Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5656/12.9YYPRT.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
RECURSO
REJEIÇÃO OFICIOSA DA EXECUÇÃO
FALTA DE TÍTULO
CHEQUE
QUIRÓGRAFO
JUROS DE MORA
Data do Acordão: 04/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO COMERCIAL - COMERCIANTES - CONTRATOS ESPECIAIS DO COMÉRCIO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ESPÉCIES DE ACÇÕES - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS - PROCESSO DE EXECUÇÃO / TÍTULOS EXECUTIVOS / APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO.
Doutrina:
- F. Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 9ª Ed., 2006, pp. 41/43.
- Lebre de Freitas, A Acção Executiva À Luz do Código Revisto, 2ª Ed., pp. 53/54.
- Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 1998, pp. 68/69.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 804º, 805º, Nº2, AL. A) E 806º, Nº1, 817.º, 818.º.
CÓDIGO COMERCIAL: - ARTIGOS 2.º, 13.º, N.º2, 102.º, §§ 3.º E 4.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 45.º, N.º1, 46.º, N.º1, AL. C), 668.º, N.º1, AL. B), 684.º-A, 716.º.
LEI N.º 41/2013, DE 26-06: - ARTIGO 6.º, N.º3.
LEI UNIFORME RELATIVA AO CHEQUE (LUC): - ARTIGOS 29.º, 40.º, 41.º, 52.º, N.º1.
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 10.º, N.º5, 615.º, N.º1, AL. B), 639.º, 666.º, N.º1, 703.º, N.º1, AL. C).
PORTARIA N.º 597/2005, DE 19-07.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 29.01.02 – COL/STJ – 1º/64 - PROC. Nº 03B1281, DE 30.10.03 – PROC. Nº 03P2600, DE 19.01.04 – PROC. Nº 03ª3881, DE 16.12.04 – COL/STJ – 3º/153, DE 31.05.05 – PROC. Nº 05B1412, DE 27.11.07, DE 04.12.07 – PROC. Nº 07ª3805, DE 21.10.10 PROC. Nº 172/08.6TBGRD-A.S1, E DE 15.10.13 – PROC. Nº 1138/11.4TBBCL-A.S1, TODOS ELES ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Em caso de rejeição liminar da execução, por falta de título executivo, não tem aplicação, na fase do respectivo recurso, o disposto no art. 684.º-A do CPC na pregressa redacção (actual art. 636.º).

II - A enumeração dos títulos executivos, constante do art. 703.º do vigente CPC, tem natureza taxativa e aplica-se apenas às execuções iniciadas a partir de 01-09-2013.

III - Tratando-se de cheque dotado de força executiva como mero quirógrafo da relação causal subjacente à respectiva emissão, são também abrangidos pela respectiva força executiva os juros de mora peticionados a partir da data em que aquele deveria ser pago.
Decisão Texto Integral:

Proc. nº 5656/12.9YYPRT.P1.S1[1]

                (Rel. 159)

                               Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1 – “AA, Sucursal em Portugal”, com sede em Vila Nova de Gaia, instaurou, em 17.09.12, nos Juízos de Execução do Porto (com distribuição ao 1º Juízo/1ª Secção), execução comum para pagamento de quantia certa contra “BB, S. A.”, para haver desta o pagamento da quantia de €178 819, acrescida de juros de mora vincendos sobre o capital de € 166 050,00, desde aquela data até integral pagamento.

       Fundamentando a respectiva pretensão, alegou:

                                                          /

--- A sociedade comercial “AAPortugal Lda” (integrada, em 30.08.11, por fusão, na, ora, exequente), no exercício da sua actividade comercial de importação e venda, entre outros produtos, de material e equipamento de imagem de diagnóstico, vendeu à executada um equipamento de aquisição de imagem radiológica denominado “Devo” (que aplicou nas suas instalações, em 17.11.10), assim como um complemento de arquivo de imagens pela via digital para o dito equipamento “Devo”, composto por um software PACS Synapse, um servidor, uma estação de trabalho com um monitor de apoio de 19” e dois monitores de alta resolução de 3MP (que também colocou nas instalações da executada, em 09.02.11);

--- A venda, efectuada em 15.12.10, foi acordada pelo preço global de € 135 000,00, acrescido do valor do IVA à taxa legal, na condição dos equipamentos e software serem pagos, em Janeiro de 2011, com a possibilidade da executada os pagar através da celebração de um contrato de locação financeira;

--- Porém, a executada não celebrou contrato de locação financeira e não pagou também o preço dos equipamentos, no mês de Janeiro de 2011, motivo por que a exequente, em 28.02.11, emitiu e entregou à executada as facturas respeitantes aos mesmos, com os nº/s … e …, no valor de € 83 025,00 (€ 67 500,00 + € 15 525,00) e de € 83 025,00 (€ 67 500,00 + € 15 025,00), respectivamente;

--- A exequente interpelou, então, a executada, por diversas vezes, para lhe pagar o valor das facturas referidas, tendo-lhe estabelecido o dia 30.09.11 como data limite para o pagamento das mesmas, e exigiu-lhe, ainda, que lhe passasse um cheque para essa data, para o caso de a mesma não efectuar o pagamento até lá, através da celebração do aludido contrato de locação financeira;

--- A executada entregou, então, à exequente, em 03.06.01, o cheque por si sacado sobre o BES, à ordem daquela, com o nº …, no valor das aludidas facturas, ou seja, no valor de € 166 050,00, datado para o dia 30.09.11, para o caso de não efectuar o pagamento das mesmas, até essa data, através da celebração de um contrato de locação financeira;

--- Contactada, por diversas vezes, a executada, esta foi sempre prometendo à exequente efectuar o pagamento do preço em falta, pedindo a esta para não apresentar a pagamento o mencionado cheque, o que a exequente fez, na expectativa de que iria receber o preço dos equipamentos;

--- Não obstante, e apesar das inúmeras promessas de pagamento, a exequente continua sem nada receber, até à presente data, do preço dos equipamentos, no valor de € 166 050,00, não apresentando também a pagamento o sobredito cheque, tendo, assim, sido ultrapassado o prazo previsto no art. 29º da L.U.C. (Lei Uniforme Relativa ao Cheque) para a sua utilização como título cambiário, e, mais tarde, o próprio prazo de validade do cheque.

       Junto aos autos, por iniciativa do tribunal, o original do sobredito cheque, por despacho de 18.12.12, foi, nos termos do disposto no art. 820º, com referência ao art. 812º-E, nº1, al. a), do CPC, rejeitada a execução, porquanto se considerou que aquele não constituía título executivo.

       Diferente entendimento teve a Relação do Porto, a qual, por acórdão de 04.07.13 e na procedência da apelação interposta pela exequente, revogou a decisão recorrida, tendo ordenado o prosseguimento da execução, já que o cheque dado à execução constitui título executivo.

       Daí a presente revista interposta pela executada, visando a revogação do acórdão recorrido, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes conclusões:

                                                       /

2:

1ª – O douto acórdão recorrido é nulo por não especificar os fundamentos de facto que fundamentam a decisão, nulidade que expressamente se invoca e deve ser julgada verificada - art° 668 n" 1 alínea b) do C. P. Civil ex vi seu art° 716 (nesta e nas demais conclusões sempre que aludirmos ao Código de Processo Civil - ressalvada menção expressa em contrário ou as citações adiante efectuadas - referimo-nos ao Código de Processo Civil que estava em vigôr à data em que foi proferido o acórdão recorrido e à data da sua notificação);

 2ª – O douto acórdão sob recurso não se pronunciou sobre a questão suscitada na conclusão 15ª das contra-alegações da executada na apelação (cujo teor é o seguinte" 15- Pelo que se a execução não tivesse sido rejeitada pelos fundamentos constantes da douta sentença, deveria sê-lo pelos expostos nas conclusões que antecedem, o que se requer ao abrigo do disposto no artigo 684-A do C.P.Civil.") pelo que incorreu na nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do art° 668º do C. P. Civil, ex vi seu art° 716º, a qual aqui expressamente se argui e deve ser julgada verificada;

 3ª – Para além de não ter discriminado os factos que dava como provados, o douto acórdão pressupôs como provados alguns factos, em violação do disposto nos arts. 490º e 659º do C. P. Civil, como sucede com os seguintes que refere na sua página 21 "Aliás, como decorre do alegado pela exequente, o decurso do prazo de apresentação do cheque a pagamento, bem como do seu próprio prazo de validade, ficou a dever-se à apelada, que foi criando a falsa ideia na apelante de que o contrato de locação financeira para pagamento dos equipamentos e software em questão seria por ela brevemente celebrado.

Por esse motivo, o cheque em causa não pode efectivamente ser accionado como título cambiário por falta de requisitos objectivos a essa exequibilidade - apresentação a pagamento no prazo de oito dias e certificação da recusa de pagamento;"

4ª – Toda essa factualidade (transcrita na conclusão anterior) foi exaustivamente impugnada no articulado inicial da oposição à execução - vide v.g seus art°s 63° e 64° - pelo que ao ter sido considerada provada no douto acórdão recorrido foram violados os arts. 490º e 659º do C. P. Civil, ex vi nº 3 do seu art° 722°;

5ª – O cheque dado à execução não foi apresentado a pagamento, pelo que não constitui título executivo - cfr. art°s 29° e 40° da LUC (lei Uniforme Relativa ao Cheque) - pelo que a presente execução só podia ter sido rejeitada, como bem decidiu a douta sentença da 1ª instância - vide Ac. RP de 01-03-2005, Relator Cândido Lemos, disponível em www.dgsi.pt em cujo sumário se pode ler "Um cheque prescrito ou não apresentado a pagamento no prazo de oito dias. não é título executivo, mesmo como documento particular";

6ª – O douto acórdão recorrido está em contradição com o citado douto acórdão da Relação do Porto de 01-03-2005, já transitado em julgado, também proferido sobre a mesma questão fundamental de direito: saber se um cheque não apresentado a pagamento em desobediência ao disposto no art. 29° da LUC é título executivo desde que na petição executiva se especifique a relação subjacente, sendo certo que, em tal acórdão de 01.03.05, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, se entendeu, tal como defendemos, que não constitui título executivo;

7ª – Quer o douto acórdão recorrido, quer o citado douto acórdão da Relação do Porto de 01.03.05, foram proferidos no domínio da vigência das mesmas disposições da LUC, maxime dos seus arts 29° e 40°, devendo considerar-se proferidos no domínio da mesma legislação dado que a alteração na redacção da alínea c) do artigo 46° do C. P. Civil, registada entre a data em que foi proferido o citado acórdão de 2005 e o acórdão recorrido, e que foi introduzida pelo DL 226/2008, de 20 de Novembro, não influi minimamente na apreciação da questão sub judice;

8ª – O douto acórdão recorrido ao decidir, que tal cheque constitui título executivo, como documento particular assinado pelo devedor que reconhece o débito nele incorporado, fez errada interpretação e violou o disposto no nº 1 do art° 45° e na alínea c) do nº 1 do art° 46° do Código de Processo Civil, bem como o disposto nos arts. 29° e 40° da LUC (Lei Uniforme Relativa ao Cheque), devendo ser revogado e substituído por decisão que rejeite a execução;

9ª – O entendimento de que o dito cheque constitui título executivo viola ainda o artigo 8° da Constituição da República Portuguesa, pois que o disposto nos arts 29° e 40° da LUC resultante da Convenção de Genebra de 1930 à qual Portugal continua vinculado – disposições que condicionam o direito de acção por falta de pagamento à apresentação a pagamento em tempo útil do cheque (ou seja no prazo de oito dias) e verificação da recusa de pagamento pelas formas indicadas nesse art° 40º – prevalece sobre o direito português infra-constitucional, não podendo ser por este derrogado ( vide Ac. STJ de 04.05.99, Relator Garcia Marques, em cujo sumário se pode ler "II – A ampliação do elenco dos títulos executivos por força da alteração introduzida à alínea c) do artigo 46 do C.P.C. pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, não tem, nem pode ter, a virtualidade de colidir com a aplicação da legislação específica sobre cheques constantes da respectiva Lei Uniforme.");

10ª – O entendimento do douto acórdão recorrido no sentido da exequibilidade do cheque, não obstante não ter sido apresentado a pagamento, é indefensável, porque permite que o portador do cheque que o queira dar à execução, não o apresente a pagamento deliberadamente, até com intuito de prejudicar o sacador! – o que é inadmissível por perverter a função do cheque e permitir o arbítrio e sancionar a má fé;

11ª – Tal como defendido no douto acórdão referido na conclusão 5ª entendemos que «...o cheque em si mesmo não constitui "constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias".» - no mesmo sentido Acórdãos RC. de 6-2-1011, Relator Garcia Calejo, e de 29-01-2002, Relator Araújo Ferreira, ambos em www.dgsi.pt (vide ainda no mesmo site Ac. RE Relatora Maria Laura Leonardo, de 22-04-2004);

12ª – O cheque dado à execução não constitui título executivo, não preenchendo os requisitos constantes das diversas alíneas do nº 1 do artigo 46° do C. P. Civil, acrescendo que dele consta que só era "VÁLIDO ATE 2012-02-02", pelo que após tal data não tem qualquer validade, nem sequer como mero documento;

13ª – Lendo-se o requerimento executivo percebe-se que a infundada invocação do cheque como título executivo "como mero quirógrafo", é um pretexto para uma verdadeira acção declarativa, com uma bem extensa exposição de factos que fundamentam o pedido, o que não pode ser admitido, até por violar o disposto na alínea e) do nº 1 do art° 810º do C. P. Civil;

14ª – E nem sequer se pode afirmar que o cheque dos autos representa uma ordem de pagamento ao banco para que pagasse à exequente a quantia nele inscrita, pois como se desenvolve na petição inicial da oposição à execução, tal cheque nunca foi apresentado a pagamento, porque jamais se destinou a tal propósito;

15ª – Acresce que o cheque é invocado pela exequente como dação pro solvendo – art. 840º do CC;

16ª – Embora a executada, ora recorrente, não aceite - pelos motivos expostos na sua oposição à execução, e que aqui reitera - que o cheque tenha sido entregue com tal finalidade, tal invocação pela exequente do cheque como dação pro solvendo não pode ser dissociada da apresentação do cheque a pagamento, conditio sine qua non para aferir se a datio pro solvendo extinguiu ou não o crédito relativo aos equipamentos e software referidos nos nº/s 2 a 4 da exposição de factos do requerimento executivo;

17ª – Não tendo sido apresentado a pagamento pela exequente, tal cheque é inexequível;

SEM PREJUÍZO

18ª – Nunca tal cheque poderia valer como título executivo pois nem sequer está emitido à ordem da exequente, mas antes à ordem de AA PORTUGAL,LDA, e apesar do diversamente sustentado pela exequente os direitos de AA PORTUGAL,LDA derivados dos contratos de compra e venda em causa não se transmitiram para a exequente AA - Sucursal em Portugal, mas antes para a sociedade incorporante que é "AA", e não a exequente;

19ª – Acresce que a exequente, sucursal, não goza de personalidade jurídica, não constituindo sujeito autónomo de direitos e obrigações;

20ª – Pelo que mesmo que se entenda que no caso sub judice pode demandar por virtude do disposto no n° 2 do art° 7° do C. P. Civil- o que não se concede, porque a acção não deriva de factos praticados pela sucursal ou pela administração principal, mas antes por AA PORTUGAL,LDA, entretanto extinta - é descabida e infundada a pretensão da exequente de que os direitos de AA PORTUGAL,LDA, sobre a executada se transmitiram para ela, sucursal, pelo que a execução sempre deveria e deve ser rejeitada não só pelos fundamentos constantes da douta sentença da 1ª instância, mas também pelos expostos nas presentes conclusões;

SEM CONCEDER

21ª – A considerar -se que o cheque dado à execução constitui título executivo - o que não se concede - não há fundamento legal para peticionar juros, porque o mesmo nem sequer foi apresentado a pagamento, o que inviabiliza a invocação e aplicabilidade do ponto 2° do art° 45° da LUC, para além de que inexiste qualquer montante de juros determinável com base no cheque (vide art° 46° nº1, alínea c), do C. Proc, Civil onde se refere "...cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes,..."), e mesmo que assim não se entenda - o que também não se concede - os juros só seriam devidos desde a citação da executada, ora recorrente, e apenas à taxa legal de 4% ao ano - arts 559º nº1 e 805º nº1 do C. Civil, art. 4° do D.L 262/83 de 16/6 e Portaria nº 291/2003 de 8/4;

22ª – Pelo que na procedência das conclusões aqui formuladas o douto acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por decisão que rejeite a execução, assim se fazendo inteira JUSTIÇA!

       Nas suas doutas contra-alegações, pugna a recorrida pela manutenção do julgado.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                                           *

3 – A factualidade a ter em conta para a apreciação e decisão do recurso é a que foi alegada pela exequente, no respectivo requerimento executivo, e que, constando de 1 supra, aqui se tem por reproduzida, para os legais efeitos.

4 – Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (exceptuando questões de oficioso conhecimento não obviado por ocorrido trânsito em julgado e não tendo lugar – como, ora, sucede – a ampliação prevista no art. 636º) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso (arts. 608º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº4, 639º, nº1 e 679º, todos do vigente CPC[2]) –, constata-se que as questões por si suscitadas e que, no âmbito da revista, demandam apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso são as que, sequencialmente, passam a ser objecto de análise, sobressaindo entre as mesmas a de saber se o cheque dado à execução constitui título executivo, conforme foi entendido na Relação, com o aplauso da recorrida e em divergência com o sufragado na 1ª instância e perfilhado pela recorrente.

       Passando à apreciação e decisão de tais questões:

                                                         *

5I – Sustenta, em primeiro lugar, a recorrente que o acórdão recorrido não contém a especificação dos respectivos fundamentos de facto, assim enfermando da nulidade prevista no art. 615º, nº1, al. b), “ex vi” do preceituado no art. 666º, nº1 (arts. 668º, nº1, al. b), “ex vi” do preceituado no art. 716º, nº1, ambos do CPC na pregressa redacção).

       Sem ponta de razão, porém.

       Na realidade, aquele aresto, atenta a natureza jurídico-processual da questão decidenda, não tinha que ter em consideração qualquer factualidade provada e resultante de inverificada discussão da causa, mas tão só a que foi alegada pela exequente, no respectivo requerimento executivo, em ordem a poder ser conferida natureza e força de título executivo ao documento em que a mesma se estriba. Se tais factos virão, ou não, a ser dados como provados é questão que, ora, se não coloca, antes em eventual e ulterior fase propiciada pela dinâmica processual, com observância e garantia do contraditório e inerente salvaguarda do princípio da igualdade das partes, o que, pois, não permite ter, desde já, por excluída a correspondente versão fáctica por que, em sede de ulterior oposição à execução, a executada e, ora, recorrente possa vir a propugnar.

       No acórdão recorrido, exarou-se que “Consideram-se provados, com relevo para a decisão da causa, os factos acima enunciados (quer no relatório, quer na decisão recorrida)”, mais não tendo pertinência, na perspectiva considerada, pelo que não ocorre a arguida nulidade processual.

                                                    /

II – Sustenta, também, a recorrente que o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista na al. d) dos mesmos comandos legais – omissão de pronúncia – na medida em que, alheando-se do preceituado no art. 636º (art. 684º-A do CPC na pregressa redacção), não teve em consideração a argumentação por si carreada, na qualidade de, então, recorrida, nas respectivas contra-alegações.

       Mas, também aqui, a recorrente carece de razão, na medida em que o sobredito comando legal não pode ter-se por aplicável à solução da questão debatida naquele recurso, em que apenas estava em causa um despacho liminar de rejeição da execução por inexistência de título executivo, não podendo, pois, colher quer a invocação de qualquer fundamento de ainda inexistente e eventual defesa, quer a impugnação de ainda não proferida decisão sobre pontos determinados da matéria de facto (qual matéria de facto?!...No caso de vir a haver lugar à respectiva fixação, tal só ocorreria em ulterior fase processual e pressupondo tempestiva dedução de oposição à execução por parte da executada…)

       Improcedendo, assim e manifestamente, a arguida nulidade.

                                                        /

III – Atendendo ao que já ficou expendido em I antecedente, também não tem qualquer razão a recorrente quando se insurge contra a indevida consideração, como provada, da factualidade alegada pela exequente, no respectivo requerimento executivo: não se tratou de ter tal factualidade como, precocemente, provada, em flagrante violação do correspondente comando legal e dos estruturantes e basilares princípios do contraditório e da igualdade das partes, antes e tão só de constatar que tal factualidade foi alegada pela exequente, por forma a poder ser conferida força de título executivo ao documento por si dado à execução.

       Improcedendo, pois, o, correspondentemente, sustentado pela recorrente.

                                                     /

IVa) – Nos termos do disposto no art. 10º, nº5 (art. 45º, nº1, do CPC na pregressa redacção)“Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”.

      O título executivo é o documento do qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade de realização coactiva da correspondente pretensão através de uma acção executiva; esse título incorpora o direito de execução, ou seja, o direito do credor a executar o património do devedor ou de um terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação (Cfr. arts. 817º e 818º do CC).

       As partes não podem atribuir força executiva a um documento ao qual a lei não concede eficácia de título executivo (“nullus titulus sine lege”) e também não podem retirar essa força a um documento que a lei qualifica como título executivo; tal significa que os títulos executivos são, sem possibilidade de quaisquer excepções criadas “ex voluntate”, aqueles que são indicados como tal pela lei e que, por isso, a sua enumeração legal está submetida a uma regra de tipicidade.

                                                          /

b) – Na redacção anterior à reforma processual de 1995/96[3], a al. c), do nº1, do art. 46º previa expressamente que os cheques podiam servir de base à execução, ou seja, eram títulos executivos.

       Com a introdução de tal reforma, a referida al. c), por força da redacção introduzida pelo DL nº 38/2003, de 08.03, passou a considerar títulos executivos “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético…”, visando o legislador a “ampliação significativa do elenco dos títulos executivos”, intenção claramente proclamada no Preâmbulo do DL nº 329-A/95.

       Assim, não obstante o DL nº 226/2008, de 20.11, tenha aditado a expressão “de acordo com as cláusulas deles constantes”, a seguir à expressão “cálculo aritmético”, o que veio a ser retirado pelo DL nº 303/07, de 24.08, não há lugar a qualquer dúvida fundada de que os cheques, enquanto títulos de crédito, continuam a deter a força de títulos executivos, o que suscita unanimidade entre a jurisprudência e a doutrina mais qualificadas.

       De igual modo, não é controvertido que o cheque, para manter a sua aptidão de título executivo, deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias (art. 29º da LUC – Lei Uniforme Relativa ao Cheque), contado da data da sua emissão. E a recusa de pagamento deve ser documentada por acto de protesto ou declaração (art. 40º da LUC) efectuada no referido prazo de oito dias ou, caso a apresentação ocorra no último dia do prazo, no primeiro dia útil seguinte (art. 41º da LUC).

       Decorrendo, pois, do exposto e, ainda, do preceituado no art. 52º, I, da mesma LUC (“Toda a acção do portador contra o…sacador…prescreve decorridos que sejam seis meses, contados do termo do prazo de apresentação.”) que o cheque dado à execução não pode, enquanto tal, ou seja, na qualidade de título de crédito ou cambiário e ao abrigo do preceituado na LUC, ser havido como título executivo, uma vez que o mesmo não foi, sequer, apresentado a pagamento, mostrando-se, por outro lado, largamente excedido o sobredito prazo de seis meses, na data (17.09.12) da instauração da presente execução

       Poderá, não obstante, o mesmo ser considerado título executivo ao abrigo do preceituado no art. 46º, nº1, al. c), tendo em consideração o preceituado no art. 6º, nº3 da lei nº 41/2013, de 26.06 – que aprovou o vigente CPC –, nos termos do qual “O disposto no CPC, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos títulos executivos…ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória” – da acção executiva – “só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor” (01.09.13)?

       É o que se abordará, de seguida.

                                                    /

c) – Para o Prof. Lebre de Freitas[4], “Quando o título de crédito mencione a causa da relação jurídica subjacente, não se justifica nunca o estabelecimento de qualquer distinção entre o título prescrito e outro documento particular, enquanto ambos se reportem à relação jurídica subjacente (…) Quanto aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, tal como quanto a qualquer outro documento particular, nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emerja ou não dum negócio jurídico formal (…) No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não poderá constituir título executivo (arts. 221º-1 CC e 223º-1 CC). No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da dívida (art. 458º-1 CC) levam a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução” (como causa de pedir da acção executiva) “e poder ser impugnada pelo executado” (nos termos do art. 816º)“; mas, se o exequente não a invocar, ainda que a título subsidiário, no requerimento inicial, não será possível fazê-lo na pendência do processo, após a verificação da prescrição da obrigação cartular e sem o acordo do executado (art. 272º), por tal implicar alteração da causa de pedir”.

       Por seu turno, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa[5] acentua a necessidade de distinguir entre as obrigações abstractas e as causais, no que respeita aos fundamentos da obrigação exequenda e à suficiência do título executivo, sustentando, quanto às primeiras, a desnecessidade de alegação da causa de aquisição da prestação – e, por isso, respeitando o título a uma obrigação abstracta, ele é, por si, suficiente para fundamentar a execução – o que já não sucede quando a obrigação exequenda for causal, pois, neste caso, ela exige a alegação da respectiva “causa debendi”, o que significa que, se esta não constar ou não resultar do título executivo, este deverá ser completado com essa alegação.

       Ou seja, um título executivo respeitante a uma obrigação causal exige, sempre, a indicação do respectivo facto constitutivo, porquanto sem este a obrigação não fica individualizada, sendo, por isso, inepto o requerimento inicial da execução, por falta de indicação da causa de pedir.

       Não destoando desta posição, quer o Cons. F. Amâncio Ferreira, no seu “Curso de Processo de Execução”, 9ª Ed., 2006, pags. 41/43, quer a jurisprudência deste Supremo, a qual vem sustentando, ao que cremos, “una voce”, que, embora extinta, por prescrição, a obrigação cambiária incorporada no cheque, este pode continuar a valer como título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, no quadro das relações credor originário/devedor originário e para execução da respectiva obrigação subjacente, causal ou fundamental, desde que, nesse caso, o exequente haja alegado, no requerimento executivo, essa obrigação (a relação causal) e que esta não constitua um negócio jurídico formal. Podendo mencionar-se, a título meramente exemplificativo, os Acs. de 29.01.02 – COL/STJ – 1º/64, de que foi relator o Ex. mo Cons. Azevedo Ramos, de 22.05.03 – Proc. nº 03B1281, de que foi relator o Ex. mo Cons. Ferreira Girão, de 30.10.03 – Proc. nº 03P2600, de que foi relator o Ex. mo Cons. Pires da Rosa, 19.01.04 – Proc. nº 03ª3881, de que foi relator o Ex. mo Cons. Nuno Cameira, de 16.12.04 – COL/STJ – 3º/153, de que foi relator o saudoso Cons. Neves Ribeiro, de 31.05.05 – Proc. nº 05B1412, de que foi relator o Ex. mo Cons. Moitinho de Almeida, de 27.11.07, de que foi relator o Ex. mo Cons. Santos Bernardino, de 04.12.07 – Proc. nº07ª3805, de que foi relator o Ex. mo Cons. Mário Cruz, de 21.10.10  Proc. nº 172/08.6TBGRD-A.S1, de que foi relator o Ex. mo Cons. Lopes do Rego, e de 15.10.13 – Proc. nº 1138/11.4TBBCL-A.S1, de que foi relator o Ex. mo Cons. João Camilo, todos eles acessíveis em www.dgsi.pt.

                                                   /

d) – Transpondo quanto ficou expendido para o caso dos autos, irrecusável é a conclusão de que o questionado cheque goza de força executiva, improcedendo, manifestamente, quanto, “ex adversu”, vem objectado pela recorrente, na porfiada e errónea insistência na concepção da força executiva do cheque apenas quando e se contemplado na redutora natureza de título cambiário ou de crédito.

       Porém, já vimos que, ao lado dessa sua possível caracterização, o mesmo pode, também, assumir a natureza e força de título executivo como mero quirógrafo da obrigação causal ou fundamental que lhe está subjacente, desde que verificado, como, no caso e superabundantemente, sucede, o condicionalismo que se deixou mencionado (Cfr., também, o preceituado no art. 703º, nº1, al. c) do “novo” CPC, o qual, conquanto, aqui, inaplicável, confere, ainda, mais apoio legal ao que ficou expendido).

       E contra tal não se objecte – como ensaia a recorrente – com o excessivo detalhe ou pormenorização factual com que a exequente emoldurou o respectivo requerimento executivo, uma vez que nos confrontamos com uma situação em que “quod abundat non nocet”, mostrando-se, clara e exaustivamente, alegados, no requerimento executivo, todos os factos constitutivos da invocada relação subjacente, fundamental ou causal da obrigação exequenda.

       E, por outro lado, nem se compreende que seja alcunhado de oportunista o caminho trilhado pela exequente, ao abdicar da invocação do cheque na vertente de título cambiário: para além de tal constituir, certamente, para ela o caminho mais fácil e directo, não é por tal razão que a exequente se pode considerar desprovida de título executivo na vertente que ficou considerada. Precisamente o contrário: porque não pôde fazer aquela mais fácil e directa invocação é que a exequente teve de lançar mão do meio mais complexo e subsidiário por que optou…

                                                         /

e) – A recorrente também não tem razão quando pretende que os juros de mora peticionados não sejam abrangidos pelo invocado e reconhecido título executivo: tratando-se, nos termos alegados pela exequente – cuja personalidade judiciária não pode ser posta em causa, nos termos por si evidenciados –, de obrigação com prazo certo (deveria ter sido cumprida até 30.09.11), a constituição em correspondente mora da recorrente não dependia de interpelação, antes ocorrendo a partir desta data, não tendo, até então, sido cumprida, como não terá sido, tal obrigação (Cfr. arts. 804º, 805º, nº2, al. a) e 806º, nº1, todos do CC). Isto bastando, aditado da consideração de que a dívida em causa tem natureza comercial (Cfr. arts. 2º, 13º, nº2 e 102º, §§ 3º e 4º, todos do Cod. Com. e Port. nº 597/2005, de 19.07), para aferir a correspondente idoneidade, como título executivo, do cheque dado à execução, independentemente do que, a tal propósito, possa vir a ser dado como provado, em caso de dedução de oposição à execução que torne tal factualidade controvertida.

       Improcedendo, assim, as conclusões formuladas pela recorrente.

 

                                                      *

6Sumário (art. 663º, nº7):

                                                       /

 I – Em caso de rejeição liminar da execução, por falta de título executivo, não tem aplicação, na fase do respectivo recurso, o disposto no art. 684º-A do CPC na pregressa redacção (actual art. 636º).

II – A enumeração dos títulos executivos, constante do art. 703º do vigente CPC, tem natureza taxativa e aplica-se apenas às execuções iniciadas a partir de 01.09.13;

III – Tratando-se de cheque dotado de força executiva como mero quirógrafo da relação causal subjacente à respectiva emissão, são também abrangidos pela respectiva força executiva os juros de mora peticionados a partir da data em que aquele deveria ser pago.

                                                    *

7 – Na decorrência do exposto, acorda-se em negar a revista.

                                                    /

     Custas pela recorrente.

                                                   /

                                      Lx    29  /  04   /    2014 /   

Fernandes do Vale (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

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[1]  Relator: Fernandes do Vale (47/13)
   Ex. mos Adjuntos
   Cons. Ana Paula Boularot
   Cons. Pinto de Almeida
[2]  Como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados.
[3] DD. LL. nº/s 329-A/95, de 12.12 e 180/96, de 25.09.
[4] In “A Acção Executiva À Luz do Código Revisto”, 2ª Ed., pags. 53/54
[5] In “Acção Executiva Singular”, 1998, pags. 68/69.