Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2596/11.2TTLSB.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE TRABALHO EM FUNÇÕES PÚBLICAS
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 06/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDA
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 64.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 211.º, N.º1.
LEI N.º 12-A/2008, DE 27-2: - ARTIGOS 83.º, 118.º, N.º 7.
LEI N.º 3/99, DE 13-1 - LEI DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS (LOFTJ): - ARTIGO 18.º, 85.º, AL. O).
LEI N.º 59/2008, DE 11-9: - ARTIGO 17.º, N.º2, 23.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 30/03/2011, DA 4.ª SECÇÃO, P. 492/09.2TTPRT.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 12/09/2013, DA 4.ª SECÇÃO, P. N.º 204/11.0TTVRL.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DE CONFLITOS:
-DE 03/05/2013, DE 30/10/2013, PROFERIDO NO CONFLITO N.º 37/13,
Sumário :
I - A determinação do tribunal materialmente competente radica na estrutura da relação jurídica material submetida à apreciação do tribunal, segundo a versão apresentada pelo autor, isto é, tendo em conta a pretensão concretamente formulada e os respetivos fundamentos.

II - Na petição inicial, o A. configura o vínculo estabelecido entre as partes (iniciado em 23.09.1990) como contrato individual de trabalho, contrato em que se fundam todos os pedidos formulados pelo mesmo.

III – Este vínculo contratual converteu-se numa relação jurídica de emprego público, nos termos do art. 17.º, n.º 2, da Lei 59/2008, de 11/9, e da Lei 12-A/2008 de 27/2, sendo certo que, segundo o art. 83º deste último diploma (norma que entrou em vigor em 01.01.2009, nos termos do preceituado no seu art. 118.º, nº 7, e no art. 23.º da Lei 59/2008), os Tribunais Administrativos são os normalmente competentes para apreciar os litígios emergentes de relações jurídicas desta natureza.

IV – Todavia, pretendendo o autor exercitar direitos que, em grande parte, se reportam a período anterior a 01.01.2009, período em que entre as partes vigorava uma relação contratual regulada pela lei laboral comum, não pode deixar de estender-se a competência do Tribunal do Trabalho à totalidade das questões que nos autos se encontram em causa, nos termos do art. 85.º, alínea o), da LOTJ.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I.

1. AA, com os sinais nos autos, intentou ação declarativa emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, contra Instituto de Financiamento da Agricultura e Pecas, IP, pedindo que este seja condenado:

- A reconhecer o direito do autor a ver integrado na sua remuneração base mensal o valor de utilização, a título pessoal, de viatura automóvel atribuída aos diretores centrais do réu, a pagar catorze vezes ao ano;

- A reconhecer o direito do autor a ver integrado na sua remuneração base mensal, o equivalente pecuniário a 200 litros de combustível, gasolina super/95;

- A reconhecer o direito do autor a ver integrado na sua remuneração base mensal, o valor equivalente ao subsídio de isenção de horário de trabalho;

 

- A pagar ao autor a quantia de € 119.834,35, a título de remunerações vencidas e não pagas, referentes à utilização da viatura automóvel para uso pessoal, desde 01.07.99 até à presente data, e de todas aquelas que se vencerem até ao trânsito em julgado da decisão;

- A pagar ao autor a quantia de € 37.666,80, a título de remunerações vencidas e não pagas, correspondentes a 200 litros mês de gasolina, desde Novembro de 1997 até à presente data, acrescida das retribuições que se vencerem na pendência da ação até integral pagamento;

- A pagar ao autor a quantia de € 96.412,88, correspondente à remuneração equivalente ao subsídio de isenção de horário de trabalho, respeitante aos meses de Junho de 2000, e ainda dos 13.° e 14.° meses de cada ano, até à presente data, a que acrescem os vincendos, até integral pagamento;

- A pagar ao autor, a título de compensação pelos danos profissionais e morais sofridos pela duradoura inatividade laboral e dos decorrentes da desvalorização profissional da sua colocação em funções não correspondentes à sua qualificação e categorias profissionais, montante não inferior a € 50.000,00, tudo no montante global de € 316.188,27, a que acrescem juros moratórios, vencidos e vincendos, desde 01.11.97.

Para tanto, alega, em síntese: após celebração de contrato de trabalho, foi admitido em 23.09.1990, com a categoria de Diretor, para exercer funções no IFADAP, a quem o réu sucedeu, mediante a retribuição base correspondente ao nível XVII da grelha salarial constante do ACTV do sector bancário, isenção de horário de trabalho e combustível até ao limite de 200 litros/mês; em Dezembro de 1994, foi entregue pelo réu ao autor uma viatura automóvel, para seu uso exclusivo incluindo o particular, tendo esta sido utilizada até 30.06.1999, data em que lhe foi retirada; o autor auferia mensalmente o equivalente a 200 litros de combustível, sendo que a partir de 01.11.97 deixou de o receber; até 31.05.2000, foi pago ao autor um subsídio de isenção de horário de trabalho, catorze vezes ano, sendo que por deliberação do Conselho de Administração do réu de 20.03.2000 não mais lhe foi paga qualquer quantia a esse título; até poucas semanas antes da propositura da ação, viu-se privado de atribuição de funções de acordo com a sua categoria e competências o que lhe provocou danos não patrimoniais que computa em € 50.000,00.

2. O réu contestou, excecionando a incompetência material do tribunal, exceção julgada procedente no despacho saneador, em virtude de se ter considerado que, a partir de 01.01.2009, a relação laboral existente entre as partes se converteu em relação jurídica de emprego público, sendo por isso os tribunais administrativos os competentes para o julgamento do litígio

3. Do assim decidido, interpôs o A. a presente revista, per saltum.

4. O R. contra-alegou, pugnando pela sua improcedência.

5. O Ex.m.º Procurador-Geral-Adjunto pronunciou-se no sentido de ser concedida a revista, em parecer a que as partes não responderam.

6. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC[1]), em face das conclusões da alegação de recurso, a única questão a decidir é, pois, a de saber se o Tribunal do Trabalho é materialmente competente para julgar a presente demanda.[2]

7. Cumpre decidir, sendo aplicável à revista o regime processual que no CPC foi introduzido pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, nos termos do art. 5.º, n.º 1, deste diploma[3].

E decidindo.

II.

8. As vicissitudes processuais com relevo para a decisão do recurso são as descritas no relatório anterior. 

Assim.

9. São da competência dos tribunais judiciais – como é o caso dos tribunais de trabalho - as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional – arts. 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, 18.º, da Lei 3/99, de 13/1 [Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ)[4]] e 64.º do CPC.

Em matéria cível, os tribunais do trabalho têm competência para julgar as matérias elencadas no art. 85º da LOFTJ, nomeadamente, as questões emergentes de contratos de trabalho [alínea b)].

Consabidamente, a determinação do tribunal materialmente competente deve partir da análise da estrutura da relação jurídica material submetida à apreciação e julgamento do tribunal, segundo a versão em juízo apresentada pelo autor, isto é, tendo em conta a pretensão concretamente formulada e os respetivos fundamentos.

Na expressão do Ac. do Tribunal de Conflitos de 30.10.2013, proferido no Conflito n.º 37/13, “é pois a estrutura da causa apresentada pela parte que recorre ao tribunal que fixa o tema decisivo para efeitos de competência material, o que significa que é pelo quid decidendum que a competência se afere, sendo irrelevante qualquer tipo de indagação atinente ao mérito do pedido formulado, ou seja, sendo irrelevante o quid decisum.[5]

No mesmo sentido, v.g. Ac. do Tribunal de Conflitos de 03.05.13.

10. Na petição inicial (cfr. supra n.º 1), o A. configura o vínculo estabelecido entre as partes (com início em 23.09.1990) como contrato individual de trabalho, contrato em que radicam todos os pedidos formulados pelo mesmo.

É certo, como sustenta a decisão recorrida, que a partir de 01.01.2009 tal relação jurídica se converteu em relação jurídica de emprego público, nos termos do art. 17.º, n.º 2, da Lei 59/2008, de 11/9, e da Lei 12-A/2008 de 27/2.
E também é certo que, segundo o art. 83º deste último diploma, os Tribunais Administrativos são os competentes para apreciar os litígios emergentes desta relação jurídica de emprego público, norma que entrou em vigor em 01.01.2009, nos termos do preceituado no seu art. 118.º, nº 7, e no art. 23.º da Lei 59/2008.

No entanto, por via da presente ação, o A vem exercitar direitos que em grande parte se reportam a período anterior a 01.01.2009, período em que entre as partes vigorava uma relação contratual regulada pela lei laboral comum, realidade aliás reconhecida pelo próprio R. na contestação.

Ora:

Quanto a esse período temporal, estando em causa uma relação de trabalho que ainda se não tinha convertido numa relação de natureza administrativa, a competência só poderia pertencer ao Tribunal do Trabalho.

Como refere o Ac. de 30-03-2011 desta Secção[6], que neste mesmo sentido se pronunciou, “tanto assim é que a própria alteração do art. 4.º do n.º 3, alínea d), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redação que lhe foi dada pelo art. 10.º do diploma preambular da Lei 59/2008, aponta claramente neste sentido, ao dispor que fica igualmente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (…) a apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção de litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas”.

Naturalmente, quanto ao período posterior, dada a indissociável conexão existente entre as matérias em discussão, não pode deixar de estender-se a competência do Tribunal do Trabalho, nos termos do art. 85.º, alínea o), da LOTJ, segundo o qual compete aos tribunais do trabalho conhecer em matéria cível “das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade e dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja diretamente competente”.[7]

Procede, pois, a revista.

III.

11. Em face do exposto, concedendo a revista, acorda-se em revogar a decisão recorrida e, consequentemente, em declarar o Tribunal do Trabalho materialmente competente para conhecer da ação.

Custas da revista a cargo do réu.

Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 18 de Junho de 2014

Mário Belo Morgado (Relator)

Pinto Hespanhol

Fernandes da Silva

_________________
[1] Todas as referências ao CPC são reportadas à versão mencionada no ponto n.º 7 do presente acórdão.

[2] O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido,  não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem sequer vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 5, do mesmo diploma.

[3] Os autos tiveram início em 2011, datando a decisão recorrida de 02.10.2012.

[4] Diploma ainda em vigor, apesar da sucessiva publicação da Lei 52/2008, de 28 de Agosto, e da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.
[5] In www.dgsi.pt, como todos os demais arestos citados sem menção em contrário.
[6] P. 492/09.2TTPRT.P1.S1 (Gonçalves Rocha).
[7] Sobre esta problemática, v.g. Ac. de 12-09-2013 desta Secção P. 204/11.0TTVRL.P1.S1 (Maria Clara Sottomayor).