Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
218/11.0TCGMR.G1.S1-A
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
DECISÃO LIMINAR DO OBJECTO DO RECURSO
DESPACHO DO RELATOR
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 02/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - RECURSOS / UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA / FUNDAMENTO DO RECURSO / APRECIAÇÃO LIMINAR DO RECURSO / RECLAMAÇÃO DA DECISÃO DO RELATOR PARA A CONFERÊNCIA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 203.º, 217.º, 615.º, N.º1, AL. D), 652.º, N.ºS1 E 2, 688º, N.ºS 1 E 2, 692. º.
D.L. N.º 291/07, DE 21 DE AGOSTO: - ARTIGO 4.º, N.º1.
LEI ORGÂNICA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, LEI N.º 28/82, DE 15 DE NOVEMBRO: - ARTIGO 79.º-D, N.ºS 2 E 5.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.º684/03, DE 12 DE DEZEMBRO DE 2012, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 14 DE JUNHO DE 2006, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 24 DE FEVEREIRO DE 2015, PROFERIDO NO PROC. N.º 579/13.7TBBGC.P1.S1; DE 12 DE MARÇO DE 2015; DE 21 DE MARÇO DE 2015; DE 2 DE JUNHO DE 2015, IN SASTJ, SITE DO STJ.
-DE 23 DE ABRIL DE 2015, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 12 DE JANEIRO DE 2016, PROFERIDO NO PROC. N.º 7697/10.1TBMAI.P1.S1-A.
Sumário :

I A determinação da formação judiciária que aprecia o recurso resulta da distribuição do processo a um Relator, mediante o sorteio regulado nos artigos 203º e 652º, nº1 do CPCivil e os Adjuntos são determinados por estarem a seguir ao Relator na ordem de precedência, nº2 do último apontado normativo, incumbindo àquele o deferimento de todos os termos até final.

II O recurso para uniformização de jurisprudência comporta dois momentos distintos a saber: o primeiro, consubstanciado na sua interposição tout court, que obedece ao preceituado nos artigos 688º a 692º, nºs 1 e 2; o segundo que pressupõe a admissão do recurso interposto, pelo Relator primitivo do processo ou pelo colectivo primitivo caso haja reclamação para a conferência e esta assim o determine, e que implica o envio do processo à distribuição, artigo 692º, nºs 3, 4 e 5, sendo certo que esta nova distribuição constitui uma inovação do Código de Processo Civil de 2013.

III Se o Relator rejeitar liminarmente o recurso, cabe reclamação para a conferência, sendo que a composição desta resulta do disposto no supra apontado artigo 652º, nº 2, do CPCivil.

IV Constituem requisitos para a admissão do recurso para uniformização de jurisprudência: i) que exista um Acórdão do STJ transitado em julgado, proferido nos autos onde se suscita a uniformização; ii) contradição entre o Acórdão proferido e outro que o mesmo Tribunal haja produzido anteriormente; iii) que essa contradição tenha ocorrido no domínio da mesma legislação e que respeite à mesma questão essencial de direito.

V O requerimento de interposição de recurso deverá ser instruído, além do mais, com cópia do Acórdão fundamento, estabelecendo a Lei, a rejeição liminar do mesmo, caso o Recorrente não cumpra aquele ónus, artigo 692º, nº1, igualmente do CPCivil, entendendo-se que deverá ser previamente convidado a suprir a falta.

VI Se se não verificar a oposição de julgados, por os arestos em confronto não serem contraditórios um com o outro, relativamente às correspondentes identidades, torna-se inútil aquele convite à parte para juntar cópia certificada do Acórdão fundamento.

(APB)

Decisão Texto Integral:

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I A e M, por si e em representação do filho menor de ambos J intentaram contra COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. e CASA DO POVO DE X (chamada a intervir na réplica), acção declarativa com processo ordinário pedindo a condenação das Rés no pagamento das seguintes quantias acrescidas de juros após a citação:

- Ao menor, de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais no valor global de € 49745,03, acrescido da liquidação posterior pelo dano futuro.

- Aos Autores de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos no montante de € 11366,30.

A fundamentar estes pedidos alegam em síntese, que:

Cerca das 17h15 do dia 10 de Março de 2009 ocorreu um atropelamento dentro das instalações da Ré Casa do Povo, onde o filho dos Autores frequentava o jardim de infância, o qual ocorreu porque a porta da sala estava aberta e a educadora não foi capaz de evitar a saída da criança, consequência do que foi a mesma atropelada pela carrinha daquela Ré.

Em consequência do atropelamento o filho dos AA sofreu lesões que lhe causaram dores e a necessidade de ser sujeito a intervenções e tratamentos médicos;

Sofreu períodos de incapacidade e ficou com uma IPP de 20%, sendo que por via de tal vê o seu futuro comprometido em termos de opções profissionais;

O menor ficou com a roupa que envergava inutilizada;

Os Autores trabalham e a Autora teve de ficar em casa a cuidar do menor, o que lhe provocou perdas salariais, no montante de € 1399,30 e ambos perderam a alegria de viver e continuam a sofre com o sucedido.

A Ré Casa do Povo transferiu o risco inerente ao veículo interveniente no atropelamento para a R. seguradora através a apólice n.º …..

As Rés apresentaram a sua contestação, tendo a Ré Casa do Povo alegado que foi o comportamento da criança que deu causa ao atropelamento e que todos os cuidados exigidos foram tomados, quer pela educadora e vigilante, quer pelo motorista; por sua vez a Ré seguradora, aceitando ter assumido o risco pela circulação do veículo da Ré Casa do Povo e bem assim ter feito um seguro de responsabilidade escolar, nega que o atropelamento seja um acidente de viação sustentando que a culpa do sucedido é imputável à omissão do dever de vigilância da educadora

A final foi produzida sentença a condenar a R. Companhia de Seguros, S.A. a pagar aos Autores a quantia de € 49745,03 pelos danos sofridos por J; pelos danos sofridos por A e M, a quantia conjunta de € 11366,30, quantias essas acrescidas dos respectivos juros, às taxas legais em vigor, a contar desde a citação até efectivo e integral pagamento, tendo absolvido as Rés do demais peticionado.

Inconformada a Ré Companhia de Seguros, S.A., interpôs recurso de Apelação o qual veio a ser julgada parcialmente procedente, com a alteração da sentença recorrida e a condenação das Rés Companhia de Seguros, S.A e Casa do Povo de X a pagar aos Autores a quantia de € 49745,03 pelos danos sofridos por J; pelos danos sofridos por A e M, a quantia conjunta de € 11.366,30, quantias essas acrescidas dos respectivos juros, às taxas legais em vigor, a contar desde a citação até efectivo e integral pagamento sendo a Ré seguradora responsável até ao limite do respectivo capital seguro e absolvendo os Réus do demais peticionado.

Deste Aresto, inconformada, interpôs recurso de Revista a Ré Casa do Povo de X, tendo sido negada a mesma e mantida a decisão plasmada no Aresto impugnado.

Notificada da decisão assim proferida veio a a Ré Casa do Povo de X, ao abrigo do preceituado no artigo 688º, nºs 1, 2 e 3 do NCPCivil, interpor dois recursos para uniformização de jurisprudência, por serem duas as questões que conflituariam com decisões precedentes deste Supremo Tribunal e que disciplinaram as respectivas matérias em termos diversos, invocando para o efeito a existência de jurisprudência em sentido contrário à seguida naquele sobredito Aresto, maxime a produzida nos Ac STJ de 13 de de Março de 2008 e11 de Fevereiro de 2003, cujas cópias juntou a fls 5 e 6 e de fls 23 a 33, cópias essas retiradas, respectivamente, da CJ STJ, Ano XVI, Tomo 1 e da base de dados da DGSI.

Foi produzida decisão singular pela Relatora, nos termos do normativo inserto no artigo 692º, nº1 do CPCivil, porquanto se entendeu que, além do mais, não havia a oposição jurisprudencial apontada.

Inconformada com tal decisão singular, vem aquela Ré/Recorrente, reclamar para a conferência, em dois vectores: por impedimento da subscritora da decisão reclamada, bem como por impedimento subsequente do colectivo que a mesma enforma e ainda por não concordar com a fundamentação expendida naquela mesma decisão, apresentando, brevitatis causa, o seguinte alegatório conclusivo:

DO IMPEDIMENTO DO RELATOR E SUAS CONSEQUÊNCIAS

- No dia 16 de Junho de 2015 foi produzido neste Supremo Tribunal um acórdão sobre o mesmo assunto que depois seria objecto de dois recursos para fixação de jurisprudência. acórdão esse que negou a revista para aí interposta, mantendo a decisão que a Relação produzira e que foi subscrito pelos senhores conselheiros Ana Paula Boularot, Pinto de Almeida e Júlio Manuel Vieira Gomes.

- Notificada desse acórdão, a Casa do Povo de X veio do mesmo interpor dois recursos para o pleno das secções cíveis. para fixação de jurisprudência, nos termos do artigo 688.º, n.º1, 2 e 3 do Código de Processo Civil.

- Com data de 9 de Dezembro transacto, veio a recorrente a ser notificada de uma decisão singular, julgando sumariamente o objecto dos referidos dois recursos, numa única peça, subscrita pela senhora conselheira Dra Ana Paula Boularot.

- É manifesto que os processos não podiam ser distribuídos nem julgados quer pela senhora conselheira Ana Paula Boularot, quer pelos senhores conselheiros Pinto de Almeida e Júlio (não João como por lapso manifesto a Recorrente escreveu) Manuel Vieira Gomes, por qualquer deles estar impedido de exercer as suas funções nas jurisdições em causa, quer porque já se tinham pronunciado sobre o objecto da causa, quer porque se trata de recurso interposto em processo no qual tinham tido intervenção como juízes de tribunal diferente daquele que era chamado a intervir, proferindo a decisão recorrida e assumindo clara posição de rejeição das razões invocadas pela recorrente.

- Daí que quer a senhora relatora quer os referidos senhores conselheiros estavam e estão impedidos de intervir no processo, o que deve ser reconhecido e declarado, com as legais consequências de se julgar nula a distribuição, se alguma distribuição houve, observando-se na nova distribuição o que prescreve o artigo 217.º do Código de Processo Civil, e de se julgar nulo o despacho sob censura, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.° do Código de Processo Civil.

DA RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA

- A ser declarada nula a distribuição que terá tido lugar, a ser ordenada uma nova distribuição, e a ser declarada nula a decisão singular, a reclamação para a conferência deixa de fazer qualquer sentido, pelo que a agora deduzida deve ser entendida corno deduzida por mera cautela e em cumprimento do ónus imposto pelo n.º 2 do artigo 692.º do Código de Processo Civil.

- A conferência deve decidir da verificação dos pressupostos do recurso, incluindo a contradição invocada como seu fundamento. pelo que muito resumidamente se procurará expor o que uma análise mais detalhada das alegações apresentadas em todo o caso não dispensará.

- São os seguintes os vícios que, salvo o devido respeito, parece poderem ser assacados à decisão singular referida:

1. Tendo   sido interpostos sobre questões completamente diferentes dois recursos para fixação de jurisprudência, é tudo menos curial, que se decida em conjunto, numa única peça, as duas questões em causa, pois a sua diferente natureza parece implicar que devam ser separadamente decididas.

- É a nosso ver manifesta a contradição das decisões postas em crise com os acórdãos indicados, para o que procuraremos sinteticamente e através de excertos das conclusões de ambos os recursos justificar essa contradição.

A Recorrida não apresentou qualquer resposta.

II São duas as questões levantadas na presente reclamação: i) saber que há impedimento da Relatora e do Colectivo para aferir da bondade liminar da interposição recursiva; ii) se se verificam os requisitos de admissibilidade de tal interposição.

1. Pronunciemo-nos prima facie, sobre o apontado «impedimento», da Relatora e do Colectivo que a mesma enforma.

Esgrimindo em abono da sua tese, a violação por este Supremo Tribunal de Justiça, representado pela aqui Relatora no despacho singular em reclamação, do normativo inserto no artigo 115º, nº1, alíneas c) e e) do CPCivil e eventual violação do mesmo, agora, pelo colectivo que subscreveu o Acórdão recorrido, porquanto nenhum Juiz pode exercer as suas funções em jurisdição contenciosa quando haja de decidir questão na qual se tenha pronunciado, ou quando se trate de recurso interposto em processo no qual tenha tido intervenção, proferindo a decisão recorrida, argui a Recorrente a nulidade da decisão de fls 70 a 84, nos termos do artigo 615º, nº1, alínea d) do CPCivil.

De harmonia com este citado segmento normativo a decisão é nula quando o juiz conheça de questões de que não pudesse tomar conhecimento, o que seria o caso nestes autos, porquanto a Relatora, em manifesta prevaricação do postulado no artigo 115º, nº1, alíneas c) e e) do mesmo compêndio processual, teria proferido decisão em processo onde estava impedida de o fazer.

Nada de mais falacioso.

Se não.

A determinação da formação judiciária que aprecia o recurso resulta da distribuição do processo a um Relator, mediante o sorteio regulado nos artigos 203º e 652º, nº1 do CPCivil e os Adjuntos são determinados por estarem a seguir ao Relator na ordem de precedência, nº2 do último apontado normativo, veja-se a propósito desta matéria da distribuição o Ac do Tribunal Constitucional nº684/03 de 12 de Dezembro de 2012 (Relator Paulo Mota Pinto), in www.tribunalconstitucional.pt; Ac STJ de 14 de Junho de 2006 (Relator Simas Santos), in www.dgsi.pt) .

Como deflui inequivocamente do disposto nos artigos 688º a 695º do CPCivil, o recurso para uniformização de jurisprudência comporta dois momentos distintos a saber: o primeiro, consubstanciado na sua interposição tout court, que obedece ao preceituado nos artigos 688º a 692º, nºs 1 e 2; o segundo que pressupõe a admissão do recurso interposto, pelo Relator primitivo do processo ou pelo colectivo primitivo caso haja reclamação para a conferência e esta assim o determine, e que implica o envio do processo à distribuição, artigo 692º, nºs 3, 4 e 5, sendo certo que esta nova distribuição constitui uma inovação do Código de Processo Civil de 2013, embora na vigência do Código anterior, o Relator se mantivesse, à semelhança do que sucede com os recursos de constitucionalidade interpostos para o Plenário do Tribunal Constitucional, em casos de contradição de jurisprudência, cfr os nº 2 e 5 do artigo 79º-D da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, Lei nº 28/82, de 15 de Novembro; Ac STJ de 23 de Abril de 2015 (Relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt.

O que se passa na especie é que nos encontramos no primeiro dos compassos, competindo à primitiva Relatora e/ou ao primitivo Colectivo que proferiu o Aresto agora objecto de impugnação, para uniformização de jurisprudência, pronunciar-se sobre a sua eventual admissibilidade, nos termos do normativo inserto no artigo 692º, nº1, do CPCivil, o que foi feito, podendo a parte reclamar para a conferência da decisão singular do Relator, de harmonia com o disposto no seu nº2, inexistindo qualquer impedimento daquela Relator e/ou do Colectivo que subscreveu o Acórdão em crise, sendo antes a Lei a impor que tal apreciação preliminar seja feita por aquele(s).

A problemática suscitada situa-se a montante e não a jusante: quer a Relatora, quer o Colectivo não estão a proferir nenhum juízo de valor sobre o fundo da questão, mas antes sobre a possibilidade de tal juízo poder vir a ser feito; quer a Relatora, quer o Colectivo, estão a aferir, previamente portanto, se se verificam os pressupostos prevenidos no nº1 do artigo 692º do CPCivil (apreciação liminar da admissibilidade da impugnação).

Na eventualidade de se verificarem os respectivos requisitos de admissibilidade, maxime, a apontada oposição de Acórdãos, os autos são remetidos à distribuição para apreciação do mérito, embora sem prejuízo de o Pleno poder rejeitar o recurso, artigo 692º, nºs 5 e 4 do CPCivil, cfr neste preciso sentido inter alia o Ac do Pleno deste STJ de 12 de Janeiro de 2016 (Relator Alves Velho), proferido no Proc 7697/10.1TBMAI.P1.S1-A.

E sempre seria, nesta precisa e específica situação, se a mesma ocorresse o que não veio a acontecer, como não virá adiante-se, que se teria de autuar, quiçá, dois recursos de uniformização, extraindo-se para o efeito, eventualmente, certidão do processo principal, pois uma correria por apenso ao processo e outra ao traslado do mesmo.

Não houve, assim, qualquer violação das regras legais respeitantes quer à distribuição, quer à competência para tramitação dos presentes autos, por parte da Relatora e/ou dos Adjuntos, tendo em atenção os ínsitos legais atrás citados, insertos nos artigos 203º e 652º, nº1 e 2 do CPCivil.

2. Da existência dos pressupostos da admissibilidade do recurso interposto para uniformização de jurisprudência.

Como decorre da remissão efectuada pela Recorrente, a mesma pretende que a Conferência se pronuncie sobre as conclusões anteriormente apresentadas aquando da sua motivação, quais foram, as seguintes:

No que concerne ao primeiro dos recursos, que classificou de Apenso A:

- O Acórdão recorrido firmou o entendimento, divergente do acórdão fundamento, segundo o qual o sinistro dos autos nunca podia ser configurado como um acidente de viação, para efeito de exclusão da responsabilidade civil da companhia de seguros que cobria os acidentes causados pelo veículo, pois como tal não pode considerar-se um acidente que, como o dos autos, “ocorreu em circuitos particulares, existentes em espaços abertos de habitações particulares e /ou públicas. por onde possam transitar veículos a elas afectos ou aquelas digam respeito, v.g., para aí efectuarem cargas e descargas pontuais e/ou recolher ou fazer desembarcar alunos, como no caso dos autos”

 - Na verdade, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, foi produzido por este Supremo Tribunal, aliás confirmando entendimento jurisprudencial generalizado um acórdão sustentando que, ainda que se entenda que o local onde se produziu o acidente é uma via de direito privado, nem por isso o acidente fica descoberto de protecção legal, aplicando-se nessas situações as normas que regem a responsabilidade civil extracontratual em geral e as que especialmente dispõem sobre tais acidentes, como é o caso dos arts. 503.º e ss. do C.C., por se dever concluir que é de qualificar o acidente dos autos como acidente de circulação automóvel, não obstante ter ocorrido em terreno privado (cfr. o acórdão do STJ de 13/03/2008, in Col. Jurisp. Ano XVI, Tomo I, pago 175).

- Já no domínio do anterior Código da Estrada fora produzido um acórdão, da Relação de Lisboa, de 26/03/1980, relatado por Maia Gonçalves (Jurisprudência das Relações, Ano V, Tomo II, pago 240), decidindo que o Código da Estrada se aplica em quaisquer vias normalmente afectas ao uso público, independentemente da dominialidade do respectivo terreno, como é o caso das vias de acesso circundantes ao Hospital de Santa Maria.

- A fundamentação do acórdão recorrido é inaceitável e surpreendente, revelando insuficiente conhecimento do processo, porque sustenta que as instâncias já haviam decidido que o sinistro não era um acidente de viação, o que não é verdade, pois o que havia sido decidido, e apenas em 1.ª instância, era precisamente o contrário, e, bem assim, porque nenhuma razão existe para excluir da cobertura do contrato de seguro um acidente de viação ainda que situado em lugar privado, desde que acessível a qualquer pessoa.

- De resto, também a doutrina (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral pag. 538) sustenta que “Quanto ao veiculo em circulação, tanto faz que ele circule na via pública, aberta ao transito em geral, como em qualquer recinto privado, apenas franqueado aos veiculas de certa empresa ou dos habitantes de certo imóvel. E pouco importa mesmo que o veículo circule fora de qualquer via, como o jeep que caminha sobre terrenos que outras viaturas não podem percorrer “.

- Considerando a manifesta contradição de decisões entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, que ambos os acórdãos foram produzidos por este Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação, e sobre a mesma questão fundamental de direito, a recorrente interpôs atempadamente o presente recurso, visando a produção de um acórdão que uniformize a jurisprudência, sustentando que a decisão do acórdão-fundamento é a correcta, e deve, por isso, constituir a decisão uniformizadora.

- Nos termos do art. 690.º, n.º1 do CPC, na alegação produzida foram identificados os elementos que determinam a contradição alegada, entre os dois acórdãos, bem como os elementos que explicam a violação imputada ao acórdão recorrido, devendo fixar-se a jurisprudência no sentido do acórdão-fundamento, ou seja, “Um parque de estacionamento, como qualquer recinto privado, apenas franqueado aos veículos de um certo grupo de utilizadores, acessível a qualquer pessoa, deve ser considerado como via de circulação terrestre, para o efeito de se considerar que qualquer acidente aí ocorrido com intervenção de um veiculo automóvel está a coberto de contrato de seguro celebrado entre o proprietário de veiculo e uma companhia seguradora”.

Conclusões respeitantes ao denominado Apenso B:

- O Acórdão recorrido firmou o entendimento, divergente do acórdão fundamento, segundo o qual ocorrendo um acidente de viação cuja responsabilidade foi assacada a um menor vitima de atropelamento, e à creche que sobre ele tinha, no momento, o dever de vigilância, toda a responsabilidade, no entanto, deve ser assacada à creche, porque o menor, sendo inimputável, face à rigidez da lei, deveria ser ilibado por completo de responsabilidade.

- Na verdade, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, foi produzido por este Supremo Tribunal, aliás confirmando entendimento jurisprudencial generalizado um acórdão (processo nº 03A029 de 11/2/2003, de que foi relator o conselheiro Ponce de Leão), sustentando que, mesmo que se pudesse concluir que foi violado o dever de vigilância, em concorrência com a culpa do menor nunca a violação daquele dever podia implicar a imputação de toda a responsabilidade pelo acidente a quem violou esse dever, antes devendo ser estabelecida uma proporção percentual de responsabilidade, com a consequência de ser limitada, ou até excluída, a indemnização pelos danos resultantes do acidente relativamente à contraparte do menor.

- Considerando a manifesta contradição de decisões entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, que ambos os acórdãos foram produzidos por este Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação, e sobre a mesma questão fundamental de direito, a recorrente interpôs atempadamente o presente recurso, visando a produção de um acórdão que uniformize a jurisprudência.

- No presente recurso, a recorrente sustenta que o acórdão fundamento, em colisão com o acórdão recorrido, traduz a melhor doutrina e a única que respeita o equilíbrio e a justiça, sustentando que a decisão do acórdão-fundamento é a única correcta, e deve, por isso, constituir a decisão uniformizadora.

- Na verdade é chocante, e desconforme com qualquer ideia de justiça, dizer-se, como se diz, no acórdão recorrido que, mesmo que se considerasse haver culpas de ambas as partes, apenas uma delas devia responder pela totalidade dos maus resultados do evento, e esse agravamento da sua responsabilidade não resultava de nenhuma atitude ou facto que lhe fosse imputável, mas sim, e apenas, da circunstância de o acidentado ser menor, o que, segundo esse acórdão, “o ilibaria por completo de responsabilidade”, doutrina que arbitrariamente transfere para a parte contrária a culpa de uma das partes.

- Por outro lado, congruentemente, o acórdão fundamento extrai as conclusões necessárias da “culpa” do menor, referindo, aliás, generalizadamente a jurisprudência, de modo acertado, que essa imputação de culpa não fere qualquer preceito constitucional, designadamente o direito das crianças à protecção da sociedade e do Estado, direito este que cabe à sociedade e ao Estado definir e preservar, não podendo ser ónus de qualquer cidadão ou da escola, visto que esta apenas é vinculada pelos limites que resultam do contrato celebrado com vista a educação da criança e das normas legais que em nada interferem com a definição de responsabilidade fundada exclusivamente nas regras decorrentes do contrato de ensino.

- Na verdade, está sempre em causa a aplicação do preceituado no artigo 570º do C.C., que o acórdão recorrido violou clamorosamente, impondo-se que, a entender-se (embora entendamos que não pode entender-se) que à educadora de infância, no quadro dos factos transcritos, é imputável alguma responsabilidade, em termos de violação, das regras da culpa in vigilando, “determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida, ou mesmo excluída” (cit. art.º 570º C.C.).

- Nos termos do art. 690.º, n.º1 do C.P.C., na alegação produzida foram identificados os elementos que determinam a contradição alegada, entre os dois acórdãos, bem como os elementos que explicam a violação imputada ao acórdão recorrido, devendo fixar-se a jurisprudência no sentido do acórdão-fundamento, ou seja “Ocorrendo um acidente de viação, com atropelamento de uma criança de 6 anos, que, no momento, estava sujeita à vigilância de uma creche que frequentava, ainda que se considere que a creche possa ter violado esse dever de vigilância, desde que se considere também que a criança contribuiu com o seu comportamento, desobediente e inconsiderado, para o mesmo acidente, há que aplicar a regra do artº 570º do CC, ou seja, «determinar com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida, ou mesmo excluída», isto é, graduar as culpas por forma a que a creche nunca possa ser responsabilizada inteiramente pelas consequências do sinistro, antes vendo a sua responsabilidade, a existir, limitada estritamente à percentagem que for atribuída ao dever de vigilância.”.

Nas contra alegações a Ré Companhia de Seguros, SA, concluiu do seguinte modo, pela inadmissibilidade do presente recurso uniformizador:

- Os factos em discussão nos presentes autos e no Acórdão fundamento são substancialmente diferentes.

- Nos presentes autos está em causa claramente e sem margem para dúvidas um sinistro no âmbito de um estabelecimento escolar, enquanto no Acórdão fundamento está em causa um acidente de viação

- Mas ainda que fosse possível qualificar o caso dos presentes autos como se tratasse de um acidente de viação, ainda assim, face aos factos provados, inexistia responsabilidade objectiva ou pelo risco.

- É por demais evidente que não estão preenchidos os requisitos previstos na lei para o presente recurso de uniformização de Jurisprudência.

A Relatora, fundamentou o seu despacho ora em reclamação da seguinte forma:

«(…) A primeira questão que se nos põe, em sede liminar é a de saber se estão reunidos ou não os pressupostos de admissibilidade do recurso para Uniformização de Jurisprudência.

Resulta do normativo inserto no artigo 688º, nº1 do NCPCivil que «As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça quando o Supremo proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.».

Acrescenta o nº2 que «Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior com trânsito em julgado, presumindo-se o trânsito.».

Decorre do preceituado no artigo 690º, nº2 do mesmo compêndio processual, o requerimento de interposição de recurso deverá ser instruído, além do mais, com cópia do Acórdão fundamento, estabelecendo a Lei, a rejeição liminar do mesmo, caso o Recorrente não cumpra aquele ónus, artigo 692º, nº1, igualmente do NCPCivil.

Como deflui das peças juntas aos autos, a Recorrente fez juntar duas cópias de Acórdãos deste Supremo Tribunal, retiradas respectivamente da Colectânea de Jurisprudência e da base de dados o ITIJ, sendo certo que, ambas as publicações se tratam de meros repositórios jurisprudenciais, o que de modo algum satisfaz aquela imposição legal, porquanto não atestam a autenticidade dos documentos, o que apenas aconteceria se as cópias proviessem desta instituição, cfr neste preciso sentido os Ac de 26 de Fevereiro de 2013 (Relator Sebastião Povoas) e de 3 de Outubro de 2013 (Relator Pereira da Silva), in www.dgsi.pt.

Não tendo a Recorrente invocado qualquer impossibilidade quanto à junção de tais cópias, não tendo protestado juntá-las, nem sequer tendo requerido prazo para o efeito, torna-se óbvio que a sua manifestação recursiva estaria condenada ab initio, numa visão puramente formal, da problemática em análise, sempre se adiantando que sendo o prazo deste recurso de trinta dias após o trânsito em julgado do Acórdão recorrido, o que perfaz quarenta dias e tendo em atenção que o processo só vem para apreciação liminar, expirado que esteja o prazo das contra-alegações, isto é, mais trinta dias, temos no total, sem contar os tempos «mortos», setenta dias em que, pensamos, ter sido perfeitamente possível àquela, cumprir as formalidades legais, o que, repete-se, não foi feito.

Poder-se-ia dizer que competiria a este Tribunal, mesmo assim, convidar a parte a suprir aquela omissão, através de um convite à junção de tais cópias formais, cfr o Ac STJ de 21 de Outubro de 2014, em que fui Relatora. É possível, mas não se impõe na espécie, atentos os demais requisitos de admissibilidade recursiva que se não verificam no caso, o que sempre se tornaria num acto inútil.

Se não.

Constituem, assim, requisitos para a admissão de tal recurso: i) que exista um Acórdão do STJ transitado em julgado, proferido nos autos onde se suscita a uniformização; ii) contradição entre o Acórdão proferido e outro que o mesmo Tribunal haja produzido anteriormente; iii) que essa contradição tenha ocorrido no domínio da mesma legislação e que respeite à mesma questão essencial de direito.

Resulta do argumentário conclusivo da Ré, aqui Recorrente, que a mesma não obstante se arrime na afirmação de que o Acórdão produzido no âmbito destes autos se encontra em manifesta oposição com os Acórdãos prolatados em 13 de Março de 2008 e 11 de Fevereiro de 2003, não diz especificamente em que consiste tal contradição, decorrendo antes das conclusões apresentadas que a mesma não está de todo em todo de acordo com a decisão proferida nesta acção.

Queremos nós dizer que, a Ré, agora Recorrente, aproveitando a possibilidade conferida pelo artigo 688º do NCPCivil, pretende por em causa a bondade da decisão proferida, porque a mesma não interpretou a seu favor a factualidade assente, diversa aliás daquela que estava em causa no Acórdão fundamento.

Se não.

Como decorre inequivocamente do primeiro Acórdão fundamento, na tese dos aí Autores, a causa de pedir baseava-se na ocorrência de um acidente de viação, causado pela manobra de um tractor agrícola, quando efectuava um enfardamento com uma máquina que se encontrava acoplada ao veículo, não atentou o respectivo condutor que nas proximidades se encontrava uma menor, tendo-a colhido.

Colocavam-se aí três questões:

Primo, saber se o acidente dos autos era ou não um acidente de viação, já que na contestação foi aventado que a apólice de seguro excluía os riscos derivados do emprego do tractor nos trabalhos de exploração agrícola em que fosse utilizado, por si ou acoplado a outros maquinismos e alfaias agrícolas;

Secundum, saber se o veículo teria ou não sido causa directa do sinistro, porquanto a máquina agrícola que atingiu a menor estava acoplada ao tractor seguro na ali Ré;

Tertio, saber qual a medida da contribuição da menor, na presença do seu progenitor, foi maior ou menor do que a do condutor do tractor a que tal máquina em funções agrícolas se encontrava atrelada.

No que diz respeito ao segundo Acórdão fundamento, a causa de pedir assentava igualmente num sinistro causado pelo condutor de um tractor agrícola, quando se encontrava em trabalhos de fresagem num terreno sua propriedade, em que foi vitima um menor, neto daquele, a quem os pais haviam confiado a respectiva guarda.

As questões solvendas, neste Aresto, punham-se em sede de saber se estávamos ou não perante um acidente de viação, já que também se punha em causa se o seguro do tractor, cobria também o risco inerente ao funcionamento da máquina agrícola a ele ligada, como também, à concorrência de culpas, entre o condutor do veículo causador do acidente, concomitantemente obrigado à vigilância de outrem, o menor sinistrado, e este, cuja conduta foi tida como negligente.

No Acórdão recorrido, como se sabe, o pedido provinha de um atropelamento ocorrido dentro das instalações da Ré/Recorrente Casa do Povo, onde o filho dos Autores frequentava o jardim de infância, o qual se produziu porque a porta da sala estava aberta e a educadora não ter sido capaz de evitar a saída da criança, consequência do que foi a mesma atropelada pela carrinha daquela Ré.

A problemática recursiva foi posta pela Ré, aqui Recorrente, no que tange à responsabilidade pela produção do acidente, a qual na sua óptica, seria de imputar ao condutor do veículo seguro na co-Ré Seguradora, quer quanto à fixação do valor das parcelas indemnizatórias pois na sua tese é inquestionável que o menor contribuiu para o desfecho acidental ocorrido, pelo que, não obstante o mesmo, por ter apenas 6 anos de idade, ser inimputável, tal inimputabilidade não pode ter como consequência que se atribua a responsabilidade integral pelo ressarcimento dos danos, à Casa do Povo de X, antes devendo graduar-se a comparticipação no ressarcimento dos danos, com base nas culpas recíprocas, nessa hipótese que só academicamente se admite, em 10% para o comportamento da educadora de infância e 90% para o próprio menor.

As questões factuais onde assentaram as decisões em confronto são diversas, diversa sendo em consequência a consubstanciação normativa efectuada o que não equivale, nem pode equivaler, a uma interpretação divergente e contraditória das mesmas normas jurídicas, situação esta essencial para que o recurso pudesse ser admitido, cfr inter alia os Ac do STA de 13 de Março de 2013 (Relatora Isabel Marques da Silva), de 18 de Abril de 2013 e de 4 de Junho de 2013 (Relator Políbio Henriques) e deste STJ de 10 de Janeiro de 2013 (Relator João Bernardo) e de 14 de Abril de 2015 (Relator Pinto de Almeida) in www.dgsi.pt; Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, 82; Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. III, 118/119; Armindo Ribeiro Mendes, Sobre o anteprojecto de revisão de recursos em processo civil, Colectânea Novas Exigências do Processo Civil, 232; Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 556/567.

Temos, pois, que as soluções opostas perfilhadas pelo acórdão recorrido e pelos acórdãos fundamento não procedem de diversa interpretação das mesmas normas jurídicas, mas, tão-só da diferenciação das respectivas situações de facto que lhes deram origem, sempre se dizendo, ex abundanti, repetindo o já alinhamos supra, que a ora Recorrente, afinal das contas, apenas quis por em causa o Acórdão proferido, com o qual não concorda, como manifestamente resulta da sua motivação, chamando para o efeito à colação o disposto no artigo 688º do CPCivil e por inexistir qualquer outro meio de impugnação daquela decisão.

Veja-se que naquele primeiro Aresto, de onde se pretende uniformizar jurisprudência em confronto com a questão posta nestes autos, no sentido de se concluir que «Um parque de estacionamento, como qualquer recinto privado, apenas franqueado aos veículos de um certo grupo de utilizadores, acessível a qualquer pessoa, deve ser considerado como via de circulação terrestre, para o efeito de se considerar que qualquer acidente aí ocorrido com intervenção de um veiculo automóvel está a coberto de contrato de seguro celebrado entre o proprietário de veiculo e uma companhia seguradora», esta precisa questão nem sequer era posta, já que não era o local, tout court, onde o tractor agrícola circulava que constituía a problemática recursiva, mas antes a circunstância de o mesmo circular com uma máquina acoplada, no caso uma atadeira, numa eira particular, pois o contrato de seguro fazia afastar os riscos derivados do emprego do tractor nos trabalhos de exploração agrícola em que fosse utilizado, por si ou acoplado a outros maquinismos e alfaias agrícolas.

Lê-se naquele Acórdão fundamento:

«E se a um acidente como o dos autos não são aplicáveis as regras estradais, nem por isso, como sublinham as Instâncias, fica descoberto de protecção legal, aplicando-se nessas situações, as normas que regem a responsabilidade civil extracontratual em geral e as que especialmente dispõem sobre tais acidentes, como é o caso dos arts. 503º e segs. do Cód Civil.

Em anotação ao n° 1 deste artigo. referem Pires de Lima e Antunes Varela CC. C Anotado, I, pág 514):

“Dentro desta fórmula legal cabem não só os danos provenientes provocados pelo veículo em circulação (atropelamento de pessoas, colisão com outro veículo destruição ou danificação de coisas), como pelo veículo estacionado (choque ou colisão provocada por veiculo para do fora de mão ou estacionado em lugar indevido ... ), sendo irrelevante, por outro lado, que o acidente ocorra nas vias públicas ou fora delas”.

Quanto ao veículo em circulação, tanto faz que ele circule na via pública, aberta ao trânsito em geral, como em qualquer recinto privado, apenas franquiado aos veículos de certa empresa ou dos habitantes de certo imóvel. E pouco importa mesmo que o veículo circule fora de qualquer via como o jeep que caminha sobre terrenos que outras viaturas não podem percorrer (Antunes Varela, “Das Obriqaçóes em Geral”, pág. 538).

Tanto basta para concluir ser de qualificar o acidente dos autos como acidente de circulação automóvel e consequentemente, como acidente de viação e, como a responsabilidade civil por danos provocados na menor pela referida unidade circulante (tractor e máquina acopolada) emerge de acidente de viação, está, por isso, a coberto do contrato de seguro celebrado com a ré (v. Ac do STJ citado).»

Atente-se agora no que se escreveu a propósito no segundo Aresto trazido como “fundamento”:

«Mas, para que um acidente provocado quer por um veículo automóvel quer por uma qualquer unidade circulante possa ser qualificado de acidente de viação, exige-se sempre que o veículo tenha sido causa directa ou indirecta do evento, ou seja, que resulte da função que lhe é própria - função de veículo circulante .

Melhor dizendo e em face do estabelecido no nº1 do art. 503º do C. Civil, que exista relação ou nexo causal entre o acidente e os riscos próprios (específicos) do veículo enquanto tal, ou seja, com os especiais perigos que a sua utilização, como veículo circulante, efectivamente comporte.

Ora, face à matéria de facto provada, é insofismável que o acidente em causa nestes autos tem a ver com a circulação do tractor agrícola seguro na ré e da máquina agrícola a ele acoplada e, portanto com o risco ou perigo especificadamente criado por tal unidade circulante.

É que, tendo ficado provado que, durante os trabalhos agrícolas de fresagem, o condutor do tractor não atentou na proximidade do menor e a referida fresa embateu no membro inferior direito do autor, ficando esse membro preso e enredado à volta do eixo metálico da fresa, torna-se evidente a participação decisiva do movimento imprimido à fresa pelo tractor agrícola.

Assim, o seguro do tractor só não cobre o risco especificamente inerente ao funcionamento da máquina agrícola em questão (fresa), isto é, o risco da função mecânica que só a ela é própria.

Mas não já, e ao contrário do que é sustentado pela ré, o risco da utilização do aludido tractor enquanto máquina de circulação terrestre equipada com máquina agrícola de fresar a terra, desde que verificado o nexo de causalidade entre o acidente e o risco próprio desta unidade circulante, sendo certo que as operações de fresagem da terra não estão excluídas do âmbito da actividade de um tractor agrícola.».

E quanto à culpa, aí se concluiu:

«Importa, porém, realçar alguns desses fundamentos e rebater os agora invocados pelo autor apelante.

Sustenta este, por um lado, que resulta dos factos provados, que o acidente dos autos se ficou a dever a culpa efectiva, única e exclusiva, do tractorista C, a qual sempre seria de presumir de acordo com o estatuído no artigo 493º, nºs 1 e 2, do Código Civil.

E, por outro, que não é possível o concurso de culpa - efectiva e/ou presumida - por parte do tractorista C e a eventual responsabilidade objectiva, por parte do menor A, à luz do disposto no artigo 570º, nºs 1 e 2, do Código Civil.

No caso sub judice, é inquestionável que o C, na qualidade de dono e condutor do tractor agrícola seguro na Ré, tinha a obrigação de o conduzir com atenção e cuidado, por forma a que não causasse danos a terceiros, o que o não aconteceu nas circunstâncias dos autos visto não ter atentado na proximidade do menor.

E, sobre ele impendia, também, na qualidade de avô do menor e à guarda e aos cuidados de quem este havia sido confiado, no dia do acidente, o dever de vigilância do autor, dever este que foi omitido, porquanto não diligenciou no sentido de evitar que o menor se colocasse em situação de perigo.

Mas, a nosso ver e tal como doutamente se decidiu na sentença recorrida, o menor, ao colocar-se na proximidade do tractor contribuiu também, ainda que de forma objectiva, para a ocorrência do acidente.

Estamos, pois, no caso sub judice perante a concorrência de uma situação de responsabilidade por facto culposo do dono e condutor do conjunto articulado (tractor e fresa), nos termos do art. 483º do C. Civil, e de uma situação de responsabilidade por facto culposo do lesado, por força das disposições conjugadas dos artºs. 570º e 571º, ambos do C. Civil.

E, se é verdade, tal como o afirma a Ré, que o citado art. 570º não prevê o caso de concurso de facto culposo do lesante com o risco criado pelo próprio lesado, também não é menos verdade que aquela participação objectiva do menor para a eclosão do acidente não pode deixar de ser tida como equivalente a actuação culposa para efeitos de aplicação do citado art. 570º.»

E, não podemos ignorar que os menores, nos casos tratados nos Acórdãos fundamento tinham treze e oito anos de idade, ao contrário do menor do Acórdão recorrido que apenas tinha seis anos, o que conduz inexoravelmente a conclusões completamente divergentes em termos de responsabilidade, tendo em atenção o preceituado no artigo 488º, nº1 e 2 do CCivil e por isso ali se escreveu o seguinte:

«O J à data do acidente tinha seis anos de idade, sendo por isso incapaz de entender e/ou de querer, face ao preceituado no normativo inserto no artigo 488º, nº2 do CCivil, não respondendo pois pelos seus actos, mesmo que se chegasse à conclusão que o mesmo, aquando da envolvência que deu origem ao sinistro, tinha perfeita noção do perigo em que se estava a colocar, isto é, que sair da sala de aula para o recreio poderia implicar o seu atropelamento pela carrinha do colégio o que veio a acontecer.

É por demais evidente que os quadros mentais de uma criança de seis anos, por muito precoce que possa ser, não podem ser equiparáveis aos de um pré adolescente, adolescente ou adulto, e não se pôs sequer em questão nos autos que o José Pinheiro Martins tivesse, quiçá, uma idade mental superior à real, que de qualquer modo seria sempre indiferente face à rigidez da lei que o iliba por completo de responsabilidade, cfr Raimundo Queiroz, A responsabilidade Civil dos Menores dos Pais e das Escolas, Quid Júris 2012, 318/320.»

Daqui resultaria desde logo, a impossibilidade de oposição de decisões, já que o menor destes autos estava numa situação de completa inimputabilidade, o que sempre nos levaria à sua desresponsabilização.

De outra banda, nos Arestos trazidos como fundamento, a situação factual caracterizadora do sinistro mostra-se consubstanciada na actuação culposa dos condutores dos tractores agrícolas seguros nas Rés os quais ao conduzirem sem atenção e cuidado não atentaram na proximidade dos menores, tendo por isso, causado danos naqueles, acrescendo ainda a circunstância de sobre o condutor do segundo dos Arestos impender, também, na qualidade de avô do menor, à guarda e aos cuidados de quem este havia sido confiado, no dia do acidente, o dever de vigilância do mesmo.

Ex adverso, no caso dos autos, tendo o segundo grau afastado o acidente como de viação, entendeu-se em conformidade ter havido apenas a omissão do dever de vigilância que impendia sobre a Recorrente, à guarda de quem se encontrava o J, sendo tal omissão que constituiu a causa adequada ao sinistro que se seguiu, afastada ficando assim a culpa do condutor da viatura envolvida.

É óbvio que nestas circunstâncias precisas, inexiste qualquer oposição jurisprudencial que justifique uma uniformização.

Uma última palavra para a pretensa necessidade de dois Acórdãos uniformizadores.

A oposição de julgados pressupõe, como se expôs, decisões contraditórias sobre a mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação, não podendo tal questão, ser descontextualizada do substrato factual que lhe subjaz, constituindo a identidade substancial da materialidade fáctica, uma condição para a determinação daquela oposição.

O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, como recurso essencialmente «normativo», porquanto o mesmo não tem por objecto a decisão de uma concreta questão ou de uma causa, mas apenas a definição do sentido de uma norma, pressupõe a identificação da fonte normativa e da problemática que determina a oposição de decisões, de modo unitário e não múltiplo, com referência do Acórdão que tenha decidido diversamente do Acórdão recorrido.

Neste contexto alega a Recorrente que este Supremo Tribunal apreciou e decidiu duas questões de direito, cujas pronúncias  entraram em confronto com os dois supra apontados Arestos.

Para além de entendermos que não houve qualquer pronúncia autónoma por banda deste Supremo Tribunal de Justiça em relação às questões autonomizadas pela Recorrente, sempre se adianta que os problemas aqui trazidos por esta, afinal das contas, eram os mesmos em ambos os Arestos, e, diversos daquele que foi tratado nestes autos, quer a nível material, quer a nível jurídico e, daí, esta nossa decisão conjunta da temática levantada em ambos os argumentários conclusivos da Recorrente, não obstante a mesma pretendesse autonomizar a sua actividade recursiva em dois apensos, o A e o B, o que se não ordenou por manifesta desnecessidade.

Diferente seria a decisão, se efectivamente se estivesse perante a necessidade de uniformização em relação a duas questões diferentes, questão esta sobre a qual não nos iremos pronunciar por se encontrar prejudicada.

III Destarte, não se verificando qualquer oposição entre os Acórdãos em questão, de harmonia com o preceituado nos artigos 688º, nºs 1 e 692º, nº1 do NCPCivil, não se admite o recurso interposto pela Ré para Uniformização de Jurisprudência. (...)»

Não se afigura agora a este Colectivo, quaisquer razões adversas, que ponham em causa a decisão singular acabada de transcrever.

Contudo sempre se acrescenta ex abundanti:

Como é sabido, a oposição de acórdãos pressupõe que a decisão e fundamentos do acórdão recorrido se encontrem em contradição com outro relativamente às correspondentes identidades.

Em sentido técnico, verifica-se a oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação.

A oposição ocorrerá, pois, quando um caso concreto (constituído por um similar núcleo factual) é decidido, com base na mesma disposição legal em sentidos diametralmente opostos, num noutro Acórdão, exigindo-se sempre, em ambos os casos, a identidade do núcleo essencial da situação fáctica, bem como das normas jurídicas objecto de interpretação e/ou aplicação, cfr inter alia os Ac STJ de 24 de Fevereiro de 2015, proferido no Proc 579/13.7TBBGC.P1.S1 deste mesmo Colectivo; de 12 de Março de 2015 (Relator Hélder Roque); de 21 de Março de 2015 (Relator João Camilo); de 2 de Junho de 2015 (Relator Gabriel Catarino), in SASTJ, site do STJ.

Ora, essa aludida dissidência fáctico/jurídica só poderá ter cabimento, quando se esteja perante uma decisão definitiva, entendendo-se como aquela que já não seja passível de recurso ordinário – transitada em julgado, pois – o que pressupõe a junção de uma cópia certificada da mesma, sendo que neste preciso caso, presume-se o trânsito da mesma, nos termos do artigo 688º, nº2 do CPCivil.

Mas a presunção do trânsito em julgado da decisão em oposição, não prescinde da necessidade da parte juntar uma cópia certificada, instruindo assim o seu recurso para uniformização, já que, como é do conhecimento geral, maxime, dos operadores judiciários, a base de dados do ITIJ, de onde foram retiradas as cópias dos indicados Acórdãos fundamento, é como o nome indica, um repositório das decisões judiciais produzidas nas várias áreas do direito e que se destina a dar a conhecer à comunidade jurídica as várias orientações jurisprudenciais, sendo certo que a circunstância de se estar perante um sitio informático ser gerido pelo Ministério da Justiça, não ser susceptível de conferir aos documentos insertos a natureza de autênticos ou autenticados e muito menos lhes confere a certeza de que os mesmos se encontram transitados em julgado.

De qualquer modo, acentue-se, que não foi este o fundamento principal para a não admissão da impugnação recursiva, uma vez que entendemos ser de dar à parte, nos casos em que tal se imponha, a possibilidade de fazerem juntar as respectivas certidões, convidando-a a tal, o que aqui não se fez, por manifesta desnecessidade devidamente fundamentada, já que tal redundaria num acto inútil, porquanto se entendeu, como se continua a entender, não haver a oposição de Acórdãos apontada, tendo sido este o fundamento primacial da rejeição

Ambos os Acórdãos trazidos à liça para sustentar a necessidade de uniformização, por estarem em oposição com o Acórdão recorrido, tinham como tema decidendum a vexata quaestio de saber se, quer num quer no outro caso, em que a ocorrência do sinistro foi causada pela manobra de um tractor agrícola, com uma máquina a ele acoplada, o seguro do tractor, cobria também o risco inerente ao funcionamento da máquina agrícola a ele ligada.

Ora, esta problemática chama à colação o preceituado no artigo 4º, nº 1, do DL 291/07, de 21 de Agosto, onde se predispõe que «Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar -se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei.», sendo que o seu nº 4 exclui do regime do seguro obrigatório os veículos que sejam utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais, o que levanta, como é óbvio, alguns problemas interpretativos («A obrigação referida no número um não se aplica às situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais.»).

 

A especificidade desta temática nada tem a ver com o caso tratado pelo Acórdão recorrido. O único ponto em comum, é a intervenção de menores nos sinistros ocorridos, sendo certo que na especie, não há qualquer nexo de causalidade entre a circulação do veículo e o acidente, o que de per si, faz afastar a sua caracterização como de viação pois o veículo interveniente não foi causa directa ou indirecta do evento, isto é, o acidente não teve relação com os perigos que a sua utilização efectivamente comporta, mas antes com a incúria da educadora da Recorrente, a quem incumbia a vigilância do menor, afastada ficando a responsabilidade da Ré seguradora no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel efectuado.

Soçobra, assim, o arrazoado conclusivo da Recorrente.

 

III Destarte, de harmonia com o preceituado no artigo 692º, nºs 1, 2 e 3 do CPCivil rejeitam-se as uniformizações de jurisprudência requeridas.

Custas pela Recorrente, com taxa de Justiça em 3 Ucs.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2016

(Ana Paula Boularot)

(Pinto de Almeida)

(Júlio Manuel Vieira Gomes)