo não foi realizado e que após a instauração pelos Autores de uma acção contra os referidos promitentes vendedores, estes procuraram desfazer-se de todos os seus bens, por forma a impedirem os Autores de serem ressarcidos da justa indemnização pelos danos sofridos com tal incumprimento, tendo procedido à venda de todos os seus imóveis, o que motivou a instauração de acção de impugnação pauliana, qual ficou provado que os referidos promitentes vendedores ficaram sem quaisquer bens imóveis e que os Réus sabiam que o mencionado negócio da compra e venda consistia num estratagema destinado a evitar futuras penhoras, resultando em prejuízo para os credores, nomeadamente para os Autores; que os Réus aceitaram comprar e vender os imóveis para impedirem penhoras sobre os mesmos, permitindo aos referidos vendedores evitar o cumprimento de obrigações, nomeadamente o pagamento de dívidas para com os credores. Concluem, assim, terem os Réus adquirido os bens por preço inferior ao real, e tendo-o feito de má-fé, com intenção não só de prejudicar os credores, como de obterem lucro com tal situação de compra e posterior venda, como veio a suceder; a saber, os Réus declararam ter pago em 20 de Abril de 2005 aos referidos vendedores o valor de 7500€ e, volvido cerca de um ano, venderam o imóvel por 62.350,00€, à custa e em detrimento dos Autores, que se viram impossibilitados de receberem o seu crédito. Sustentam, assim que o adquirente de má-fé é responsável pelo valor dos bens que tenha alienado (art.º 616 n.º 2, do Código Civil), pelo que tendo os Autores, face às vendas efectuadas pelos Réus, ficado impedidos de cobrar o seu crédito e receberem a quantia de 69.831,79€, são os Réus responsáveis perante o Autor pelo valor do imóvel que alienaram. Apesar de os Autores terem instaurado uma acção de impugnação pauliana e dos factos que nessa acção foram julgados provados, em virtude de os autores não terem logrado provar a má-fé, improcedeu a referida acção e os Réus foram absolvidos. Contudo, dessa acção resultou que os Réus compraram o imóvel por 7.500,00€ e venderam-no por 62.350,00€, apesar de terem consciência que o mesmo tinha valor superior a 75000€, daqui resultando que, com a compra por parte dos Réus pelo preço de 7.500€, impediram os Autores de verem parcialmente pago o seu crédito com o montante do preço de mercado do imóvel, ou mesmo do valor que excedeu da venda posterior realizada pelos Réus em maio de 2006, locupletando-se em prejuízo dos Autores que eram credores, por terem sido impedidos de ver o seu crédito parcialmente pago pelo valor excedente do preço que o mesmo tinha no mercado imobiliário.

Contestaram os Réus, impugnando a matéria alegada pelos Autores quanto ao valor do prédio, designadamente referindo que na sequência da improcedência da acção de impugnação pauliana instaurada pelos Autores, estes instauraram nova acção contra os Réus, de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, que correu trâmites com o processo 1368/14….., na …...a Secção Cível da Instância Central \…., também julgada improcedente, sendo que, foi dado como provado que à data da escritura de 20-04-2005 os Réus sabiam que o imóvel tinha um valor de mercado não inferior a €75.000,00, bem como que o imóvel foi adquirido pelo preço de 45.000,00€, sendo que a venda posterior, no valor de 62.350,00€ foi tomada depois de abandonarem a ideia de reconstruirem a casa, como pretendiam, apercebendo-se que iriam ter de gastar mais do que o que imaginavam, sendo que do lucro obtido de 17.350,00€ ainda tiveram de suportar mais-valias a título de IRS no montante de 5.175,02€, com juros compensatórios no montante de 114,78€, além dos encargos suportados aquando da aquisição, não se encontrando verificados os requisitos do enriquecimento sem causa.

Tramitados os autos e realizada a audiência final, foi proferida sentença que decidiu julgar a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus do pedido formulado pelos Autores.

Foi interposta apelação dessa decisão que veio a ser julgada igualmente improcedente.

Inconformados, interpõem agora os autores recurso de revista concluindo que:

“1. Deve o presente Recurso de Revista Excecional ser admitido por estarem preenchidos os pressupostos dos artigos 671º, nº 3 e as als. a) e b) do nº 2 do art. 662º do Código de Processo Civil.

2. Deve ainda ser admitido o presente Recurso de Revista nos termos do art. 674º, nº 1 al a) e 674º, nº 3 do Código de Processo Civil.

3. A função do Supremo Tribunal de Justiça, como Tribunal de Revista, está essencialmente ligado à reapreciação de questões de direito, pressuposta a fixação de facto pelas instâncias.

Sem prescindir,

4. As instâncias inferiores apreciaram erradamente os documentos juntos aos autos, que no entender dos Recorrentes levam à alteração a matéria de facto.

5. O Tribunal da Relação ……, relativamente à reapreciação da matéria de facto, fez letra morta do disposto no art. 662º do CPC violando assim este normativo legal.

6. Impõem-se a anulação do acórdão com base na violação de regras de direito processual, com remessa dos autos ao Tribunal da Relação ….. para que se aprecie a Apelação dentro dos parâmetros que a lei impõe.

7. Com fundamento na prova por testemunhas não poderia ter o Tribunal a quo dado por provado o pagamento de quantia superior à constante da escritura, pois ao fazê-lo, está a inverter desta forma o conceito de confissão acolhida pelo legislador no art 342º, 358º, nº 2 do CC

8. Com fundamento na prova documental de IRS não poderia ter o Tribunal a quo dado por provado o pagamento de quantia de mais-valias e imposto de selo, ao fazê-lo, errou na interpretação/análise dos mesmos - art 342º.

9. A segunda instância não se pronunciou e /ou apreciou todas as questões que foram colocadas a sua apreciação pelo recorrente, omitindo-se, por isso da sua função.

10. Também nos termos do art.674º, nº 3 do CPC é o presente recurso de revista admitido.

Normas jurídicas violadas: art. 4º, 413º e 662º do Código de Processo Civil e 342º e 358º, nº 2 do Código Civil”

Não houve contra-alegações

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

… …

 Fundamentação

Está provada a seguinte matéria de facto:

“01. Por escritura pública designada de compra e venda, outorgada em 20-04-2005 no …. Cartório Notarial …. (fls. 11 do livro 420-H), EE e marido FF declararam vender aos aqui Réus CC e mulher DD, que declararam comprar, pelo preço de 7.500,00€ o prédio urbano, composto por casa de habitação de dois pavimentos, com logradouro, sito no Lugar ……, da freguesia …..., do concelho ……, descrito na …. Conservatória do Registo Predial …... sob o nº ……79 da freguesia ……, e inscrito na matriz urbana sob o artigo ……54

02. Por escritura pública designada de compra e venda outorgada em 03-05-2006, no Cartório Notarial …..., os aqui Réus declararam vender a GG e mulher HH, que declararam comprar pelo preço de 62.350,00€, o prédio id.em 01).

03. Por escritura pública designada de compra e venda, outorgada em 22-05-2006 no Cartório Notarial de ……, EE e marido FF declararam vender aos aqui Réus e estes declararam comprar, pelo preço de 62.350,00€, a fração autónoma designada pela letra "H" - correspondente a uma habitação no …. andar com entrada pelo nº …., com o valor patrimonial de 42.981,20€ e pelo preço de 2.500€, a fração autónoma designada pela letra "R" - correspondente a uma garagem no logradouro posterior, com entrada pelo nº …, com o valor patrimonial para efeitos de IMT de 2.442,11€, ambas do prédio urbano no regime de propriedade horizontal, sito na Rua ……, nº ….., …., ….. e ……, da freguesia ……, concelho ……, descrito na …. Conservatória do Registo Predial …… sob o nº …...69, inscrito na matriz urbana sob o artigo ……21

04. Os Autores instauraram contra os declarantes vendedores referidos em 05) - EE e marido FF - ação declarativa sob a forma de processo ordinário, que correu termos sob o n.º 5660/03……, no …... Juízo Cível do Tribunal Judicial …….

05. Na ação id. em 04), foi proferida sentença em 04-06-2007, transitada em julgado em 21¬05-2007, na qual foram os ali demandados EE e marido FF condenados a pagar aos ali e aqui Autores, a quantia de de 69.831,70€, acrescido de juros à taxa legal (juros civis), desde a citação até efetivo integral pagamento, conforme doc. 1 junto com a petição, cujo teor se considera reproduzido.

06. Na sentença do processo ido em 04), no qual os Réus não foram intervenientes, foi julgado como provado, designadamente, que:

(6.1.) «Em 13 de maio de 1999 A.A. e R.R. celebraram um acordo designado "Contrato Promessa de Compra e Venda" por meio do qual os R.R., como primeiros outorgantes, declararam prometer vender aos A.A. e estes, como segundos outorgantes, declararam prometer comprar-lhes: - um prédio urbano composto por uma habitação de dois pavimentos com área coberta de duzentos e setenta e três metros quadrados, e quintal com duzentos metros quadrados, inscrito na matriz sob o artigo …..54; - uma parcela de terreno com a área de oitocentos e vinte e sete metros quadrados, destacada do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo …., sitos no Lugar ….., Rua …., freguesia …., concelho …… - Facto provado 01;

(6.2.) Pelo negócio referido em [fi.1] foi acordado o preço de Esc. 7.000.000$00 e a entrega aos ali Réus de uma habitação do tipo T3 a construir naqueles prédios - Facto provado 02.

(6.3.) Pelo acordo referido em [fi.1] os ali Réus receberam dos aqui e ali Autores, em 13 de maio de 1999, a quantia de Esc. 1.500.000$00 e em 21 de junho de 1999, a quantia de Esc. 5.500.000$00 - Factos provados 03 e 04.

(6.4.) «A.A. e R.R. acordaram "(…) efetuar a escritura definitiva dos prédios supracitados após a reunião de todos os elementos necessários para a mesma, e será outorgada em dia, hora e local a designar pelos Primeiros Outorgantes» - Facto provado 06.

(6.5.) «Em meados de janeiro de 2001 os A.A procuraram os R.R. para que marcassem a escritura de compra e venda relativa aos prédios aludidos» em (f.1.) - Facto provado 07 (6.6.) «Os R.R. recusaram a marcação da escritura exigindo a prévia construção do edifício» - Facto provado 08.

07. Após os aqui Autores instauraram contra os referidos EE e marido FF, contra os aqui Réus e contra GG e mulher HH, ação declarativa sob a forma de processo ordinário (impugnação pauliana) que correu termos sob o n." 4374/09……, do … Juízo Cível do Tribunal Judicial …….

08. Na sentença proferida na ação referida em 07), cujo teor constante do doc. 4 junto com a petição inicial se considera reproduzido, foi julgado como provado que EE e marido FF ficaram sem quaisquer bens imóveis e que o primeiro imóvel referido em (c) permitia que nele fosse implantada uma construção em altura, sendo o respetivo valor de mercado, em 20 de abril de 2005 e 05 de maio de 2006, era de cerca de 75.000,00€ e de 77.000,00€, respetivamente.

09. Na ação referida em 07) foi julgado provado, designadamente que:

(9.1.) Os aqui Réus CC e mulher (ali 2ºs RR) «sabiam que o mencionado negócio da compra e venda consistia num estratagema destinado a evitar futuras penhoras, resultando em prejuízo para os credores dos AA.» (facto provado 2.1.17).

(9.2.) Durante o ano de 2007, os Réus declararam vender as referidas frações a II, porém continuaram a habitar, a fruir e a dispor das mesmas, utilizando a sua mobília e utensílios, aí recebendo os amigos e a família, pernoitam, tomam as refeições, fazem festas e guardam a suas viaturas automóveis.

(9.3.) Os Réus aceitaram declarar comprar e declarar vender tais imóveis para impedirem penhoras sobre os mesmos, permitindo consequentemente aos referidos vendedores EE e marido evitar o cumprimento de obrigações, nomeadamente o pagamento de dívidas para com os credores, Autores incluídos.

(9.4.) Os Réus sabiam que os referidos vendedores estavam com problemas económicos e que pretendiam desfazerem-se de todos os seus bens imóveis.

(9.5.) No ato designado de compra e venda realizado em 20-04-2005, os Réus declararam comprar o prédio pelo preço de 7.500€ e, após, declararam vender o mesmo imóvel pelo preço de 62.350,00€.

10. A ação referida em 07) foi julgada improcedente, com fundamento de, embora ter sido provada a má-fé dos ali e aqui Réus, não ter sido provada má-fé dos adquirentes GG e mulher HH.

11. Os Autores instauraram contra os Réus a ação declarativa que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ……- …… - Instância Central,  …..a Secção Cível - Juiz ….. - Processo nº 1368/14…, peticionando a condenação dos Réus a pagar aos Autores a quantia de 75.000,00€, correspondente ao valor do imóvel alienado na data de aquisição, em 20 de abril de 2005, fundando o pedido na má-fé dos Réus enquanto adquirentes (ação de responsabilidade civil extracontratual).

12. Na ação referida em 11), foram julgados como provados os seguintes factos:

«1. Por escritura pública de 20.04.2005, sob a designação "Compra e Venda", EE e marido FF, na qualidade de primeiros outorgantes, declararam vender ao aqui R. CC casado com a R. DD, e este, na qualidade de segundo outorgante, declarou comprar àqueles, pelo preço de 7.500€, já recebido, o prédio urbano, composto de casa de habitação de dois pavimentos, com logradouro, sito no Lugar …; freguesia …..., do concelho ……, descrito na …..a Conservatória do Registo Predial de ….. sob o na …79 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. ° …54, com o valor patrimonial de 698,07€ -- cf Doe. de fls. 57-60, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

2. Por escritura pública de 3.05.2006, sob a designação "Compra e venda", os aqui RR., na qualidade primeiros outorgantes, declararam vender a GG e este, na qualidade de segundo outorgante, declarou comprar àqueles, pelo preço de 62.350€, já recebido, o prédio identificado em 1) - cf Doe. de fls. 61-64, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3. Por escritura pública de 22.05.2006, sob a designação de "Compra e Venda", FF e mulher EE, na qualidade de primeiros outorgantes, declararam vender ao aqui R. CC, casado com a R. DD, e este, na qualidade de segundo outorgante, declarou comprar àqueles, pelo preço de 62.350€, já recebido, a [ração autónoma designada pela letra "H", correspondente a uma habitação no …. andar …, com entrada pelo nº ….., com o valor patrimonial de 42.981,29€, e, pelo preço de 2.5000€, já recebido, a fração autónoma designada pela letra "R ", correspondente a uma garagem no logradouro posterior, com entrada pelo n° ….., com valor patrimonial para efeitos de IMT de 2.442,11€, ambas do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua …., ….., …. e …, da freguesia ……, do concelho …... e descrito na …. Conservatória do Registo Predial …… - cf Doc de fls. 65-69, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. No processo n" 5660/03……, do ….  Juízo Cível do Tribunal Judicial …., instaurado pelos aqui AA. AA e BB contra FF e mulher EE, por sentença de 4.05.2007, transitada em julgado em 21.05.2007, a ação foi julgada parcialmente procedente e, em consequência, os RR. foram: a) condenados a pagarem aos AA. a quantia de 69.831,70€, correspondente ao dobro do valor entregue a titulo de sinal, acrescida de juros à taxa legal - juros civis - desde a citação até efetivo e integral pagamento, por incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes em 13.05.1999, através do qual os RR. prometeram vender aos AA. e estes prometeram comprar-lhes o prédio urbano inscrito na matriz sob o art. ° …..54 e uma parcela de terreno destacada do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ……96°, ambos sitos no Lugar ….., Rua …., freguesia ….., concelho ….; e b) absolvidos do pedido de condenação no pagamento de indemnização em montante a fixar em execução de sentença, decorrente da alegada perda de oportunidade de negocio que os AA. deixaram de desenvolver, além de despesas com projeto e diligências na Câmara Municipal- cf doc. de fls. 20-37, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

5. No processo nº 4374/09……, do ….. Juízo Cível do Tribunal Judicial ….., instaurado pelos aqui AA. contra FF e mulher EE, os aqui RR. e GG e mulher HH, por sentença de 14.10.2013, transitada em julgado em 25.11.2013, a ação foi julgada totalmente improcedente, por não provada, e os RR. foram absolvidos do pedido de declaração de ineficácia dos acordos referidos em 1) e 2) - cf doe. de j1s. 18-19 e 38-48, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

6. Após os acordos referidos em 1) e 3), FF e mulher EE ficaram sem quaisquer bens que garantissem o pagamento das suas dívidas aos seus credores, nomeadamente os aqui AA.

7. O prédio referido em 1) permitia que nele fosse implantada uma construção e altura, cujo valor de mercado, em 20.04.2005 e 3.05.2006, ascendia a cerca de 75.000€ e 77.000€, respetivamente.

8. Desde a data indicada em 3). FF e mulher EE continuaram a utilizar a mobília e utensílios, a receber amigos e família, a pernoitar e a tomar refeições na fração autónoma "H" identificada em 3) e a guardar as suas viaturas na fração autónoma "R" identificada em 3).

9. Na data indicada em 1), os RR. eram amigos de longa data de FF e mulher EE, desde o tempo em que todos estiveram emigrados na …...

10. Os RR. sempre residiram em …….

11. Em consequência os acordos referidos em 1) a 3), os AA. ficaram impedidos de receberem a quantia indicada em 4).

12. Os RR. tomaram conhecimento de que o imóvel identificado em 1) estava à venda, tendo visto uma placa publicitária com a expressão "Vende-se".

13. Os RR. contactaram com FF e mulher EE em princípios de 2005, então tomando conhecimento do preço pretendido pelo imóvel identificado em 1), no montante de cerca de 50.000,00 €

14. Após o descrito em 13), os RR. efetuaram uma proposta de compra do imóvel identificado em 1) pelo preço de 45.000€, valor que FF e mulher EE aceitaram em março de 2005.

15. Aquando do referido em 14), FF disse aos RR. que pretendiam que, na escritura de compra e venda do imóvel identificado em 1), constasse o preço de 7.500€.

16. Aquando da celebração do acordo referido em 1), os RR. pagaram a FF e mulher EE, pelo imóvel aí identificado, o preço total de 45.000€.

17. Em princípios de 2006, os RR. foram contactados por GG para aquisição do imóvel identificado em 1) e aceitaram celebrar o acordo referido em 2).

18. Na data indicada em 1), as frações autónomas identificadas em 3) tinham valor global não inferior a 64.850€».

13. Na ação referida em 11), foi julgado como não provado que:

«a) O descrito em 12) ocorreu em 2003.

b) Os RR. não podiam ignorar e sabiam que os acordos referidos em 1) a 3) consistiam num estratagema destinado a evitar futuras penhoras dos imóveis identificados em 1) e 3) e que, desse modo, impediam que os credores de FF e mulher EE, nomeadamente, os AA., recebesse os seus créditos.

c) Os RR. aceitaram intervir nos acordos referidos em 1) a 3) para impedirem penhora sobre os correspondentes imóveis e assim permitir que FF e EE não pagassem as dívidas aos seus credores, designadamente, o valor indicado em 4).

d) Na data indicada em 1), os RR. sabiam que FF e EE estavam com falta de dinheiro, tinham dívidas e que pretendiam desfazer-se de todos os seus bens imóveis.

e) No acordo referido em 1), os RR. pagaram somente o preço nele indicado.

f) Na data indicada em 1), os RR. não podiam ignorar e sabiam que, nessa data, era necessário despender montante não inferior a 75.000€ para adquirir o imóvel ali referido, em virtude da sua localização e por se suscetível de construção em altura.

g) Na data indicada em 1), os RR. não podiam ignorar e sabiam que FF e mulher EE se tinham apoderado do dinheiro correspondente ao sinal referido em 4) e que estes estavam a ser demandados em Tribunal».

14. Os Autores interpuseram recurso da sentença proferida nos autos referidos em 11), para o Venerando Tribunal da Relação ..…., que alterou a matéria de facto relativamente aos pontos 14, 15, 16, 18 dos provados passando a integrar o elenco dos factos não provados e a alínea e) dos factos não provados que passaram a integrar o elenco dos factos provados.

15. Sem prejuízo do referido em 14), o Venerando Tribunal da Relação …….. decidiu "julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida", designadamente por falta de prova da má-fé dos ali Réus.

16. Aquando do referido em 01), os réus sabiam que os autores estavam com problemas económicos.

17. O valor de mercado do imóvel id. em 01), em 20 de abril de 2005 e 03 de maio de 2006, era de cerca de 75.000,00€ e 77 .000,00€.

18. Os réus sempre residiram em …..., tendo tido conhecimento do imóvel referido em 02) por proposta que lhes foi apresentada por FF, que conheciam por ambos terem sido emigrantes na …… estando ainda nele aposta uma placa publicitária com a expressão «Vende-se».

19. Na sequência do referido em 18), FF e mulher EE propuserem em data concretamente não apurada do início de 2005, a venda aos réus do prédio id. em 01), pelo preço de 50.000,00€.

20. Após o referido em 19), os réus efetuaram uma proposta de compra no valor de 45.000€, que foi aceite por FF e mulher EE em março de 2005

21. Aquando do referido em 02), os réus pagaram a FF e mulher EE, pelo imóvel aí identificado, o preço total de 45.000€.

22. No início de 2006, os réus foram contactados por GG para aquisição daquele imóvel, tendo aceite vendê-lo e para o efeito celebrado a escritura de compra e venda de 03-05-2006, pelo valor de 62.350,00€.

23. Os réus tiveram de suportar com a compra os emolumentos e o imposto de selo, no …. Cartório Notarial  ……, conta registada sob o n.º ….., no valor de 400,00€ e com a venda mais-valias de IRS no valor de 5.175,02€, com juros compensatórios no montante de 114,78€.

24. Após o referido em 22), o comprador GG passou a cuidar do terreno e nele praticar agricultura e criação de animais.

B. Factos não provados

Julgam-se como não provados os restantes factos alegados pelas partes, designadamente que:

i) Os Réus sabiam que o referido em 01) consistia num estratagema destinado a evitar futuras penhoras dos ali declarantes vendedores, resultando em prejuízo para os credores destes, Autores incluídos.

ii) Os Réus aceitaram declarar comprar e declarar vender tal imóvel para impedirem penhoras sobre o mesmo, permitindo consequentemente aos referidos vendedores EE e marido evitar o cumprimento de obrigações, nomeadamente o pagamento de dívidas para com os credores, Autores incluídos.

iii) Aquando do referido em 01) dos factos provados, os réus, além do referido em 16) dos factos provados, sabiam que os autores pretendiam desfazer-se de todos os seus bens imóveis.

iv) Os réus sabiam que para adquirir uma casa individual nas circunstâncias em que declararam comprar o prédio id. em 01) - casa com quintal, sua localização e suscetível de construir em altura - era necessário despender, nessa data, quantia não inferior a 75.000,00€.

v) Aquando do referido em 02), os réus tinham a consciência que o prédio declarado vender tinha valor superior a 75.000,00€.

vi) Aquando do referido em 02), o familiar do primeiro vendedor e amigo de mais de 40 anos dos réus, tinha conhecimento de que os seus amigos tinham muitas dívidas, e credores que lhes batiam a porta todos os dias para cobrar os seus créditos.

        … …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O conhecimento das questões a resolver, delimitadas pelas alegações, importa em apreciar e decidir se o Tribunal da Relação violou a lei de processo por não ter procedido conforme o disposto no art. 662 do CPC à apreciação da impugnação da matéria de facto e por ter fixado como provado com base exclusivamente em testemunhas matéria que exigia prova escrita.

… …

Tendo os recorrentes interposto a presente revista como excepcional, das suas conclusões extrai-se que o fundamento que invocam (incumprimento do art. 662 e violação do art. 674 nº 3 parte final do CPC) se inscreve na revista normal.

Abordando em primeiro lugar o incumprimento por parte do tribunal recorrido do disposto no art. 662 do CPC, a regra é a de a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no tocante à decisão sobre a matéria de facto ser meramente residual destinando-se a garantir a observância das regras de direito probatório material ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, conforme resulta das disposições do n.º 3 do artigo 674.º e do n.º 3 do artigo 682.º do CPC, determinando-se no primeiro destes dispositivos que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais não pode ser objecto de recurso de revista”, só podendo o Supremo Tribunal de Justiça alterar a decisão proferida pelo tribunal recorrido no respeitante à matéria de facto quando, nessa fixação, tenha havido “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova” - vd. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 pp. 397 e s. e pp. 431 e ss.

A propósito do âmbito do art. 662.º do CPC, salienta Rui Pinto que “o n.º 4 do artigo 662.º é perentório a determinar a irrecorribilidade das decisões através das quais a Relação exerce os poderes previstos nos n.ºs 1 e 2 (…). Portanto, o Supremo não pode julgar se a prova foi bem ou mal avaliada e se o facto foi bem ou mal dado como provado. Por ex., não é sindicável a reapreciação da prova sujeita à livre apreciação, como sejam a prova testemunhal, a prova por documento sem força probatória plena, a prova pericial e a prova por presunções judiciais” - in Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra, Almedina, 2018, p. 339.

Todavia, é entendimento constante no STJ ser admissível julgar o modo de exercício dos poderes de reapreciação da matéria de facto que são confiados à Relação pelo artigo 662.º do CPC, dado que esta previsão constitui “lei de processo” para os efeitos do artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC - vd. ac. STJ de 11.02.2016, Proc. 907/13.5TBPTG.E1.S1, in dgsi.pt.

Assim, a ocorrência de uma questão desta natureza determina a inoperância da dupla conformidade porquanto “é de rejeitar a aparente verificação da dupla conforme, à luz do art. 671.º, n.º 3, nos casos em que, apesar da confirmação da sentença da 1.ª instância pela Relação, o recorrente suscita a violação de preceitos adjectivos relacionados com a aplicação do art. 662.” – vd. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I - Parte Geral e Processo de declaração – Artigos 1.º a 702.º, Coimbra, Almedina, 2018, p. 800. E isto significa que com os limites antes definidos o STJ está autorizado a apreciar o modo como o Tribunal recorrido exerceu estes poderes e, designadamente, de o censurar se concluir que existiu um uso indevido, insuficiente ou excessivo destes poderes, o que é distinto de  sindicar os resultados a que chegou o Tribunal recorrido.

Afirma Abrantes Geraldes que o actual artigo 662.º do CPC representa uma viragem em matéria de poderes do Tribunal da Relação no âmbito da decisão da matéria de facto, “fica[ndo] claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” - op. cit. p. 287.

Na concreta abordagem à questão suscitada nos autos, observamos que o art. 662 nº 1 do CPC dispõe que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se – só se – os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem – sublinhe-se: impuserem – decisão diversa. O Tribunal da Relação só está sujeito ao dever de alterar a decisão sobre a matéria de facto senão quando tal alteração se revele necessária por aquelas circunstâncias, não consistindo na realização de um julgamento de questões novas. O recurso de apelação em matéria de facto não é, em rigor, um meio para um novo julgamento, mas um “recurso de reponderação” ou “recurso de reexame” do julgamento realizado na instância antecedente – vd. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, volume II, cit., pp. 331-332.

Com estas indicações entendemos que percorrendo o discurso/fundamentação do acórdão recorrido - e só neste poderemos fundar a nossa análise e decisão - dele não decorre que o Tribunal da Relação tenha deixado de exercer os poderes que lhe são atribuídos pelo artigo 662.º do CPC. A exposição decisória do acórdão recorrido não se limitou a tecer considerações de ordem genérica em torno das virtualidades de determinados princípios, como o da livre apreciação das provas, ou a enunciar as dificuldades inerentes à da tarefa de reapreciação dessas provas, para concluir pela manutenção da decisão da matéria de facto.

Em primeiro lugar, a prova, toda ela, foi consultada com destaque para a testemunhal que foi ouvida integralmente havendo por parte da decisão recorrida o cuidado de deixar anotados elementos indiciadores dessa mesma audição (revelando que foi realizada) com destaque para expressões utilizadas pelas testemunhas e alusão às características destas referentes às condições objectivas da convicção e razão de ciência. E este é o primeiro e principal elemento da reponderação, a consulta da prova.

Num segundo momento a decisão recorrida fez questão de apontar a exemplaridade da convicção formada em primeira instância, quer no seu percurso lógico argumentativo, quer no resultado da convicção que formou e por essa razão reproduziu em itálico toda a motivação da sentença para sublinhar, no conteúdo e na forma, o total acerto e confirmação da prova fixada, deixando expresso que num critério de segurança e rigor a da primeira instância, e por iguais argumentos,  era também a convicção própria que o Tribunal da Relação extraia desses mesmos elementos probatórios, entendendo desnecessário acrescentar-lhe considerações que em nada a acrescentaria.

Se a remissão avulsa para a motivação da primeira instância e a sua referência genérica a ela tem sido entendida como uma violação do art. 662 do CPC por parte da Relação -  vd. ac. STJ de 30-5-2019 no proc. 156/16.0T8BCL.G1.S1, in dgsi.pt – cremos que não deve exigir-se que a análise crítica das provas pelo Tribunal da Relação, relativamente à que esteja sujeita à livre apreciação e à fundamentação das respostas negativas, tenha de apresentar originalidade de forma e conteúdo relativamente à decisão de primeira instância. Não haverá vício de falta de apreciação quando a indicação das provas que levaram a formar a sua convicção e a sua articulação explicativa dos motivos que conduziram a decidir em determinado sentido, relativamente a cada um dos factos provados e impugnados pelo recorrente, se mostre realizada ainda que por alusão transcritiva da decisão da primeira instância.  O que não pode é essa alusão reduzir-se a uma adesão genérica que não permita perceber a actividade de formação de convicção da Relação por não existir qualquer elemento que certifique que esse tribunal, efectivamente, consultou a prova, ponderou sobre ela e decidiu, revelando a sua convicção.

Se resulta da decisão recorrida que foi realizada a consulta de todos os elementos probatórios e a avaliação dos mesmos, a análise crítica em sede de convicção encontra-se também realizada, ainda que com total e declarada proximidade do discurso da motivação da primeira instância, mas sem que no caso essa essa proximidade possa revelar-se uma adesão remissiva genérica e omissiva do cumprimento do art. 662 do CPC.

Poder-se-ia argumentar que se o Tribunal da Relação confirmava com a sua, como confirmou, a convicção da decisão de primeira instância e com o mesmo percurso argumentativo, deveria ter escrito por palavras suas e exclusivamente suas aquilo que antes constava da motivação impugnada e com a qual totalmente concordava. Porém, podendo aceitar-se que tal poderia retirar à decisão recorrida a suspeita de não ter realizado as operações de consulta e análise da prova, que é o que as conclusões de recurso lhe imputam, a verdade é que o exigido ao Tribunal da Relação em sede de apreciação da matéria de facto é que repondere os factos provados ou não provados que tenham sido impugnados, consulte a prova que tenha sido produzida sobre essa matéria e, por fim, decorrente da análise crítica que faça sobre esses elementos, declare a sua convicção sobre tais factos.  E é na certificação de a segunda instância ter realizado todas essas operações que deve decidir-se se existiu ou não violação do art. 662 do CPC.

No caso, concluímos que a decisão recorrida não se limitou a averiguar se o juízo explanado pelo tribunal de 1.ª instância, na sua decisão da matéria de facto, estava conforme às regras da experiência comum e se estava devidamente fundamentado, sem proceder à audição dos depoimentos gravados das testemunhas indicados pela recorrente, sem analisar os documentos indicados como fundamento da impugnação, sem realizar a indispensável análise crítica de cada destes meios de prova e sem cumprir o dever de fundamentação sobre cada um dos pontos da matéria de facto impugnada, de modo a explicar e justificar a sua própria e autónoma convicção. A forma como a decisão recorrida apresentou essa sua actividade, tomando com guião de itinerário a decisão da primeira instância e sacrificando à comodidade um exercício de forma mais desenvolvido e esforçado, podendo considerar-se que se situa no limite mínimo do que a interpretação do art. 662 do CPC ainda consente, não permite assim concluir que a decisão recorrida não realizou a actividade que lhe cumpria nos termos desse preceito. Deixando declarada (e revelada) a audição integral da prova e consulta dos documentos, certificou os resultados da convicção da primeira instância por entender como inteiramente adequados e exactos os raciocínios lógicos e de ponderação que aí se tinham realizado e que, como tal, confirmou como seus por nada mais lhe ter a acrescentar ou a alterar na forma ou no conteúdo. Tal actuação, pelas razões referidas, não pode entender-se como constitutiva da violação, quer da disciplina processual a que aludem os arts. 640.º e 662.º, n.º 1, quer do método de análise crítica da prova prescrito no art. 607.º, n.º 4, aplicável por força o disposto no art. 663.º, n.º 2, todos do CPC, pelo que, neste âmbito, não se imponha anular o acórdão recorrido improcedendo nesta parte as conclusões de recurso.

… …

Num segundo momento, os recorrentes sustentam que “Com fundamento na prova por testemunhas não poderia ter o Tribunal a quo dado por provado o pagamento de quantia superior à constante da escritura, pois ao fazê-lo, está a inverter desta forma o conceito de confissão acolhida pelo legislador no art 342º, 358º, nº 2 do CC. 

Com fundamento na prova documental de IRS não poderia ter o Tribunal a quo dado por provado o pagamento de quantia de mais-valias e imposto de selo, ao fazê-lo, errou na interpretação/análise dos mesmos- art 342º.”

Analisando esta questão, lembramos que por regra, ao Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, compete somente a aplicação, em definitivo, do regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido - artigo 682º nº1 do CPC. Todavia, excecionalmente, no recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça pode corrigir qualquer "erro na apreciação das provas ou na fixação dos factos materiais da causa" se houver ofensa pelo tribunal recorrido de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova (prova tarifada ou legal), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 682º, nº 2, e 674º, nº 3 do CPC.


Quanto à invocação de as instâncias não poderem com base no documento de IRS ter dado por provado o pagamento de quantia de mais-valias e imposto de selo, temos por manifesto que não assiste razão alguma aos recorrentes uma vez que está em causa um documento particular de livre apreciação e sobre a convicção que as instâncias formaram sobre ele não é passível qualquer sindicância por parte do STJ, nos termos já sobreditos. Aliás, o que perante esse documento os recorrentes protestam é que, em seu entender, uma outra apreciação do mesmo, livremente permitida deveria ter sido realizada por entenderem que o pagamento das mais valias referidas se não poderia extrair com segurança do documento tomado como elemento probatório por parte das instâncias. Trata-se, pois, de uma discordância de entendimentos e não propriamente de uma violação das regras de direito probatório material, que não é sequer sinalizada pelos recorrentes.


No que se refere à questão da prova do preço do imóvel, foi julgado provado que:  

“1. Por escritura pública designada de compra e venda, outorgada em 20-04-2005 no ….. Cartório Notarial ...... (fls. 11 do livro 420-H), EE e marido FF declararam vender aos aqui Réus CC e mulher DD, que declararam comprar, pelo preço de 7.500,00€ o prédio urbano, composto por casa de habitação de dois pavimentos, com logradouro, sito no Lugar ….., da freguesia …., do concelho......, descrito na ….. Conservatória do Registo Predial ...... sob o nº ….. da freguesia …., e inscrito na matriz urbana sob o artigo …...

13. Os RR. contactaram com FF e mulher EE em princípios de 2005, então tomando conhecimento do preço pretendido pelo imóvel identificado em 1), no montante de cerca de 50.000,00 €.

14. Após o descrito em 13), os RR. efetuaram uma proposta de compra do imóvel identificado em 1) pelo preço de 45.000€, valor que FF e mulher EE aceitaram em março de 2005.

15. Aquando do referido em 14), FF disse aos RR. que pretendiam que, na escritura de compra e venda do imóvel identificado em 1), constasse o preço de 7.500€.

16. Aquando da celebração do acordo referido em 1), os RR. pagaram a FF e mulher EE, pelo imóvel aí identificado, o preço total de 45.000 €.”

Defendem os recorrentes que o preço do imóvel terá de ser reconhecido como sendo  7.500,00 €, que constava da escritura, uma vez que o art. 394 do CC estabelece que: 1. É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.
2. A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores.

Na análise e decisão referente à violação de disposição legal de direito probatório material temos presente que nos termos do art. 371º nº 1 do Código Civil os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem bem como dos factos que neles são atestados com base nas percepções dessa entidade. E como refere Fernando Pereira Rodrigues – in “A prova em direito civil" p. 11 - a força probatória do documento autêntico não abarca tudo o que nele se mostra exarado porque a entidade pública documentadora só pode atestar os factos declarados na escritura objecto dos autos correspondentes que foram por si percepcionados. Ou seja, “O documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que os factos relatados e que resultam das suas percepções correspondem à verdade. Ou seja, no que se refere ao que foi afirmado perante ele, o documentador não garante a veracidade das declarações, a sua sinceridade, eficácia ou validade que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram” – Vaz Serra, RLJ, 111.º, p. 302.

As declarações que os contraentes hajam produzido perante a entidade pública, designadamente o preço do imóvel e que o mesmo se encontra recebido são objecto de percepção e a realidade dessas afirmações, cabendo nas percepções do notário e implicando o reconhecimento de um facto que é desfavorável a quem o declara, é qualificado pelo artigo 352º do Código Civil como confissão. Trata-se de uma confissão extrajudicial em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355°, nºs 1 e 4, e 358°, n° 2 do Código Civil.

A força probatória plena da confissão pode, no entanto, ser contrariada por meio de prova do contrário, nos termos do disposto no artigo 347º do CC que dispõe: “A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto (...)”. Por outro lado, a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida pela prova do contrário, v.g., pela prova de que o preço acordado e pago não é o que figura na escritura, apesar da declaração nela constante, o que pode ser suscitado com a alegação de falsidade da escritura onde ficou exarada a confissão extrajudicial (cfr artigo 372º n° 1 do Código Civil) ou estar a sua vontade omissa ou viciada no momento da declaração (cfr artigo 359º n° 1 do Código Civil).

No âmbito da prova testemunhal, o art. 393 nº 2 do CC adverte para a sua inadmissibilidade quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena, acrescentando o art. 394 do mesmo diploma igual inadmissibilidade (da prova testemunhal) se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico, ou dos documentos particulares mencionados nos arts. 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores, acrescentando-se desde já que, a estipulação de um preço superior ao que consta da escritura pública corresponde a uma convenção contrária ao conteúdo de documento autêntico na parte em que este não tem força probatória plena.

Também o n.º 1 do artigo 394.º do CC excepciona a admissibilidade da prova testemunhal quando se tenha “por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”. Cabem assim no âmbito deste preceito as convenções que contrariam (ou se opõem) ao declarado no documento assim como todas as que acrescentam (ou adicionam) qualquer clausulado. E o legislador foi mais impressivo ao expressar no n.º 2 que a proibição é aplicável ao “acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocado pelos simuladores” pretendendo deixar claro que a proibição também abrange aquele vício de vontade, ou seja aquela divergência entre a vontade e a declaração.

Como dá nota o ac. do STJ 7-2-2017 no proc. 3071/13.6TJVNF.G1.S1 a propósito do histórico dos preceitos referidos, na vigência do Código Civil 1867, o Prof. Beleza dos Santos explicava que “se o acto simulado consta de um documento autêntico ou de um documento de igual força, nos termos do artigo 2432.º e 2433.º do Código Civil, os simuladores, seus herdeiros ou representantes que não devam reputar-se terceiros em relação a esse acto, só podem demonstrar a simulação se exibirem uma prova plena que destrua a eficácia da que resulta daqueles documentos, tal como um documento da mesma natureza ou igual valor ou uma confissão judicial. (Código Civil, art.º 2412.º). Se esse acto não consta de documentos autênticos ou de igual força, então os simuladores e seus representantes podem utilizar-se de qualquer meio probatório para demonstrar a simulação, devendo aplicar-se as regras gerais em matéria de prova.” In A Simulação em Direito Civil, II, 151. E era este o entendimento pacífico e constante.

Nos trabalhos preparatórios do novo Código Civil e por força da doutrina que menorizava o valor da prova testemunhal - cf. os Profs. Pires de Lima e A. Varela: que a apodavam de “prova extremamente insegura” in “Código Civil Anotado” I, 4.ª ed.  e Carvalho Fernandes in A Prova da Simulação Pelos Simuladores”, O Direito” 124.º, 1992, IV, 600 - para precaver os perigos que a prova testemunhal poderia provocar, Vaz Serra - in “Provas – Direito Probatório Material”- BMJ 112, p. 194-197; 219-232; 236-292 - invocando os artigos 1417.º e 2724.º do Código Civil Italiano de 1942 e 1347 e 1348 do Código Civil Francês, projectou uma norma que tendo sido arredada da lei expressa pelo legislador permitia que os simuladores pudessem, excepcionalmente, usar a prova testemunhal, mas apenas se:

- Existisse um princípio de prova escrita “proveniente daquele contra quem a acção é dirigida ou do seu representante” ou quando “da qualidade das partes, da natureza do contrato, ou de quaisquer outras circunstâncias seja verosímil que tenham sido feitas contradeclarações”;

 -  Impossibilidade material ou moral de obtenção de prova escrita.

Não obstante, não ter obtido consagração legal, Vaz Serra insistiu na defesa desse entendimento - v.g. R.L.J. 107.º, 311 ss, - em anotação ao Acórdão do STJ de 4 de Dezembro de 1973. A este entendimento aderiram Mota Pinto e Pinto Monteiro - “Arguição da Simulação Pelos Simuladores. Prova Testemunhal”, CJ, X, 1985, 3.ª 11 ss - com o argumento de maleabilizar o artigo 394.º e, também, Carvalho Fernandes (ob. loc. cit. 615) pondo a tónica na eventualidade de “resultados injustos de aproveitamento do acto simulado por um dos simuladores em detrimento do outro”. Chamando este autor a atenção para que não se ponha em causa a «ratio» do preceito nem se sobreponha à certeza da prova documental, a fragilidade e a falibilidade da prova testemunhal e por presunções judiciais. O tal “princípio de prova” só poderia ser constituído por qualquer dos documentos a que se refere o n.º 1 do artigo 394.º que, se não unívocos, só poderão tornar-se completos se conjugados com a prova secundária (que, então, se concede ser testemunhal), complementar ou, com rigor, meramente residual, e só por si sem valor autónomo, por não lho permitir o n.º 2 do artigo 394.º.

Na abordagem ao art. 393 nº 2 do CC Pires de Lima e A. Varela in C. Civil Anotado, Vol. I, aconselham uma interpretação nos justos termos, referindo que “nada impede que se recorra à prova testemunhal para demonstrar a falta de vícios da vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada.

O documento prova, em dados termos, que o seu autor fez as declarações nele constantes; os factos compreendidos na declaração consideram-se provados, quando sejam desfavoráveis ao declarante. Mas o documento não prova nem garante, nem podia garantir, que as declarações não sejam viciadas por erro, dolo, ou coacção ou simuladas.

Por isso mesmo a prova testemunhal se não pode, neste aspecto considerar legalmente interdita”. Era a aceitação do que Vaz Serra comentava na RLJ, ano 103º, pág 13, ao insistir que “os arts. 394º e 395º não formulam expressamente excepções às regras neles contempladas. Mas tal não quer dizer que tais regras não sejam aplicáveis, pois da razão de ser destas concluiu-se que não têm alcance absoluto, havendo que ressalvar algumas hipóteses em que a prova testemunhal será admissível apesar de ter por objecto uma convenção contrária ou adicional ao conteúdo do documento”.

No equilíbrio interpretativo das observações que se deixaram sinalizadas a partir do seu próprio histórico e no sentido de ultrapassar a questão da admissibilidade da prova testemunhal relativamente aos factos declarados na escritura perante o notário, tornou-se pacífico o entendimento do STJ no sentido de “A proibição de prova prevista no artigo 394, nº 2, do C.C. respeita, apenas, ao recurso à prova testemunhal, ou por presunções judiciais, do artigo 351 daquele diploma substantivo, como meio de prova exclusivo, do acordo simulatório, ou de negócio dissimulado” Ac. do STJ, de 15.12.98, Proc.98A795, em www.dgsi.pt. Ou, no mesmo sentido e posteriormente o acórdão do STJ de 23.02.2010, proferido no processo n.º 566/06.1TVPRT.P1.S1 quando renova que “A prova testemunhal relacionada com convenção contrária ao conteúdo da escritura pública é de ter como admissível quando complementar (coadjuvante) de um elemento de prova escrito que constitua um suporte documental suficientemente forte para que, constituindo a base da convicção do julgador, se possa, a partir dele, avançar para a respectiva complementação.

Existindo um princípio de prova escrita suficientemente verosímil, fica aberta a possibilidade de complementar, mediante testemunhas, a prova do facto contrário ao constante da declaração confessória, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação consciente e voluntariamente produzida perante o documentador.”

E ainda de modo igual o ac. do STJ de 7-2-2017 no proc. 3071/13.6TJVNF.G1.S1 deixa expresso que não obstante todas as objecções que se possam suscitar “ não repugna aderir à interpretação menos restritiva, desde que o “princípio de prova” seja um documento que não integre facto - base de presunção judicial pois sendo-o o n.º 2 do artigo 394.º poderia entrar em colisão com o citado artigo 351.º CC.”. Adicionando esse documento a existência de acordo simulatório ou um negócio dissimulado pode lançar-se mão da prova testemunhal para confirmar ou infirmar, tornando-se, então, o primeiro elemento de prova e sem que colida com o citado n.º 2 do artigo 394.

E concretamente no que se refere à simulação, para afastar a iniquidade da aparência criada pela simulação, deixando um simulador à mercê do outro, “deve ser aliviada tal proibição se a prova testemunhal funcionar como meio complementar de prova da simulação, primariamente fundada em documentos, pois ela radica muitas vezes, em indícios e ilações baseados em factos que à luz da experiência comum podem revelar a existência da mesma. Nestes casos, é admissível prova testemunhal, se os factos a provar aparecerem com alguma verosimilhança, em provas escritas. Então, complementarmente, é admissível tal tipo de prova”.  - vd. por todos os acs. STJ de Ac. de 17.6.2003, C.J., T. 2, pág. 112; de 5.6.07, Proc.07A1364 e de 15-5-2013 no proc. 279/10.0TBMIR.C1.S1, in dgsi.

Assim se pronuncia igualmente Carvalho Fernandes - in A Prova da Simulação pelos Simuladores, em Estudos sobre a Simulação, 2004, págs. 45 e segs., - que termina com a formulação das seguintes conclusões:

“a) A interpretação estrita dos Artigos 351º e 394º, nº 2, do Código Civil, limitando fortemente a arguição da simulação pelos simuladores, pode conduzir a resultados injustos de aproveitamento do acto simulado por um dos simuladores em detrimento do outro;

b) A ponderação dos interesses em jogo postula, assim, uma interpretação restritiva desses preceitos, que atenue a limitação dos meios de prova disponíveis, a que a letra da lei conduz:

c) Essa interpretação não pode, porém, pôr em causa a ratio desses preceitos, nem chegar ao ponto de sobrepor, à certeza da prova documental, a fragilidade e a falibilidade da prova testemunhal e por presunções judiciais;

d) Deste modo, a estes meios de prova só pode estar reservado o papel secundário de determinar o alcance de documentos que à simulação se refiram ou de complementar ou consolidar o começo de prova a que neles seja lícito fundar;

e) Sempre que, com base em documentos trazidos aos autos, o julgador possa formular uma primeira convicção relativamente à simulação de certo negócio jurídico, é legítimo recorrer-se ao depoimento de testemunhas sobre factos constantes do questionário e relativos a essa matéria com vista a confirmar ou a infirmar essa convicção;

f) Como legítimo é, a partir desse mesmo começo de prova, pela via de presunções judiciais, deduzir a existência de simulação com base em factos assentes no processo.”

Também Mota Pinto in na CJ, 1985, III, 9, escreve que “Constitui excepção à regra do art.º 394º e, por isso, deve ser permitida a prova por testemunhas no caso de o facto a provar estar já tornado verosímil por um começo de prova por escrito. Também deve ser admitida tal prova testemunhal existindo já prova documental susceptível de formar a convicção da verificação do facto alegado quando se trate de interpretar o conteúdo de documentos ou completar a prova documental”.

Na análise agora da situação dos autos, observamos que na escritura pública que titulou a compra e venda do imóvel discutido os aqui réus declararam comprar e EE e marido FF declararam vender esse prédio tendo declarado que o preço era de 7.500,00€. Porém, os réus, na contestação vieram alegar que tendo ficado a constar na escritura que o preço era de 7.500,00 €, na verdade, o preço pago foi de 45.000,00 €, isto é, ainda que sem o aludirem expressamente, revelam que o preço foi simulado pretendendo o reconhecimento desses factos para que viessem a ser fixados como provados como vieram a ser.

Contudo, como resulta da motivação desses factos provados e constantes dos números 13 a 16 dos fixados a sentença e apelação teve exclusivamente em atenção a prova testemunhal produzida.

Sabemos que a simulação do preço (simulação objetiva, sendo esta a que tem por referência o objeto, conteúdo, tipo ou natureza do negócio jurídico) não implica a nulidade do ato (contrato de compra e venda do imóvel dos autos), que passará a valer pelo preço realmente convencionado, (artigo 241º do Código Civil). E, ainda que nos autos a questão a decidir não seja a da nulidade do contrato de compra e venda nem a validação do negócio dissimulado, não deixa de ser importante perceber que não podendo os simuladores prevalecer-se da nulidade do negócio que falsamente celebraram contra terceiros de boa-fé, está-lhes vedado arguir contra aqueles essa simulação - vd. art 243 nº 2 do CC –. Todavia, não estão inibidos de poderem invocar, entre si, a simulação, não podendo demonstrar essa simulação através da simples prova testemunhal para afastarem o teor do declarado na escritura pública. E no caso em decisão é o que ocorre.

Como se decidiu - ac. do STJ de 4-6-2019 no proc. 2375/11.7TBVFR.P1.S1 -  a exigência de um principio de prova escrita pode basear-se, v.g. num cheque que tenha titulado o preço real da compra e venda suscetível de, com a complementaridade de prova testemunhal, formar a convicção de verificação do facto alegado, o que não pode é prescindir-se da existência desse elemento escrito essencial.

Ora, no caso em decisão, perante a prova de que na escritura pública os aqui réus como compradores haviam declarado juntamente com os vendedores que o preço de compra e venda do imóvel era de 7.500,00 euros, os demandados vieram na acção declarara que, afinal, o preço real tinha sido de 45.000,00 € e não de 7.500,00 €. E para demonstrarem  realidade dessa simulação apresentaram apenas testemunhas com as quais a sentença e posteriormente a apelação se bastaram para que tenham fixado como provado que o preço do imóvel havia sido de 45.000,00 €.

Perante este circunstancialismo, resta pois concluir que se na simulação arguida pelos simuladores só é admissível prova testemunhal se houver uma aparência de prova do negócio fraudulento assente em prova escrita - podendo , por exemplo o contrato-promessa que antecedeu ao negócio definitivo ou um cheque entregue para pagamento do preço ser considerado esse começo de prova - o que obtemos nos autos é não existir nenhum documento que revele, em si, aparência de prova acerca de qualquer simulação na escritura de compra e venda. Assim, o tribunal recorrido deu como provados os factos 13 a 16 na sentença, exclusiva e unicamente, com base em prova testemunhal, conforme consta expressamente na motivação do despacho de resposta à matéria de facto, o que a lei veda, tendo de dar-se como não escritas essas respostas de provado a esses números, nos termos do art. 607 nº 5 do CPC, eliminando-se, em consequência, dos factos provados.

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Analisando agora as consequências de terem sido retirados dos factos provados os constantes dos números 13 a 16 do fixados na sentença, deve concluir-se desde já que, mesmo assim, a decisão de direito não sofre alteração.

 Em verdade, situada a pretensão dos autores no âmbito do enriquecimento sem causa o art. 473 do CC enuncia o princípio geral de que aquele que sem causa justificativa enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.

Os autores alegam na acção que os réus enriqueceram à sua custa porque a compra que estes realizaram do imóvel (que aqueles haviam prometido comprar e cujo pagamento já haviam realizado), os impediu (aos demandantes) de obter dos vendedores a quantia a que tinham direito, direito que lhes foi reconhecido pelo tribunal.

Esta explicação revela que o enriquecimento em questão não é directo, no sentido de ter sido com os autores que os ora réus contactaram, contratando com eles, mas antes mediato ou indirecto na acepção de nenhuma relação contratual terem estabelecido com os autores. O empobrecimento, como alegado, resultaria de, através de uma actuação concertada entre os aqui réus e os vendedores, traduzida na compra do imóvel, estes haviam subtraído da esfera patrimonial dos vendedores o imóvel que antes os autores haviam prometido comprar a esses mesmos vendedores. Assim, o promitente vendedor ao libertar-se desse bem através da sua venda ter-se ia colocado numa posição de iliquidez para não ter de pagar aos autores o que o tribunal lhes havia reconhecido pelo incumprimento do contrato promessa.

Como observamos, na sua estrutura a presente acção com diferente enquadramento normativo alude ao mesmo argumentário da impugnação pauliana que foi julgada improcedente e, complementarmente, à alegação que em acção posterior os autores deduziram contra os aqui réus no sentido de os accionarem nos termos do art. 616 nº 2 do CCivil, ou seja, para fazerem valer uma das consequências da impugnação pauliana quanto aos adquirentes de má-fé, acção que foi igualmente julgada improcedente por se haver entendido não estarem preenchidos os pressupostos da condenação, desde logo por ausência de demonstração de os aí réus (e réus também nesta acção) terem agido com má-fé.

No que nos cabe decidir por respeito ao objecto do recurso, confirmamos que a compra que os aqui réus realizaram do imóvel discutido foi real e de tal forma efectiva que, decorrido cerca de um ano, vieram a proceder à venda do mesmo por valor muito superior àquele pelo qual o haviam adquirido.

Sendo a questão suscitada restrita à apreciação do enriquecimento sem causa, era exigível aos autores que alegassem e provassem todos os elementos constitutivos desse enriquecimento.

Ora, para que dúvidas não se admitam, importa ter presente que constando dos factos provados que noutros processos foram considerados provados determinados factos, estes não podem ser importados para este processo (como provados) porque o art. 421 doi CPC a propósito do valor extra processual das provas determina que apenas os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte e apenas se o regime de prova não oferecer às partes garantias inferiores às do processo onde os depoimentos e as perícias foram produzidos em primeiro lugar. Sublinhe-se ainda que este preceito não permite que se considerem provados os factos que o foram noutro processo, mas apenas, que os próprios depoimentos e perícias possam ser apresentados noutro processo para aí serem apreciados pelo tribunal que sobre eles terá de produzir um juízo de convicção.

Ora, porque não foi invocado o valor extra processual das provas, não tendo sido requerido que quaisquer provas (e não factos) tivessem sido importadas de outro processo para neste serem apreciadas, os factos provados noutros processos não podem servir a decisão a proferir neste.

Posto isto, a figura do enriquecimento sem causa está prevista no artigo 473.º do Código Civil, sendo pressupostos desse enriquecimento sem causa: i) a existência de um enriquecimento; ii) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; iii) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento; iv) a lei não facultar ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado.

Assim, não basta que uma pessoa tenha obtido uma vantagem económica à custa de outra, sendo ainda necessária a ausência de causa jurídica justificativa da deslocação patrimonial e cabe a quem pede a restituição com base no enriquecimento de outrem à sua custa e sem causa justificativa, o ónus de alegar e provar esses pressupostos. Não basta que não se prove a existência de uma causa de atribuição, sendo preciso convencer o tribunal da falta de causa. Por isso, é de considerar, em regra, que o enriquecimento não terá causa justificativa quando, segundo os princípios legais, não haja razão de ser para ele ou quando, segundo os mesmos princípios legais, deve pertencer a outrem e não ao efetivo enriquecido.

No caso em decisão está provado que por escritura pública de 20.04.2005, sob a designação "Compra e Venda", EE e marido FF declararam vender ao aqui R. CC casado com a R. DD pelo preço de 7.500€, já recebido, o prédio urbano discutido nos autos.

Todavia e no que se refere ao enriquecimento nada mais resultou provado uma vez que os autores não lograram a demonstração que os réus sabiam que a compra e venda realizada consistia num estratagema destinado a evitar futuras penhoras dos ali declarantes vendedores, resultando em prejuízo para os credores destes, Autores incluídos; que os Réus aceitaram declarar comprar e declarar vender tal imóvel para impedirem penhoras sobre o mesmo, permitindo consequentemente aos referidos vendedores EE e marido evitar o cumprimento de obrigações, nomeadamente o pagamento de dívidas para com os credores, Autores incluídos; que no momento da venda os réus sabiam que os autores pretendiam desfazer-se de todos os seus bens imóveis; que os réus sabiam que para adquirir uma casa individual nas circunstâncias em que declararam comprar o prédio - casa com quintal, sua localização e suscetível de construir em altura - era necessário despender, nessa data, quantia não inferior a 75.000,00€ ; que os réus tivessem consciência que o prédio declarado vender tinha valor superior a 75.000,00€.

A prova de que os réus adquiriram em 20-04-2005 o imóvel por 7.500,00 € e que o venderam em 03-05-2006 pelo valor de 62.350,00€, bem como que esse prédio permitia que nele fosse implantada uma construção e altura, cujo valor de mercado, em 20.04.2005 e 3.05.2006, ascendia a cerca de 75.000€ e 77.000€, respetivamente, podendo impressionar pela diferença de valores de compra e venda não é suficiente para que permita presumir a partir dessa impressão os elementos constitutivos do enriquecimento, nomeadamente o empobrecimento de quem não participou nessa compra e venda por força de uma vontade de os réus realizarem a compra do imóvel para prejudicarem quem quer que fosse. Não sendo a prova construída sobre intuições e, neste caso, nem sequer possível de construir sobre prova testemunhal no que se refere a um eventual valor do imóvel diferente do declarado na escritura, o que resulta demonstrado é, simplesmente, que o proprietário de um imóvel o vendeu por um valor (bem inferior) ao que seria o seu valor de mercado não fornecendo a prova, nem podendo o julgador presumir com base nos factos provados qualquer razão para que a venda tenha sido realizada por esse preço. Porém, tendo sido alegado e não tendo sido certificado que esse preço constante da escritura pública tenha sido fixado para que os réus se tenham enriquecido à custa dos aqui autores, tão pouco se provou a ausência de causa justificativa para que o preço fixado tenha sido esse, matéria que como se aludiu impunha não só a demonstração de que os réus tinham obtido uma vantagem económica à custa dos autores mas, também, a prova da ausência de causa jurídica justificativa da deslocação patrimonial, não bastando a não prova da existência de tal causa, o que igualmente não ficou demonstrado.

Pelo exposto, na falta de demonstração dos requisitos do enriquecimento sem causa, improcedem as alegações de recuso devendo ser negado provimento à revista.

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Síntese conclusiva

- É admissível julgar o modo de exercício dos poderes de reapreciação da matéria de facto que são confiados à Relação pelo artigo 662.º do CPC uma vez que esta previsão legal constitui “lei de processo” para os efeitos do artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC; determinando a ocorrência de uma questão desta natureza a inoperância da dupla conformidade;

- Saber se é ou não admissível exclusivamente prova testemunhal para a demonstração do preço simulado numa escritura pública é matéria que se inscreve na previsão legal dos arts. 682º, nº 2, e 674º, nº 3 do CPC por constituir indagação de ofensa pelo tribunal recorrido de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova (prova tarifada ou legal);

- Se na escritura pública de compra e venda, com base nas declarações dos contraentes perante o notário se fez constar o preço do imóvel, essa declaração vale como confissão;

-  Quando houver princípio de prova por escrito, que torne verosímil o facto a provar, contrário à declaração confessória ou a qualquer convenção contrária ou adicional ao conteúdo da escritura, é admissível prova testemunhal para complementar a demonstração, de modo a fazer a prova do facto contrário ao constante dessa declaração, o que decorre da interpretação do art. 394 do CC;

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Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 14 de Setembro de 2021


Nos termos e para os efeitos do art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 20/2020, verificada a falta da assinatura dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos no acórdão proferido, atesto o respectivo voto de conformidade do Sr. Juiz Conselheiro Tibério Silva e da Srª. Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.


Manuel Capelo (relator)