Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5366/17.0T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PROPRIETÁRIO
RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL
ARRENDAMENTO RURAL
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
SUPRESSIO
BOA FÉ
NULIDADE DO CONTRATO
RENDA EM GÉNEROS
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. Actuam com abuso de direito, incluindo nas modalidades de venire contra factum proprium e de supressio, os autores que, com conhecimento das circunstâncias da ocupação dos prédios objecto de contrato de arrendamento rural (com início em 1967) à data da aquisição dos mesmos, em 2012, por escritura pública de compra e venda, vêm suscitar, em acção de reivindicação,  a nulidade desse contrato, por lhe faltar a forma escrita e pelo facto de a renda ser paga em géneros, sem que tenham havido entre a ré, arrendatária desde 1967 e os anteriores senhorios quaisquer focos de litigiosidade, designadamente, qualquer problema com a validade do contrato, que tanto a primeira como os segundos cumpriram pontualmente.

II. Em consequência, deve improceder a acção de revindicação dos prédios arrendados.

Decisão Texto Integral:

   Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:


*


AA e mulher BB intentaram acção declarativa sob a forma de processo comum contra CC, pedindo:

a) que se declare que são donos e legítimos proprietários dos prédios identificados nos artigos 1º a 4º da petição;

b) a condenação da Ré a:

i) reconhecer e a respeitar aquele direito de propriedade e a abster-se da prática de quaisquer atos lesivos dos mesmos;

ii) restituir-lhes os referidos prédios inteiramente livres e desocupados de pessoas e bens;

iii) pagar-lhes, a título de indemnização pelos prejuízos causados desde 8 de Agosto de 2012 e pelos benefícios que deixaram de obter em resultado da sua recusa em entregar-lhes os prédios, quantia a apurar em liquidação incidental à presente ação.

Alegaram, em síntese, que, por escritura pública celebrada em 8 de Agosto de 2012, DD declarou vender-lhes, pelo preço de € 90.000, o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...30º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...61-... e os prédios rústicos inscritos na matriz da referida freguesia sob os artigos ...32, ...31, ...47 e ...80, descritos, respetivamente sob os nºs 303, 425, 469 e 465, que registaram a seu favor, acrescentando que, por si e anteproprietários, há mais de 20 anos, colhem os frutos e suportam os encargos, à vista de toda a gente, sem oposição, ininterruptamente, convictos de serem seus proprietários.

Referem que, depois da compra, solicitaram à Ré que entregasse os prédios e, posteriormente, por carta registada com aviso de receção, remetida pelo seu Mandatário, o Autor comunicou que pretendia essa entrega até Setembro de 2015, o que a Ré não fez, comunicando, através do seu Mandatário, que embora os prédios pertençam aos AA., são objeto de contrato de arrendamento. No entanto, apesar de os pais do vendedor terem celebrado com o marido da Ré, falecido em ... de Outubro de 2011, acordo pelo qual cederam os prédios rústicos para que os explorassem e cultivassem, mediante o pagamento de uma quota da produção e, em complemento, a casa de habitação que faz parte do prédio urbano, pelo prazo de um ano, renovável, com início em 1 de Novembro de 1965, o mesmo acordo nunca foi reduzido a escrito, sendo nulo.

Acrescentam que desde a aquisição dos prédios pelos AA. estão impedidos de retirar rendimento, bem como de restaurar o prédio urbano, rentabilizá-lo e explorar a suas potencialidades.

A Ré contestou, contrapondo que, há mais de 40 anos, EE e mulher celebraram consigo e seu marido um contrato de arrendamento rural que tinha por objecto os prédios em causa, o qual assegurou o alojamento para o seu agregado familiar e o fabrico agrícola dos prédios rústicos para sustento seu e da família com pagamento da renda, de forma ininterrupta; foi reconhecida como arrendatária pelos sucessivos proprietários, estando convicta da existência de documento da sua redução a escrito e que, antes da venda aos Autores, o anterior proprietário comunicou-lhe o projeto de alienação.

Invocou exceção dilatória inominada, alegando que os Autores invocaram a nulidade do contrato de arrendamento por inobservância de forma escrita, sem pedir que seja declarado judicialmente nulo, sendo tal impeditivo do pedido de reivindicação e não juntaram cópia do contrato com a petição inicial, nem alegaram que a falta é a si imputável, defendendo a extinção da instância.

Acrescentou que os Autores agem em abuso de direito por pretenderem fazer-se valer do vício de forma, não obstante o longo prazo decorrido e o cumprimento das suas obrigações para com os sucessivos senhorios e referiu ainda, quanto à indemnização, que sempre lhes ofereceu a renda, que corresponde ao rendimento do prédio.

Realizada tentativa de conciliação, apesar de suspensão da instância com vista ao desenvolvimento de diligências tendentes à exploração de soluções, frustrou-se a celebração de transação.

Foi dada oportunidade aos Autores de exerceram o contraditório, o que fizeram argumentando que o Tribunal pode conhecer expressamente a nulidade do contrato e que esse pedido está implícito naqueles que formularam, não havendo fundamento para intentar acção ou formular expressamente esse pedido; defenderam que os prédios foram objecto de um contrato de parceria agrícola, omitindo a Ré o tipo ou natureza da renda e que, falecido o seu marido, jamais a mesma manifestou aos proprietários a vontade de exercer o direito de transmissão. Finalizaram alegando que não foram eles quem celebrou o contrato, nunca receberam qualquer renda nem foram interpelados para a redução a escrito do contrato ou a sua conversão em contrato de arrendamento rural.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção dilatória inominada e se pronunciou pela validade e regularidade dos pressupostos processuais.

Identificado o litígio, foram enunciados os temas da prova, sem reclamação.

Procedeu-se a julgamento e a final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Em face do exposto, o Tribunal, julgando a ação parcialmente provada e procedente:

a) declara que os Autores AA e mulher BB são proprietários dos prédios identificados no ponto 1) da fundamentação de facto;

b) condena a Ré CC a:

i) reconhecer o direito de propriedade dos Autores AA e mulher BB relativamente aos prédios identificados supra em a);

ii) abster-se da prática de quaisquer atos lesivos daquele direito;

iii) restituir aos Autores os referidos prédios inteiramente livres e desocupados de pessoas e bens

c) absolve a Ré CC do pedido de indemnização formulado pelos Autores AA e mulher BB.

Custas a cargo dos Autores e da Ré na proporção de 4/10 e 6/10, respetivamente.”

A R. não se conformou e interpôs recurso de apelação, pedindo que fosse alterada a decisão da matéria de facto e revogada a douta sentença em crise, na parte impugnada, com a consequente absolvição da Ré dos pedidos formulados nas alíneas b) e c) do requerimento inicial. Com êxito, uma vez que a Relação julgou procedente a apelação, declarou que os Autores AA e mulher BB são proprietários dos prédios identificados no ponto 1) da fundamentação da sentença e absolveram a R. dos demais pedidos contra si formulados.

Desta vez não se conformaram os autores que do acórdão da Relação interpuseram recurso de revista, recurso que remataram com as seguintes conclusões:

“1º O formalismo negocial tem como finalidade satisfazer o interesse público.

E dai que a sua inobservância seja sancionada com a invalidade mais severa, ou seja, com a nulidade, que é de conhecimento oficioso, a todo tempo, imprescritível , incaducável e insanável.

2ª Por isso é que o nosso maior civilista, MANUEL DE ANDRADE, reconhecendo embora que tal severo regime podia ser gerador de graves injustiças, escreveu “que ao estatuir sobre a necessidade do formalismo e sobre a severidade do regime a impor –lhe, a lei atendeu mais à transcendência qualitativa dos interesses sobre que versa o negócio do que ao quantitativo dos mesmos” (Teoria Geral da Relação Jurídica, II, pág. 145).

3ª E tal como a MANUEL DE ANDRADE se lhe afigurava a ininvocabilidade do abuso do direito para evitar essas possíveis injustiças, também hoje OLIVEIRA ASCENÇÃO e outros autores e alguma jurisprudência se afirmam peremptoriamente contra a salvação do negócio por vício de forma através do abuso do direito (Direito Civil, Teoria Geral II, págs. 56 e 57; acórdão do STJ de 17.1.2002).

4ª A verdade, porém, é que alguma jurisprudência paulatinamente foi admitindo a invocação do abuso do direito para salvar o negócio nulo por vício de forma para arredar a grave injustiça que a declaração da nulidade acarretava à parte contra a qual era feita valer, as mais das vezes, todavia, sem um modelo decisório capaz de assegurar alguma certeza e segurança jurídica.

5ª. E foi impulsionada por essa jurisprudência e com base nela que encontramos hoje na doutrina vários modelos de decisão substantivamente análogos quanto á paralisação da nulidade formal mediante a figura do abuso do direito.

6ª Em todos esses elaborados modelos encontramos sempre duas ideias fundamentais:

- a não destruição do negócio formalmente nulo não pode ser aplicada para evitar apenas “efeitos duros, mas insuportáveis”;

- e ao abuso do direito apenas é licito recorrer subsidiariamente, quando no direito não se encontre outra forma de evitar esses efeitos insuportáveis ou quando o próprio legislador ao estabelecer o regime jurídico do negócio não pôs à mercê das partes o poder de formalizar o negócio nulo.

7ª É´ fácil constatar que o acórdão nem sequer cumpre esses dois postulados fundamentais.

Por um lado, não se provou nos autos que a ré em consequência da declaração da nulidade sofra quaisquer danos, que, aliás, nem alegou; e se algum dano sofresse tal dano sofrê-lo-ia do mesmo modo se os senhorios denunciassem o contrato nos termos previstos na lei.

E, por outro lado, qualquer das partes tinha o direito de notificar a outra para formalizar o contrato sob pena de a parte que o recusasse ficar impedida de invocar a nulidade formal e a invalidade do conteúdo substituindo a renda em géneros pela renda conforme com a lei e nenhuma das partes, dizem os factos provados, notificou a outra para tal fim.

8ª O facto de a última lei (D.L. 294/2009, de 13.10) não prever expressamente essa possibilidade que a lei anterior (D.L. 385/88, de 25.10) previa não pode ser visto como sinal de que tal direito houvesse sido retirado pois tal representaria frustração do objectivo da lei que era exactamente o contrário.

9ª O contrato de arrendamento rural é justamente o contrato em que, dados os interesses que justificam a exigência de forma, mais evidente se mostra o poder de qualquer das partes poder, primeiro, exigir da outra a cooperação indispensável para formalizar o negócio e, depois, caso essa parte se recuse injustificadamente a praticar o que for necessário para essa formalização, invocar a inalegabilidade.

10ª O acórdão recorrido também não ajuizou com justeza sobre os requisitos do VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM.

11ª É uma constante quer na doutrina quer na jurisprudência exigir-se antes de mais que o titular do direito o venha exercer contraditando um seu reiterado comportamento anterior de modo que se possa dizer que o exercício do seu direito constitui uma negação do seu comportamento anterior, em termos eticamente censurável à luz do princípio geral da boa fé.

12ª Ora, os autos mostram à evidência que os autores ao invocarem a nulidade não agiram em contradição com qualquer comportamento activo ou omissivo anterior; pelo contrário, pois desde início se recusaram a receber a renda estipulada, o que denota como o próprio acórdão reconhece que eles deviam conhecer o vício do contrato no momento da aquisição dos prédios arrendados.

13ª O acórdão recorrido não deixa de reconhecer o que se acaba de dizer, mas contorna o obstáculo sustentando que os autores sucederam no contrato aos anteriores proprietários e consequentemente tomaram como seu o anterior comportamento deles.

14ª Trata-se, no entendimento dos recorrentes de uma doutrina de todo eticamente e juridicamente insustentável, pois é manifesto que ninguém pode ser censurado pela forma como os anteriores proprietários viveram o contrato, tanto mais quando não se encontra provado que os anteriores proprietários conheciam o vício do contrato e apesar disso agiram como se fosse válido.

15ª O acórdão recorrido com tal doutrina transformou o comportamento dos anteriores proprietários, num comportamento censurável, quando, repete-se, não há nos autos nada que indicie terem tido conhecimento do vício e, para mais, num novo tipo de ónus real, que tal como uma servidão acompanha o arrendado, o que tem de convir-se é uma doutrina de todo insuportável.

16ª Outra constante, entre os requisitos do VENIRE é que o comportamento do titular do direito seja de molde a criar fundamentadamente na outra parte uma convicção objetiva (situação de confiança) de que o direito, de que a parte tinha conhecimento, jamais seria exercido por essa parte.

17ª Ora, não há nada nos autos que permita a afirmação de que a ré tivesse razões para ver no cumprimento do contrato por parte dos antecessores dos autores, porventura tal como ela desconhecedora do vício do contrato, uma renúncia ao direito de arguir a nulidade do contrato, assim como o facto de nunca terem denunciado o contrato lhe podia fazer crer que jamais o denunciariam e teria à sua frente um contrato perpétuo.

18ª E também é uma constante na doutrina e na jurisprudência que para poder verificar-se o VENIRE… é necessário que a situação de confiança, justificadamente criada na outra parte, o que, repete-se, os factos não confirmam, não seja apenas um mero estado de confiança interior, psicológico, que manifestamente não pode merecer a tutela do Direito.

É necessário que seja um estado de confiança objetivo, em que a parte tivesse investido, tivesse criado obra, tivesse tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgissem insuportáveis danos se a sua legítima confiança viesse a ser frustrada com a declaração de nulidade.( cf., entre muitos outros, BAPTISTA MACHADO, Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium,( v. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º ,nº 3726, págs. 265 e segs), MANEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo IV, pág, 294, CARNEIRO da FRADA, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil e PAULO MOTA PINTO, Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório).

19ª Ora, observando os factos provados não se vê neles qualquer sinal de que a ré tivesse feito o mais pequeno investimento, cuja destruição a declaração de nulidade lhe possa acarretar prejuízo eticamente excessivo.

De resto, se tivesse feito tal investimento, ainda restava averiguar se do mesmo não podia ser ressarcida de outro modo, através, por ex., do regime jurídico das benfeitorias.

Não ver isto é não ver a natureza subsidiária do abuso do direito, consensualmente julgado como o último recurso para evitar os intoleráveis prejuízos resultantes do exercício abusivo do direito.

20ª Aliás, nem sequer seria prudente que fizesse esse investimento, tendo em conta que os antigos proprietários tinham sempre o direito de denunciar o contrato nos termos legais.

21ª Em face do que se deixou alegado, o acórdão recorrido, ao julgar verificado um VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM, violou flagrantemente o disposto no artº. 334º do Código Civil, como o violou quando também deu como verificada a SUPRESSIO, pois algumas das precedentes conclusões também valem inteiramente contra ela.

22ª E por tal, apenas em jeito de conclusão, mais duas considerações, primeiro, para acentuar que o decurso, seja do tempo que for, sem o titular do direito (invocar a nulidade) não é só por si suscetível de gerar na outra parte a confiança que jamais o venha a exercer, confiança que no fim de contas todas as modalidades de abuso de direito se propõem tutelar.

23ª O contrário representaria a total subversão do regime imperativo da prescrição e da caducidade e exonerar o juiz, à revelia do direito, de conhecer oficiosamente e a todo o tempo a nulidade.

24ª Se os anteriores proprietários desconheciam a existência do vício, como razoavelmente também se pode inferir do seu comportamento, o facto de não terem exercido o seu direito de invocar a nulidade durante todo o tempo em que foram senhorios não pode ser julgado como renúncia a esse direito como não pode ser julgado renúncia ao seu direito de denúncia do contrato o facto de nunca terem exercido este direito, e, sobretudo, não pode significar a renúncia para os novos senhorios, como se um ónus real se tratasse.

25ª E depois para salientar que o abuso do direito pode, com o fim de evitar uma iniquidade para a parte, “legalizar” o passado, mas não pode “legalizar” para o futuro, por tempo indeterminado, uma mera situação de facto a que nem sequer se pode chamar contrato pois lhe falta um dos seus elementos constituintes, que é, como, aliás, o tribunal reconhece, a renda, pois como tal não pode valer uma prestação proibida pela lei que o julgador não pode ignorar, e um dos seus elementos essenciais, que é a data do início do contrato, sem a qual se torna praticamente impossível aos autores o exercício do direito de denúncia, que a lei considera irrenunciável.

26ª O acórdão recorrido violou, pois, o disposto no artº 334º do Cód. Civil, por erro de interpretação e aplicação, ofendendo também disposições legais imperativas (as do artº 7º, 1, do D.L. 385/88 e do artº 11º, 1, do D.L. 294/2009) e ainda o disposto nos arts. 280º e 294º, do citado Cód. Civil.

Assim por todas as razões precedentemente expostas far-se-á justiça revogando o acórdão recorrido e confirmando a sentença do tribunal de 1ª instância.”

A ré/recorrida contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir:

Das instâncias, após impugnação indeferida, vem fixada a seguinte matéria de facto provada:

“1. Por escritura pública outorgada a 8 de Agosto de 2012, no Cartório Notarial ..., sito na Rua ..., ..., DD declarou vender aos Autores, que declararam aceitar, pelo preço global de € 90.000 que deles havia recebido os seguintes bens imóveis, situados na freguesia ..., concelho ...:

a) prédio urbano situado no lugar de ..., composto de casa para habitação de rés-do-chão, cortes, espigueiro, eira e envolvente descoberta, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...71 e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...30;

b) prédio rústico denominado Campo ..., situado no lugar da ..., composto de terreno de cultivo, descrito na mesma Conservatória sob o nº ...03, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...32;

c) prédio rústico denominado ..., situado no lugar de ..., composto de eucaliptal e mato, descrito na dita Conservatória sob o nº ...25, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...31;

d) prédio rústico denominado ..., situado no lugar de ..., composto de cultura e videiras de enforcado, descrito na referida Conservatória sob o nº ...69, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...47;

e) prédio rústico denominado Campo ... ou ..., situado no lugar de ..., composto de cultura e videiras de enforcado, descrito na mencionada Conservatória sob o nº ...65, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...80 [resposta aos artigos 1º, 2º, 5º da petição inicial]

2. Os prédios identificados em 1) encontram-se registados a favor dos Autores pela Ap. ...34 de 8 de Agosto de 2012 [resposta ao artigo 6º da petição inicial].

3. O prédio identificado em 1) a) tem a área total de 988 m2, sendo a área da casa para habitação de 164 m2, a das cortes de 100 m2, a do espigueiro de 41 m2 e a da eira e área envolvente descoberta de 683 m2 [resposta ao artigo 3º da petição inicial].

4. As áreas dos prédios rústicos identificados em 1) b), c), d) e e) são de 2.951,70 m2, 3.200 m2, 870 m2 e 3.000 m2 respetivamente [resposta ao artigo 6º da petição inicial].

5. Por si e anteproprietários, há mais de 20 anos, os Autores colhem os frutos dos prédios identificados em 1), suportam os respetivos encargos, designadamente impostos (IMI), o que acontece à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de modo pleno e exclusivo, ininterruptamente, na convicção de serem os seus proprietários [resposta aos artigos 8º a 12º da petição inicial].

6. Com data de 5 de Dezembro de 2012, o Mandatário dos Autores endereçou à Ré missiva em que pedia que passasse no seu escritório num dos dias da semana seguinte à tarde “a ver se se resolvem por consenso uns problemas que envolvem V. Excia e o Sr. AA, meu cliente, problemas esses relacionados com os prédios que adquiriu ao Sr. DD” [resposta ao artigo 16º da petição inicial].

7. Em 30 de Junho de 2015 o Mandatário dos Autores endereçou à Ré carta registada com aviso de receção, que a mesma recebeu no dia seguinte, aludindo à missiva referida em 6), à compra dos prédios identificados em 1), “dos quais V. Excia era arrendatária”, comunicando-lhe que o Autor “pretende que V. Excia lhe entregue os acima identificados prédios, livres e devolutos, até ao dia 30 de Setembro de 2015” [resposta aos artigos 17º da petição inicial, 29º da contestação].

8. Em resposta à carta identificada em 7), por email de 2 de Julho de 2015, o Mandatário da Ré transmitiu ao Mandatário dos Autores “pretende aquela m/ constituinte expressar a surpresa pela pretensão ali manifestada, uma vez que os prédios em causa são objeto de um contrato de arrendamento rural em vigor e que a m/constituinte, enquanto arrendatária, observará” [resposta ao artigo 18º da petição inicial].

9. A Ré não entregou os prédios identificados em 1) aos Autores [resposta ao artigo 19º da petição inicial].

10. Os prédios identificados em 1) integravam, com outros prédios rústicos, a denominada “Quinta ...” pertencente a EE e mulher FF, pais de DD [resposta ao artigo 24º da petição inicial].

11. Em data não apurada do ano de 1967, FF, mãe de DD, acordou verbalmente com GG e a Ré ceder-lhes, entre outros, os imóveis identificados em 1), para explorarem e cultivarem os prédios rústicos e habitar com o respetivo agregado familiar no prédio urbano, tendo como contrapartida, a entrega metade do vinho, do milho e do feijão ali produzidos e suportando uns e outros, na proporção de metade, as despesas com adubos e produtos fitofarmacêuticos destinados ao cuidado da vinha [resposta aos artigos 24º e 26º da petição inicial, 11º, 13º da contestação].

12. GG faleceu a ... de Outubro de 2011 no estado de casado com a Ré [resposta ao artigo 25º da petição inicial].

13. Em conjunto com o marido, entretanto falecido e os filhos, a Ré têm fabricado os prédios identificados em 1) de forma ininterrupta [resposta ao artigo 14º da contestação].

14. A Ré entregava as colheitas identificadas em 11) a DD e esposa, que os recebiam, até que estes prescindiram do feijão e do milho [resposta ao artigo 15º da contestação].

15. FF e DD não endereçaram à Ré e marido comunicação a exigir a redução a escrito do acordo identificado em 11) [resposta aos artigos 28º, 30º da petição inicial].

16. Tão pouco os Autores dirigiram à Ré solicitação nesse sentido após o momento identificado em 1) [resposta ao artigo 38º da contestação].

17. De igual forma, a Ré e o marido não solicitaram essa redução a escrito às pessoas identificadas em 15) e 16) [resposta aos artigos 28º, 30º, 54º da petição inicial, 31º do articulado de contraditório apresentado em 2 de Outubro de 2018].

18. A Ré ocupa os prédios identificados em 1) sem autorização e contra a vontade dos Autores desde 30 de Setembro de 2015 [resposta ao artigo 23º da petição inicial].

19. Em consequência da não entrega dos prédios, os Autores estão impedidos de restaurar o prédio urbano, já degradado e de o rentabilizar e explorar as suas potencialidades, o mesmo sucedendo com os prédios rústicos [resposta aos artigos 70º, 71º da petição inicial].

20. O Autor nasceu e viveu em prédio contíguo aos identificados em 1), residindo aí com a Ré, desde o casamento e quando em Portugal [resposta ao artigo 23º da contestação].

21. No momento referido em 1) os Autores tinham conhecimento das circunstâncias da ocupação dos prédios pela Ré [resposta aos artigos 23º, 27º, 28º da contestação].

22. FF, bem como DD, sempre aceitaram sem reserva o alojamento da Ré e seu agregado familiar no prédio identificado em 1) a) e os trabalhos agrícolas que estes desenvolviam nos prédios identificados em 1) b) a e) [resposta aos artigos 20º, 21º, 22º, 24º, 25º da contestação].

23. Por carta registada com aviso de receção datada de 16 de Fevereiro de 2012 DD comunicou à Ré ser seu propósito realizar a venda dos prédios identificados em 1) “de que é arrendatária”, indicou que o preço global era de € 90.000, sendo € 10.000 pagos de imediato como sinal e os restantes € 80.000 no ato de celebração da compra e venda a realizar até ao final do seguinte mês de Agosto, identificou o Autor como a pessoa com quem tinha a compra negociada, terminando com “caso V. Exa esteja interessada em exercer o direito de preferência nesta compra e venda deverá comunicar-me essa vontade no prazo legal” [resposta ao artigo 26º da contestação].

24. Em 2012 a Ré comunicou aos Autores que o milho e o vinho produzidos nos prédios, referentes à contrapartida aludida em 11), estavam à sua disposição [resposta ao artigo 31º do articulado de contraditório apresentado em 25 de Janeiro de 2018].

25. Os Autores não receberam o vinho e os cereais referidos em 24) [resposta ao artigo 31º do articulado de contraditório apresentado em 25 de Janeiro de 2018].

26. O prédio identificado em 1) a) encontra-se degradado pernoitando a Ré noutro a si pertencente situado na Travessa ..., ..., ..., ... [resposta ao artigo 15º do articulado de contraditório apresentado em 25 de Janeiro de 2018].”

Não resultaram provados os factos alegados:

“- no artigo 27º da petição inicial;

- nos artigos 16º (segmento a partir de “EE” até final”), 17º da contestação;

- artigos 6º a 8º, 10º, 13º do articulado de contraditório apresentado em 25 de Janeiro de 2018.”

Fez-se ainda constar da sentença recorrida que:

“A alegação contida nos artigos 7º, 13º, 19º a 22º, 29º, 31º a 53º, 55º a 69º, 72º a 77º da petição inicial, 12º, 19º, 30º a 37º, 39º a 51º, 53º a 55º da contestação, 1º a 18º, 21º, 22º, 24º a 29º, 32º a 39º do articulado de contraditório apresentado em 2 de Outubro de 2018 constitui matéria conclusiva ou de Direito.

As alegações contidas nos artigos 1º a 3º da contestação, 11º a 13º, 16º do articulado de contraditório apresentado em 25 de Janeiro de 2018, 19º, 20º, 23º do articulado de contraditório apresentado em 2 de Outubro de 2018, destinam-se ao cumprimento do ónus de impugnação especificada.

A alegação dos artigos 4º a 10º da contestação será objeto de apreciação infra na valoração da prova.

A restante matéria de facto alegada apenas foi julgada provada na exata medida do conteúdo da fundamentação de facto no seu conjunto.”

A Relação manteve inalterada a matéria de facto.

O Direito:

Nas instâncias não vem questionado que entre a FF, progenitora de DD, alienante dos prédios à Ré aos AA (em 8.8.2012) e a ré e o seu falecido marido foi celebrado um contrato de arrendamento rural em data não apurada de 1967 (11).

Também não está em discussão a nulidade do contrato, por inobservância de forma escrita e do pagamento de renda em dinheiro, por força do disposto nos arts. 3º, nº 4, 7º e 36º, nº 3 do DL nº 385/88 de 25.10.

Os autores recorrentes questionam apenas a aplicação do instituto do abuso de direito, que paralisa os efeitos da nulidade.

Na sentença recorrida entendeu-se que o abuso de direito não pode ser aplicado à nulidade por falta de pagamento da renda em dinheiro e que não se podia equacionar a aplicação do abuso de direito à nulidade por vício de forma, por tal vício não ter sido suscitado.

Já na Relação se entendeu que não apenas se justifica a aplicação do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium como também a aplicação do mesmo instituto na modalidade de supressio, uma vez que o contrato de arrendamento sem redução a escrito se manteve durante mais de 20 anos até à data da compra pelos autores, sem que os senhorios anteriores ( e os actuais) tivessem alegado a nulidade do contrato por falta de forma ou ( os senhorios anteriores) tivessem deixado de receber a renda em géneros, sendo que só em 30.6.2015 os AA exigiram a devolução do prédio.

É contra esta posição que os recorrentes se manifestam.

Começando pelo abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.

Na síntese do Ac. STJ de 21.11.2013, 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, em www.dgsi.pt são pressupostos do abuso do direito na modalidade do venire contra factum proprium, os seguintes:” [Em primeiro lugar] a existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança. Em segundo lugar exige-se que, quer a conduta anterior (factum proprium), quer a actual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente. Em terceiro lugar, que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa fé, vale por dizer, que tenha confiado na situação criada pelo acto anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contrária do agente. Em quarto lugar, que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma actividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa actividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente [4]. Por último, exige-se que o referido “investimento de confiança” seja causado por uma confiança subjectiva objectivamente fundada; terá que existir, por conseguinte, causalidade entre, por um lado, a situação objectiva de confiança e a confiança da contraparte, e, por outro, entre esta e a “disposição” ou “investimento” levado a cabo que deu origem ao dano. “

Complementa, ainda, o Ac. STJ de 28.2.2012, proc 349/06.8TBOAZ.P1.S1:”Pressuposto do abuso de direito, na invocada modalidade do venire contra factum proprium é, sempre, uma situação objectiva de confiança – uma conduta de alguém que possa ser entendida como posição vinculante em relação à situação futura - e o investimento na confiança pela contraparte e boa-fé desta. Assim, o enquadramento objectivo da situação de confiança, em termos de relevância, afere-se pelo necessário para convencer uma pessoa normal e razoável, colocada na posição do confiante –arts. 236º-1 e 237º C. Civ. -, enquanto, como elemento subjectivo, releva a real adesão do confiante ao facto gerador da confiança (vd. Ac. STJ, de 11/3/99, CJ VII-1º-154; BAPTISTA MACHADO, “Obra Dispersa”, I, 415 e ss.). Precisando melhor este último traço, dir-se-á que à existência das sucessivas condutas contraditórias, que o venire sempre exige, é ainda necessário que a primeira conduta tenha criado na outra parte uma situação de confiança, confiança essa que deve apresentar-se como justificada e que, com base nela, o confiante tenha tomado posições ou decisões de que lhe surgirão danos se a confiança legítima vier a frustrar-se, apesar de ter agido com “cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico”. No mesmo sentido, pode ver-se no Ac. STJ de 24.4.2012, proc. 497/07.8TBODM-A.E1.S1: “Os princípios que, à face do Direito civil português, permitem detectar a presença de um facto gerador de confiança podem ser induzidos das regras referentes às declarações de vontade, com relevância para a normalidade – art. 236º, nº 1 – e o equilíbrio – art. 237º. Significa isto que o quantum relevante de credibilidade para integrar uma previsão de confiança, por parte do factum proprium, é, assim, função do necessário para convencer uma pessoa normal, colocada na posição do confiante e razoável, tendo em conta o esforço realizado pelo mesmo confiante na obtenção do factor a que se entrega. Assim se obtém o enquadramento objectivo da situação de confiança. Requer-se, porém ainda um elemento subjectivo: o de que o confiante adira realmente ao facto gerador de confiança”.

Argumentam os recorrentes que, no caso, tendo o legislador oferecido a qualquer das partes a faculdade de notificar a outra para reduzir a escrito o contrato e estabelecer uma renda que não fosse exclusivamente em géneros e não tendo nenhuma delas recorrido a essa faculdade, ficaram sujeitas a que o tribunal declarasse oficiosamente a nulidade do contrato.

Não cremos, porém, que esse imperativo obstaculize o exercício do abuso de direito.

É certo que os anteriores senhorios não foram notificados pela arrendatária para reduzir o contrato a escrito, caso em que, se tivessem sido notificados e recusassem essa redução, não podiam invocar a nulidade (art. 3º, nº 4 do DL nº 385/88 de 25.10) Seria, aliás, um comportamento flagrantemente contraditório. Isso não significa, porém, que a nulidade, apesar de suscitada, não possa ser paralisada pelo instituto do abuso de direito (como a jurisprudência e a doutrina admitem, em casos ponderosos).

Observam os recorrentes que, de todo o modo, o comportamento contraditório (na modalidade de venire contra factum proprium) tem de ser concludente, assumido expressamente perante o outro, não havendo facto provado algum que demonstre esse comportamento assertivo e que não tenha sido afinal inocente de ambas as partes, pelo que não se poderá afirmar que a inacção do autor tenha criado qualquer expectativa da ré.

Não cremos que esta argumentação proceda.

Em primeiro lugar, para que a expectativa da confiante seja criada não é sempre necessário um comportamento activo, bastando um omissivo, que seja também concludente.

Nesse sentido, pode ler-se no Ac. STJ de 17.3.2016 , proc, 2234/11.3TBFAF.G1.S1; “Em situações excepcionais e bem delimitadas, pode decretar-se, ao abrigo do instituto do abuso de direito, a inalegabilidade pela parte de um vício formal do negócio jurídico, decorrente da preterição das normas imperativas que, à data da respectiva celebração, com base em razões de interesse público, regiam a forma do acto: porém , esta solução -conduzindo ao reconhecimento do vício da nulidade, mas à paralisação da sua normal e típica eficácia- carece de ser aplicada com particulares cautelas, não podendo generalizar-se ou banalizar-se, de modo a desconsiderar de modo sistemático o conteúdo da norma imperativa que regula a forma legalmente exigida para o acto.  Em consonância com esta orientação geral, pode admitir-se a paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma, com base num censurável venire contra factum proprium , quando é claramente imputável à parte que quer prevalecer-se da nulidade a culpa pelo desrespeito pelas regras legais que impunham a celebração do negócio por determinada forma qualificada ou quando a conduta das partes, sedimentada ao longo de período temporal alargado, se traduziu num escrupuloso cumprimento do contrato, sem quaisquer focos de litigiosidade relevante, assumindo aquelas inteiramente os direitos e obrigações dele emergentes – e criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, assumida prolongadamente ao longo do tempo, a fundada e legítima confiança na contraparte em que se não invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do acto.“

Também no mesmo sentido pode ver-se o sumário do Ac. STJ de 7.3.2019, proc. 499/14.8T8EVR.E1.S1 “ (…) II. A paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma, com base num censurável venire contra factum proprium, só de admitir em casos excecionais ou de limite, a ponderar casuisticamente, atentas as razões de interesse público de certeza e segurança do comércio jurídico que estão subjacentes às disposições legais respeitantes à forma. III. Em consonância com esta orientação geral, a jurisprudência tem admitido a paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma, designadamente, quando é claramente imputável à parte que quer prevalecer-se da nulidade a culpa pelo desrespeito das regras legais que impunham a celebração do negócio por determinada forma qualificada ou quando a conduta das partes, sedimentada ao longo de período temporal alargado, se traduziu num escrupuloso cumprimento do contrato, sem quaisquer pontos ou focos de litigiosidade relevante, assumindo aquelas inteiramente os direitos e obrigações dele emergentes e criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, assumida prolongadamente ao longo do tempo, a fundada e legítima confiança na contraparte em que se não invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do ato.”

Na doutrina, também no sentido de que o comportamento do venire contra factum proprium pode consistir numa omissão, pode ver-se Pedro Pais de Vasconcelos, em Teoria Geral do Direito Civil, 9ª edição, a págs 279-284:

“No exercício do direito o seu titular deve respeitar a fé ( fides servare), deve evitar a frustrar a confiança que tenha suscitado em outem. Se por qualquer razão o titular do direito tiver agido ativa ou passivamente de modo a criar em outrem uma confiança legítima relativa ao exercício do direito não poderá frustrar essa confiança que tenha criado ou contribuído para criar. A frustração de expectativas criadas corresponde ao tipo doutrinário de má fé tradicionalmente designado como venire contra factum próprium. (… ) O venire contra factum próprio abrange também no seu âmbito os comportamentos omissivos. Os casos designados como suppressio e surrectio constituem comportamentos contraditórios. Há contradição inadmissível em boa fé entre uma omissão prolongada do exercício do direito em circunstâncias tais que sucitam a expectativa de que ele não virá a ser exercido. Uma vez consolidada a confiança e a expectativa- a fé- e desde que essa consolidação da confiança seja imputável ao titular do direito, a brusca inflexão de atitude é contrária à boa fé. Também  o caso tipificado como de “inalegabilidade formal” deve ser reconduzido a um comportamento contraditório: aquele que dá lugar ou permite que se mantenha um vício conducente à invalidade formal de um acto ou negócio jurídico age contraditoriamente quando vem depois invocar a invalidade decorrente da deficiência formal que provocou ou permitiu. (…)    Como tipo de abuso o venire contra factum proprium encontra um fundamento duplo negocial e ético. Por um lado, a anterior conduta reiterada ou prolongada tem uma eficácia conformadora do direito subjetivo como correspondendo ao modo como o titular do direito o vinha reiteradamente e prolongadamente exercendo. Este efeito conformador (… ) justifica-se particularmente nas relações prolongadas e significa um consenso tácito sobre o conteúdo do direito e da relação que é lícito e eficaz sempre que o direito ou a relação em questão sejam regidos pela autonomia privada, sejam  disponíveis e no limite em que o saejam. (…). Por outro lado o exercício posterior do direito em contradição com a prática passada reiterada e com frustração das expectativas legitima e razoavelmente suscitadas na parte a quem o direito é o oposto ou contra quem é exercícido constitui uma conduta eticamente reprovável (….) Supressio e surrectio são tipos do venir contra factum próprio. Traduzem o comportamento contraditório do titular do direito que o vem exercer depois de uma prolongada abstenção.  A abstenção prolongada no exercício de um direito pode, em certas circunstâncias, suscitar uma expectativa legítima e razoável de que o seu titular o não irá  exercer ou  que haja renunciado ao prórpio direito, ao exercício de algum dos poderes que o integram ou a certo modo do seu exercício (…) Este binómio supressio/surrectio integra-se no tipo do venire contra factum próprium, do qual só se distingue por o comportamento prolongado inicial do titular do direito se traduzir unuma abstenção e não numa acção, o que não parece ser suficiientem para insitituir um novo abuso do direito”

Assim, revertendo ao caso sub judice, verifica-se que houve um comportamento omissivo dos senhorios susceptível de fundar uma situação objetiva de confiança na ré ; par além recebimento das rendas o facto gerador de confiança incluiu também  a omissão da invocação por parte dos senhorios de qualquer vício do contrato, o que era de molde a suscitar num declaratário normal colocado na posição da real declaratária a convicção de que os senhorios não terminariam o contrato (por razões relacionadas com a invalidade por vícios do mesmo) Ainda que indirectamente, revelava à ré a intenção de o agente (senhorios) se considerarem vinculados no futuro a não pôr em causa a validade do contrato de arrendamento. E que a ré confiante aderiu a essa conduta de que o contrato era válido e vinculante para as partes demonstra-o o facto de a mesma ter cultivado os prédios ininterruptamente e de ter pago as respectivas rendas.

Argumentam ainda os recorrentes que como os arrendatários (um deles já falecido) desconheciam o vício da nulidade do contrato não poderiam convencer-se de que a nulidade não seria invocada.

Porém, não era exigível que os senhorios dissessem expressamente que não iam invocar o vício da nulidade do contrato (bastava um comportamento conforme com o facto de cumprirem o contrato e de nunca terem invocarem vícios formais durante um período prolongado) nem era exigível que os arrendatários o ouvissem expressamente dos senhorios (bastando um comportamento conforme com a validade do contrato, como era o cultivo do prédio e o pagamento das rendas). A confiança era, portanto, justificada e era com base nela, que a ré cultivava os prédios e pagava as rendas. Isto é, havia um investimento na confiança justificado e era com base nessa confiança que a confiante tomava posições ou decisões de que lhe poderiam surgi danos se a confiança legítima se viesse a frustrar.  Havia um investimento de confiança”, traduzido no facto de a confiante ter desenvolvido uma actividade (o cultivo) com base no factum proprium, ou seja, no pressuposto (para o qual os senhorios contribuíram, parcialmente, com o seu comportamento activo, com o recebimento das rendas e omissivo, ao darem continuação ao contrato por muitos anos, sem invocar qualquer irregularidade formal) de que o contrato era válido e vinculante para ambas as partes. Os referidos comportamentos, omissivo e activo, não podem deixar de ter contribuído para a confiança subjectiva da ré objectivamente fundada de que o eventual direito de suscitar a invalidade do contrato jamais seria exercido. 

Não colhe, assim, o argumento dos recorrentes de que não está provado que a ré tenha investido nessa confiança, através de factos concretos. Essa confiança manifestou-se no cultivo dos prédios de forma ininterrupta, desde 1967 e no pagamento da respectiva renda. Revelou-se através de factos exteriores e objectivos.

Argumentam os recorrentes que não se provou nos autos que a ré em consequência da declaração da nulidade tenha sofrido quaisquer danos, que, aliás, nem alegou; e se algum dano sofresse tal dano sofrê-lo-ia do mesmo modo se os senhorios denunciassem o contrato nos termos previstos na lei.

Em primeiro lugar, não se pode afirmar qie a ré não tenha sofrido danos com a quebra da confiança por parte dos autores (e que, por isso, a destruição da confiança não lhe causou quaisquer danos). A ré retirava rendimentos do cultivo ininterrupto e pagava renda por isso. É absurdo pensar-se que não retirava proveito da exploração.

Em segundo lugar, não é comparável a situação de uma acção de revindicação e de restituição imediata do prédio com a situação da denúncia, que não é feita de imediato.

O acórdão recorrido considerou, ainda, que os autores, ao sucederem na posição jurídica de locadores, assumiram o comportamento anterior dos anteriores proprietários.

Para os recorrentes, trata-se de uma doutrina de todo eticamente e juridicamente insustentável, pois é manifesto que ninguém pode ser censurado pela forma de como os anteriores proprietários viveram o contrato, tanto mais quando não se encontra provado que os anteriores proprietários conheciam o vício do contrato e apesar disso agiram como se fosse válido.

Porém, sufraga-se a posição do acórdão recorrido, que foi, aliás, acolhida no acórdão de 19.11.2015, proc. 884/12.0TVLSB.L1.S1:

“ Na verdade, ao adquirir a propriedade do imóvel (em 2011) e ao suceder na posição jurídica do primitivo senhorio, não pode a A. considerar-se totalmente desvinculada das consequências da (não actuação) do primitivo e anterior senhorio e das fundadas expectativas que tal inércia ou tolerância prolongada pode ter consolidado justificadamente nas pessoas de arrendatário e cessionário do locado, relativamente à licitude do modelo de exploração empresarial seguida (como galeria comercial) e das consequências de tal modelo na fisionomia essencial dos negócios celebrados, ao longo dos anos com os lojistas (desde logo, a possibilidade de cedência das lojas, há muito delimitadas naquele espaço físico global, no âmbito e ao abrigo daquele modelo de exploração, sem os requisitos e constrangimentos próprios do típico regime do arrendamento). E, nesta perspectiva, não pode deixar de se considerar que a circunstância de o novo proprietário e senhorio, ao adquirir o imóvel e em nome do interesse patrimonial na sua imediata comercialização, livre de quaisquer ónus, vir invocar o efeito de comportamentos, alegadamente ilícitos, por violadores da disciplina do contrato, verificados quando figurava como locador o seu antecessor e por ele inteiramente tolerados, nunca a eles reagindo ao longo dos anos, apesar de bem conhecer tais condutas passadas do arrendatário, traduziria uma inadmissível lesão da confiança, tornando ilegítimo o exercício do direito à resolução do contrato com tal fundamento.”

Acresce, ainda, que o abuso de direito resulta também da circunstância de que os autores tinham conhecimento das circunstâncias da ocupação dos prédios pela ré (cfr. facto 21), sendo que ficou, ainda, provado que o autor nasceu e viveu em prédio contíguo, residindo aí com a ré, desde o casamento e quando em Portugal (facto 20).

Portanto, se os autores tinham conhecimento das circunstâncias em que se processava a ocupação, não podem deixar de ter agido com abuso de direito, em contrário das expectativas fundadas criadas pelos anteriores senhorios, excedendo manifestamente os limites da boa fé.

Objectam, ainda, os recorrentes que os autos mostram à evidência que, ao invocarem a nulidade, não agiram em contradição com qualquer comportamento activo ou omissivo anterior; pelo contrário, pois desde início se recusaram a receber a renda estipulada, o que denota, como o próprio acórdão reconhece, que deviam conhecer o vício do contrato no momento da aquisição dos prédios arrendados.

É verdade que os autores se recusaram a receber a renda estipulada. Porém, isso não significa necessariamente que a ré tenha ficado a conhecer o vício da nulidade do contrato logo à data da aquisição nem invalida todo o tempo em que a autora acreditou na validade do contrato.

Considerou, ainda, a Relação ( como acima se disse) que se verificava ainda o abuso do direito na modalidade de supressio, uma vez que o contrato de arrendamento (celebrado em 1967)  sem redução a escrito se manteve durante mais de 20 anos (desde a entrada em vigor do DL nº 385/88) até à data da compra pelos autores (2012), sem que os senhorios tivessem alegado a sua nulidade por falta de forma ou tivessem deixado de receber a renda em géneros e que só em 30.6.2015 os AA exigiram a devolução do prédio.

Integrámos no abuso do direito na modadlidade de venire contra factum proprium o comprtamento omissivo dos senhorios (em relação à invocação da nulidade do contrato) que se prolongou durante mais de 20 anos ( a partir do DL nº 385/88)

Todavia, ainda que se admita que a supressio constitui, de acordo com Menezes Cordeiro, um novo abuso de tipo de direito, com autonomia dogmática, ainda assim não bastará  o mero não exercício prolongado do direito. São necessários, além desse, os seguintes requisitos: uma situação de confiança, uma justificação para essa confiança, um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não exercente. Acrescenta que o quantum do não exercício ser á determinado pelas circunstâncias do caso: o necessário para convencer um homem normal (Menezes Cordeiro, Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, 2ª edição, pág. 100; v. também Baptista Machado, que considera, no entanto, a supressio como uma modalidade especial da proibição do venire contra factum proprium, para cuja verificação não basta também o exercício prolongado do direito RLJ Ano 117/118, págs.169 e segs).

No mesmo sentido, na jurisprudência, pode ver-se o Ac. STJ de 4.11.2021, proc. 17431/19.5T8LSB.L1.S1 relatado pelo aqui 1º Adjunto: “(…) IV - O abuso de direito, na modalidade “supressio”, exige não só o decurso de um período de tempo razoável sem exercício do direito, mas também a verificação de indícios objetivos de que esse direito não irá ser exercido. Indícios objetivos esses que geram na contraparte (beneficiário do não exercício) a confiança na “inação do agente”; e o Ac. STJ de 20.4. 2021, proc. 7268/18.4T8LSB-A.L1.S1, em que se escreve o seguinte: “O não-exercício prolongado estará na base quer da situação de confiança, quer da justificação para ela. Ele deverá, para ser relevante, reunir elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não mais será exercida. O investimento de confiança traduzirá o facto de mercê da confiança criada, o beneficiário não dever ser desamparado, sob pena de sofrer danos dificilmente reparáveis ou compensáveis. Finalmente: tudo isso será imputável ao não-exercente, no sentido de ser social e eticamente explicável pela sua inacção. Não se exige culpa: apenas uma imputação razoavelmente objectiva”; pelo que se sintetiza assim no dito aresto: “O abuso de direito, na modalidade de supressio, tutela a confiança do beneficiário, perante a inacção do titular do direito, devendo, para ser relevante, verificar-se um não exercício prolongado, uma situação de confiança, uma justificação para essa confiança, um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não-exercente”.

Valem aqui para a supressio as considerações acima expendidas no âmbito da apreciação do abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium. Pelas razões aí enunciadas mostram-se preenchidos também os requisitos da supressio.

Rematando, e seguindo o Ac. STJ de 17.3.2016  e o Ac. STJ de 9.11.2015, acima referidos, podemos concluir que: é imputável à parte que quer prevalecer-se da nulidade a culpa ( ainda que parcial) pelo desrespeito pelas regras legais que impunham a celebração do negócio por determinada forma qualificada;  a conduta dos anteriores senhorios e a da arrendatária sedimentada ao longo de período temporal alargado traduziu-se no cumprimento do contrato, sem focos de litigiosidade relevante, assumindo aqueles inteiramente os direitos e obrigações emergentes – e criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, assumida prolongadamente ao longo do tempo, a fundada e legítima confiança na contraparte de que esta  não invocaria o vício formal da nulidade do contrato (aquele ou outro susceptível de fazer cessar o contrato); ao adquirirem a propriedade do imóvel e ao sucederem na posição jurídica dos senhorios anteriores, não podem os AA, com conhecimento das circunstâncias da ocupação dos prédios objecto do contrato de arrendamento rural, considerar-se desvinculados das consequências da (não actuação) dos anteriores senhorios e das fundadas expectativas que tal inércia ou tolerância prolongada consolidou na pessoa da arrendatária.

Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):

“1. Actuam com abuso de direito, incluindo nas modalidades de venire contra factum proprium e de supressio, os autores que, com conhecimento das circunstâncias da ocupação dos prédios objecto de contrato de arrendamento rural (com início em 1967) à data da aquisição dos mesmos, em 2012, por escritura pública de compra e venda, vêm suscitar, em acção de reivindicação,  a nulidade desse contrato, por lhe faltar a forma escrita e pelo facto de a renda ser paga em géneros, sem que tenham havido entre a ré, arrendatária desde 1967 e os anteriores senhorios quaisquer focos de litigiosidade, designadamente, qualquer problema com a validade do contrato, que tanto a primeira como os segundos cumpriram pontualmente.

2. Em consequência, deve improceder a acção de revindicação dos prédios arrendados.”

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


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Lisboa, 8 de Novembro de 2022


António Magalhães (Relator)

Jorge Dias

Jorge Arcanjo