Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5553/19.7T8LSB.L1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: RECUSA DE JUÍZ
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 10/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA/ RECUSA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A recusa de um juiz deverá ter por fundamento a existência de um motivo sério e grave que gere desconfiança sobre a sua imparcialidade; fundamento este que deve ser objetivamente analisado, não bastando um mero convencimento subjetivo.
II - Compulsados todos os elementos, a simples participação, há cerca de 30 anos, em outro processo onde condenou o arguido, analisada em sintonia com a participação em outro recurso, há mais de 15 anos, onde decidiu em favor do arguido impede-nos objetiva e imparcialmente de podermos concluir que há um motivo sério e grave gerador de suspeição; os factos demonstram-nos exatamente o contrário.
III - Se numa primeira análise, aos olhos do cidadão médio, pudesse existir a ideia subjetiva de que quem proferiu anteriormente uma decisão a condenar o arguido, em todas as outras, ainda que em processo distintos, irá igualmente analisar os autos com um pré-juízo contra o arguido, numa segunda análise, o cidadão médio não poderá esquecer a isenção que o mesmo Magistrado Judicial demonstrou em outra decisão.
Decisão Texto Integral:




Processo n.º  5553/19.7T8LSB.L1-A.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1. AA, arguido nos autos, veio, nos termos dos arts. 40.º, al. c), 41.º, n.º 2, 43.º, n.ºs 1, 2 e 3, 44.º, e 45.º, n.º 1, al. a), e 44.º, todos do Código de Processo Penal (doravante CPP), apresentar incidente de recusa do Senhor Juiz Desembargador Dr. BB do Tribunal da Relação de Lisboa, nos seguintes termos:

«Requerer a Recusa,

Da Intervenção do Senhor Juiz Desembargador Relator BB no Julgamento do Recurso no Processo N.°5553/19… por se entender que a mesma, a ocorrer e/ou se manter, é susceptível de ser considerada suspeita e criar forte e consistente desconfiança acerca da Imparcialidade da sua postura processual e decisão que possa proferir.

Isto porque, o Exmo. Senhor Juiz Desembargador BB, presidiu ao Tribunal Colectivo que julgou o Arguido Recorrente/Recorrido no âmbito do Processo N.° 228/91… que correu os seus termos em sede de Julgamento no … Juízo Criminal de ... das Varas Criminais  ..., processo no qual o condenou pela prática dos Crimes de Tráfico de Estupefacientes e Associação Criminosa Com Vista ao Tráfico na pena de 18 anos de prisão que veio posteriormente, em sede de Recurso, a ser alterada para 15 anos de prisão e agora, no Processo N.° 5553/19…, foi designado Juiz Desembargador Relator para Julgamento do Recurso em que o aqui requerente é Arguido Recorrente/Recorrido.

Crimes da mesma natureza que ora se encontram submetidos ao escrutínio recursório nestes Autos (Processo N.° 5553/19…), sendo que no caso particular do Recurso interposto pelo Ministério Público pretende-se a condenação do Arguido Recorrente/Recorrido pelo Crime de Associação Criminosa Com Vista ao Tráfico, Tipologia Criminal de que foi absolvido neste Processo em l.ª Instância e que foi pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador Relator BB, nos mencionados Autos (Processo N.° 228/91…), condenado a 18 anos de prisão.

É certo que a lei não define ou, sequer, caracteriza a seriedade e a gravidade dos motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz pelo que será a partir do senso e da experiência comuns que tais circunstâncias deverão em concreto ser ajuizadas.

Em todo o caso, certo é que o Artigo 43.° n.° 1 do Código de Processo Penal não se contenta com um "qualquer motivo", ao invés, exige que o motivo seja duplamente qualificado (“sério e grave”), o que não pode deixar de significar que a suspeição só se deve ter por verificada perante circunstâncias concretas, precisas, consistentes e objectivas tidas por sérias e graves, irrefutavelmente reveladoras de que o Juiz (de Instrução/Julgamento/Recurso) deixou de oferecer garantias da sua Imparcialidade e Isenção.

Isto é, o Motivo Sério e Grave referido no n.° 1 do Artigo 43.° do Código de Processo Penal tem que resultar de uma concreta situação de facto, onde os elementos processuais ou pessoais se revelem adequados a - no espirito comunitário e social - fazer nascer e suportar as dúvidas sobre a Imparcialidade do Tribunal (Juiz), como o seja: haver coincidência subjectiva entre Arguido/Recorrente/Recorrido e Juiz (de Direito e Desembargador Relator) em diversos (dois) Processos; e objectiva entre os Crimes pelos quais foi condenado pelo Juiz de Direito "suspeito" "noutro processo" e os que agora lhe são submetidos julgar em sede de Recurso como Juiz Desembargador Relator.

Com efeito, preceitua o n.° 1 do Artigo 43.° do Código de Processo Penal que a intervenção do Juiz no processo pode ser "recusada" quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, estabelecendo o n.° 2 que pode constituir fundamento dessa Recusa, nos termos do n.° 1 desse Normativo, a intervenção do mesmo Senhor Juiz "noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º” o que in concreto ocorre nestes Autos com a intervenção do Senhor Dr. BB como Juiz Desembargador Relator neste Recurso.

É manifesto que - para qualquer terceiro colocado numa posição independente e chamado a reflectir - o facto de determinado Juiz de Direito já ter julgado certo indivíduo por concreta Tipologia Criminal (Tráfico de Produtos Estupefacientes Agravado e Associação Criminosa Com vista ao Tráfico de Estupefacientes) e o ter condenado severamente em 1.ª instância a pena (de 18 anos de prisão) que veio a ser significativamente reduzida em recurso se, em momento ulterior, colocado na posição de ter de julgar esse mesmo indivíduo pela mesmíssima Tipologia Criminal (Tráfico de Produtos Estupefacientes Agravado e Associação Criminosa Com Vista ao Tráfico de Produtos Estupefacientes) em sede de Recurso, como Juiz Desembargador Relator em (novo) Processo no qual, em l.ª Instância, foi absolvido de Associação Criminosa Com Vista ao Tráfico de Produtos Estupefacientes (e condenado por Tráfico de Produtos Estupefacientes Agravado) e onde o Ministério Público recorreu pugnando, também, pela sua condenação por esse Ilícito, irá - garantidamente aos olhos e sensu do tal terceiro independente e chamado a reflectir - em sede de Recurso condená-lo quer pelo Crime de que já vinha condenado em l.ª Instância (Tráfico de Produtos Estupefacientes Agravado) (e que em tempos aqueloutro Senhor Juiz "suspeito" "noutro processo " já o havia condenado), quer pelo Crime de que foi absolvido no Acórdão Recorrido (Associação Criminosa Com Vista ao Tráfico de Produtos Estupefacientes) (e que "noutro processo " o Senhor Juiz Desembargador Relator já o condenou) e quanto ao qual o Ministério Público interpôs Recurso.

Crê-se que, exclusivamente por isso, esta circunstância afecta irremediavelmente a equidistância que deve ser mantida por quem tem a nobre função de julgar (in casu o Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador Relator BB) e portanto, e porque os Juízes (felizmente) também são homens e mulheres, a sua Imparcialidade, no pressuposto natural de que poderá já ter orientado e/ou determinado a sua convicção num concreto sentido, designadamente da Condenação do Arguido Recorrente/Recorrido quer pelo Crime de Tráfico de Produtos Estupefacientes Agravado (que vinha condenado no Acórdão Recorrido e quanto ao qual Recorreu pugnando a sua Absolvição), quer pelo Crime de Associação Criminosa Com Vista ao Tráfico de Produtos Estupefacientes (de que foi Absolvido no Acórdão Recorrido e quanto ao qual o Ministério Público se insurgiu pedindo a sua condenação em Recurso).

Nestes termos, nos melhores e demais de Direito que os Colendos Juízes Conselheiros suprirão, deve o presente Requerimento de Recusa do Senhor Juiz Desembargador Relator BB ser aceite e julgado procedente por demonstrado que a sua intervenção no referido Julgamento do Recurso correr o risco de ser considerada suspeita, visto existir motivo sério e grave, designadamente de ter tido intervenção enquanto Juiz noutro processo, bastante para gerar desconfiança sobre a sua Imparcialidade na Decisão que viesse a tomar, com as legais consequências daí advenientes.

Para Prova do que aqui se arrazoou requer-se que V/Ex.a se digne ordenar, junto do Juízo Central Criminal  ..., a obtenção de Certidão do Acórdão prolatado em 1. ª Instância e do Aresto proferido em Recurso no Processo N.° 228/91… que correu os seus termos no … Juízo Criminal  ... das Varas Criminais  ... e a junção da mesma ao presente procedimento.»

2. Por despacho da Senhora Juíza Desembargadora de turno, foram os autos remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça por despacho de 09.08.2021.

3.1. Dada a referência, no requerimento de recusa do arguido, a anterior decisão condenatória do mesmo arguido e onde teria intervindo o Senhor Juiz Desembargador, foi determinado, por despacho de 20.08.2021, que se requisitasse “ao Juiz do Juízo Central Criminal  ... que sucedeu à 2ª Vara Criminal certidão das peças processuais indicadas pelo recusante a final do requerimento, com nota do respectivo trânsito.

No mesmo despacho foi ainda determinado que “Recebidas as certidões, com cópia delas e do requerimento, solicite-se ao Senhor Desembargador recusado, Dr. BB, que se pronuncie sobre o pedido de recusa, no prazo e nos termos do art.º 45.º n.º 3 do CPP.

3.2. A 27.09.2021, foi junta certidão com cópia do acórdão (manuscrito) prolatado no processo n.º 244/91…, a 03.04.1992, com nota de a decisão ter transitado em julgado (mas sem indicação da data). O acórdão do, então, Tribunal Criminal de ..., .. Juízo, foi subscrito por 3 juízes, sendo o Juiz Presidente o Senhor Juiz BB (conforme ata junta na certidão). Por esta decisão foi condenado o aqui Requerente (entre outros) pela prática de um “crime de associação de delinquentes” (cf. ac. folha 31/verso junto à certidão) na pena de 14 anos de prisão, e pela prática de um crime continuado de tráfico de estupefacientes na pena de prisão de 10 anos e na pena de multa de um milhão e quinhentos mil escudos, e na pena única de 18 anos de prisão e na pena de multa referida.

 4.1. Notificado o Senhor Juiz Desembargador (a 29.09.2021) nos termos art. 45.º, n.º 3, do CPP, e de acordo com o despacho citado supra, veio apresentar a pronúncia a 01.10.2021, nos seguintes termos:

«Satisfazendo o determinado no douto despacho datado de 20.08.2021. do Exmo. Juiz Conselheiro Relator nos autos 5553/19…, ao abrigo do disposto no n.° 3 do art.° 45°, do CPP, BB. Juiz Desembargador relator no P. acima identificado em recurso nesta Relação – … Secção Criminal, vem, por este meio. pronunciar-se relativamente ao requerimento de recusa de juiz apresentado pelo arguido/recorrente AA.

O requerente funda a sua pretensão de recusa na coincidência existente entre os autos de recurso que se encontram pendentes nesta Relação, nos quais existe para apreciação, para além de outro interposto pelo requerente, um recurso interposto pelo M.° P.° do segmento decisório vertido no acórdão final que absolveu o requerente do crime de associação criminosa com vista ao tráfico, e a condenação sofrida pelo mesmo no P.° 228/91…, por acórdão proferido em 3.04.1992 por Tribunal Colectivo a que presidi- como se demonstra da certidão junta, também por, para além de outro. crime de associação criminosa com vista ao tráfico. Manifesta o requerente que essa coincidência "afecta irremediavelmente a equidistância que deve ser mantida” e “portanto, a sua imparcialidade, no pressuposto natural de que já poderá ter orientado e/ou determinado a sua convicção num concreto sentido, designadamente a condenação do arguido recorrente/recorrido quer pelo crime de tráfico de produtos estupefacientes agravado... quer pelo crime de associação criminosa com vista ao tráfico...".

Não nos cabe a nós, enquanto Relator a quem foi distribuído os autos de recurso, manifestarmo-nos acerca do convencimento subjectivo pessoal que o requerente retira do facto de ter sido condenado, por Colectivo a que presidimos, há cerca de 29 anos por idênticos crimes, sendo certo que nenhuma ideia pré-concebida acerca desta segunda condenação e/ou da absolvição existe.

De qualquer modo e como contrabalanço desse convencimento pessoal, certamente por lapso, não mencionou o requerente que já tivemos oportunidade de desempenhar as funções de Relator em recurso, com o n.° 2910/19……. Secção criminal desta relação, que o mesmo requerente interpôs no P.° comum colectivo 292/98…. da, então, … Secção da … Vara Criminal  ..., onde por acórdão datado de 1 de Abril de 2005 proferimos decisão que lhe foi favorável.

Por tudo o exposto, conclui o signatário pela não existência de qualquer real fundamento para a requerida recusa já que a sua actuação, pela (nenhuma) tida no presente processo como em todos os que tramitou ao longo da sua carreira, nomeadamente no desempenho, durante cerca de quinze anos, das funções de Juiz nas então Varas Criminais  ..., resulta apenas da estrita aplicação de Lei, isenção reforçada por ser em ambiente de decisão colegial.»

4.2.  Juntamente com a pronúncia do Senhor Juiz Desembargador, foi apresentada cópia do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 01.04.2005, prolatado no Recurso n.º 2910/05.

Trata-se de um acórdão decorrente da interposição do recurso pelo arguido AA que havia sido condenado pela prática, em co-autoria, de um crime de associação criminosa para o tráfico de estupefacientes (nos termos do art. 28.º, n.ºs 1 e 3, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01), e de um crime de tráfico de estupefacientes agravado (nos termos dos arts. 21.º, n.º 1 e 24.º, als. a) e c), do diploma citado), nas penas de prisão de 17 anos e 11 anos, e na pena única de 25 anos de prisão.

O recurso foi rejeitado, por inadmissibilidade, dado que o arguido não poderia ter sido notificado da decisão recorrida, porque havia sido entregue às autoridades portuguesas em cumprimento de um mandado de detenção europeu emitido no âmbito de outro processo, e o pedido de extensão daquele mandado no âmbito dos autos da decisão sob recurso não tinha tido resposta afirmativa, pelo que a notificação da decisão condenatória recorrida ao arguido violava o princípio da especialidade (“tal notificação equivalia a uma extensão não autorizada dos limites abrangidos pela decisão das autoridades espanholas que concedeu a extradição”).

6. Colhidos os vistos, em simultâneo, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

Nos termos do art. 43.º, n.º 3, do CPP, o arguido pode pedir ao tribunal imediatamente superior (cf. art. 45.º, n.º 1, al. a), do CPP) que não admita determinado juiz a intervir no processo “quando ocorrer o risco de [a sua intervenção] ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” (art. 43.º, n.º 1). Constitui também motivo de recusa a intervenção em fases anteriores do mesmo processo, ou a participação em outro processo (cf. art. 43.º, n.º 2, do CPP).  

A independência dos juízes constitui “a mais irrenunciável característica do «julgar» e, portanto, da função judicial”[1] só assim se realizando o princípio da separação dos poderes. “Sendo, por conseguinte, os tribunais no seu conjunto — e cada um dos juízes de per si — órgãos de soberania (...) e pertencendo a eles a função judicial (...), tem por força de concluir-se que a independência material (objectiva) dos tribunais — reforçada pela independência pessoal (subjectiva) dos juízes que os formam — é condição irrenunciável de toda verdadeira jurisprudência”[2].

Se, por um lado, a característica da independência dos juízes assegura que estejam livres de pressões exteriores, por outro lado, “isto não basta para que fique do mesmo passo preservada a objectividade de um julgamento: é ainda necessário, ao lado e para além daquela segurança geral, não permitir que se ponha em dúvida a «imparcialidade» dos juízes, já não em face de pressões exteriores, mas em virtude de especiais relações que os liguem a um caso concreto que devam julgar. (...) E o que aqui interessa — convém acentuar — não é tanto o facto de a final, o juiz ter conseguido ou não manter a imparcialidade, mas sim defendê-lo da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados”[3].

A recusa de um juiz deverá ter por fundamento a existência de um motivo sério e grave que gere desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Na verdade, um pilar do sistema judicial é o cumprimento do princípio do juiz natural (inscrito no art. 32.º n.º 9, da CRP), pelo que só por motivos excecionais é admissível alterar o tribunal que legal e previamente foi considerado competente para julgar um certo feito.

Ora, este princípio apenas pode ser afastado quando situações sérias e evidentes gerem desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, o que tem que se traduzir em dados concretos que nos permitam concluir pela parcialidade de juiz no âmbito de um certo processo, isto é, tem que resultar de comportamentos intraprocessuais ou extraprocessuais que objetivamente considerados determinem alguma desconfiança quanto à imparcialidade do juiz.

Não nos podemos bastar com simples impressões subjetivas, sem fundamento em factos; só uma exigência acrescida nos fundamentos que justifiquem um afastamento do juiz nos permite obviar a que o instituto de recusa seja utilizado como expediente para fraudulentamente afastar um certo julgador.

No presente caso, o arguido entende que a intervenção do Senhor Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa poderá ser suscetível de ser considerada suspeita e poderá criar forte e consistente desconfiança sobre a sua imparcialidade na decisão que possa tomar, dado que anteriormente já interveio (como Presidente) em outro processo onde condenou o arguido por crimes de idêntica natureza; acentuando o arguido, por um lado, que a condenação inicial (em 18 anos de prisão) foi depois alterada em sede de recurso para uma condenação em pena de prisão de 15 anos e, por outro lado, porque o recurso agora interposto nestes autos, pelo Ministério Público, visa a condenação do arguido pelo crime de associação criminosa com vista ao tráfico de estupefacientes, crime pelo qual o arguido foi absolvido em 1.ª instância. Mais refere o arguido que, sabendo que a suspeição tem que se basear em motivo sério e grave, a “coincidência subjectiva” do arguido e do Senhor Juiz Desembargador, e a coincidência “objectiva” de estarmos perante um crime da mesma natureza constituem fundamento bastante deste pedido de recusa. E isto porque tendo condenado o arguido naquele outro processo, e tendo visto a sua decisão modificada no respeitante ao quantum da pena, entende o arguido que o Senhor Juiz Desembargador, agora, “irá — garantidamente aos olhos e sensu do tal terceiro independente e chamado a reflectir ­— em sede de Recurso condená-lo quer pelo Crime de que já vinha condenado em l.ª Instância (...) quer pelo Crime de que foi absolvido no Acórdão Recorrido”, considerando que o Senhor Juiz Desembargador “poderá já ter orientado e/ou determinado a sua convicção num concreto sentido”.

Ora, tal como é apresentada a condição do n.º 1 do art. 43.º, do CPP, é de molde a integrar nela uma variedade de situações que analisadas caso a caso permitam considerar que aquela suspeita existe.

Mas o fundamento da recusa deve ser objetivamente analisado, não bastando um mero convencimento subjetivo, devendo basear-se em “uma razão séria e grave, da qual ou na qual resulte inequivocamente um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro).”[4]  

Na verdade, “é evidente que não podem ser razões menores, quantas vezes fruto de preconceitos, quando não de razões pessoais sem qualificação, mas sim razões objectivas que se coloquem de forma séria. Fundamental é a formulação de um juízo hipotético baseado na percepção que um cidadão médio tem sobre o reflexo na imparcialidade do julgador daquele facto concreto.” (acórdão citado).

Assim sendo, cabe-nos analisar, perante os factos trazidos a estes autos, se a intervenção do Senhor Juiz Desembargador em anterior processo com o mesmo arguido se mostra objetivamente parcial atendendo ao conhecimento que tem do arguido.

Sabemos que é do quotidiano do exercício da magistratura judicial a sindicância das decisões prolatadas em 1.ª instância, e sabemos que não raro são alteradas em sede de recurso. Pelo que, qualquer magistrado judicial é não só formado para que aceite com tranquilidade estas alterações, como também sabe que, integrando-se no âmbito de um vasto sistema jurídico, a aplicação do Direito não constitui uma operação aritmética.

E, no caso concreto, se temos, por um lado, um acórdão do Senhor Juiz Desembargador, enquanto Juiz na 1.ª instância, onde condenou o arguido (em pena que foi depois diminuída em sede de recurso), por outro lado, temos um outro acórdão (já prolatado quando o Senhor Juiz Desembargador estava no Tribunal da Relação de Lisboa) que em favor do arguido rejeitou o recurso interposto, porque o acórdão não lhe podia ter sido notificado. O que constitui um elemento determinante para que tenhamos que considerar que o facto de ter intervindo em outros processos do mesmo arguido, o Senhor Juiz Desembargador manteve a imparcialidade na decisão, aplicando o Direito com isenção e sem pré-juízos.

Será que no entendimento do homem médio a imparcialidade está abalada pelo facto de o Senhor Desembargador ter intervindo em anterior processo onde condenou o arguido? Ou pelo contrário o homem médio perante a intervenção do Senhor Desembargador em outro processo já na fase de recurso e decidindo a favor do arguido entende que há atos demonstrativos de imparcialidade do juiz? Teremos dados suficientemente seguros de que nos permitam violar o princípio do juiz natural? Não nos parece.

Na verdade, compulsados todos os elementos, a simples participação, há cerca de 30 anos, em outro processo onde condenou o arguido, analisada em sintonia com a participação em outro recurso, há mais de 15 anos, onde decidiu em favor do arguido impede-nos objetiva e imparcialmente de podermos concluir que há um motivo sério e grave gerador de suspeição. Aliás, os factos demonstram-nos exatamente o contrário.

E se numa primeira análise, aos olhos do cidadão médio, pudesse existir a ideia subjetiva de que quem proferiu anteriormente uma decisão a condenar o arguido, em todas as outras, ainda que em processo distintos, irá igualmente analisar os autos com um pré-juízo contra o arguido, numa segunda análise, o cidadão médio não poderá esquecer a isenção que o mesmo Magistrado Judicial demonstrou em outra decisão. Além disto, para fundamentar o incidente de recusa não basta uma perceção subjetiva, é ainda necessária uma perceção objetiva, e a perceção objetiva, a partir de todos os elementos carreados para estes autos, é no sentido de existirem factos que evidenciam a imparcialidade do Senhor Juiz Desembargador.

Acresce um outro ponto, de não menor relevo. A decisão a tomar em sede de recurso no Tribunal da Relação de Lisboa será uma decisão colegial — o Senhor Juiz Desembargador não decidirá só (cf. art. 419.º, do CPP). O que permite assegurar a imparcialidade da decisão se dúvidas houvesse quanto ao já demonstrado pelo Senhor Juiz Desembargador.

Por tudo o exposto, concluímos que não existem motivos sérios que gerem desconfiança sobre a imparcialidade do Senhor Juiz Desembargador, pelo que se impõe o cumprimento do princípio constitucional do juiz natural.

III

Conclusão

Nos termos expostos acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir o pedido de recusa apresentado pelo arguido AA, contra o Senhor Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Guimarães, Dr. BB.

Custas em 6 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 7 de outubro de 2021
Os Juízes Conselheiros,


Helena Moniz (Relatora)

Eduardo Loureiro

António Gama

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[1] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1974, p. 303.
[2] Idem, p. 303-4.
[3] Ibidem, p. 315.
[4] Acórdão do STJ, de 13.02.2013, proc. n.º 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1, relator: Santos Cabral, sublinhado nosso, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e14355fb2048773480257b34004cd244?OpenDocument