Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5396/18.5T8STB-A.E1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: OBRIGAÇÃO CARTULAR
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ABUSO DO DIREITO
AVALISTA
RELAÇÕES IMEDIATAS
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
DETERMINAÇÃO DO VALOR
REDUÇÃO
NULIDADE
PROVA TESTEMUNHAL
PROVA TABELADA
PACTO DE PREENCHIMENTO
BOA FÉ
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - As nulidades da sentença/acórdão, encontram-se taxativamente previstas no artº. 615º CPC e têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da sentença/acórdão também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença/acórdão, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.

II - A nulidade da sentença/acórdão por excesso de pronúncia decorre da violação pelo julgador do dever de não ir além do conhecimento das questões que lhe sejam suscitadas pelas partes (a não ser que a lei lhe permita ou imponha o seu conhecimento oficioso).

III - Como decorre do preceituado nos artºs. 674º, nº. 3, CPC (em conjugação ainda com o artº. 682º desse mesmo diploma), o STJ, como regra, apenas conhece de matéria de direito, carecendo, por isso, de competência para apreciar a matéria de facto, a não ser que haja ofensa de disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

IV - Integrando-se o uso de presunções judiciais pela Relação na naquela exceção à regra referida em III, o STJ só poderá, em sede de sede revista, sindicar esse seu uso se o mesmo ofender norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados.

V - O aval é uma garantia (pessoal) prestada à obrigação cartular do avalizado, não sendo o avalista sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele o avalizado.

VI - Sendo a obrigação do avalista uma obrigação independente e (materialmente) autónoma da do avalizado, a mesma vive e subsiste independentemente da obrigação do último, salvo no caso da obrigação a que este se vinculou ser nula por vício de forma.

VII - E daí que o avalista não possa, por via de regra, opor ao portador do título cambiário os meios de defesa (vg. exceções) de que possa lançar mão o avalizado perante aquele portador, e nomeadamente sustentando-os ou filiando-os na relação jurídica material subjacente à emissão do título.

VIII - Limitação essa que não é, todavia, absoluta, pois que pode o avalista invocar perante o portador do título cambiário, para além da nulidade por vício de forma da obrigação garantida, a exceção do pagamento da quantia inscrita no título e bem como ainda a exceção do preenchimento abusivo desse título, desde que (neste caso), e encontrando-se no domínio das relações imediatas, tenha intervindo no respetivo pacto de preenchimento do mesmo estabelecido para o efeito.

IX - O pacto de preenchimento é o ato através do qual as partes do negócio cambiário acordam os termos ou as condições em que deve vir a ser posteriormente completado o título de crédito emitido, definindo a obrigação cambiária, ou seja, as condições relativas ao seu conteúdo, designadamente quanto ao seu montante, ao seu vencimento, ao lugar do seu pagamento, etc. .

X - Pacto esse que pressupõe, além do mais, que o título cambiário tenha sido emitido e entregue em branco, isto é, sem que nessa altura se mostrasse preenchido com alguns dos seus elementos essenciais que dele devem constar aquando da sua apresentação a pagamento.

XI - Pacto/acordo de preenchimento esse que pode e deve ser objeto de interpretação à luz dos critérios previstos nos artºs. 236º e sgs. do C. Civil.

XII - Quem invoca o preenchimento abusivo de um título cambiário, tem o ónus de alegação e prova dos factos integrantes desse abusivo preenchimento, a começar, desde logo, pela existência de um pacto estabelecido para o seu preenchimento.

XIII - A posterior inserção no título de uma quantia superior àquela que decorre do acordo realizado para o efeito, não conduz à nulidade do título, mas tão só à redução do quantitativo.

XIV - Estando, ab initio, através do pacto do preenchimento de uma livrança dada à execução, assegurada a determinabilidade da obrigação (avalizada), afastada fica a figura do “aval omnibus, e a consequente nulidade do aval dado.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I - Relatório

AA deduziu oposição por embargos, por apenso à execução comum para pagamento da quantia de € 52.410,25 que contra si, e OUTROS, instaurou (em 04/07/2018) a Caixa Geral de Depósitos, S.A., todos com os demais sinais dos autos, dando como título executivo uma livrança, subscrita por T... LDA, e avalizada por aquela e por outros terceiros.

Para tanto, alegou, no essencial, o seguinte:

- A livrança dada à execução reporta-se a um contrato que não foi mencionado pela exequente na sua exposição de factos;

- As assinaturas apostas no contrato no ...25 e na livrança dada à execução, designadamente nos lugares destinados às assinaturas do subscritor e avalista não são do seu punho;

- Caso assim não se entenda, o aval é nulo uma vez que o montante máximo da garantia não foi determinado;

- A livrança foi preenchida sem conhecimento, consentimento e autorização da embargante;

- A exequente não alegou a forma de apuramento da quantia exequenda, a qual não está espelhada nos títulos dados à execução;

- O direito de ação da exequente já caducou;

- Nunca foi interpelada para cumprimento de qualquer obrigação;

- O direito da exequente já prescreveu.

Terminou, pedindo a extinção da execução contra si instaurada.


2. A exequente contestou todos os fundamentos de defesa apresentados pela embargante, pugnando pela improcedência da oposição/embargos.


3. Proferido o despacho saneador - no qual se declarou, de forma tabelar, a validade e a regularidade da instância, com a enunciação ainda do objeto do litígio e dos temas de prova fixados -, e instruído o processo – que engobou a realização de prova pericial à assinatura da embargante -, teve lugar a audiência de discussão e julgamento.


4. Seguiu-se a prolação da sentença (17/09/2021), no final da qual – e após se ter concluído que a exequente não logrou provar, como lhe competia, ser a assinatura aposta nos documentos dados a execução, e nomeadamente no aval da sobredita livrança que serve de título executivo, da autoria da embargante – se declarou extinta a execução contra a executada/embargante (considerando, em consequência, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nos embargos).


5. Inconformada com tal sentença, a exequente/embargada dela apelou, tendo vindo a ser proferido (10/03/2022) acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora, que, no final – e após ter alterado a matéria de facto, concluindo, em consequência, de forma diferente daquela que conduziu à decisão da 1ª. instância, e ter passando depois, à luz do artº. 665º, nº. 2, do CPC, a conhecer das demais questões cuja apreciação aquela decisão considerara prejudicada - decidiu julgar procedente a apelação e, em consequência, revogou a sentença recorrida, julgando os embargos improcedentes e determinando o prosseguimento da execução.


6. Foi agora a embargante que, com o ele irresignada, veio interpor revista de tal acórdão da Relação, tendo concluído as respetivas alegações desse recurso nos seguintes termos: (respeitando-se a ortografia, e expurgando-se, por irrelevante, a parte inicial destinada a justificar, na sua essência, a sua legitimidade para interpor recurso):

« (…)

- Consta do Douto Acórdão que se quer em crise que, tendo em conta que o objecto do recurso se encontra “delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso (art.ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, todos do C.P.C.)” – sic –, a questão “nuclear (1.ª) posta à consideração do tribunal consiste em saber se existiu erro de julgamento no que se refere à matéria de facto, relativo ao facto dado como não provado” – sic – sendo que, em caso de reconhecimento do aludido “erro de julgamento” caberia ainda ao Douto Tribunal Superior, em substituição do Tribunal recorrido, conhecer, cf. determina o art.º 665.º, n.º 2 do C.P.C., das seguintes questões:

2.ª – Da nulidade do aval;

3.ª – Do preenchimento abusivo da livrança;

4.ª – Da inexequibilidade do título dado à execução;

5.ª – Da caducidade do direito de acção;

6.ª – Da falta de interpelação da embargante;

7.ª – Da prescrição do direito de acção,

O que veio a suceder.

- Com o devido respeito, que é muito, mal andou o Douto Acórdão sub iudice, como adiante melhor se explicitará.

- Coloca-se desde já a questão prévia da admissibilidade do presente recurso de revista no que concerne à modificação da matéria de facto considerada provada e não provada pelo Tribunal de 1.ª Instância.

- Quanto à 1.ª questão suscitada, entendeu o Douto Tribunal recorrido que assiste razão à recorrida pelo que, impondo-se a modificação do julgado de facto decidiu que o facto não provado (Alínea A) dos FACTOS NÃO PROVADOS constantes da douta sentença proferida em 1.ª instância) passasse a constar dos factos provados com o seguinte teor: “18. As assinaturas apostas no contrato n.º ...25, na autorização de preenchimento de livrança datada de 22.10.2008 e na livrança dada à execução nos lugares destinados ao subscritor e avalista, foram apostas pelo punho da executada/embargante.”

- Para tanto, o Douto Tribunal sustentou a sua posição em alegados “indícios” e juízos de probabilidade desprovidos de lógica e que violam de forma notória preceitos basilares do nosso Direito Civil em matéria de prova (mormente quanto ao ónus da prova).

- Decidiu o Douto Tribunal da Relação de Évora alterar a matéria de facto provada com base numa presunção judicial, por entender que as presunções são, conforme dispõe o art.º 349.º do C.C., ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, assentando a prova de um facto por presunção judicial, no raciocínio do julgador, baseado em regras de experiência comum, conjugadas com princípios da lógica e com juízos de probabilidade.

- Contudo, constado Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça datado de 11.04.2019, proferido no âmbito do Processo n.º 8531/14.9T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, “As presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova próprio, consistindo, antes, em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos para dar como provados factos desconhecidos, nos termos definidos no artigo 349.º do Código Civil.”,

- E que “O Supremo Tribunal de Justiça só pode censurar o recurso a presunções judiciais pelo Tribunal da Relação se esse uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados”,

- Sendo que “O erro sobre a substância do juízo presuntivo formado, em sede probatória, pelo Tribunal da Relação com apelo às regras da experiência, não se afere em função de questões de natureza jurídica, mas sim em função dos factos materiais que as suportam, pelo que, neste contexto, o mesmo só será sindicável pelo tribunal de revista em caso de manifesta ilogicidade”,

- Pelo que “Para aferir da ocorrência de uma tal ilogicidade, importa, assim, indagar se da decisão de facto e/ou da respetiva motivação constam, ou não os factos instrumentais a partir dos quais o tribunal tenha extraído ilações em sede dos factos essenciais, nos termos dos artigos 349º do C. Civil e 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.”

Assim, para fundamentar a sua decisão de alterar a resposta dada à matéria de facto constante do “ponto  A” dos factos dados como não provados pelo Tribunal de 1ª Instância, o Douto Tribunal da Relação de Évora retirou a ilação de que a inexistência de indícios de falsificação grosseira das assinaturas impugnadas, conjugada com as semelhanças apontadas no relatório pericial, com a não deteção de diferenças relevantes no confronto com as assinaturas genuínas e com o facto de não ter sido questionada a genuinidade das restantes assinaturas constantes dos documentos e das expressões constantes da livrança pelos restantes executados, à luz das regras da experiência comum e dos princípios da lógica, tendo por referência o contexto da assinatura da documentação, indicia que as expressões e assinaturas em causa foram apostas pelo punho da recorrente.

- Presunção esta ilegal (contralegem) em virtude de incorrer na violação expressa de diversos preceitos legais, designadamente dos art.ºs 342, n.º 1, 349.º e 374.º, n.º 2 do C.C., 3.º, n.º 3, 4.º do C.P.C. e 20.º da C.R.P.

- Segundo o art.º 682.º, n.º 2 do C.P.C., a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do art.º 674.º, acrescentando o seu n.º 3 que o processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito.

- Tal sucede in casu, em que são evidentes as contradições existentes no Douto Acórdão recorrido, assim como a sua ofensa de diversos preceitos legais, além de que a referida decisão enferma de falta de lógica e coerência e tem por base factos não provados.

- A presunção judicial sub iudice é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça se o seu uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados.

- Relativamente a esta à questão da eventual existência de erro de julgamento no que tange à matéria de facto, designadamente quanto ao único facto dado como não provado pelo Tribunal de 1.ª Instância [Alínea A) da sua Douta sentença], o Douto Tribunal recorrido, ao alterar aposição desse facto de não provado para provado, fê-lo indevida e ilegalmente.

- O facto considerado não provado na sentença da 1.ª Instância foi adicionado pela Douta Relação de Évora aos FACTOS PROVADOS com base em presunções judiciais ilegais, incoerentes e desprovidas de lógica.

- Pese embora, de acordo com as regras processuais vigentes, os poderes do Supremo Tribunal de Justiça, em sede de apreciação/alteração da matéria de facto, sejam muito restritos, existem situações em que a mesma é possível.

- Por regra, apenas está cometida ao Douto Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação de questões de direito (vide art.º 682º, nº 1, do CPC).

- Contudo, a invocada restrição não é absoluta, como decorre não só da remissão que o n.º 2 do art.º. 682.º do CPC faz para o art.º 674.º, n.º 3 do mesmo Código, norma que lhe atribui competência para sindicar o desrespeito de lei no que concerne à violação de norma expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova,

- Mas também do sistema de controlo da matéria de facto provada e não provada, emergente do art.º 682.º, n.º 3, do CPC, designadamente para os casos em que se entenda que as instâncias omitiram pronúncia sobre matéria de facto pertinente para a integração jurídica do caso ou em que ocorram contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito.

- Escreveu a este propósito António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2016, 3ª Edição, págs. 367 e segts. que “Todavia, sem embargo de outras intervenções previstas nos arts. 682º e 683º, considerou-se que o Supremo não deveria ficar indiferente a erros de apreciação da prova resultantes da violação de direito probatório material, podendo constituir fundamento de revista a violação de disposição legal expressa que exija certa espécie de prova ou que fixe a respectiva força probatória. Afinal, em tais situações, defrontamo-nos com verdadeiros erros de direito que, nesta perspectiva, se integram também na esfera de competências do Supremo.”.

- In casu, diante de uma questão que se prende, entre outros factores, com a realização de prova pericial, a sua apreciação não fica arredada dos poderes do S.T.J. ao qual cabe, em concreto, e no pleno uso da efectivação do referido controlo, aferir da existência, ou não, de erro e/ou de ofensa de uma disposição expressa da lei, nos termos estabelecidos pelo n.º 3 do art.º 674.º do CPC.

- Apesar de a fixação da matéria de facto caber às instâncias, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente a tais factos materiais, fixados pelo Tribunal recorrido, o regime jurídico que julgue adequado, por força do n.º 1 do art.º 682.º, em conjugação com o seu n.º 3 e com o art.º 674.º, n.º 3, ambos do CPC.

- Pelo exposto, o presente recurso deverá ser admitido neste ponto porquanto está em causa uma decisão (o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora) que versa sobre a apreciação e modificabilidade da matéria de facto para que o STJ possa sindicar se a Relação, no uso que fez dos seus poderes, ofendeu qualquer norma legal expressa nos termos estabelecidos pelo nº 3 do art.º 674º.

- Analisando a 1.ª questão apreciada no Douto Acórdão recorrido, importa atentar na existência de erro sobre a substância do juízo presuntivo formado, em sede probatória, pelo Douto Tribunal da Relação de Évora, por manifesta ilogicidade e da violação de lei pelo mesmo.

- Ao conhecer da 1.ª questão suscitada, entendeu o Douto Tribunal recorrido assistir razão à recorrida, tendo o mesmo decidido que o facto dado como não provado pela douta sentença proferida em 1.ª instância [Alínea A) dos FACTOS NÃOPROVADOS] passasse a constar dos factos provados com o seguinte teor: “18. As assinaturas apostas no contrato n.º ...25, na autorização de preenchimento de livrança datada de 22.10.2008 e na livrança dada à execução nos lugares destinados ao subscritor e avalista, foram apostas pelo punho da executada/embargante.”, modificando, assim, o julgado de facto,

- Para tanto, radicaram os Venerandos Juízes Desembargadores a sua posição em alegados “indícios” e juízos de probabilidade a que falta qualquer lógica e que violam de forma notória preceitos basilares do nosso Direito Civil, designadamente, entre outros, os concernentes à questão da prova (mais em concreto, ao ónus da prova).

- Começou o Douto Tribunal recorrido por referir as motivações que sustentaram a decisão do Douto Julgador que, na 1.ª instância, entendeu considerar como não provado o facto aqui sub iudice (Alínea A) dos FACTOS NÃO PROVADOS constantes da douta sentença proferida em 1.ª instância),

- Segundo o qual “Quanto ao facto dado como não provado, relativo às assinaturas nos três documentos (proposta de adesão Caixaworks, autorização de preenchimento de livrança datada de 22.10.2008 e livrança emitida em 19.05.2015, no valor de € 51.844,23), o Tribunal teve em conta o relatório pericial junto aos autos. (…) O relatório de exame de escrita manual concluiu pela hipótese “pode ter sido” de a escrita das assinaturas (rúbricas) contestadas de AA apostas na proposta de adesão Caixaworks, autorização de preenchimento de livrança datada de 22.10.2008 e livrança emitida em 19.05.2015, no valor de € 51.844,23 serem do seu punho, sendo que nenhuma outra prova foi produzida em audiência que sustentasse esse desiderato, sendo certo que tal ónus cabia à exequente – cfr. artº 342º nº 1 do CC. Com efeito, nenhuma das testemunhas da exequente revelou ter presenciado a aposição das contestadas assinaturas (rúbricas) nos documentos em causa e a conclusão do relatório pericial não é de tal modo conclusiva para que se possa concluir pela veracidade das mesmas. Deste modo, a dúvida sobre a ocorrência de um facto equivale à falta de prova desse facto que onera a parte que tinha o ónus de o provar (prova insuficiente). Assim, persistindo a dúvida sobre a realidade desses factos alegados pela exequente o tribunal só pode assumir uma resposta negativa – cfr. artº 414º CPC.”

- O relatório de exame pericial de escrita manual concluiu pela hipótese “pode ter sido” relativamente à eventualidade de a escrita das assinaturas (rúbricas) contestadas da recorrente, apostas no contrato n.º ...25, autorização de preenchimento de livrança datada de 22.10.2008 e na livrança dada à execução nos lugares destinados ao subscritor e avalista, terem sido apostas pelo seu punho, mas nenhuma outra prova foi produzida em audiência de julgamento que sustentasse tal tese, sendo inequívoco que o ónus de provar tal facto recaia sobre a recorrida ,a qual não apresentou a julgamento uma única testemunha que tenha presenciado a aposição das assinaturas/rúbricas contestadas relativamente a nenhum dos documentos em causa,

- Assim, é impossível inferir do relatório pericial apresentado nos autos que as invocadas assinaturas/rúbricas tenham sido apostas pelo punho da recorrente.

Contudo, entendeu o Douto Tribunal da Relação de Évora, espantosamente, que, embora in casu o ónus da prova coubesse à recorrida, a análise conjugada da prova em face das posições assumidas pelas partes nos seus articulados com as regras da experiência permitia concluir que tal prova foi feita por aquela,

- Posição esta que só pode ser merecedora de censura diante da total ilogicidade das “conclusões” dos Venerandos Juízes Desembargadores que não partiram de factos dados como provados, mas de um facto não provado e de meras ilações sem qualquer nexo ou coerência,

- Com o que incorreram em clara violação do Princípio do dispositivo, segundo o qual o julgador só pode fundar a sua decisão nos factos alegados pelas partes que integrem a causa de pedir ou que sirvam de fundamento à dedução de eventuais excepções.

- Quanto à 1.ª questão de que conheceu, o Douto Acórdão em crise começa por referir que a recorrente se limitou a salientar nunca ter celebrado qualquer contrato de utilização de cartão de crédito com a recorrida, nem tampouco assinou, preencheu ou avalizou qualquer livrança titulada por aquela,

- Acrescentando que a mesma afirmou que à data (22/10/2008) não residia em Portugal, mas sim no Reino Unido, tendo as suas testemunhas confirmado que, afinal, a mesma só foi viver para o Reino Unido em 2012, sendo que na data em apreço residia em Lisboa com a sua irmã (a testemunha BB).

- Pese embora a recorrente tenha cometido um erro (indesculpável) nas suas alegações, fruto de uma confusão desastrada entre a alegada data da alegada assinatura do contrato (22.10.2008), e a data que se encontra aposta na livrança (19.05.2015), tal não permite inferir que como aquela vivia em Portugal, designadamente em Lisboa (não em S...), assinou o contrato de utilização de cartão de crédito sub iudice e assinou, preencheu ou avalizou a livrança em apreciação.

- Argumentaram os Venerandos Juízes Desembargadores do Douto Tribunal da Relação que, tendo a requerente, na altura, a qualidade de gerente da sociedade “T... LDA (titular do aludido cartão de crédito) e sendo a sua assinatura imprescindível para a vinculação da sociedade, cabia à mesma clarificar melhor toda a situação de modo a dar verosimilhança à sua posição, atendendo ao contexto, ademais porque dos documentos constam outras assinaturas que o Douto Tribunal atribuiu erroneamente ao seu pai e à sua irmã, quando os nomes são os do seu pai e da sua mãe), cuja autenticidade não foi posta em causa, com o que a recorrente não pode conformar-se.

- Ora, a recorrente jamais poderia ter clarificado melhor a situação porquanto não presenciou qualquer acto de assinatura do contrato de utilização de cartão de crédito em apreciação, nem de assinatura, preenchimento ou aposição de aval quanto à livrança em questão, desconhecendo em absoluto o que sucedeu no dia, momento e local mencionados pela recorrida!

- Já a circunstância de os progenitores da recorrente também serem executados e não terem apresentado qualquer contestação só vem dar força à posição da embargante, precisamente por ter sido a única a apresentar embargos, o que fez legitimamente, ao abrigo do seu direito de defesa e no pleno uso dos mecanismos processuais que tinha ao seu dispor, com o intuito de apurar a verdade material e obter uma decisão justa, ainda que tal pudesse, eventualmente, colocá-la diante de uma situação de desconforto familiar,

- Sem esquecer que a mesma requereu, de forma espontânea, logo aquando da sua apresentação dos seus embargos, a realização de perícia caligráfica às assinaturas contestadas, apesar de bem saber que o ónus de provar a sua genuinidade recaia sobre a exequente, circunstância esta ignorada pelo Tribunal recorrido.

- E sempre se dirá, sem prescindir, que, caso a recorrida tivesse interesse na descoberta da verdade material e capacidade de fazer prova da genuinidade das assinaturas em apreço, teria, ela própria, a quem cabia tal ónus, arrolado todas as testemunhas que presenciaram os actos em questão ou até requerido os depoimentos de parte dos restantes executados, o que não fez, limitando-se a apresentar testemunhas que descreveram meros “procedimentos habituais”, nada sabendo em concreto acerca do que se passou no dia 22.10.2018 no balcão daquela sito em S....

- Estes factores não foram tidos em conta pelo Douto Tribunal recorrido, cujo raciocínio se considera ainda mais incoerente quando em confronto com as circunstâncias acima descritas e outras que se explicitarão de seguida.

- De acordo com o Princípio do dispositivo, o julgador só pode fundar a sua decisão nos factos alegados pelas partes que integrem a causa de pedir ou que sirvam de fundamento à dedução de eventuais excepções.

- O Douto Tribunal recorrido fundamentou também a sua posição na circunstância de constarem da livrança, mais concretamente do aval, além das alegadas assinaturas dos alegados três avalistas, uma expressão manuscrita com diferentes caligrafias, a saber, “dou o meu aval ao subscritor”, cuja letra não foi alvo de perícia, sendo seu entendimento que a perícia só incidiu nas assinaturas/rúbricas contestadas em virtude de a embargante apenas ter feito referência às mesmas.

- Respeitosamente, tal inferência carece de logicidade porquanto a própria exequente, na sua contestação, requereu apenas a realização de exame laboratorial às assinaturas/rúbricas apostas na livrança, no contrato e no “pacto”.

- Para a recorrente era perfeitamente legítimo e expectável que a perícia das assinaturas/rúbricas contestadas bastasse ao apuramento da verdade material, ademais tendo em conta que só as mesmas se encontram apostas nos três documentos carreados para os autos.

- Ditam as regras da lógica e da experiência que a conclusão acerca da falsidade das assinaturas/rúbricas contestadas seria mais do que suficiente para fazer claudicar a acção no que toca à recorrente.

- Sem jamais conceder, mas admitindo como mera hipótese académica que era requerido exame pericial quer às assinaturas/rúbricas (comuns a todos os documentos em apreço), quer à expressão “dou o meu aval ao subscritor” seria impossível (ou, no mínimo, altamente improvável) que a expressão tivesse sido aposta pelo punho da recorrente e a assinatura não o tivesse sido, ou vice-versa.

- E tanto assim foi que nem a própria Exequente, nem o Douto Tribunal de 1.ª Instância, oficiosamente, no âmbito dos seus poderes inquisitórios (ao abrigo do art.º 411.º do C.P.C.), entenderam pertinente requerer tal diligência.

- E voltou o Douto Tribunal recorrido ao argumento de que a afirmação da recorrente de que na altura da aposição das assinaturas não se encontrava em Portugal não era verídica, conforme corroborado pela testemunha BB, sua irmã, como se tal permitisse concluir que, estando a mesma a residir em Portugal (em Lisboa e não em S...), seria forçoso que fosse ela a autora das invocadas assinaturas, o que é desprovido de nexo.

- Não foi esse o entendimento do Douto Tribunal de 1.ª Instância que aplicou bem a lei e se focou na incapacidade da recorrida de apresentar uma única testemunha que tenha presenciado os aleados factos, em vez de basear a sua decisão em meras especulações.

- Ora, se por um lado, a recorrente (ainda que em erro grosseiro) alegou que residia no Reino Unido a 22.10.2008, o facto de a sua própria irmã e o seu companheiro (a testemunha CC) terem esclarecido a verdade, de forma totalmente espontânea e sem quaisquer reservas, só pode abonar a seu favor, já que os mesmos foram arrolados por si como testemunhas.

- Tal detalhe, que nem sequer consta da factualidade dada como provada, não pode prevalecer face à ausência de prova cabal por parte da recorrida quanto à genuinidade das assinaturas contestadas,

- Sem jamais prescindir, sempre se dirá, por dever de cautela de patrocínio, que, pese embora o julgador possa, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 5.º do C.P.C., considerar, nas suas decisões, os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar, e os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, compete-lhe sempre interpretar e enquadrar os mesmos sem esquecer as normas do Código Civil e do Código de Processo Civil em sede de prova, sob pena de ocorrer violação do lei, tal como ocorreu no Douto Acórdão recorrido.

- Mais alegou o Douto Acórdão recorrido resultar dos depoimentos das testemunhas DD e EE que “o procedimento na CGD é de que todos os documentos, nomeadamente as livranças em branco, serem assinados na presença de funcionários do balcão da Caixa, que também assinam a documentação de suporte, referindo que no caso um deles era o gerente da altura, FF, o que efetivamente resulta da proposta de adesão Caixaworks e autorização de preenchimento de livrança, datadas de 22/10/2008”.

- Sucede que os procedimentos “habituais” da CGD de nada relevam para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa, sendo que as testemunhas em apreço nada disseram de concreto quanto ao que se passou naquele dia, naquele balcão, onde não estiveram, pelo que os seus testemunhos não podiam sequer ter sido valorados como o foram nesta matéria.

- Inferir de tais depoimentos que “As assinaturas apostas no contrato n.º ...25, na autorização de preenchimento de livrança datada de 22.10.2008 e na livrança dada à execução nos lugares destinados ao subscritor e avalista, foram apostas pelo punho da executada/embargante” é não só impossível do ponto de vista substantivo, como legalmente inadmissível, à semelhança do que ocorre com as testemunhas “de ouvir dizer”.

- Sem jamais conceder, e com o devido respeito, a atribuição de qualquer valor probatório às declarações das mencionadas testemunhas é susceptível de permitir num favorecimento indevido da posição da recorrida, em detrimento do direito da recorrente a um processo equitativo.

- Decorre dos princípios vertidos na Constituição, mormente do seu art.º 20.º, o direito a um processo equitativo, que se concretiza através de outros princípios, entre os quais «o direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. i, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 415).

- O Douto Acórdão recorrido retornou à apreciação do exame pericial da assinatura (rúbrica) da recorrente, para referir que, apesar de constar do respectivo relatório um alerta para a dificuldade da sua realização em virtude de o Laboratório dispor de poucos elementos genuínos para comparação (factor este claramente favorável à recorrente, uma vez que lhe retira valor probatório), tendo em conta que o que mesmo menciona em termos de semelhanças, não se encontra descartada a possibilidade de as assinaturas terem sido apostas pelo punho da recorrente

- Acrescentando que, pelo contrário, foi concedido “algum grau de certeza que as mesmas que se têm por genuínas, possam ter sido apostas pelo seu próprio punho” (sic), o que não só não se compreende, como carece de coerência.

- Com o devido respeito, que é muito, não se vislumbra o que quis o Douto Tribunal dizer com “algum grau de certeza que as mesmas (…) possam ter sido apostas pelo seu próprio punho”, parecendo contentar-se com “algum grau de certeza” acerca de uma mera possibilidade em termos de prova, o que não faz qualquer sentido (o que é, afinal, alguma certeza acerca de uma possibilidade?)

- A conclusão do relatório em análise limita-se a referir “pode ter sido”, o que não passa de uma mera possibilidade, não equivalendo sequer a uma simples probabilidade e encontrando-se muito distante do grau de “Probabilidade próxima da certeza científica”.

- Aliás, o relatório menciona apenas a existência de meras semelhanças, meras parecenças que jamais excluem a possibilidade da existência de falsificação.

- Os Venerandos Juízes Desembargadores não atentaram ou valoraram adequadamente outros aspectos do relatório elaborado pelo Laboratório de Exame de Documentos e Escrita Manual da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, designadamente quanto à existência de um conjunto de limitações quanto à sua realização, a saber: “O presente exame é de difícil execução e apresenta consideráveis dificuldades pelo facto de estarem em causa assinaturas ilegíveis e as assinaturas de comparação serem também ilegíveis, apenas se conseguindo identificar a letra inicial (A). O problema de identificação de assinaturas ilegíveis é muito complexo e tanto mais complexo quanto menos letras estiverem envolvidas no seu traçado. Nestas condições, o exame comparativo apenas se poderá fazer em relação a características de ordem geral e ao movimento e direção dos traços no sentido de verificar se os hábitos gráficos de AA estão ou não presentes na escrita das assinaturas contestadas. Num exame de comparação de escrita, um dos requisitos fundamentais é que o perito possa dispor de elementos genuínos de comparação, em quantidade e em qualidade suficientes, a poder revelar-se a sua variação natural, e, consequentemente, definir os hábitos gráficos e, se necessário, evolução caligráfica do autor dessa mesma escrita. (…) No presente caso dispõe-se apenas de duas assinaturas genuínas, contemporâneas das assinaturas contestadas, para comparação, sendo que as assinaturas genuínas mais recentes, em maior número, apresentam um maior grau de simplificação, diminuindo os elementos comparáveis. Assim, este exame apresenta algumas limitações pelo facto de se dispor de poucos elementos genuínos de comparação de AA contemporâneos da escrita das assinaturas contestadas” (sic)

- Acresce que o mesmo Laboratório, por entender que o grau de segurança de juízos formulados pelos peritos não é suscetível de tradução em termos matemáticos de probabilidade, forneceu ainda, como seu relatório, um conjunto de expressões capazes de traduzir de uma forma graduada e sistematizada tal grau de segurança, a saber:

“As expressões usadas nos relatórios do LEDEM são as seguintes: Probabilidade próxima da certeza científica

Muitíssimo provável Muito provável Provável

Pode ter sido

Não é possível formular conclusão Pode não ter sido

Provável não Muito provável não

Muitíssimo provável não

Probabilidade próxima da certeza científica não”.

- De acordo com esta escala, o Laboratório em causa não considerou sequer provável que as assinaturas sub iudice fossem da autoria da recorrente, sem sequer se abeirando do grau de “probabilidade próxima da certeza científica”, limitando-se a alvitrar um “pode ter sido, situado, aproximadamente, a meio da citada escala, logo a seguir ao grau “Não é possível formular conclusão”.

- Ao contrário do que Douto Tribunal recorrido tentou sustentar, a prova pericial produzida não atestou a genuinidade das assinaturas contestadas, limitando-se a dar como possível que tenham sido da autoria da recorrida, sem qualquer grau de certeza e sem excluir, em momento algum, a possibilidade da existência de falsificação in casu.

- Não obstante, entendeu o Douto Tribunal recorrido que a inexistência de indícios de falsificação grosseira das assinaturas impugnadas, conjugada com as semelhanças apontadas no relatório e com a não deteção de diferenças relevantes no confronto com as assinaturas genuínas e com o facto de não ter sido questionada a genuinidade das restantes assinaturas constantes dos documentos e das expressões constantes da livrança, à luz das regras da experiência comum e dos princípios da lógica, tendo por referência o contexto da assinatura da documentação, indicia que as expressões e assinaturas em causa foram apostas pelo punho da recorrente.

- Impõe-se, assim, à recorrente aqui sindicar a ilogicidade dos raciocínios expendidos pelos Venerandos Juízes Desembargadores, em conjunto com a ilegalidade da decisão que deles retiraram.

- Com efeito, presumir que uma assinatura é genuína com base no facto de os restantes executados não terem impugnado a genuinidade das suas assinaturas constitui uma grave agressão do direito de defesa da recorrente pois, a ser de tal forma, o que não se concede, nem se concebe à luz do nosso ordenamento jurídico, a mesma escusaria de deduzir embargos (como é seu direito), conformando-se com a inevitabilidade de uma “sentença” desfavorável, como se não fosse dotada de legitimidade para tanto e/ou de personalidade jurídica e judiciária autónomas!

- Tal ilação consubstancia uma grave violação do Princípio do Contraditório e do direito de defesa da recorrente, constitucionalmente consagrado.

- O Princípio do Contraditório encontra-se ínsito na garantia constitucional de acesso ao direito consagrada no art.º 20.º da CRP e traduz-se na possibilidade dada às partes de exercerem o seu direito de defesa e exporem as suas razões no processo antes de tomada a decisão.

- É o princípio do contraditório – com expressão na lei ordinária nos art.ºs 3.º, n.º 3, e 4.º do CPC – que garante uma participação efectiva das partes no desenrolar do litígio num quadro de equilíbrio e lealdade processuais e lhes assegura a participação em idênticas condições até ser proferida a decisão.

- Por outro lado, ao referir na sua argumentação “tendo por referência o contexto da assinatura da documentação” o Douto Tribunal recorrido, da forma como o faz, parece presumir, infundadamente, (ademais, convocando as “regras da experiência comum”) que a conduta das instituições de crédito, como é o caso da recorrida, mormente dos seus funcionários, é sempre idónea e irrepreensível, o que bem se sabe não corresponder à verdade, sendo precisamente as regras da experiência comum que permitem equacionar a forte possibilidade de ter ocorrido falsificação de expressões e assinaturas in casu.

- Existem inúmeros processos em que são contestadas assinaturas em virtude da existência de falsificações (grosseiras e não grosseiras), não sendo o caso vertente inédito.

- Certo é que a prova produzida pela recorrida não foi suficiente de molde a permitir concluir que as assinaturas contestadas foram apostas pelo punho da recorrente porquanto, em bom rigor, e no que concerne às alegações feitas quanto ao que se terá eventualmente passado em concreto no dia 22.10.2008, não foi apresentada pela recorrida qualquer testemunha presencial, o que podia ter sucedido se a mesma tivesse arrolada algum dos elementos presentes, designadamente o gerente do balcão de S....

- Do ponto de vista lógico, colhe muito mais a tese da recorrente do que a da recorrida – sendo a esta segunda que os Venerandos Juízes Desembargadores aderiram, adicionando algumas conclusões da sua lavra – tendo em conta a total incapacidade de produção de prova concreta e credível por parte desta, como se lhe impunha.

- Quanto à alegada inexistência de indícios de falsificação grosseira das assinaturas impugnadas invocada pelo Douto Tribunal recorrido, a mesma não permite excluir a possibilidade de ter existido uma falsificação mais “sofisticada”, sendo para tanto bastante alguém ter acesso a documentos manuscritos da recorrente.

- Casos existiram, sobretudo em tempos mais remotos, em que os meios de fiscalização eram menos sofisticados, e particularmente em meios mais pequenos, em que todas as pessoas se conheciam ou tinham graus de parentesco, certos funcionários de instituições bancárias permitirem aos seus clientes “facilitismos” na celebração de contratos e assinatura de documentos, que muitas vezes eram levados para casa por aqueles.

- Analisando os fundamentos que levaram o Douto Tribunal recorrido de considerar provado que “As assinaturas apostas no contrato n.º ...25, na autorização de preenchimento de livrança datada de 22.10.2008 e na livrança dada à execução nos lugares destinados ao subscritor e avalista, foram apostas pelo punho da executada/embargante” isoladamente e em conjunto, torna-se evidente que lhes falta coerência, lógica e substracto factual.

- Sem jamais prescindir, e ad cautelam, sempre se dirá que tais motivações, incoerentes e falíveis, muito facilmente podem ser interpretadas no sentido oposto ao que lhes foi conferido pelo Tribunal recorrido, tendo em conta toda a factualidade dada como provada, sem olvidar as regras da experiência comum.

- Vários dos argumentos explanados no Douto Acórdão em crise consubstanciam graves violações de lei, com atropelos dos direitos da recorrente, designadamente as normas constantes dos art.ºs 342, n.º 1, 349.º e 374.º, n.º 2 do C.C., 3.º, n.º 3, 4.º do C.P.C. e 20.º da C.R.P.

- Os Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal recorrido terminam a sua análise da questão em apreço afirmando que os elementos factuais por si indicados, extraídos da conjugação da prova pericial com o depoimento das testemunhas, indiciam que as assinaturas em causa foram apostas pelo punho da recorrente, concluindo de seguida, afirmando-se seguros, ser muito mais provável que tal tenha ocorrido do que a hipótese oposta, a qual não se baseia em nenhum elemento indiciário, ficando assim ultrapassado o limite mínimo de probabilidade,peloque,resultandodaprovaproduzidaaindicadaprobabilidade preponderante, o facto em causa deveria ser considerado provado,

- Pelo que entenderam impor-se-lhes modificar o julgado de facto e decidir que o facto não provado passasse a constar dos factos provados, com o seguinte teor: “18. As assinaturas apostas no contrato n.º ...25, na autorização de preenchimento de livrança datada de 22.10.2008 e na livrança dada à execução nos lugares destinados ao subscritor e avalista, foram apostas pelo punho da executada/embargante.”

- Respeitosamente, não pode a recorrente conformar-se com esta posição indefensável à luz da factualidade carreada para os autos, das regras da experiência comum e dos normativos legais aplicáveis in casu.

- Em primeiro lugar, postula o artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil que “A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”.

- Uma vez que a recorrente, ao apresentar os seus embargos, impugnou as assinaturas que lhes foram indevidamente atribuídas, era à recorrida, que apresentou os documentos, que competia o ónus da prova da veracidade das assinaturas.

- Nos termos do n.º 2 do art. 374.º, do C. Civil, «Se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são verdadeiras, não lhe sendo elas imputadas, incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade».

- Ademais, a problemática do ónus da prova consiste em determinar qual das partes tem de suportar o risco inerente à falta ou insuficiência de prova, tendo o legislador decidido que o risco é suportado pela parte sobre a qual impende o onus probandi.

- Da análise de toda a factualidade apurada, aliada às regras da experiência comum, resulta evidenciado que a recorrida não logrou provar a genuinidade das assinaturas que imputou à recorrida.

- Não podia o Douto Tribunal recorrido, como fez, ao arrepio do invocado preceito legal, ter alterado o facto sub iudice de não provado para provado, para mais com base em meros juízos de probabilidade, sustentados pelas suas próprias ilações e em suposições, jamais sustentadas em factos provados e irrefutáveis, desprovidas de lógica e coerência, imprescindíveis para que se consubstanciar um juízo presuntivo.

- Uma vez que as presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova próprio, consistindo, antes, em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos para dar como provados factos desconhecidos (art.º 349.º do C.C), o erro sobre a substância do juízo presuntivo formado, em se de probatória, pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal recorrido, ademais com apelo às regras da experiência, é aferido em função dos factos materiais que as suportam, enfermando aquele, neste contexto, de manifesta e indubitável ilogicidade.

- Incorreu, assim, o Douto Tribunal recorrido em violação de lei substantiva, designadamente por erro de interpretação e de aplicação no que concerne aos art.ºs 342.º, 349.º e 374.º, todos do Código Civil, assim como em violação da lei de processo, designadamente dos art.ºs 3.º e 4.º do C.P.C., tendo ainda agredido o direito de defesa, consagrado no art.º 20.º da nossa Lei Fundamental.

- Impunha-se, assim, ao Douto Tribunal da Relação de Évora, em respeito pelas regras acima elencadas quer quanto ao ónus da prova, ínsitas no Código Civil, quer quanto à aplicabilidade in casu dos Princípios do dispositivo, do contraditório e do processo equitativo, plasmados no C.P.C., manter a decisão proferida em 1.ª Instância que decretou a procedência dos embargos e extinguiu a execução quanto à recorrente.

- Passando a uma breve análise das restantes questões apreciadas no Douto Acórdão recorrido:

- Caso V.Exas. entendam assistir razão à recorrente no que concerne à1.ªquestão suscitada, forçosamente ficará precludido o conhecimento das restantes questões aqui elencadas, por prejudicialidade.

- Não obstante, e sem jamais prescindir, a recorrente pronunciar-se-á relativamente às 2.ª, 3.ª e 4.ª questões apreciadas, o que faz por mero dever de cautela de patrocínio.

- Quanto à invocada nulidade do aval, um dos requisitos do negócio jurídico é a determinabilidade do seu objecto.

- O Código Civil é categórico em declarar nulo o negócio cujo objecto seja indeterminável (art.º 280.º, n.º 1 do Código Civil).

- O objecto do negócio jurídico pode ser indeterminado, o que não pode é ser indeterminável.

- Uma prestação é indeterminada e indeterminável quando não exista qualquer critério para proceder à determinação, caso em que se verifica a nulidade da obrigação.

- O negócio jurídico deve, portanto, dar lugar a prestações conhecidas ou pelo menos, cognoscíveis, pelas partes.

- No momento da conclusão do negócio, as partes podem não fixar o conteúdo das prestações de ambas ou de algumas delas sem que isso torne a obrigação nula, conquanto, logo nesse momento, seja convencionado o critério que permita a concretização ou determinação do conteúdo da prestação ou prestações.

- O que não é admissível é que o negócio deixe, ad nutum, tudo ao arbítrio de uma parte ou de terceiro.

- É, portanto, nulo o negócio jurídico pelo qual uma parte se obriga a pagar à outra o que esta quiser, dado que dá origem a uma prestação absurdamente incontrolável.

- O problema da determinabilidade do negócio jurídico tem sido bastante debatido a propósito da fiança e do aval omnibus de obrigações futuras, tendo sido reencontrada a unidade do direito através do acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2001, de 23 de Janeiro de 2001, que estabeleceu que: “É nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.”

- Deve, portanto, exigir-se que, no momento da conclusão do negócio, se consigne um critério objectivo e limitativo de determinação para que seja determinado o título de que a obrigação futura poderá ou deverá resultar.

- Quando não se encontre um qualquer critério objectivo para a determinação da obrigação, com a consequente colocação ilimitada do devedor nas mãos do credor, aquela deve considerar-se nula (art.º 280 nº 1 do Código Civil).

- A jurisprudência, confrontada com a invocação da nulidade do aval por indeterminação da obrigação cambiária correspondente, decorrente da circunstância de o título ter sido subscrito num momento em que se encontrava desprovido da indicação do respectivo valor e da data do seu vencimento, recusa provimento à sua arguição, desde que a obrigação assumida seja determinável nos termos do pacto de preenchimento.

- Analisando o caso em apreço, aparentemente a livrança foi emitida para garantir o cumprimento de um contrato de utilização de cartão de crédito, contudo, e tal como ficado provado no ponto 12. dos factos dados como provados, o seu plafond era susceptível de alteração, o que veio a suceder.

- Embora tenha sido inicialmente (a 22 de outubro de 2008) atribuído ao aludido cartão um plafond de 45.000,00€ (quarenta e cinco mil Euros), esse mesmo limite foi aumentado para 50.000,00€ em 25 de Agosto de 2009, sem qualquer conhecimento da recorrente.

- Entendeu o Douto Tribunal recorrido que a livrança tem a sua exequibilidade condicionada à verificação de dois pressupostos, um de natureza formal (estar assinada pelo devedor) e outro de outro de natureza substantiva (referir-se a obrigações pecuniárias líquidas ou liquidáveis através de simples cálculo aritmético).

- Contudo, entende a recorrente que a obrigação pecuniária que esteve na génese do preenchimento da livrança não é determinável porquanto ficou consignado no alegado pacto de preenchimento (que a mesma não assinou) que a importância da livrança corresponderia ao total das responsabilidades decorrentes da utilização do cartão de crédito, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e quaisquer encargos, incluindo os fiscais relativos à própria livrança, nada tendo sido quanto à eventualidade ou possibilidade de alteração do plafond atribuído ao aludido cartão.

- A falta de tal menção torna a obrigação alegadamente assumida indeterminável no que diz respeito ao avalista.

- Ora, se o devedor que subscreveu a livrança alterar o plafond do seu cartão por diversas vezes, como pode o avalista ficar obrigado ao cumprimento de uma obrigação que assumiu com determinado valor, quando o mesmo foi alterado sem o seu consentimento e anuência?

- A possibilidade de a recorrida permitir a alteração do plafond do invocado cartão de crédito jamais ficou consignada no “pacto de preenchimento” pelo que não pode ser oposta aos avalistas, sob pena de se considerar que o aval em apreço não é específico, sendo, ao contrário do sustentado pelo Tribunal recorrido, um aval omnibus, cuja prestação é, por definição, incontrolável.

- Da análise, ainda que desatenta do “pacto de preenchimento” resulta que a livrança em branco se destinava a titular e assegurar o cumprimento de todas as responsabilidades decorrentes do referido cartão de crédito, pelo que o montante máximo da garantia não foi determinado logo no momento da emissão da livrança, e, em qualquer caso, nunca seria perfeitamente determinável em face dos termos do contrato, que jamais fixou um limite máximo de plafond para o cartão de crédito em apreço.

- E tanto assim foi que o mesmo foi alterado menos de um ano depois, no pressuposto de que a livrança em apreço continuaria a ser garantia do cumprimento das inerentes obrigações.

- Contrariamente ao afirmado pelo Douto Tribunal recorrido, a obrigação assumida pelos avalistas é indeterminável nos termos do pacto de preenchimento, do qual não consta nenhum limite máximo para o plafond do cartão de crédito.

- Neste contexto, seria sempre impossível aos avalistas apurar o valor das suas obrigações por simples cálculo aritmético por força da sua indeterminabilidade.

- Na hipótese de o referido plafond ir sendo aumentado ao longo dos anos, então seria possível, em teoria, que os avalistas se vissem subitamente confrontados com a eventual existência de uma obrigação tantas vezes maior quanto o devedor quisesse e o credor autorizasse!

- Entende-se que, ao contrário da tese preconizada pelo Douto Tribunal recorrido, existe in casu um aval omnibus, não específico, pelo que desde já se requer a nulidade do mesmo com fundamento na indeterminabilidade do seu objecto, com as demais consequências legais, a saber a procedência dos presentes embargos e sequente extinção dos autos em apreço, pelo menos no que se refere à embargante, em conformidade com o disposto nos art.ºs 576.º, n.º 3, 579.º e 551.º, n.º 1, todos do CPC.

- No que concerne ao preenchimento abusivo do título, importa realçar que foi apresentada uma livrança na presente execução, enquanto título executivo, alegadamente subscrita em branco pela sociedade executada e avalizada, sem que na data da respectiva subscrição tivesse sido feita a aposição de qualquer valor e sem que tenha sido convencionada a taxa de juros ou o correspondente prazo de vencimento.

- A livrança sub iudice foi preenchida pela Exequente em momento posterior ao da sua assinatura em branco e sem qualquer conhecimento e muito menos consentimento ou autorização da embargante (que, como acima explicitado, nunca assinou tal título),

- Constando do acordo de preenchimento que a mesma foi subscrita com montante e vencimento em branco mas já devidamente datada (sublinhado nosso), sendo que o Doc. 3 está datado de 22 de Outubro de 2008 e a data de emissão da livrança é de 19.05.2015, o que não só não faz qualquer sentido, como não é minimamente credível à luz das regras da experiência comum, facto que o Douto Tribunal recorrido reconheceu mas interpretou como aceitável por entender corresponder a uma prática comum, facto este que não foi objecto de prova e acerca do qual não pode tomar posição.

- Determina o art.º 615.º, n.º 1, al. d) do C.P.C. que é nula a sentença quando o Juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, nulidade esta que desde já se invoca com as demais consequências legais.

- O aludido Acórdão encontra-se ferido de nulidade por se ter pronunciado sobre questões de que não podia tomar conhecimento, nos termos da alínea d), nº 1 do art.º 668 do C.P.C..

- Mais consideraram os Venerandos Juízes Desembargadores como aceitável que, fruto da consolidação da dívida ocorrida em 2015 e de o pacto de preenchimento expressamente prever que a livrança se destina a assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes da utilização do referido cartão de crédito, atendendo a que os avalistas autorizaram a recorrida a preencher a aludida livrança quando tal se mostrasse necessário, esta optou por apor na mesma a data de trânsito em julgado do PER referente à empresa subscritora do título em apreço.

- Sucede que só a empresa subscritora da livrança interveio no acto de consolidação de dívida, tendo nessa data constituído hipoteca a favor da recorrida, tudo sem conhecimento da recorrente e, por isso mesmo, ao arrepio da sua vontade.

- Ainda que o pacto de preenchimento em análise desses poderes de preenchimento da livrança à recorrida, a consolidação da dívida jamais pode vincular a recorrente, que não participou em quaisquer negociações, nem em qualquer PER, sendo notório que o preenchimento a livrança dada como título executivo ocorreu de forma abusiva.

- Acresce que, de acordo com a cláusula 6.ª do documento de reconhecimento de crédito e constituição de hipoteca, datado de 17.09.2015, os documentos que representem os créditos da CGD garantidos pela aludida hipoteca (nunca enunciados no próprio documento, nem no requerimento executivo), constituirão títulos referidos ao contrato em questão e dele fazem parte integrante para fins de execução.

- Ora, não só o citado documento (contrato) não foi trazido aos presentes autos como título executivo, o que invalida em absoluto a referida cláusula (ficando a mesma sem nenhum efeito já que para ser considerada válida, sempre caberia à recorrida socorrer-se do respectivo contrato como título executivo), como o “acordo de preenchimento” acima mencionado cinge a livrança enquanto garantia em apreciação às responsabilidades decorrentes da utilização de um cartão de crédito.

- Pelo exposto, não se vislumbra por que razão em vez de accionar a hipoteca constituída aquando da consolidação da dívida da empresa executada, a recorrida optou por se socorrer de uma livrança com pacto de preenchimento datado de 2008 que jamais menciona qualquer possibilidade de alteração das condições contratualmente acordadas à data.

- Resulta evidenciado de todo este contexto que, contrariamente ao sustentado pelo Douto Tribunal recorrido, está em causa uma excepção de preenchimento abusivo do título, cuja arguição se reitera.

- A invocada excepção importa a nulidade do título executivo e a consequente extinção da presente execução, que desde já se peticiona.

- Por último, quanto à inexequibilidade do título executivo, aquando do preenchimento da livrança entregue na entidade bancária, as responsabilidades alegadamente assumidas pela subscritora eram indeterminadas, pelo que, o título apresentado é inequivocamente inexequível/nulo, por indeterminabilidade do seu objecto.

- Como já referido, a dívida exequenda não pode ser considerada certa, líquida e exigível, nos termos exigidos pelos art.ºs. 713.º, 731.º e729.º, alínea e)do CPC., atento o facto de o plafond do cartão de crédito, que esteve na origem da subscrição, assinatura e aposição de avales na livrança dada à execução, ser susceptível de alteração, ademais sem conhecimento dos avalistas (o que efectivamente veio a suceder), o que tornou a obrigação sub iudice indeterminável, não merecendo, por isso, acolhimento a argumentação expendida pelo Douto Tribunal recorrido, que entende que a aludida livrança titula uma dívida certa, líquida e exigível.

- Por outro lado, não se alcança o sentido da afirmação do Douto Tribunal recorrido de que a recorrente não deduziu oposição à execução pondo em causa a sua exequibilidade, quando a mesma foi um dos motivos suscitados em sede de embargos de executada.

- Assim, deve ainda a presente execução improceder, por falta de exequibilidade do título dado à execução. (…) »


7. Nas suas contra-alegações, a exequente/embargada, em apertada síntese, pugna, por um lado, pela inadmissibilidade do recurso na parte em impugna a decisão de facto proferida pelo ora tribunal a quo (no segmento em que alterou a decisão de facto fixada pela 1ª, instância), por entender não estarem verificados os pressupostos legais exigidos para o efeito (vg. a situação de exceção prevista na 2ª. parte do nº. 3 do artº. 674º do CPC), e, de qualquer modo, sempre pela improcedência integral do recurso, com a manutenção do julgado pela Relação.


8. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***


II - Fundamentação



A) De facto.

Pelas instâncias foram dados como provados os seguintes factos assinalando-se no local próprio as alterações que foram introduzidas pelo acórdão da 2ª. instância na sequência da apreciação impugnação da decisão de facto que foi objeto o recurso de apelação - (mantendo-se os termos, a ordem da sua descrição e a sua ortografia):

1. Em 04.07.2018 Caixa Geral de Depósitos, SA instaurou ação executiva para pagamento da quantia de € 52.410,25 contra a executada AA e outros com os sinais dos autos.

2. Consta do requerimento executivo, o seguinte:

Em 17.09.2015 a CGD celebrou com a Executada, um contrato de consolidação de dívida com hipoteca, outorgado no Notariado Privativo da CGD SA, registada no livro diário sob o n.º ...45 relativamente ao valor de € 60 600,00 — quantia de que esta se confessou devedora.

No âmbito do PER que correu termos sob o n.º 3749/14.... foi determinada a consolidação de tal dívida.

Ficou igualmente estipulado no mencionado contrato todas as cláusulas que regeriam o preenchimento da livrança que garante a operação, por referência ao primitivo, contrato celebrado que ora se junta como Doc. n.º 3, dele fazendo parte integrante conforme cláusula 6. a do primeiro contrato.

Desta forma ficaram os avalistas cientes da condição em que assinaram a respetiva livrança com o n.º ...52.

O contrato supra identificado é titulado por uma livrança com o número ...52 de que a Exequente é titular e portadora, subscrita pela T... LDA, e avalizada pelos ora Executados GG, HH e AA com data de emissão de 19.05.2015 e de vencimento de 11.05.2018 com o valor de € 51 844,23 (cinquenta e um mil oitocentos e quarenta e quatro Euros e vinte e três cêntimos).

A empresa incumpriu o PER aprovado, e apesar de devidamente interpelados para tal nunca os fiadores procederam a qualquer pagamento.

Apresentada a pagamento na data do respetivo vencimento a referida livrança não foi paga, nem posteriormente, pelo que se encontra se encontra em dívida o capital, acrescidos do imposto de selo que aos mesmos incidir, bem como comissões e demais despesas”.

3. Como título executivo apresentou impresso normalizado de livrança emitido pela exequente e subscrito por T... LDA, preenchido além do mais nos seguintes termos:

Data emissão - 2015-05-19;

Data vencimento - 2018-05-11;

Importância - € 51.844,23.

4. Consta da face posterior do referido documento, após menção manuscrita, com o teor “Dou o meu aval ao subscritor”, uma rúbrica também manuscrita a que a exequente atribui a autoria à embargante.

5. Foi junto aos autos um contrato denominado de “Constituição de hipoteca”, celebrado em 17.09.2015 entre a Caixa Geral de Depósitos, SA., e T... LDA, representada por GG, o qual se dá por integralmente reproduzido, de onde consta, nomeadamente, o seguinte:

“Considerando que:

1- a) T... LDA tem em curso um “Processo Especial de Revitalização” (CIRE) que correu termos pela Comarca ..., ... — Instância Central — Secção de Comércio — 12, processo n.º 3749/14...., sendo que no âmbito do referido processo e nos termos do n.º 1 do artigo 170-F, número 3, do CIRE, foi aprovado um Plano de Recuperação, conducente à revitalização da empresa (…);

b) Nos termos desse plano (...) foi reconhecido o crédito da CAIXA no montante global de SESSENTA MIL E SEISCENTOS EUROS, devendo ser pago pela T... LDA no prazo de sete anos (...), em oitenta e quatro prestações mensais e garantido por hipoteca a constituir sobre o imóvel adiante melhor identificado.

Pelo presente instrumento notarial e para segurança do bom cumprimento do Plano de Recuperação homologado da T... LDA, é constituída a seguinte garantia de hipoteca, que se rege pelos considerandos anteriores e pelas seguintes cláusulas:

CONSTITUIÇÃO DE HIPOTECA

1.ª (…)

Constitui hipoteca a favor da CAIXA, que a aceita, sobre o seguinte imóvel:

Fração autónoma designada pela letra "A" correspondente ao rés-do- chão direito, com arrecadação na cave com a letra A, destinada a comércio, do prédio urbano (...) descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis ..., sob o número ... mil e quinze (…).”.

6. A exequente é igualmente detentora de um documento denominado de “Proposta de Adesão Caixa Works”, contrato n.º ...25 no qual consta como titular T... LDA, utilizador GG, sócio-gerente da referida sociedade, com o limite de crédito de € 45.000,00, tudo conforme documento junto com o requerimento executivo e que aqui se dá por integralmente reproduzido.

7. E de um documento assinado pelo gerente da sociedade T... LDA, dirigido à Caixa Geral de Depósitos, SA e datado de 25.08.2009, no qual solicitava o aumento do plafond para o montante de € 50.000,00.

8. A exequente é ainda detentora de um documento, dirigido à agência de S... da Caixa Geral de Depósitos, SA, datado de 22.10.2008, referente ao cartão Caixa Works, contrato n.º ...25, o qual se dá por integralmente reproduzido, no qual é remetida, em complemento do contrato de atribuição e utilização do cartão em título, uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada, por nós subscrita e avalizada pelo(s) avalista(s) abaixo assinado(s), destinada a titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes da utilização do referido cartão e de acordo com as respetivas Condições Gerais de Utilização,

9. Refere-se ainda nesse documento que pela presente carta, ainda, autorizamos a CGD a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CGD, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:

a) A data de vencimento será fixada pela CGD quando, em caso de incumprimento das obrigações assumidas, a CGD decida preencher a livrança;

b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes da utilização do cartão, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e quaisquer encargos, incluindo os fiscais relativos à própria livrança;

c) A CGD poderá inserir cláusula “sem protesto” e definir o local de pagamento.

A livrança não constitui novação do crédito, pelo que se mantêm as respetivas condições, incluindo as garantias.

10. Esse documento contém, várias assinaturas e rúbricas, entre elas a que a exequente atribui à embargante.

11. A embargante foi gerente da sociedade T... LDA entre 15.02.2001 e 03.02.2009, sendo a sua assinatura imprescindível para vinculação da sociedade.

12. O Contrato de Abertura de Cartão Caixa Works e respetiva alteração de Plafond é parte integrante do contrato celebrado em 17.09.2015.

13. A Exequente reclamou um único crédito no âmbito do PER o primitivo Caixa Works ...25, que deu origem à operação ...91.

14. Ao reestruturar a operação no âmbito do PER foi renumerada internamente a operação bancária, mas mantiveram-se as mesmas garantias que eram da operação primária — o Cartão Caixa Works ...25.

15. A exequente remeteu à embargante a carta datada de 25.05.2018, para a morada Rua ..., ..., S..., onde a informava do vencimento da dívida e do preenchimento da livrança para o dia 11.05.2018, no montante de € 51.844,23, tudo conforme documento de fls. 46 verso que aqui se dá por integralmente reproduzido.

16. A morada referida em 15., era a morada atualizada da embargante no sistema informático da embargada.

17. A carta acabou por ser devolvida ao remetente.

18. As assinaturas apostas no contrato n.º ...25, autorização de preenchimento de livrança datada de 22.10.2008 e na livrança dada à execução nos lugares destinadas ao subscritor e avalista, foram apostas pelo punho da executada/embargante. [facto julgado como provado no acórdão recorrido e que havia sido dado como não provado na sentença da 1ª. instância].


***


B) De direito.

1. Do objeto do recurso.

Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se afere, fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, e 679º do CPC).

Por fim, vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” a que se reporta o citado artº. 608º, e de que o tribunal deve conhecer, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes.

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso de revista da embargante, verifica-se que as questões que se nos impõe aqui apreciar e decidir são as seguintes:

a) Da nulidade do acórdão recorrido;

b) Do erro de julgamento da decisão de facto;

c) Da nulidade do aval;

d) Do preenchimento abusivo da livrança;

e) Da inexequibilidade do título dado à execução.


***


2. Quanto 1ª. questão.

- Da nulidade do acórdão recorrido.

A embargante/recorrente arguiu a nulidade do acórdão do TRE, de ora recorre, alegando que o mesmo padece do vício de excesso de pronúncia, em violação do no artº. 615º, n.º 1, al. d), 2ª. parte, do CPC.

A nulidade assim arguida surge na sequência da invocação do preenchimento abusivo da livrança, por designadamente o alegado acordo de preenchimento estar datado de 22-10-2008 e a da data da emissão da livrança ser 19-05-2015.

Para fundamentar a referida nulidade, a recorrente alega que “constando do acordo de preenchimento que a mesma (a livrança) foi subscrita com montante e vencimento em branco mas já devidamente datada, sendo que o Doc. 3 está datado de 22 de outubro de 2008 e a data de emissão da livrança é de 19.05.2015, o que não só não faz qualquer sentido, como não é minimamente credível à luz das regras da experiência comum, facto que o Doutro Tribunal recorrido reconheceu mas interpretou como aceitável por entender corresponder a uma prática comum, facto este que não foi objeto de qualquer prova e acerca do qual não pode tomar posição.”.

Apreciando.

Como é sabido, as nulidades da sentença (leia-se aqui acórdão, pois que tal dispositivo legal é também aplicável às decisões da 2ª. instância, ou seja, da Relação – cfr. artº. 666º, nº. 1, do CPC - e também deste mais alto tribunal – cfr. artº. 679º) encontram-se taxativamente previstas no artº. 615º CPC e têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da sentença, também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.

Dispõe-se no invocado artº. 615º, nº. 1 al. d), do CPC, que “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento. (sublinhado nosso).

Decorre de tal norma que o vício que afeta a decisão advém de uma omissão (1º. segmento da norma) ou de um excesso de pronúncia (2º. segmento da norma, aqui em causa, face à invocação da recorrente).

Preceito legal esse que deve ser articulado com o nº. 2 no artº. 608º do CPC, onde se dispõe que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” (sublinhado nosso).

Impõe-se ali um duplo ónus ao julgador, o primeiro traduzido no dever de resolver todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação pelas partes (salvo aquelas cuja decisão vier a ficar prejudicada pela solução dada antes a outras), e o segundo (que, como vimos, é aqui colocado em causa pela recorrente) traduzido no dever de não ir além do conhecimento dessas questões suscitadas pelas partes (a não ser que a lei lhe permita ou imponha o seu conhecimento oficioso).

Constitui communis opinio que o conceito de “questões”, a que ali se refere o legislador, deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos, como já deixámos acima expresso, os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes (vide, por todos, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º., 3ª. Ed., Almedina, págs. 713/714 e 737.”; Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil, 6ª. ed. Atualizada, Almedina, pág. 136.” e Ac. do STJ de 14/07/2020, processo n.º 2359/18.4T8GMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Por outro lado, importa ainda ter presente que na apreciação dessas questões o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação de regras jurídicas (cfr. artº. 5º, nº. 3 do CPC).

Tendo presentes tais conceitos/considerações, e reportando-nos ao caso em apreço, diremos que, salvo o devido respeito opinião em contrário, facilmente se é levado a concluir que o acórdão em apreço não enferma da nulidade que lhe é imputada pela embargante/recorrente.

Diga-se, desde logo, ter-se alguma dificuldade em compreender a referida nulidade face aos concretos termos em que a mesma surge arguida. É que o tribunal recorrido, ao aludir e apreciar a questão concernente à divergência das datas tal como suscitada pela ora recorrente, fê-lo no âmbito da apreciação de uma das questões essenciais invocada em sede de embargos: a relativa ao preenchimento abusivo da livrança.

Ao apreciar a problemática assim suscitada, o tribunal recorrido teve necessariamente de tomar posição sobre a questão da alegada divergência de datas inserta no acordo de preenchimento e a da data de emissão da livrança, questões que, de resto, já haviam sido antes debatidas pelas partes no âmbito dos articulados dos embargos de executado.

Por seu turno, visando o recurso de apelação sindicar a solução e os fundamentos de direito da sentença da primeira instância, em consequência da imputada alteração da matéria de facto, nada impedia o conhecimento, pelo tribunal da Relação, e em substituição do tribunal recorrido, por força do disposto no artº. 665.º, nº. 2 do CPC, das demais questões suscitadas pela embargante e cujo conhecimento havia ficado prejudicado em face do decidido na 1ª. instância, de entre as quais a relativa ao invocado preenchimento abusivo da livrança.

Não se verifica, pois, qualquer excesso de pronúncia, nem qualquer decisão-surpresa quanto ao conhecimento de factos, pelo acórdão recorrido, mostrando-se respeitada a base factual necessária à decisão sobre a questão do preenchimento abusivo da livrança, que, de resto, integra a causa de pedir dos embargos em causa.

Diga-se ainda, e por fim, que, no fundo, o invocado vício de nulidade do acórdão terá algo a ver mais com o alegado erro de julgamento de facto e/ou de direito, com o qual, como acima deixámos expresso, não se deve confundir tal vício, o que, só por si, seria bastante para a afastar a aludida nulidade do acórdão.

Em conclusão, não padece o acórdão recorrido do vício de nulidade que lhe é apontado pela recorrente, pelo que, nessa parte, o recurso improcede.


***


3. Quanto à 2ª. questão.

- Do erro de julgamento da decisão de facto.

Insurge-se a embargante/recorrente contra a decisão de facto proferida pelo Tribunal da Relação, na parte em que alterou a decisão de facto fixada pela 1ª. instância, dando como provado o facto acima descrito sob o nº. ...8., e que na sentença fora dado como não provado.

Invoca a recorrente, em síntese, que o tribunal recorrido, ao proceder a essa alteração da matéria de facto, nos termos em que o fez, baseou-se em “indícios” e “juízos de probabilidade” que são ilógicos e violam normas de direito probatório, designadamente as que regulam a distribuição do ónus da prova.

E daí que peça que se reverta tal decisão, mantendo-se a decisão de facto fixada pela 1ª. instância.

Apreciando.

Como ressalta do preceituado no artº. 674º, nº. 3, do CPC (em conjugação ainda com o artº. 682º desse mesmo diploma), o STJ, como regra, apenas conhece de matéria de direito, carecendo, por isso, de competência para apreciar a matéria de facto, a não ser que haja ofensa de disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. No fundo, pode dizer-se que quando ocorre alguma destas situações de exceção àquela regra se está defronte de erros de direito que se integram, por isso, na esfera de competência do Supremo.

Constitui hoje entendimento consolidado, sobretudo na jurisprudência deste mais alto tribunal, que, em sede revista, o STJ só poderá sindicar o uso feito pela Relação de presunções judiciais (que têm a virtualidade de se integrar naquela exceção à regra a que atrás nos referimos) se esse uso ofender norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados. Nessa conformidade, pode ser sindicável por este tribunal, em sede de revista, o uso de presunções judiciais quando a lei não o admita, por violação, por exemplo, do artº. 351º do C. Civil, ou, admitindo-o, quando esse uso ocorra fora do condicionalismo legal fixado no artº. 349º do mesmo diploma, no qual se extrai a exigência da prova de um facto base ou instrumental e a ilação a partir dele de um facto (essencial) presumido. Já no que concerne ao erro sobre o juízo presuntivo formado com apelo às regras da experiência, a sua sindicância pelo STJ só deverá, pois, ocorrer nos casos de manifesta ilogicidade. Nesse sentido vide, entre outros, os Acs. do STJ de 16/11/2021, proc. n.º 2534/17.9T8SRTR.E2.S1; 14/07/2021, proc. 1333/14.4TBALM.L2:S1, de 14/07/2021, proc. 4961/16.0T8LSB.L1.S1, de 13/04/2021, proc. 3006/15.1T8LRA.C1.S1, de 28/01/2021, proc. 1790/17.7T8VFX.L1.S1, 17/10/2019, proc. 1703/16, de 29/09/2016, proc. 286/10, e de 14/07/2016, proc. 377/09, todos disponíveis em www.dgsi.pt, e ainda Abrantes Geraldes, in “Ob. cit., págs. 462/469”).

Ou seja, enfatizando, e concretizando melhor, em regra, apenas está cometida ao STJ a reapreciação de questões de direito (cfr. artº. 682º, nº. 1 do CPC), carecendo, por isso, de competência para apreciar a matéria de facto, a não ser que haja ofensa de disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (cfr. artº. 674º, nº 3 do CPC).

Por sua vez, “de acordo com a jurisprudência consolidada do STJ, a sindicância, em sede de revista, do uso de presunções judiciais pela Relação apenas pode ser feita se tal uso ofender norma legal, se padecer de ilogicidade manifesta ou se partir de factos não provados” (Ac. do STJ de 28/01/2021, atrás citado).

Nessa conformidade, como se concluiu nesse citado Acórdão do STJ de 16/11/2021pode ser sindicável por este tribunal, em sede de revista, o uso de presunções judiciais quando a lei não o admita, por violação, por exemplo, do art. 351.º do CC, ou, admitindo-o, quando esse uso ocorra fora do condicionalismo legal fixado no art. 349.º do mesmo diploma, no qual se extrai a exigência da prova de um facto base ou instrumental e a ilação a partir dele de um facto (essencial) presumido. Já no que concerne ao erro sobre o juízo presuntivo formado com apelo às regras da experiência, a sua sindicância pelo STJ só deverá, pois, ocorrer nos casos de manifesta ilogicidade.”.

Como escreveu, por sua vez, a esse propósito, Abrantes Geraldes (in “Ob. e págs. cits.”)No capítulo da apreciação das provas, a regra contida no nº. 3 (do art. 674.º), conexa com as funções prioritárias atribuídas ao Supremo, é a de que este órgão não pode interferir na decisão da matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias. Tal regra está em consonância com a tramitação processual do recurso de revista, por comparação com o recurso de apelação que integra, como um dos pilares fundamentais, a intervenção da Relação na reapreciação da decisão da matéria de facto, nos termos dos arts. 640.º e 662.º”, acrescentando depois que Todavia, sem embargo de outras intervenções previstas nos arts. 682.º e 683.º, considerou-se que o Supremo não deveria ficar indiferente a erros de apreciação da prova resultantes da violação de direito probatório material, podendo constituir fundamento de revista a violação de disposição legal expressa que exija certa espécie de prova ou que fixe a respectiva força probatória. Afinal, em tais situações, defrontamo-nos com verdadeiros erros de direito que, nesta perspectiva, se integram também na esfera de competências do Supremo.

Assim, cabe ao tribunal de revista sindicar o uso de presunções judiciais pela Relação, quando a lei o não admita ou quando tal uso ocorra fora do condicionalismo legal traçado no artº. 349.º do CC. Já “relativamente ao erro sobre a substância do juízo presuntivo formado com apelo às regras da experiência, o mesmo só será sindicável pelo tribunal de revista em casos de manifesta ilogicidade. (…) Mas está vedado ao tribunal de revista a indagação do erro intrínseco à própria apreciação crítica das provas produzidas em regime de prova livre.”

Teorizando um pouco sobre a figura das presunções, diremos que é conhecida a clássica distinção entre prova direta e prova indireta ou indiciária, incluindo-se aquelas neste último modo de prova, e que permitem, com o auxílio de regras da experiência, extrair uma ilação da qual se infere o facto a provar.

Em bom rigor, as presunções judiciais, também designadas materiais, de facto ou de experiência (artº. 349º do C. Civil), não são verdadeiros meios de prova, mas antes “meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência”, ou, noutra formulação, “operação de elaboração das provas alcançadas por outros meios”, reconduzindo-se, assim, a simples “prova da primeira aparência”, baseada em juízos de probabilidade. Na definição legal, são ilações que o julgador tira de um facto conhecido (facto base da presunção) para afirmar um facto desconhecido (facto presumido), segundo as regras da experiência da vida, da normalidade, dos conhecimentos das várias disciplinas científicas ou da lógica. Nas palavras de Chiovenda (in “Princípios de Direito Processual Civil, 4ª. Ed., pág. 853”) “a presunção equivale, pois, a uma convicção fundada sobre a ordem normal das coisas.”

Tendo presente o que se acabou de deixar exposto, e que visou, em primeira linha, por um lado, o enquadramento jurídico da questão, e por outro, dar resposta à questão (prévia) colocada pela embargada relativamente à (in)admissibilidade da revista relativamente à impugnação do julgamento de facto efetuado pela Relação, é altura de responder à concreta questão acima elencada no que concerne à referida à impugnação do julgamento de facto suscitada pela recorrente (que não se confunde com a sua admissibilidade, dados os fundamentos que foram aduzidos para o efeito), e que se traduz em saber se se justifica ou não à alteração da decisão de facto defendida por aquela.

Vejamos.

O acórdão ora recorrido (do TRE), ao conhecer da primeira questão, relativa à impugnação da decisão de facto, suscitada em sede de recurso de apelação interposto pela ora recorrida, entendeu assistir razão à mesma, decidindo que o facto dado como não provado pela sentença da 1.ª instância [alínea A. dos factos não provados] passasse a constar dos factos provados sob o ponto 18. com o seguinte teor:

18. As assinaturas apostas no contrato n.º ...25, autorização de preenchimento de livrança datada de 22.10.2008 e na livrança dada à execução nos lugares destinadas ao subscritor e avalista, foram apostas pelo punho da executada/embargante.

A não prova do facto em questão foi, na 1.ª instância, suportada na seguinte motivação:

O relatório de exame de escrita manual concluiu pela hipótese “pode ter sido” de a escrita das assinaturas (rúbricas) contestadas de AA apostas na proposta de adesão Caixa works, autorização de preenchimento de livrança datada de 22.10.2008 e livrança emitida em 19.05.2015, no valor de € 51.844,23 serem do seu punho, sendo que nenhuma outra prova foi produzida em audiência que sustentasse esse desiderato, sendo certo que tal ónus cabia à exequente - cfr. artigo 342.º, n.º 1 do CC..

Com efeito, nenhuma das testemunhas da exequente revelou ter presenciado a aposição das contestadas assinaturas (rúbricas) nos documentos em causa e a conclusão do relatório pericial não é de tal modo conclusiva para que se possa concluir pela veracidade das mesmas.

Deste modo, a dúvida sobre a ocorrência de um facto equivale à falta de prova desse facto que onera a parte que tinha o ónus de o provar (prova insuficiente).

Assim, persistindo a dúvida sobre a realidade desses factos alegados pela exequente o tribunal só pode assumir uma resposta negativa - cfr. art. 414.º do CPC.”.

Entendeu, porém, o acórdão recorrido queda análise conjugada da prova em face da posição das partes assumida nos respetivos articulados e às regras da experiência, ao contrário da posição assumida pelo Julgador a quo”, essa prova foi feita pela embargada.

Para tanto, o acórdão recorrido estriba-se na seguinte fundamentação, que passamos a transcrever:

A embargante na petição de embargos limitou-se a salientar que "nunca celebrou nenhum contrato de utilização de cartão de crédito com a exequente, nem assinou, preencheu ou avalizou qualquer livrança titulada por aquela" até porque há data (22/10/2008) "não residia em Portugal, encontrando-se a viver no Reino Unido, designadamente em ...".

Tendo a embargante, na altura, a qualidade de gerente da sociedade T... LDA (titular do cartão de crédito Caixa Works), sendo a sua assinatura imprescindível para a vinculação da sociedade, como decorre do facto provado no ponto 11 .A, para pôr em causa a sua assinatura nos documentos visados cabia-lhe, quanto a nós, clarificar melhor toda a situação de modo a dar verosimilhança à sua posição, atendendo ao contexto, até porque dos documentos constam outras assinaturas (do seu pai e de sua irmã) cuja autenticidade não foi posta em causa. Na livrança, no que respeita ao aval, não consta só a assinatura de cada um dos três avalistas, consta também a escrita por cada um deles da menção “dou o meu aval ao subscritor”, expressões estas cuja letra não foi alvo de perícia (a perícia só incidiu na assinatura/rúbrica que se tinha por suspeita) por a embargante apenas ter feito referência expressa a que "as assinaturas dos subscritore(s) avalista(s), não são do punho da embargante".

A testemunha BB, irmã da embargante que apôs a respetiva assinatura, quer na livrança, quer na autorização de preenchimento da mesma pela CGD, reconheceu que no ano de 2008, ambas estavam a viver em Portugal só indo viver para o Reino Unido em 2012, ressaltando, nessa medida, não ser verídico o afirmado pela embargante que na altura da aposição das assinaturas não residia em Portugal. A testemunha não se referiu ao modo, à circunstância e ao local onde foram apostas a(s) assinatura(s) no título dado à execução porque sobre tal matéria nada lhe foi perguntado, mas resulta do depoimento das testemunhas DD e EE, de forma clara, que o procedimento na CGD é de que todos os documentos, nomeadamente as livranças em branco, serem assinados na presença dos funcionários do balcão da Caixa, que também assinam a documentação de suporte, referindo que no caso um deles era o gerente da altura, FF, o que efetivamente resulta da proposta de adesão Caixa works e autorização de preenchimento de livrança, datadas de 22/10/2008.

No exame realizado assinatura (não mais que uma simples rúbrica) da embargante, o Laboratório de Exame de Documentos e Escrita Manual da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, alerta desde logo para a dificuldade de realização do exame por se dispor de poucos elementos genuínos para comparação, mas não deixa de reconhecer que:

- “A observação da escrita das assinaturas contestadas de AA, no seu aspeto geral, por si só, não revela qualquer indício de falsificação grosseira”;

 “A observação da escrita das assinaturas genuínas e das contestadas revela, nos seus elementos gerais, semelhanças, designadamente: No grau de evolução; Na fluência e velocidade da escrita”;

- “No grau de inclinação, No espaçamento; No grau e tipo de conexão; Na dimensão absoluta e relativa da escrita; Nos levantamentos de pena; No grau de angulosidade e curvatura decorrente do tipo de escrita";

 “Um exame comparativo de pormenor entre a escrita das assinaturas genuínas e das contestadas, analisadas todas as letras, grafismos e conexões, releva, igualmente, semelhanças”;

 “Na escrita das assinaturas genuínas e na das contestadas, o desenho da letra A ocorre de forma e génese semelhantes.”.

 “(...) somos levados a concluir que as características exibidas por AA, na escrita das assinaturas genuínas, se encontram na das assinaturas contestadas, pelo que se considera que a escrita das assinaturas contestada pode ser sido produzida pelo punho de AA”.

Do teor do relatório pericial não resulta descartada a possibilidade de as assinaturas terem sido apostas pelo punho da embargante, antes pelo contrário, concedendo-se algum grau de certeza que as mesmas que se têm por genuínas, possam ter sido apostas pelo seu próprio punho.

No caso presente, a inexistência de indícios de falsificação grosseira das assinaturas impugnadas, conjugada com as apontadas semelhanças e com a não deteção de diferenças relevantes no confronto com as assinaturas genuínas, bem como, com o facto de não terem sido questionadas a genuinidade das demais assinaturas e das expressões que constam nos documentos, por parte dos seus autores, o pai e a irmã da embargante, configuram factos que, à luz das regras de experiência comum e dos princípios da lógica, tendo por referência o contexto da assinatura da documentação, indiciam que as expressões e assinaturas em causa foram apostas pelo punho da embargante a quem são imputadas.” (sublinhado nosso)

Acrescenta o acórdão recorrido que “Considerando que os indicados elementos factuais, extraídos da conjugação da prova pericial com o depoimento prestado pelas testemunhas, indiciam que as assinaturas em causa foram apostas pelo punho da embargante a quem são imputadas, pode concluir-se com segurança que é muito mais provável que tal tenha ocorrido do que a hipótese oposta, a qual se não baseia em nenhum elemento ainda que indiciário. Mostra-se, assim, ultrapassado o limite mínimo de probabilidade, pelo que, resultando da prova produzida a indicada probabilidade preponderante, deverá o facto em causa ser considerado provado”. (sublinhado nosso)

Irresignada perante a argumentação expendida pelo acórdão recorrido, defende a recorrente que, sendo impossível inferir do relatório pericial que as assinaturas/rubricas tenham sido efetivamente apostas pelo punho da recorrente, não sendo sequer possível atribuir um grau de probabilidade séria à conclusão aí alcançada, e não existindo testemunhas que tenham presenciado qualquer ato de assinatura do contrato, a convicção firmada pelo Tribunal da Relação carece de lógica e contraria as regras da experiência.

Cumpre então apreciar se o juízo presuntivo feito pelo Tribunal da Relação para alterar a decisão sobre o facto não provado pelo Tribunal da 1.ª instância padece de manifesta ilogicidade, sendo este o parâmetro sindicável, como viu, por este Tribunal em sede do presente recurso de revista.

Dispõe o artº. 349.º do CC que as “presunções são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido.”

Na sequência e reforço daquilo que supra já deixámos expendido sobre o conceito de presunções, a prova de um facto por presunção judicial deve basear-se em regras de experiência comum, conjugadas com princípios da lógica e com juízos de probabilidade. Explicam, a este propósito, os profs. Pires de Lima e Antunes Varela que as presunções judiciais, simples ou de experiência assentam no simples raciocínio de quem julga, inspirando-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana. (in “Código Civil Anotado, I, 4.ª edição revista e atualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, Coimbra Editora, 1987, pág. 312”).

Tendo presentes, por um lado, as considerações expostas sobre tal figura (das presunções) e, por outro, atendendo à decisão de facto e respetiva motivação expendida pelo Tribunal da Relação, não se vislumbra, salvo o devido respeito, que o raciocínio presuntivo aí desenvolvido com base nos factos dados como provados e nos elementos de prova constantes dos autos padeça de manifesta ilogicidade.

Pelo contrário, o percurso explicativo/dedutivo seguido pelo tribunal a quo apresenta-se, a nosso ver, lógico, à luz dos demais factos e das regras da experiência comum.

Diga-se mesmo que se nos afigura até que a decisão alcançada pelo Tribunal da Relação (que, como se sabe, goza de autonomia, em relação ao da 1ª. instância, em termos de formar a sua própria convicção em matéria de facto) é porventura aquela se encontra mais em consonância com aquelas que são as regras da experiência, que têm aqui forçosamente que intervir, e com o juízo de probabilidade alcançado em função dos meios de prova produzidos nos autos produzidos a tal respeito (vg. prova pericial e testemunhal), que estão, como se sabe, sujeitos à livre apreciação do julgador (cfr. artºs. 389º, 396º do CC e 607º, nº. 5, do CPC).

Com efeito, atendendo ao teor do exame pericial, que conclui no sentido da probabilidade de as assinaturas terem sido apostas pela embargante, conjugado ainda com o depoimento das testemunhas que são identificadas na motivação levada a efeito pelo tribunal a quo (que contradisseram a esse respeito a defesa inicial da embargante que alegara não se encontrar na altura no país) e à inexistência de elementos probatórios contrários a uma tal asserção, facilmente se compreende, a nosso ver, o juízo presuntivo formado pelo Tribunal da Relação com apelo às regras da experiência, não se vislumbrando qualquer erro sobre a respetiva substância.

Saliente-se ainda que, vigorando no processo civil, em matéria probatória, a regra da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não” (cfr. Luís Filipe de Sousa, in “Prova Testemunhal, Almedina, 2013, pág. 378”), deve reputar-se como lógica a fundamentação da decisão da matéria de facto que explica sucintamente porque considerou prevalecente uma das versões factuais apresentadas, apelando a critérios de coerência e grau de probabilidade, em face de regras da experiência e em conjugação ainda com meios probatórios produzidos.

Entende-se, assim, que, no caso concreto, a presunção judicial de que se socorre o tribunal recorrido se funda numa pluralidade de indícios que apoiam o resultado alcançado quanto à alteração da decisão sobre a matéria de facto, pelo que se mostram respeitados os respetivos pressupostos legais, quer ao nível da sua admissibilidade, quer ao nível da sua logicidade.

De igual modo, não se mostra violado qualquer preceito de direito probatório material, designadamente o que regula a distribuição do ónus da prova, sendo certo que é o próprio acórdão recorrido que imputa à embargada o ónus da prova do facto cuja alteração determinou.

Sendo assim, porque a este Supremo Tribunal não cabe indagar sobre qualquer eventual erro no que respeita à apreciação das provas não vinculadas e submetidas ao princípio da livre apreciação do julgador (como sucede no caso em apreço), nem controlar presunções judiciais deduzidas da prova pelas instâncias (excetuando, como vimos, os casos de violação de norma legal, de manifesta ilogicidade ou de atendibilidade de factos não provados), somos levados a concluir não existirem razões legais para alterar a decisão de facto proferida pelo tribunal recorrido (e particularmente no que concerne ao sobredito ponto 18. que aditou aos factos provados).

Termos, pois, em que também nesta parte soçobra a revista.


***


4. Quanto à 3ª. questão.

- Da nulidade do aval.

À semelhança do que já fizera em sede de petição inicial de embargos, a embargante veio novamente, em sede de recurso de revista, invocar a nulidade do aval aposto na livrança, com o fundamento na indeterminabilidade do seu objeto, por, em seu entender, a obrigação assumida não ser determinável nos termos do pacto de preenchimento.

Alega, a este propósito, a recorrente que “a obrigação pecuniária que esteve na génese do preenchimento da livrança não é determinável porquanto ficou consignado no alegado pacto de preenchimento (…) que a importância da livrança corresponderia ao total das responsabilidades decorrentes de utilização do cartão de crédito, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e quaisquer encargos, incluindo os fiscais relativos à própria livrança, nada tendo sido (dito) quanto à eventualidade ou possibilidade de alteração do plafond atribuído ao aludido cartão.

Conclui, assim, que “a falta de tal menção torna a obrigação alegadamente assumida indeterminável no que diz respeito ao avalista.”

O acórdão recorrido, a propósito da análise da questão suscitada, fundamentou assim a sua decisão:

Relevam, no essencial, para a apreciação, os factos dados como provados nos pontos 8, 9, 11 e 14.

A livrança é um título executivo negocial particular que tem, a sua exequibilidade condicionada à verificação de dois pressupostos, um de natureza formal e outro de natureza substantiva, ou seja, estar assinada pelo devedor e referir-se a obrigações pecuniárias líquidas ou liquidáveis através de simples cálculo aritmético.

Da livrança dada à execução consta que a embargada é a sua beneficiária, e a embargante figura na mesma como avalista, dela constando, igualmente, o montante em dívida, pelo que reúne os pressupostos inerentes à sua exequibilidade, tendo sido explicitada a relação material subjacente à respetiva emissão decorrente de um único contrato, tal como emerge do acervo documental e da factualidade dada como provada.

Ao contrário do que refere a embargante, não estamos perante qualquer aval omnibus mas sim perante um aval específico referente à contratualização do Cartão Caixa Works que se manteve com a operação renumerada no âmbito do PER.

O aval só se consolida “no mundo dos negócios após o completo preenchimento do título em branco, momento em que se constitui como dívida cambiária perfeitamente determinada", pelo que de tal decorre a inexistência de "nulidade do aval por alegada indeterminabilidade do objeto, visto que do simples exame da livrança preenchida se comprova, sem necessidade de recurso a quaisquer elementos externos a responsabilidade do avalista".

Mas mesmo que não se comungue desta posição que se pode considerar restritiva, que apenas aceita a existência do aval depois do preenchimento do título, o que conduz à insubsistência de qualquer indeterminação anterior ao preenchimento, relativamente ao montante, temos para nós, que no caso concreto, a prestação não é incontrolável, nem indeterminável, estando bem patente no requerimento executivo, a sua origem e nos documentos juntos a sua forma de determinação, sendo que a obrigação até foi "controlada" por efeito da consolidação da dívida em sede do PER.

Nunca haverá nulidade do aval se a obrigação assumida pelos avalistas é determinável, nos termos do pacto de preenchimento, e nem sequer estamos perante um aval omnibus quando a obrigação dos avalistas decorre do incumprimento de um contrato que não possa minimamente classificar-se como indeterminável".

Nestes termos não se reconhece a nulidade do aval, invocada pela embargante.

Apreciemos.

Como é sabido, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da ação executiva (artº. 10º, nº. 5, do CPC).

O título executivo – que, como também se sabe, não se confunde necessariamente com a causa de pedir -, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda, assume, assim, uma função delimitadora (por ele se determinando o fim e os limites, objetivos e subjetivos), probatória e constitutiva, estando sujeito ao princípio da tipicidade. Todavia, não se confundindo com a causa de pedir e nem sendo conceitos necessariamente coincidentes, costuma-se, porém, ainda afirmar que, como pressuposto processual específico da ação executiva, o título é, grosso modo, uma condição e suficiente da mesma.

No campo dos títulos executivos vigora entre nós, o princípio da legalidade/tipicidade, segundo o qual só pode servir de base a um processo de execução documento a que seja legalmente atribuída força executiva.

As espécies de títulos executivos encontram-se elencadas no artº. 703º do CPC.

Dentre o elenco daqueles ali taxativamente tipificados, são títulos executivos “Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.” (artº. 703º, nº. 1 al. c), do CPC) (sublinhado nosso)

É também sabido, as livranças (tais com as letras e os cheques) encontram-se entre esses títulos de crédito revestidos de força executiva.

Desde logo, na sua função natural de documentos cartulares ou cambiários, ou seja, enquanto títulos de crédito de natureza cambiária, e podendo agora sê-lo ainda, em determinadas condições, enquanto documento particular ou quirógrafo, ou seja, desde que, nesse caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.

Quando a livrança se apresenta à execução, como título executivo, na sua veste cambiária ou cartular é considerado como um título de crédito próprio, porém, se é ali apresentado despido dessa veste cambiária, ou seja, apenas como documento particular, é considerado como um título de crédito impróprio (cfr., por todos, o Ac. do STJ, de 12/09/2019, proc. 125/16. 0T8VLF-A.C1.S1, disponível, em www.dgasi.pt).

Ressalta do requerimento executivo e dos factos provados que a exequente - muito embora tenha alegado a relação causal que esteve subjacente à emissão da mesma - deu à execução, como título executivo, uma livrança (titulando a quantia exequenda), na sua veste de documento cartular ou cambiário.

Grosso modo, pode dizer-se que a livrança é um título (cambiário) à ordem, sujeito a certas formalidades (artºs. 75º e 76º da LULL), pelo qual uma pessoa (o emitente, subscritor ou passador) se compromete, para com outra (o tomador ou beneficiário), a pagar-lhe determinada quantia (cfr., por todos, Abel Pereira Delgado, in “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada, 4ª. ed. Actualizada, Livraria Petrony, págs. 321/322”).

Assim, a livrança dada à execução constitui em si título executivo, nos termos do citado artº. 703º nº. 1 al. c) do CPC, porque reúne todos os requisitos legais contidos no artº. 75º LULL.

As livranças, como títulos executivos negociais particulares, “têm a sua exequibilidade condicionada à verificação de dois pressupostos, um de natureza formal e outro de natureza substantiva, a saber: estarem assinados pelo devedor e referirem-se a obrigações pecuniárias líquidas ou liquidáveis através de simples cálculo aritmético” (cfr., entre outros, Ac. do STJ de 10/11/2011, proc. nº. 124/07.3TBMTRA.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Como título cautelar que é, a livrança está sujeita a uma disciplina especial, que reflete a preocupação de defender os interesses de terceiros de boa fé, e que é imposta pela necessidade de facilitar a sua circulação, é daí que, constituindo-se como um título de crédito rigorosamente formal, esteja revestida, entre outros, dos princípios da incorporação (a obrigação e o título constituem uma unidade), da literalidade (a reconstituição da obrigação faz-se pela simples inspeção do título cambiário), da autonomia (o direito do portador, que é considerado credor originário), da independência (recíproca das obrigações que estão incorporadas no título) e da abstração (a livrança é independente da sua causa debendi).

Apresentada em tal veste cartular, e porque a obrigação cambiária é, como vimos, uma obrigação literal e abstrata, que decorre do título que a incorpora, o credor que exige o respetivo pagamento não carece, em princípio, de invocar a sua causa (a relação subjacente ou fundamental) e, portanto, poderá limitar-se a apresentar o título que incorpora a obrigação (como vimos, a exequente foi mais longe ainda, sem ter necessidade de o fazer, alegando a relação causal subjacente à emissão e à entrega da dita livrança).

Muito embora a abstração seja, como se viu, uma das características dos títulos de crédito cautelares, todavia, a criação da obrigação cartular não aparece por si só, antes pressupõe uma relação jurídica anterior, que constitui a chamada “relação subjacente, fundamental ou causal”, causa remota da assunção da obrigação cambiária, todavia, e como bem se assinala no acórdão recorrido, por força dessa característica/princípio a causa debendi em que se traduz a obrigação subjacente encontra-se separada do negócio jurídico cambiário, decorrendo de uma convenção extra-cartular.

O que isto significa é que a obrigação cartular vincula, independentemente, dos vícios de que padeça a sua causa: as exceções causais são inoponíveis ao portador do título, pois, não assentam nele, sendo-lhes estranhas.

Só assim não será no caso das chamadas relações imediatas, isto é, aquelas que se estabeleçam entre um dos subscritores do título e o sujeito cambiário imediato, dado que entre essas pessoas é conhecido o negócio causal (subjacente à emissão dos títulos de crédito) e os eventuais vícios de que ele padeça, tal como decorre do art°. 17°, ex vi art°. 77°, da LULL.

Servindo o a livrança como título executivo, e, constando dela que a exequente Caixa Geral de Depósitos, SA. é a sua beneficiária (e que se apresenta como seu portador), e a embargante, como avalista, dela constando, igualmente o montante em dívida, verifica-se que a livrança reúne os referidos pressupostos condicionados à sua exequibilidade.

A figura ao aval encontra-se, no essencial, regulada nos artigos 30º a 32º da LULL.

Tais dispositivos (especificamente previstos para as letras de câmbio) são também aplicáveis às livranças, por força do disposto no artº. 77º – fine – daquele diploma legal.

Singelamente, pode-se definir o aval como um ato pelo qual um terceiro ou um signatário de uma livrança (neste caso) garante o pagamento da livrança por parte de um dos seus subscritores.

Assim, a sua função específica ou fim próprio é garantir ou caucionar a obrigação de certo obrigado cambiário; sendo essa responsabilidade de garantia primária.

Aval que, desse modo, se apresenta como uma garantia cambiária, e que se destina a garantir ou a caucionar o seu pagamento.

O aval é também um verdadeiro ato cambiário, origem de uma obrigação autónoma. E isso significa que o dador do aval não se limita a responsabilizar-se pela pessoa por honra de quem presta o aval; assume também a responsabilidade abstrata/objetiva pelo pagamento da livrança.

É igualmente sabido, até por força dos princípios acima exarados, que o aval é incondicionável.

Dispõe o artº. 32º da LULL “que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma”.

Por outro lado, nos termos disposto no artº. 47º daquela Lei (aplicável também às livranças, por força do disposto do já citado artº. 77º), os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra/livrança são todos solidariamente responsáveis para com o portador, tendo este o direito de acionar todas essas pessoas, individualmente ou coletivamente, sem estar adstrito a observar a ordem porque eles se obrigaram.

Da conjugação de tais normativos, resulta, antes de tudo, que o avalista fica na situação de devedor cambiário perante aquele portador/beneficiário em face do qual o avalizado é responsável, e na mesma medida em que ele o seja.

Assim, do ponto de vista mais fornal, pode definir-se o aval como uma garantia cambiária, substancialmente autónoma e formalmente dependente (2º §, do artigo 32º e 3º §, do artigo 77º, ambos LULL) e que tem por fonte um negócio unilateral.

 Como vem constituindo hoje entendimento dominante, se, por um lado, a responsabilidade do avalista é solidária com a do avalizado - e não subsidiária ou sequer acessória do mesmo -, já, por outro, essa responsabilidade é, como vimos, própria, autónoma e independente da do avalizado, de tal modo que ela se mantém mesmo que a obrigação deste último seja considerada nula (por motivos que nada a tenham a ver com vícios de forma).

Donde que do exposto ressalte:

Que o aval é apenas uma garantia (pessoal) prestada (pelo avalista) à obrigação cartular do avalizado, não sendo o avalista sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele o avalizado.

Sendo a obrigação do avalista uma obrigação independente e (materialmente) autónoma da do avalizado, vive e subsiste independentemente da obrigação do último, salvo no caso da obrigação a que este se vinculou ser nula por vício de forma.

E daí que o avalista não possa, por regra, opor ao portador do título os meios de defesa (vg. exceções) de que possa lançar mão o avalizado perante aquele portador, e nomeadamente sustentando-os ou filiando-os na relação jurídica material subjacente à emissão do título, representando essa relação para o avalista uma res inter alios acta. A garantia que o avalista presta é, repete-se, à obrigação cambiária e não, diretamente, à obrigação causal subjacente que levou à emissão do título cambiário.

Limitação essa que não é, todavia, absoluta, pois que, como vem constituindo entendimento dominante, pode o avalista invocar perante o portador do título cambiário, para além da nulidade por vício de forma da obrigação garantida, a exceção do pagamento da quantia inscrita no título (que avalizou) - considerando que esse facto interfere diretamente na relação cambiária, já que nesse caso o portador é obrigado a entregar ao título ao seu pagador - e bem como a exceção do preenchimento abusivo do título cambiário, no caso de, encontrando-se no domínio das relações imediatas, aquele ter também subscrito, nele intervindo, respetivo pacto de preenchimento do mesmo estabelecido para o efeito.

No sentido do que se deixou exposto vide - embora podendo aqui e ali apresentarem-se com algumas ligeiras nuances -, ao nível da jurisprudência Acs. do STJ de 11/05/2022, proc. nº. 703/20.3T8SNT-B. L1.S1, de 28/04/2016, proc. nº. 1106/12.9YYPRT-B.P1.S1, de 15/05/2013, proc. nº. 3057/11.5TBGDM-A.P1.S1, de 03/11/2020, proc. nº. 1429/14.2T8CHV-A.G1.S1, de 04/05/2017, proc. nº. 206/14.5T2STC-A.E1.S1.S1, de 26/02/13, de 10/05/2011, de 11/02/2010, de 10/09/2009, de 02/12/2008, de 05/12/2006, de 11/07/2004 e de 01/07/2003, disponíveis em www.dgsi.pt, e ao nível da doutrina, os profs. Vaz Serra (in “RLJ ano 113, pág. 187”), Ferrer Correia (in “Lições de Direito Comercial, Vol. III, Letra de Câmbio, Universidade de Coimbra, 1975, pág. 215”), Pinto Furtado (in “Títulos de Crédito, págs. 153/154”), Carolina Cunha (in “Manual de Letras e Livranças, págs. 40 e 123”), Miguel Pestana de Vasconcelos (in “Direito das Garantias, 2013, 2ª edição, Almedina, páginas 118 a 124”), Paulo Sendin e Evaristo Mendes (in “A Natureza do Aval e a Questão da Necessidade ou não de Protesto para Accionar o Avalista, págs. 27 a 45”) e França Pitão (in “Letras e Livranças, 3ª. Ed., Almedina, págs. 208/209”).

Tendo presentes tais considerações, avancemos, agora, mais decisivamente, no sentido de dar resposta à questão concreta acima colocada.

Aceitando (numa interpretação ampla) que nos encontramos no domínio das relações imediatas, e que a avalista/embargante pode opor à exequente a referida exceção de nulidade do sobredito aval que prestou - inserto da livrança que foi dada à execução -, com fundamento na indeterminabilidade do seu objeto (e tendo por pano de fundo de referência a obrigação/relação subjacente), todavia, não assiste razão à recorrente/embargante.

Vejamos porquê.

Como se refere no acórdão recorrido, ressalta patente do requerimento executivo que a relação/obrigação material subjacente decorre de um único contrato, pelo que o aval em causa é específico para o Cartão Caixa Works que se manteve com a operação renumerada no âmbito do PER.

Daí carecer a recorrente de razão quando invoca, no ponto 161. das suas alegações de recurso, estarmos perante um aval omnibus, com objeto indeterminável.

Com efeito, e como bem, a nosso ver, se escreveu no Ac. da RP. de 19/01/2015, (proc. n.º 7460/10.0TBMTS-A.P2, disponível em www.dgsi.pt) não “não estaremos perante um "aval omnibus" quando a obrigação dos avalistas decorre do incumprimento de um contrato que não possa minimamente classificar-se como indeterminável.”.

É certo que, no caso, estávamos perante uma livrança em branco, sem que o respetivo montante estivesse determinado aquando da celebração do negócio que lhe estava subjacente, pelo que o aval só se perfetibilizou com o preenchimento da mesma.

A propósito do aval aposto numa livrança em brancoque pressuporá a existência de um pacto do seu preenchimento, prévio ou contemporâneo da sua emissão ou entrega - tem sido entendimento prevalecente que a posição jurídica do avalista se reconduz, tudo visto, a uma sujeição, estando o avalista “sujeito a que o portador a preencha, pelo valor que for e com vencimento na data que for. O portador ao preencher a letra exerce um direito potestativo”. (cfr., por todos, Pedro Pais Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, in “Direito Comercial, Vol. I, Almedina, 2ª. Edição, 2020, pág. 399”).

Ora, não haverá nulidade do aval se a obrigação assumida pelos avalistas é determinável, nos termos do pacto de preenchimento.

E atendendo aos factos provados em 8. e 9. não se pode concluir pela indeterminabilidade da obrigação assumida pela avalista.

Como resulta de tal matéria de facto “a exequente é ainda detentora de um documento, dirigido à agência de S... da Caixa Geral de Depósitos, SA, datado de 22.10.2008, referente ao cartão Caixa Works, contrato n.º ...25, o qual se dá por integralmente reproduzido, no qual é remetida, em complemento do contrato de atribuição e utilização do cartão em título, uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada, por nós subscrita e avalizada pelo(s) avalista(s) abaixo assinado(s), destinada a titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes da utilização do referido cartão e de acordo com as respetivas Condições Gerais de Utilização.(sublinhado e negrito nossos)

Mais resultou provado que se refere “ainda nesse documento que pela presente carta, ainda, autorizamos a CGD a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CGD, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:

a) A data de vencimento será fixada pela CGD quando, em caso de incumprimento das obrigações assumidas, a CGD decida preencher a livrança;

b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes da utilização do cartão, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e quaisquer encargos, incluindo os fiscais relativos à própria livrança;

c) A CGD poderá inserir cláusula “sem protesto” e definir o local de pagamento.

A livrança não constitui novação do crédito, pelo que se mantêm as respetivas condições, incluindo as garantias.”. (sublinhado e negrito nossos)

Desta factualidade, resulta claro que foi acordado que a data de vencimento da livrança era fixada pela exequente, quando houvesse incumprimento e a exequente decidisse a execução do seu crédito.

Por outro lado, ficou definido que a importância (com que seria preenchida a livrança, naturalmente) abrangeria todas as responsabilidades decorrentes da utilização do cartão: capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos incluindo os fiscais da própria livrança.

Atendendo ao exposto, não vemos, salvo o devido respeito, como é que a cláusula em discussão e, por inerência, a livrança que garante o cumprimento do contrato e a obrigação da sociedade avalizada (e por decorrência o próprio aval concedido) padeçam de indeterminabilidade.

Ou seja, e por outras palavras, consideramos não se estar perante um “aval omnibus”, estando assegurada, ab initio, a determinabilidade da obrigação (avalizada).

Vide ainda a esse propósito, embora com a devida adaptação, o Acórdão do STJ de 23/10/2007 (processo nº. 3365/07, disponível em dgsi.pt) em cujo sumário se escreve que “só com o preenchimento, a aposição do montante titulado, é que a subscritora e seus avalistas passam a ser considerados como devedores perante o portador. Portanto, o aval prestado só se consolida após o preenchimento da livrança (de acordo, como é evidente, com o negócio subjacente), o que significa que só após satisfeito tal requisito é que aquele se constitui como dívida cambiária perfeitamente determinada.”.

 E no mesmo sentido, também com a devida adaptação, veja-se o Acórdão do STJ de 6/03/2007 (processo nº. 07A205, disponível em dgsi.pt) com o seguinte sumário:

I- É inaplicável ao aval de uma livrança em branco posteriormente preenchida, a doutrina do acórdão uniformizador de jurisprudência nº. 4/2001, de 23.1.2001 (DR I-A Série, de 8.3.2001), segundo a qual é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.

II- O Acórdão do S.T.J. uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2001 não é aplicável ao aval, mas apenas à fiança de obrigações futuras, determinando ser esta nula quando o seu objecto for indeterminável.

III- Não indicando o escrito o montante que se destina a titular, também só a partir do respectivo preenchimento as pessoas que o subscreveram intitulando-se avalistas são efectivamente avalistas, sendo o objecto do aval aquela quantia determinada agora indicada.”. (sublinhado nosso).

Termos, pois, em que, perante o que se deixou exposto, terá também, nesta parte, que soçobrar a pretensão recursiva.


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5. Quanto à 4ª. questão.

- Do preenchimento abusivo da livrança (dada à execução como título executivo).

Invoca a recorrente que o preenchimento da livrança exequenda não pode deixar de ser considerado como abusivo, designadamente por o alegado acordo de preenchimento estar datado de 22/10/2008 e da data da emissão da livrança ser 19/05/2015.

Alega, a este propósito, a recorrente que “a livrança sub iudice foi preenchida pela Exequente em momento posterior ao da sua assinatura em branco e sem qualquer conhecimento e muito menos consentimento ou autorização da embargante, constando do acordo de preenchimento que a mesma foi subscrita com montante e vencimento em branco mas já devidamente datada, sendo que o Doc. 3 está datado de 22 de Outubro de 2008 e a data de emissão da livrança é de 19.05.2015.”.

Acrescenta a recorrente que “a empresa subscritora da livrança interveio no acto de consolidação de dívida, tendo nessa data constituído hipoteca a favor da recorrida, tudo sem conhecimento da recorrente e, por isso mesmo, ao arrepio da sua vontade”, considerando que “ainda que o pacto de preenchimento em análise desse poderes de preenchimento da livrança à recorrida, a consolidação da dívida jamais pode vincular a recorrente, que não participou em quaisquer negociações, nem em qualquer PER, sendo notório que a recorrida preencheu a livrança dada como título executivo de forma abusiva.

Em sede de contra-alegações, a embargada pronunciou-se no sentido da não existência de qualquer preenchimento abusivo da livrança, por entender que a data aposta na livrança foi a data da constituição da obrigação para com a exequente e que a livrança possui o montante em dívida e a data de vencimento preenchidas, tendo por referência o pacto de preenchimento acordado entre as partes.

O acórdão recorrido, sobre esta concreta questão, pronunciou-se, nos seguintes termos:

Apesar das objeções levantadas pela embargante relativamente ao preenchimento da livrança, temos para nós que o preenchimento do título não se pode ter por abusivo.

Embora na carta enviada pelos subscritores e avalistas da livrança à CGD, ora embargada, datada de 22/10/2008, que constitui o pacto de preenchimento se faça alusão a que a livrança entregue se encontrava “devidamente datada” (v. ponto 8 dos factos provados) tal, efetivamente, não acontecia, deixando os subscritores (onde se incluía a embargante, na qualidade e de gerente da T... LDA) bem como os avalistas (qualidade em que também interveio a embargante), tal aposição de data para a embargada, já que não haviam datado a mesma.

Por isso, como salienta a embargada, por ter sido acordado a consolidação da dívida, e o pacto de preenchimento expressamente prever que a livrança é destinada a titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes da utilização do referido cartão e de acordo com as condições Gerais de utilização, autorizando os subscritores e os avalistas, àquela preencher a livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo dela própria, colocando-lhe a data de vencimento que tivesse por oportuna, em caso de incumprimento das obrigações assumidas, sendo a importância correspondente ao total das responsabilidades decorrentes da utilização do cartão, nomeadamente capital em dívida, respetivos juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da livrança, ela tomou por bom colocar a data de trânsito em julgado do PER, data esta que corresponde ao assumir da obrigação para consigo, ou seja, a data de emissão (19-05-2015) corresponde à data da constituição da obrigação avalizada.

Como se salientou a embargante assinou tanto o pacto como a livrança, na qualidade de gerente da empresa T... LDA, e na qualidade de avalista, pondo o seu aval, decorrendo expressamente dos documentos juntos com o requerimento executivo, a origem da obrigação, pelo que não vislumbra qualquer violação do pacto de preenchimento.

A livrança possui o montante em dívida e data de vencimento preenchidos, tendo por referência o pacto de preenchimento acordado entre as partes, subjacente ao negócio que levou à entrega do título em branco, incorpora assim uma obrigação certa, líquida e exigível, sendo apto a suportar a exigência coerciva da quantia em dívida nele titulada, por o seu preenchimento estar em consonância com a lei aplicável e com o que havia sido acordado com a subscritora e avalistas.

Não se reconhece, também, a exceção do preenchimento abusivo do título, invocado pela embargante.”

Apreciando.

Como deixámos expresso na análise da questão anterior, o preenchimento abusivo de um título cambiário (vg. de uma livrança) é um dos meios de defesa que o avalista pode opor, como exceção, ao portador do mesmo, desde que, encontrando-se no domínio das relações imediatas, aquele tenha também subscrito, nele intervindo, o respetivo pacto de preenchimento do mesmo estabelecido para o efeito, o que efetivamente sucedeu no caso concreto.

Esse preenchimento abusivo pressupõe, desde logo, que o título tenha sido entregue em branco.

Vem sendo cada vez mais usual, na nossa hodierna sociedade mercantil, o recurso às chamadas letras/livranças em branco, por forma a facilitar o comércio, como modo de aumentar a garantia daqueles (vg. instituições financeiras ou outras) que vão creditando, ao longo certo período temporal, a favor de outrem, quantias em dinheiro cujo concreto montante não fica logo pré-definido (vg. contratos de abertura de créditos em conta-corrente) ou através de fornecimento de bens ou quantias em dinheiro cujo pagamento se protela no tempo.

A admissibilidade da letra ou da livrança em branco, apesar de não estar expressamente contemplada na respetiva Lei Uniforme (LULL), é indiscutida à luz do preceituado no artigo 10º da citada LULL.

Segundo este inciso “Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.”

Como refere o prof. Ferrer Correia, é o próprio artigo 10º da LULL a admitir (ao menos, implicitamente) que a letra (ou a livrança – cfr. artigo 77º da LULL) possa ser emitida ou passada em branco, isto é, sem conter, desde logo, os requisitos essenciais previstos nos artigos 1º (letra) e 75º (livrança), desde que a mesma venha a ser posteriormente preenchida nos termos fixados no artigo 1º (e no artigo 75º, tratando-se de livrança), passando então, após o preenchimento desses elementos, a produzir os efeitos próprios do título de crédito.

Em suma, como escreve o ilustre professor (in “Ob. cit., pág. 482/483”) “pode, deste modo, uma letra ser emitida em branco; é óbvio, porém, que a obrigação que incorpora só poderá efectivar-se desde que no momento do vencimento o título se mostre preenchido. Se o preenchimento se não fizer antes do vencimento, então o escrito não produzirá efeito como letra, de harmonia com os arts. 1º. e 2º..”

Com efeito, nenhum obstáculo existe à perfeição da obrigação cambiária quando a livrança (ou letra), incompleta, contém uma ou mais assinaturas destinadas a fazer surgir tal obrigação, ou seja, quando as assinaturas nela apostas exprimam a intenção dos respetivos signatários de se obrigarem cambiariamente, quer se entenda que a obrigação surge apenas com o preenchimento, quer se entenda que nasce antes, ou seja, logo no momento da emissão, a ele retroagindo a efetivação constante do título por ocasião do preenchimento.

Por conseguinte, como refere J. Engrácia Antunes (in “Títulos de Crédito – Uma Introdução”, Coimbra Editora, 2ª. Ed., 2012, pág. 65”), a letra (ou livrança) em branco corresponde ao documento (sujeito ao modelo normalizado de letra ou, ao menos, que contenha a palavra “letra” ou “livrança”) que, não contendo todas as menções obrigatórias essenciais previstas nos artigos 1º ou 75º da LULL, possua já a assinatura de, pelo menos, um dos signatários cambiários (com a consciência e a intenção de assumir uma vinculação cambiária), acompanhado de um acordo ou pacto de preenchimento futuro das menções em falta. (Vide, ainda Pinto Furtado, in “Títulos de Crédito, 2ª. Ed., 2017, Almedina, págs. 119/120” e Ferrer Correia, in “Ob. cit., pág. 482”. Em sentido não inteiramente coincidente, vide Carolina Cunha, (in Ob. cit., págs. 168, 170, 171 e 178”) para quem a letra em branco apenas exige a emissão voluntária de um título incompleto - com ou sem pacto de preenchimento -, com intenção de deixar o seu posterior preenchimento a outrem.

Nestes termos, o pacto de preenchimento pode definir-se como o ato pelo qual as partes no negócio cambiário ajustam os termos ou as condições em que deve vir a ser posteriormente completado o título de crédito, definindo a obrigação cambiária, ou seja, as condições relativas ao seu conteúdo, como sejam o montante, o vencimento, o lugar de pagamento, etc. (cfr. Abel Pereira Delgado, in “Ob. cit., 6ª edição, pág. 7”), ou, nas expressivas palavras do Ac. do STJ de 25/05/2017 (proc. n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), como “o contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária.”

Acordo de preenchimento que não está sujeito a forma, podendo ser expresso (por escrito ou acordo verbal) ou tácito (artº. 217º do CC), mormente quando resulta concludentemente do negócio ou relação subjacente à emissão do título (cfr., por todos, Ac. do STJ de 04/05/2004, disponível em www.dgsi.pt.)

De facto, como resulta do já expendido, a livrança (ou letra) em branco é um título de formação sucessiva, na estrita medida em que, enquanto não se mostrarem preenchidos os seus elementos essenciais previstos no artigo 75º da LULL, a mesma, não obstante a sua emissão, não produz ainda efeitos como livrança.

A livrança em branco é, portanto, um documento que pode vir a ser um título de crédito, que aspira a sê-lo, desde que os intervenientes hajam assumido essa intenção ou possibilidade futura, mas que no momento da sua emissão em branco não adquire logo essa qualidade e continua a não possuir enquanto aqueles elementos não forem preenchidos.

Todavia, uma vez preenchidos esses elementos essenciais, a obrigação cambiária já incorporada no título considera-se constituída (deixando, pois, de ser um título incompleto, destituído de valor cambiário), sem prejuízo da questão atinente aos termos desse (posterior) preenchimento e da sua eventual desconformidade.

Diga-se ainda, que existindo pacto/acordo de preenchimento o mesmo deve ser objeto de interpretação à luz dos critérios previstos nos artºs. 236º e ss. do Código Civil.

Refira-se, por fim, e enfatizando aquilo que supra já deixámos referido, a esse respeito, constituindo entendimento claramente prevalecente entre nós que, por um lado, intervindo no pacto de preenchimento e encontrando-se o título no domínio das relações imediatas o executado/embargante/subscritor ou avalista pode opor ao exequente/beneficiário a violação desse pacto/acordo de preenchimento, ou seja, a exceção material (perentória) do preenchimento abusivo do título e que, por outro, é sobre ele (opoente) que incumbe/incide (nos termos do artº. 342º, nº. 2, do CC), o ónus de alegação e prova desse abusivo preenchimento. Sobre matéria temática acabada de expendir, e no mesmo sentido, vide ainda, entre outros, os Acs. do STJ de 11/10/2022, processo n.º 3070/20.1T8LE-A.E1.S1, 1ª. secção, – subscrito por este mesmo coletivo, e que, por isso, seguimos na parte referente à teorização desta problemática -, de 13/07/2022, proc. nº. 2784/20.0T8STB.B.E1.S1, de 19/06/2019, proc. nº. 1025/18.5T8PRT.P1.S1, de 13/11/2018, proc. nº. 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1; de 25/05/2017, proc. n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1; de 20/10/2015, proc. nº. 60/10.6TBMTS.P1.S1; e de 08/10/2009, proc. nº. 475/09.2YFLSB, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Como explica Carolina Cunha (in “Ob. cit., págs. 184/186”), o preenchimento abusivo apresenta duas categorias fundamentais de desconformidade por referência à vontade manifestada pelos subscritores do título cambiário. A primeira compreende as discrepâncias consubstanciadas num preenchimento injustificado ou extemporâneo, com destaque para a falta de verificação da ocorrência à qual o completamento do título estava subordinado (tipicamente, a constituição, o vencimento ou o incumprimento de um crédito no seio da relação fundamental) e para a extinção satisfatória da relação fundamental garantida pelo título. A segunda abrange as discrepâncias relacionadas com a configuração das menções introduzida no título, com destaque para a inserção de uma quantia superior à que decorre dos acordos realizados.

Além de facilitar a compreensão do fenómeno, esta divisão tem consequências práticas assinaláveis: só no primeiro grupo de hipóteses a invocação bem sucedida da exceção de desconformidade significa o afastamento da pretensão cambiária; já no segundo grupo apenas conduz à reconfiguração da pretensão cambiária de modo a contê-la dentro dos limites excedidos.

Postas estas considerações de cariz teórico-técnico, para melhor enquadramento da questão, e movendo-nos particularmente dentro do a materialidade apurada que, em particular, importa considerar a esse respeito (cfr. pontos 8., 9., 10., 11. a 14.), é chegado o momento de concretizar a resposta à questão acima colocada que se encontra em dissenso.

No que concerne à questão que, nesta sede, é suscitada pela recorrente (relativa à discrepância da data de emissão inserta na livrança e a data da subscrição do pacto de preenchimento), importa começar por referir que, pese embora, no pacto de preenchimento se refira que a livrança está datada, certo é que os seus subscritores, na qual se incluía a ora recorrente na qualidade de avalista e gerente da sociedade, não apuseram qualquer data na mesma (reportando-se a data de 22-10-2008 ao acordo de preenchimento) – facto este que a embargada reconhece.

Ora, quem emite uma letra incompleta ou em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em certos e determinados termos. No caso, concorda-se com a posição do tribunal recorrido quando escreve que “os subscritores (onde se incluía a embargante, na qualidade e de gerente da T... LDA) bem como os avalistas (qualidade em que também interveio a embargante)” deixaram “tal aposição de data para a embargada, já que não haviam datado a mesma.”, o que, de resto, não podiam desconhecer aquando da entrega do título à ora exequente.

É, pois, no contexto de celebração, em 17-09-2015, do contrato de consolidação de dívida no âmbito do Processo Especial de Revitalização (PER) - nos termos do qual ficou estipulado que vigorariam todas as cláusulas que regeram o preenchimento da livrança que garante a operação, por referência ao primitivo contrato celebrado (correspondente ao documento n.º 3), dele fazendo parte integrante, reconhecendo as partes que tal contrato é titulado pela livrança em causa nos autos, conforme facto provado em 2. -, que a ora embargada, verificando a falta de tal elemento, decidiu apor a data de emissão da livrança correspondente à invocada data de trânsito em julgado do PER (19-05-2015).

A data de emissão da livrança assim aposta pela embargada surge num contexto de renegociação da dívida entre as partes e é uma data que corresponde à da constituição da obrigação (consolidada) e avalizada. É, pois, de admitir que o preenchimento da data da emissão do título por parte da exequente foi feito em moldes que respeitou a vontade dos subscritores da mesma livrança, não se mostrando, além do mais, arbitrário e, consequentemente, abusivo.

De resto, não se vê, nem tal surge explicitado de forma clara pela recorrente nas suas alegações e conclusões de recurso, em que é que a aposição de uma tal data possa constituir um preenchimento abusivo da livrança em causa, sendo certo que a lei não prevê, como analisaremos melhor adiante, um limite temporal máximo para o preenchimento da livrança e, no caso, conforme decorre do pacto de preenchimento, as partes nada convencionaram nesse sentido.

Entende-se, por isso, que não merece qualquer censura o acórdão recorrido quando entende que o preenchimento da livrança naqueles termos não violou o pacto de preenchimento, já que este previa expressamente que “a livrança é destinada a titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes da utilização do referido cartão e de acordo com as condições Gerais de utilização, autorizando os subscritores e os avalistas, àquela preencher a livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo dela própria, colocando-lhe a data de vencimento que tivesse por oportuna, em caso de incumprimento das obrigações assumidas, sendo a importância correspondente ao total das responsabilidades decorrentes da utilização do cartão, nomeadamente capital em dívida, respetivos juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da livrança”.

Saliente-se que a recorrente, ao subscrever uma livrança em branco, assumiu o risco de tal título vir a ser preenchido pelo portador, nos termos do pacto de preenchimento por si subscrito.

A recorrente alega, porém, que não teve intervenção no ato de consolidação da dívida e que não foram juntos aos autos os contratos a que se refere a cláusula 6.ª do documento de reconhecimento de crédito e constituição de hipoteca, datado de 17-09-2015.

Sucede que, conforme acima referido, encontra-se patente no requerimento executivo que a relação material subjacente decorre de um único contrato – título que se mostra junto aos autos – mantendo-se, por isso, o aval prestado referente à utilização do Cartão Caixa Works que se manteve com a operação renumerada no âmbito do PER. Por outro lado, são distintas e independentes a garantia de hipoteca constituída e a garantia de aval prestada pela embargante (mal se compreendendo, por isso, que a recorrente manifeste “não vislumbrar por que razão em vez de acionar a hipoteca constituída aquando da consolidação da dívida da empresa executada, a recorrida optou por se socorrer de uma livrança”).

Ademais, é irrelevante, no caso, que a recorrente, na qualidade de avalista, não tenha tido intervenção no PER (uma vez que já não era, à data, gerente da empresa), sendo certo que o aval por si prestado, reportando-se a obrigações decorrentes da relação material subjacente à emissão da livrança, não deixa de, por esse motivo, de ser válido e exequível (conforme acima já analisado a propósito da invocada nulidade do aval).

A este propósito, refira-se que a jurisprudência vem, de forma prevalente, seguindo o entendimento de que não existe qualquer imposição de comunicar ao avalista os concretos termos do preenchimento da livrança, nem por maioria de razão as circunstâncias que, neste caso, conduziram à consolidação da dívida no âmbito do PER (não estando, no caso, prevista sequer uma tal obrigação no pacto de preenchimento), pelo que a conduta da exequente, neste âmbito, não pode ser tida como abusiva. (Veja-se, a este propósito e entre outros, os Acórdãos do STJ de 30/04/2019, proc. n.º 1959/16.1T8MAI.A.P1.S1, e de 28/09/2017, processo n.º 779/14.2TBEVR-B.El .SI, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.).

Não podemos ignorar que a emissão de livranças em branco está – para além das razões que supra já deixaram expressas – também relacionada com o objetivo de acautelar o credor cambiário quanto a flutuações no montante, à data de (in)cumprimento, à possível demora em eventual negociação de dívida e à definição do momento adequado para a cobrança coerciva da dívida. (cfr., Carolina Cunha, in “Aval e Insolvência, Almedina, Reimpressão, 2018, págs. 19-20”),

Parece, pois, evidente que a boa-fé não impondo a previsão de um limite temporal máximo para o preenchimento da livrança, também não parece impedir, na especificidade concreta da celebração de contrato de consolidação de dívida entre as partes, a aposição de uma data de emissão correspondente a essa mesma consolidação da dívida, sendo esta, de resto, a que melhor se coadunará com a vontade dos intervenientes.

Nas palavras do acórdão do STJ, de 21-04-2022 (processo n.º 3941/20.5T8STB-A.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt) “não se apurando que a vontade dos intervenientes tenha ou tivesse sido a de estabelecer condicionamentos à data do vencimento (…), o portador da livrança em branco é livre de a preencher em data que considerar conveniente.”

Em idêntico sentido se moveu o Ac. do STJ de 06/09/2022 (proc. 3940/20.7T8STB.-A.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt) ao concluir que “Nada tendo sido estabelecido diversamente em sede de acordo de preenchimento, é direito potestativo do portador preencher a livrança com uma  qualquer data de vencimento ulterior ao momento do alegado incumprimento da subscritora.”. Cfr. ainda, de modo similar, os Acs. do STJ de 19/05/2020, proc. n.º 7062/16.7T8LSB-A.S1, de 24/10/2019, proc. n.º 6871/17.4T8VNF-A.G1.S1, de 24/10/2019, proc. n.º 1418/14.7TBPVZ-B.P2.S2, de 16/06/2019, proc. n.º 1025/18.5T8PRT.P1.S1, que não se mostram publicados na base de dados).

Tal argumentação vale, quanto a nós, e no específico contexto factual em que nos movemos, também quanto ao preenchimento da data de emissão.

Perante o exposto, os argumentos invocados pela recorrente, com o devido respeito por opinião em contrário, não nos merecem adesão.

Não só a aposição das datas na livrança em branco por parte da exequente não consubstancia um preenchimento em desconformidade com o constante do respetivo pacto de preenchimento, como o exercício do direito ao livre preenchimento da livrança, por parte do portador, não se deve, de nenhuma forma, considerar-se abusivo (nada há que nos permita concluir que, de acordo com o princípio da boa-fé, seria de exigir ao portador o preenchimento da livrança com outras datas, sendo a data referente ao vencimento aquela que verdadeiramente se apresenta como relevante para efeitos de aferir da exequibilidade do título).

É evidente que, em tese, o exercício do direito ao livre preenchimento pode ainda considerar-se abusivo se, em concreto, se verificar que o portador da livrança adotou uma conduta censurável e atentatória da dos “limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito” (cfr. artº. 334º do CC).

Sucede que, tal comportamento censurável ou gravemente chocante, que não é sequer alegado pela recorrente, não se verificou, à luz dos factos apurados, no caso concreto.

Desde logo, o facto de a recorrente ter tido intervenção no negócio subjacente e ter necessariamente conhecimento dos riscos assumidos com o aval prestado, impedem que se considere que as circunstâncias invocadas pela recorrente - aposição da data de emissão da livrança em data posterior à da celebração do pacto de preenchimento e a consolidação da dívida efetuada no âmbito do PER, processo em que a recorrente não teve intervenção - sirvam de fundamento bastante para que esta se exima à sua responsabilidade.

Considerando o exposto, somos levados a concluir no sentido de que, não tendo sido acordado entre as partes uma data limite para o preenchimento da livrança e que a sua data de emissão não foi inicialmente aposta pelos seus subscritores, e não resultando que a atuação da exequente viole o princípio da boa-fé, não se mostra abusivo o preenchimento da livrança nas circunstâncias descritas nos autos, seja na vertente de violação do pacto de preenchimento, seja na vertente de abuso do direito ao livre preenchimento da livrança.

Em suma, perante o que se deixou exposto, facilmente, a nosso ver, se chega à conclusão de que a recorrente não só não logrou demonstrar (como lhe competia) o alegado preenchimento abusivo da livrança que foi dada à execução como título executivo, como inclusive se chega mesmo à conclusão do contrário.

Pelo que, também nesta parte, soçobra pretensão da recorrente.


***


6. Quanto à 5ª. questão.

- Da inexequibilidade do título dado à execução.

Na sequência do que já alegara a propósito da invocação da nulidade do aval, a recorrente vem ainda invocar que as responsabilidades assumidas pela subscritora da livrança, aquando da entrega desta à embargada, eram indeterminadas, razão pela qual entende que o título apresentado à execução é inexequível/nulo por indeterminabilidade do seu objeto.

Alega, a este propósito, que “a dívida exequenda não pode ser considerada certa, líquida e exigível, nos termos exigidos pelos art.ºs. 713.º, 731.º e 729.º, alínea e) do CPC., por ser indeterminável”, concretizando que “o facto de o plafond do cartão de crédito, que esteve na origem da subscrição, assinatura e aposição de avales na livrança dada à execução, ser susceptível de alteração, ademais sem conhecimento dos avalistas (o que efectivamente veio a suceder), tornaram a obrigação em análise indeterminável.”

É a seguinte a fundamentação do acórdão recorrido no âmbito da apreciação desta concreta questão:

“Na sequência do já expusemos na apreciação da 2a e 3a questões, não podemos perfilhar do entendimento de que o título dado à execução é inexequível. Pois, tendo a livrança em branco sido preenchida de acordo com o que decorre da lei e o autorizado pelo pacto de preenchimento resulta da mesma que titula uma dívida certa, líquida e exigível.

Acresce, que a executada subscritora do título não veio deduzir oposição à execução pondo em causa a exequibilidade do mesmo.

Têm-se entendido que em face da obrigação autónoma em que se traduz o aval e dos princípios da literalidade e abstração, que não há possibilidade, em face do disposto nos arts. 10.º, 17.º e 32.º da LULL, de ao avalista ser permitido suscitar a exceção do preenchimento abusivo, em qualquer das suas vertentes, por a relação que se estabelece entre este e o portador da livrança ser, em geral, uma relação mediata, e só no domínio das relações imediatas ser livremente oponível ao portador da mesma a inobservância do acordo de preenchimento. (cfr. Ac. do STJ de 14/10/2004 no processo 04B2904, disponível em www.dgsi.pt).

No entanto, atendendo ao circunstancialismo que esteve na base na subscrição da livrança em branco, bem como no aval que foi prestado, tendo as partes envolvidas na execução outorgado o contrato referente à emissão do Cartão Caixa Works, no qual se estabeleceu, também, o pacto de preenchimento do título cambiário dado à execução, devemos reconhecer que no caso estamos no domínio das relações imediatas, pelo que entendemos ser permitido à embargante avalista invocar a exceção do preenchimento abusivo da livrança cabendo-lhe a ela, no entanto, o ónus da prova dos factos integradores de tal exceção (cfr. CAROLINA CUNHA in Manual de Letras e Livranças, 2016, 186; Acs. do STJ de 13/11/2018 no processo n.º 2272/05.5YYLSB-B.S1, de 12/10/2017 no processo n.º 1097/14. ITBFUN-A.LI.SI, de 28/09/2017 no processo n.º 779/14.2TBEVR-B.E1.Sl; de15/05/2014 no processo n.º 1419/11.7TBCBR-A.C I .S 1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.) sendo que, tal prova de desconformidade do complemento da livrança em branco com o respetivo pacto de preenchimento, não foi feita, donde como se afirmou, o título é exequível.

Assim, não se reconhece também a existência da arguida exceção de inexequibilidade do título, invocada pela embargante.”

Por tudo o que anteriormente se deixou escrito a propósito da validade do aval e da inexistência de preenchimento abusivo da livrança, cujas considerações, no que para a presente questão releva, se têm aqui por reproduzidas, não nos merece censura a decisão do tribunal recorrido.

Com efeito, concluindo-se que a livrança em branco foi, no caso, preenchida de acordo com a lei aplicável e as condições e termos previstos no pacto de preenchimento, este acordado com a subscritora e avalistas, não há como não concluir que o mesmo constitui título regularmente exequível e, sobretudo, que incorpora em si uma obrigação certa, líquida e exigível.

Nestes termos, não nos merece censura a decisão recorrida na parte em que não reconhece a exceção de inexequibilidade do título invocada pela embargante.

Termos, pois, em que, perante tudo o que se deixou exposto, se decide negar provimento à revista, confirmando-se o acórdão sob recurso.


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III - Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso (de revista), confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela embargante/recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).


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Lisboa, 2022/11/08


Relator: cons. Isaías Pádua

Adjuntos:

Cons. Aguiar Pereira

Cons. Maria Clara Sottomayor