Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1372/10.4T2AVR.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: REVISTA EXCEPCIONAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
DIREITO DE REGRESSO
PRESCRIÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Data do Acordão: 11/17/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 304º, 323º, 498º
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, ARTIGO 118º
DL Nº 522/85, DE 31 DE DEZEMBRO, ARTIGO 19º
DL Nº 291/2007, DE 21 DE AGOSTO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ARTIGO 721º-A

Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DA JUSTIÇA, WWW.DGSI.PT :
– DE 4 DE NOVEMBRO DE 2008, PROC. Nº 08A3119
– DE 25 DE MARÇO DE 2009, PROC. Nº 08B2415
– DE 27 DE OUTUBRO DE 2009, PROC. Nº 844/07.2TBOER.L1.S1
– DE 16 DE NOVEMBRO DE 2010, PROC. Nº 2119/07.8TBLLE.E1.S1
– DE 7 DE ABRIL DE 2011, PROC. Nº 329/06.4TBAGN.C1.S1
Sumário :
O alongamento do prazo de prescrição do direito à indemnização por danos resultantes de facto ilícito que também constitua crime, previsto no nº 3 do artigo 498º do Código Civil, não vale para o exercício do direito de regresso conferido à Seguradora pela al. c) do artigo 19º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro (condução sob o efeito do álccol).
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. Em 2 de Agosto de 2010, Império Bonança – Companhia de Seguros, SA instaurou uma acção contra AA, pedindo a sua condenação no pagamento de € 385.232,46, com juros de mora, contados desde a citação até integral pagamento.

Para o efeito, e em síntese, alegou ser titular de um direito de regresso sobre o réu, “atento o disposto na al. c) do nº 1 do D.L. nº 291/2007, de 21 de Agosto (actual redacção dada ao art. 19º, al. c) do revogado D.L. nº522/85, de 31 de Dezembro)”, por ter pago tal quantia, a título de indemnização pelos danos resultantes de um acidente de viação por ele causado, quando conduzia um veículo ligeiro, segurado na autora, sob o efeito do álcool, apresentando uma taxa de alcoolemia de 1,11 g/litro no sangue.

O réu contestou, por impugnação e por excepção. Por entre o mais, invocou a prescrição do direito de regresso, por terem decorrido mais de 4 anos sobre a data dos pagamentos efectuados pela autora e ser de 3 anos o prazo aplicável, nos termos do nº 2 do artigo 498º do Código Civil.

Houve réplica, na qual a autora contrapôs que, estando em causa um facto que constitui crime, vale para o direito de regresso o alongamento para 5 anos do prazo de prescrição resultante da conjugação entre o nº 3 do citado artigo 498º e o artigo 118º, nº 1, c) do Código Penal.

O réu treplicou.

No despacho saneador, o tribunal julgou procedente a excepção de prescrição e, consequentemente, absolveu o réu do pedido, a fls. 146.

No seu entender, “o direito de regresso da seguradora sobre o seu segurado, quanto às quantias que, por força do contrato de seguro e da verificação de uma das circunstâncias previstas no artº 19º, alínea c), do Decreto-Lei nº 522/85, esta haja pago aos lesados, prescreve no prazo de 3 anos, estabelecido no nº 2 do artigo 498º do Código Civil, contado a partir da data em que ocorreu o pagamento cujo reembolso se pretende”. Resumidamente, porque “nenhuma razão existe para aplicar” ao direito de regresso, que pressupõe estar feita a discussão e o apuramento da responsabilidade civil, “um alargamento do prazo que pressupõe que a medida dessa responsabilidade possa ainda ser discutida em sede penal por mais tempo”.

Esta decisão foi confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 180.

2. A autora interpôs recurso de revista excepcional, que foi admitido pelo acórdão de fls. 270, da formação prevista no nº 3 do artigo 721º-A do Código de Processo Civil.

Nas alegações que apresentou, a recorrente formulou extensas conclusões. Deixando agora de lado as que visavam demonstrar a admissibilidade da revista excepcional, respeitam todas à questão da determinação do prazo de prescrição aplicável ao exercício do direito de regresso, assim se delimitando o objecto do presente recurso (nº 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil).

Segundo afirma, “Atentos os factos alegados pela Autora na acção, quer relativos à dinâmica do acidente, quer relativamente aos danos dele decorrentes – e que a ora Recorrente se propunha provar – não haverá dúvida de que estamos perante factos abstractamente integradores da prática de crime cuja prescrição é de cinco anos (cfr. art. 118º do Código Penal), pelo que, nos termos do predito nº 3 do art. 498º do Código Civil, o direito da Recorrente não poderia ter sido julgado prescrito” (53ª conclusão).

O réu contra-alegou, defendendo a confirmação do acórdão recorrido.

3. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

1 - A Autora (“Império Bonança, S.A.”) celebrou com o Réu um contrato de seguro, titulado pela apólice nº ..., para cobertura da responsabilidade civil emergente da circulação rodoviária do veículo ligeiro de passageiros, da marca Mercedes, com a matrícula NF-....

2 - No dia 7 de Março de 2001, pelas 5H40, ocorreu um acidente de viação na Rua ..., no qual foram intervenientes o ciclomotor da marca Casal e de matrícula ...-AVR..., conduzido por BB, e o veículo NF-..., conduzido pelo Réu.

3 - No momento do acidente o Réu conduzia sob a influência de álcool no sangue, sendo portador de uma taxa de alcoolemia de 1,11 g/litro no sangue.

4 - Em consequência desse acidente, BB sofreu diversas, graves e extensas lesões físicas, que foram causa directa e adequada da sua morte.

5 - Na sequência desse acidente correu termos no 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Aveiro a acção declarativa, com processo ordinário n.º 837/2001, na qual a aqui Autora foi demandada para indemnizar os herdeiros do dito sinistrado pelos danos decorrentes da sua morte, com origem no referido acidente.

6 - No cumprimento do decidido nessa acção (por Acórdão da Relação de Coimbra), a aqui Autora indemnizou os herdeiros da vítima, a título de danos não patrimoniais, patrimoniais e respectivos juros de mora, no montante global de € 321.242,16 e pagou à congénere AXA o montante de global de € 63.990,30.

7 - Essas indemnizações foram pagas em Junho de 2006.

8 - A presente acção foi instaurada em 2 de Agosto de 2010 e o Réu foi nela citado em 05/08/2010.

4. Cumpre apreciar a única questão a que respeita esta revista, consistente em saber se o prazo de prescrição do direito de regresso que a autora veio exercer é de 3 anos contados a partir do pagamento da indemnização, Junho de 2006 (nº 2 do artigo 498º do Código Civil), ou se é superior, por virtude da aplicação do alongamento previsto no nº 3 do mesmo artigo 498º do Código Civil, em termos de tornar improcedente a excepção de prescrição.

Só concluindo pela aplicação do citado nº 3 é que releva saber qual o prazo a ter concretamente em conta, através da averiguação da duração do prazo de prescrição do procedimento criminal do crime que se possa ter como preenchido pelo facto ilícito que fundamenta a responsabilidade civil, suportada pela autora por força do contrato de seguro celebrado com o réu. Sempre se recorda, todavia, que, quer as instâncias, quer a recorrente tomam como referência o crime de homicídio por negligência e, consequentemente, o prazo de prescrição de 5 anos (artigo 118º, nº 1, c) do Código Penal).

5. Para o efeito, cumpre ter em conta o seguinte:

– O acidente de viação ocorreu em 7 de Março de 2001;

– A autora procedeu ao pagamento das indemnizações judicialmente determinadas em Junho de 2006;

– Não releva, no caso, a circunstância de terem sido pagas em datas diferentes a indemnização aos herdeiros da vítima do acidente e à Companhia de Seguros Axa, já que os pagamentos ocorreram, em ambos os casos, nesse mês de Junho de 2006 (diferentemente da situação analisada no acórdão deste Supremo Tribunal de 7 de Abril de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 329/06.4TBAGN.C1.S1);

– A acção foi instaurada em 2 de Agosto de 2010 e o réu foi citado em 5 de Agosto; é esta a data que releva para interromper a prescrição (nº 1 do artigo 323º do Código Civil);

– À data do acidente e do pagamento da indemnização (e, consequentemente, da eventual constituição do direito de regresso), encontrava-se em vigor o Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, diploma que apenas foi revogado pela al. a) do nº 1 do artigo 94º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto. É pois aplicável ao caso a al. c) do artigo 19º do Decreto-Lei nº 522/85;

– Resultando expressamente da citada al. c) do artigo 19º do Decreto-Lei nº 522/85 a atribuição à seguradora de um direito de regresso, e determinando o nº 2 do artigo 498º do Código Civil também expressamente que o prazo de prescrição do direito de regresso entre os responsáveis, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, se conta a partir do cumprimento do dever de indemnizar, não vem ao caso discutir, nem se ocorre antes uma sub-rogação por parte da seguradora, nem se o prazo se deve iniciar em momento diverso.

6. Tal como se decidiu neste Supremo Tribunal, por exemplo nos acórdãos de 4 de Novembro de 2008 (www.dgsi.pt, proc. nº 08A3119), de 27 de Outubro de 2009 (www.dgsi.pt, proc. nº 844/07.2.TBOER.L1.S1) ou de 16 de Novembro de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº 2119/07.8TBLLE.E1.S1), citados pelas instâncias, e nos que neles se referem, bem como se aceitou no citado acórdão de 7 de Abril de 2011, e pese embora a existência de decisões em sentido contrário, como a recorrente aponta, entende-se que o alongamento do prazo de prescrição, constante do nº 3 do artigo 498º do Código Civil, não vale para o exercício do direito de regresso.

Como se sabe, diferentemente do que sucede com a caducidade, o decurso de um prazo de prescrição não extingue o direito a que corresponde; antes confere ao sujeito passivo o poder de se opor ao respectivo exercício, invocando a prescrição (nº 1 do artigo 304º do Código Civil). É justamente por isso que não pode “ser repetida a prestação realizada espontaneamente em cumprimento de uma obrigação prescrita”, mesmo que o devedor tenha cumprido ignorando a prescrição (nº 2), em sintonia com o regime definido para o cumprimento das obrigações naturais (artigo 403º do Código Civil).

O regime da extinção de direitos por prescrição sanciona, por esta via, a inércia do titular do direito, contra a qual se protege aquele sujeito passivo.

7. Ora um dos pontos em que o regime da responsabilidade extracontratual mais se afasta do regime da responsabilidade contratual respeita precisamente ao prazo regra de prescrição: 20 anos para a responsabilidade contratual (artigo 309º do Código Civil), 3 anos para a responsabilidade extra-contratual (nº 1 do artigo 498º) – neste caso, naturalmente, “sem prejuízo da prescrição ordinária” (parte final).

Reconhece-se assim que, no âmbito da responsabilidade contratual, está em causa a violação de um dever que impende especificamente sobre o devedor, sendo-lhe manifestamente mais fácil defender-se contra eventuais alegações de violação do direito correspondente, por confronto com as situações de responsabilidade extra-contratual.

Pode suceder que o facto ilícito gerador de responsabilidade civil extra-contratual constitua crime, e que a lei criminal defina prazos de prescrição diferentes do prazo de 3 anos fixado no nº 1 do artigo 498º; agora releva apenas a hipótese de esse prazo ser mais longo.

Nessa eventualidade, e porque, como escreveu Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Coimbra, 2000, pág. 628),“desde que se admite a possibilidade de o facto, para efeito de responsabilidade penal, ser apreciado em juízo para além dos três anos transcorridos sobre a data da sua verificação, nada justifica que análoga possibilidade se não ofereça à apreciação da responsabilidade civil”, vale para o exercício do direito à indemnização o prazo mais longo, determinado pela lei penal (acórdão deste Supermo Tribunal de 25 de Março de 2009, www.dgsi.pt, 08B2415).

Recorde-se, aliás, que, conforme se observou no citado acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de Novembro de 2010, “não se pode esquecer a existência do princípio da adesão da dedução da indemnização civil no processo criminal e se o prazo de prescrição criminal ainda não decorreu, se não compreenderia que se extinguisse o direito à indemnização civil – conexa com o crime – e ainda estivesse a decorrer o prazo para a prescrição penal operar, onde o legislador entendeu dever ser deduzido o pedido de indemnização civil – dentro de certas limitações constantes das normas penais”.

            É pois clara a razão de ser do alongamento do prazo, operado pelo nº 3 do artigo 498º do Código Civil, para a prescrição do direito de indemnização.

            8. Ora, tal razão de ser não colhe quanto ao exercício do direito de regresso:

            – Não vale aqui, manifestamente, o argumento de que, enquanto o facto ilícito pode ser discutido em sede penal, deve poder ser apreciado no âmbito da responsabilidade civil. Como se escreveu na sentença, “nenhuma razão existe para lhe aplicar [ao direito de regresso] um alargamento do prazo que pressupõe que a medida dessa responsabilidade possa ser ainda discutida em sede penal por mais tempo”;

            – Se é incontestável que a sentença de condenação da autora no pagamento da indemnização não faz caso julgado contra o réu, que dela não foi parte, é igualmente incontestável que está amplamente facilitado à seguradora a propositura da acção de regresso, no que respeita nomeadamente à investigação e recolha de prova que a sustentem;

            – Diferentemente do que sucede no âmbito da sub-rogação, na qual, segundo o disposto no nº 1 do artigo 593º do Código Civil, “o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam”, acompanhados das “garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa” do credor (nº 1 do artigo 582º, aplicável por força do disposto no artigo 594º), o que significa que o direito do credor se transmite para o sub-rogado, conservando a extensão, os poderes, as garantias e outros “acessórios” (que, naturalmente, sejam susceptíveis de mudar de titular), o direito de regresso constitui-se ex novo, “sendo este direito de regresso independente da fonte da(…) obrigação extinta”  pela seguradora (acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 16 de Novembro de 2010, já citado);

            – Não é argumento a inserção sistemática do nº 3 do artigo 498º do Código Civil, cuja letra revela pretender aplicar-se à hipótese prevista no nº 1. Mas ainda que se entenda retirar da localização do preceito um significado substancial, no que respeita à intenção do legislador, a verdade é que essa interpretação esbarra com a falta de fundamento material do alargamento do prazo. Além do mais, o prazo seria duplamente alongado, valendo a mesma ampliação para duas acções consecutivas.

            Conclui-se, portanto, no sentido da procedência da prescrição oposta pelo réu.

            9. Nestes termos, nega-se provimento à revista.

            Custas pela recorrente.

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)