Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
95585/19.6YIPRT.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
REQUISITOS
ALÇADA
VALOR DA CAUSA
REVISTA EXCECIONAL
CONSTITUCIONALIDADE
DIREITO AO RECURSO
PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
Data do Acordão: 11/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Quer o recurso de revista normal, quer o recurso de revista excepcional, apenas podem ser admitidos se estiverem preenchidos os requisitos de recorribilidade geral, nomeadamente o da alçada.

II. O art. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC não prescinde do requisito geral do valor da alçada para que o recurso possa ser admissível. A contradição de julgados só abre a porta ao recurso de revista caso se esteja perante um tipo de litígio relativamente ao qual o legislador excluiu, por princípio, o recurso de revista.

III. A disposição legal citada pelo requerente como sendo motivo de dispensa de alçada – art.º 629.º, n.º 2, al.d) – não tem sido assim interpretada por este STJ, não obstante o facto de se inserir no n.º 2 do preceito e de aí se encontrarem as situações das alíneas a), b) e c), em que tal requisito está dispensado. Esta conclusão tem sido afirmada a partir da história do preceito e evolução legal do regime dos recursos, e bem assim no seu próprio teor literal, que refere – “por motivo estranho à alçada”.

IV. Ainda que assim não se entendesse, sempre se diria que a inclusão de uma situação no âmbito da alínea d) pressupõe a existência de uma disposição legal que especificamente coarte o recurso para o STJ – como sucede em várias matérias específicas como expropriações, providências cautelares, insolvência, etc – casos em que, por via dessa norma específica não há recurso normal mas se abre a possibilidade de acesso ao STJ para resolver uma contradição de jurisprudência das Relações, que de outro modo ficaria sem solução por não poder o STJ decidir qual das orientações contraditórias deve ser a adoptada face à lei e à unidade do sistema jurídico.

V. Ora, na situação dos presentes autos não veio indicada qualquer disposição legal que pudesse caber na previsão legal do art.º 629.º, n.º 2, al.d) do CPC, nem a mesma se conseguiu descortinar como aplicável pela leitura do requerimento e alegações de recurso.

VI. A interpretação do art.º 629.º, n.º 2, al.d) do CPC no sentido de aqui ser exigida alçada não é inconstitucional.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. Nos autos acima identificados foi apresentado requerimento de interposição de recurso de revista.

Na revista o que se pede é a sua admissão pela via excepcional, nos seguintes termos:

“O que faz ao abrigo do disposto nos arts.638º, nº 1, 629º, nº 2, al. d), e 672º, nºs.1, alínea c) e 2, alínea c), todos do CPC, com o fundamento previsto no art.674º, nº 1, alínea b), idem.”


2. Por Despacho do tribunal recorrido de 20/9/2021, o recurso foi admitido nos seguintes termos:

Por ser tempestivo, admito o recurso de revista excepcional, sem prejuízo de caber ao para o Supremo Tribunal de Justiça decisão quanto à verificação dos respectivos pressupostos (art. 672º nº 3 do CPC).”

3. Nos presentes autos o valor da causa e do recurso é de 16.300,00 euros – conforme despacho de 29.06.2020, inferior à alçada do Tribunal de que se recorre.

II. Fundamentação

4. Quer o recurso de revista normal, quer o recurso de revista excepcional, apenas podem ser admitidos se estiverem preenchidos os requisitos de recorribilidade geral, nomeadamente o da alçada.

A disposição legal citada pelo requerente como sendo motivo de dispensa de alçada – art.º 629.º, n.º 2, al. d) – não tem sido assim interpretada por este STJ, não obstante o facto de se inserir no n.º 2 do preceito e de aí se encontrarem as situações das alíneas a), b) e c), em que tal requisito está dispensado. Esta conclusão tem sido afirmada a partir da história do preceito e evolução legal do regime dos recursos, e bem assim no seu próprio teor literal, que refere – “por motivo estranho à alçada”.

Ainda que assim não se entendesse, sempre se diria que a inclusão de uma situação no âmbito da alínea d) pressupõe a existência de uma disposição legal que especificamente coarte o recurso para o STJ – como sucede em várias matérias específicas como expropriações, providências cautelares, insolvência, etc – casos em que, por via dessa norma específica não há recurso normal mas se abre a possibilidade de acesso ao STJ para resolver uma contradição de jurisprudência das Relações, que de outro modo ficaria sem solução por não poder o STJ decidir qual das orientações contraditórias deve ser a adoptada face à lei e à unidade do sistema jurídico.

Ora, na situação dos presentes autos não veio indicada qualquer disposição legal que pudesse caber na previsão legal do art.º 629.º, n.º 2, al. d) do CPC, nem a mesma se conseguiu descortinar como aplicável pela leitura do requerimento e alegações de recurso.


5. Incumbindo ao relator do processo no STJ a verificação das condições de admissão do recurso – sem que esteja vinculado pelo despacho de admissão proferido no tribunal a quo – art.º 652.º e 641.º, n.º 5 do CPC – ouvindo as partes (ou a parte que não se tenha pronunciado ou tido possibilidade de o fazer) sobre os motivos que podem conduzir à não admissão do recurso – art.º 655.º CPC –, considerando que a situação dos autos configura uma situação em que o recurso de revista não é admissível, convidaram-se as partes a pronunciarem-se sobre a não admissão do recurso de revista, no prazo legal.


5.1. Respondeu o recorrido com adesão aos fundamentos do despacho-convite no sentido de não ser admitida a revista.


5.2. Respondeu o recorrente insistindo na admissibilidade da revista

Mais invoca a inconstitucionalidade se a decisão do tribunal for no sentido da inadmissibilidade do recurso.

6. Conhecendo.

No despacho convite o tribunal havia invocado a seguinte argumentação a sustentar a ideia de não ser admissível o recurso – e a que aqui adere o colectivo desta secção:

(transcrição)

“4. Atento o exposto, e porque o recurso de revista excepcional a que se reporta o art.º 672.º do CPC não dispensa a verificação dos demais pressupostos gerais dos recursos, muito em especial o da alçada, não há sequer qualquer possibilidade de submeter a questão à formação a que se reporta a norma, por a tal obstar a proibição de prática de actos inúteis.

Mesmo que assim não se considerasse, são inúmeros os acórdãos deste STJ nos quais se tem deixado claro ser este o entendimento legal, e que aqui se indicam, a título meramente exemplificativo:

Reclamação n.º 224/08.2TBESP.1.P2-B.S1 - 1.ª Secção - 04-07-2017

I - Só é admissível recurso de revista excepcional, caso se verifiquem os pressupostos gerais atinentes ao valor da causa e à sucumbência.

 II - Sendo o valor da causa (€ 28 481, 80) inferior à alçada do tribunal da Relação (€ 30 000), não é admissível recurso de revista, excepcional ou normal (art. 629.º, n.º 1, do CPC e o actual art. 44.º da LOSJ).

III - A jurisprudência, designadamente a do TC, vem assumindo que, no nosso ordenamento jurídico, o direito de acesso aos tribunais, em matéria cível, não integra forçosamente um triplo ou, sequer, um duplo grau de jurisdição, apenas estando vedado ao legislador ordinário o estabelecimento do conteúdo do genérico direito ao recurso de actos jurisdicionais com uma redução intolerável ou arbitrária, arbitrariedade que não afecta, manifestamente, o disposto na norma do art. 629.º, n.º 1, do CPC.  Proc. n.ºro 2877/11.5TBPDL-D.L2.S1, 07 JUN. 2018 (ECLI:PT:STJ:2018:2877.11.5TBPDL.D.L2.S1.7F)

I. De harmonia com o disposto no art. 370, nº 2 do CPC, não cabe, em regra, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares, a não ser que se verifique qualquer uma das situações elencadas nas alíneas a) a d) do nº 2 do art. 629º, do CPC, em que o recurso é sempre admissível, ou seja, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados.

II. A contradição jurisprudencial imprescindível para a admissibilidade da revista, ao abrigo do art. 629º, nº 2, al. d), aplicável por força do disposto no art. 370º, nº 2, ambos do CPC., implica a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:

i) o não cabimento de recurso ordinário impugnativo do acórdão recorrido por motivo alheio à alçada do tribunal;

ii) a existência de, pelo menos, dois acórdãos em efetiva oposição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito fundamental, tendo por objeto idêntico núcleo factual, ali versados;

iii) – a anterioridade do acórdão-fundamento, já transitado em julgado;

iv) – a não abrangência da questão fundamental de direito por jurisprudência anteriormente uniformizada pelo STJ.

III. A admissibilidade do recurso de revista, pela via especial da contradição jurisprudencial, não prescinde, porém, da verificação dos pressupostos gerais da recorribilidade em função do valor da causa ou da sucumbência, pelo que, tratando-se de acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de um procedimento cautelar, é de exigir que o valor do procedimento exceda a alçada da Relação e que a sucumbência do recorrente revelada pelo confronto. entre a providência pedida e a que foi decretada seja superior a metade dessa alçada.

IV. A contradição de julgados que releva como condição da admissibilidade do recurso de revista é a oposição frontal sobre a mesma questão fundamental de direito, no sentido de que as decisões em confronto tenham convocado um quadro normativo ou regras de conteúdo e alcance substancialmente idênticos e tenham subjacente um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas.

V. Tendo o acórdão recorrido fundamentado a sua decisão no caso julgado formal constituído, nos termos do artigo 620º do C. P. Civil, por acórdão, anteriormente proferido nos presentes autos e que não equacionou a questão versada no acórdão fundamento, que foi decidida com base no art. 147º do RGICSF, na redação do DL nº 1/2008, de 03.01, e tendo cada uma das duas decisões em confronto subjacente diferentes medidas de resolução decretadas pelo Banco de Portugal nos termos do RGICSF, não se verifica oposição entre as mesmas, sendo, nessa conformidade, inadmissível a revista, de acordo com o preceituado no art. 629º, nº 2, al. d), aplicável por força do disposto no art. 370º, nº 2, ambos do CPC.

Revista n.º 10091/15.4T8VNF-C.G1.S2 - 6.ª Secção , 28-01-2020

I - O art. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC não prescinde do requisito geral do valor da alçada para que o recurso possa ser admissível. A contradição de julgados só abre a porta ao recurso de revista caso se esteja perante um tipo de litígio relativamente ao qual o legislador excluiu, por princípio, o recurso de revista. Tal é o que acontece com os procedimentos cautelares (art. 370.º, n.º 2, do CPC) ou com os processos de jurisdição voluntária (art. 988.º, n.º 2, do CPC), mas desde que o valor do recurso exceda a alçada da Relação.

II - Não cabendo o caso concreto nesse tipo de hipóteses, a eventual contradição de julgados nunca permitiria a existência de recurso de revista, com base na al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC.

Revista n.º 3800/15.3T8GMR.G1.S2 - 7.ª Secção 31-01-2019

I - A decisão que admite o recurso é sempre provisória e modificável pelo STJ pois não vincula o tribunal superior em qualquer das suas componentes, nem pode ser impugnada pelas partes (art. 641.º, n.º 5, do CPC).

II - Pelo contrário, na falta de reclamação da decisão que não admita o recurso ou retenha a sua subida, tal decisão torna-se inatacável por haver transitado em julgado (art. 641.º, n.º 6, do CPC).

III - Daquela decisão apenas cabe impugnação através da reclamação a que se refere o art. 643.º do CPC, destinada à reapreciação desse despacho, não havendo lugar à conferência, face ao disposto no art. 652.º, n.º 3, do CPC.

IV - Na ausência de reclamação nos termos do n.º 1 do art. 643.º do CPC, a decisão que não admitiu o recurso nos termos do art. 641.º, n.º 6, do CPC, produziu caso julgado formal, ficando definitivamente resolvida a questão da admissibilidade do recurso de revista normal.

V - Não tendo sido apresentada reclamação do despacho proferido na Relação que não admitiu o recurso deve o recurso ser rejeitado pelas razões referidas em IV, a que sempre acresceria a circunstância do valor da sucumbência relativamente ao pedido reconvencional, ao qual se limitava o objecto da revista, ser inferior a metade da alçada do tribunal da Relação.

Revista n.º 833/14.0TBPVZ.P1.S2 - 7.ª Secção - 11-04-2019

I - Cingindo-se o objeto do recurso à questão de saber se os reconvindos devem ser condenados no pagamento de uma indemnização quantificada pelos recorrentes em € 6 300, é forçoso concluir que não se verifica o pressuposto geral de recorribilidade a que se refere o n.º 1 do art. 629.º do CPC.

II - A via recursória franqueada pela al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC pressupõe que o recurso não seja admissível por razões estranhas à alçada, o que não se verifica no caso.

Revista excepcional n.º 354/14.1T8CSC-A.L1.S1, 11-07-2019, in www.stj.pt (revista excepcional 2019)

I - Como emerge do n.º 3 do art. 671.º do CPC, a revista excecional pressupõe que – à parte da questão da dupla conforme – a revista normal seja admissível pois, de outro modo, pela via da excecionalidade, abria-se um caminho mais lato do que o próprio da revista normal o que, manifestamente, não está na lei.

 II - Tem este Supremo Tribunal entendido que não é admissível recurso da decisão da Relação que confirma a decisão da 1.ª instância de não admissão de recurso nesta interposto, a não ser que se verifique alguma das previsões excecionais do art. 629.º, n.º 2, do CPC, nomeadamente, a contradição de acórdãos prevista na respetiva al. d).

III - Tendo sido invocada a referida contradição jurisprudencial, não cabe à Formação a tomada de posição sobre a admissibilidade do recurso, determinando-se a distribuição dos autos como revista normal.

Revista excepcional n.º 909/17.2T8VIS.C1.S1, 10-05-2018, in www.stj.pt (revista excepcional 2018)

A interposição, a título principal, de recurso de revista ao abrigo do disposto nos arts. 370.º, n.º 2 e 629.º, n.º 2, al. d), ambos do CPC e, a título subsidiário, de recurso de revista excecional com fundamento no art. 672.º, n.º 1, al. c), do CPC, exclui este último, porquanto o recurso de revista excecional depende da verificação de todos os requisitos gerais da admissibilidade do recurso de revista normal, com exceção do relativo à dupla conforme, e, no caso dos procedimentos cautelares, o recurso de revista normal não é admissível senão nos casos especiais previstos no art. 629.º, n.º 2, do CPC.

(fim de transcrição)


7. Os argumentos apresentados pelo recorrente no sentido de a alínea d) do art.º 629.º, n.º2 dispensarem a exigência de valor da causa não encontram sustentação na história do preceito legal, nem permitem dar sentido útil à expressão do legislador “por motivo estranho à alçada…”.

O argumento do recorrente de a interpretação propugnada violar o art.º 9º., n.º 2 do CC ao afirmar

«Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamentolegislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.» não procede porque a interpretação em causa tem um mínimo de correspondência na letra da lei e a interpretação da mesma não prescinde dos demais critérios interpretativos, nomeadamente o sistemático.

As situações elencadas no n.º 2, al. a), b) e c) são claramente diversas da situação da alínea d) e, por isso, o próprio legislador aqui fez uma referência específica que não pode ser ignorada pelo intérprete.

8. Ao contrário do alegado pelo recorrente, fazer uma interpretação da alínea d) do nº 2 do art. 629º do CPC como estando fora do âmbito do proémio do nº2 não comporta qualquer violação à constituição (art.20º, nº 1, direito de acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos; nem do art.º 13.º  - violação do princípio da igualdade), nem comporta qualquer violação dos princípios da legalidade, da igualdade, da realização da justiça, do acesso ao direito, e da certeza e segurança jurídica.

Mas ainda que assim não se entendesse, cumpriria ao recorrente explicitar onde se plasma a inconstitucionalidade de forma concreta e detalhada, não bastante uma remissão para diversos artigos da CRP com indicação da sua epígrafe, o que manifestamente não ocorre na alegação do recorrente – vaga e indeterminada.

O acesso ao terceiro grau de jurisdição não é uma exigência constitucional, nem da CRP decorre um reconhecimento geral do direito a recorrer com invocação em contradição de julgados, mesmo que se tribunais superiores.


III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, não se toma conhecimento do objecto do recurso, por o mesmo não ser admissível.


Custas pelo recorrente.


Lisboa, 17 de Novembro de 2021


Fátima Gomes (relatora)

Oliveira Abreu

Nuno Pinto Oliveira