Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1475/11.8TAMTS.P1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: ADVOGADO
ESCUSA
FILIAÇÃO
IMPARCIALIDADE
JUIZ
SUSPEIÇÃO
Data do Acordão: 02/13/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA/RECUSA
Decisão: PROCEDÊNCIA/DECRETAMENTO TOTAL
Área Temática: DIREITO PROCESSUAL PENAL - SUJEITOS DO PROCESSO / JUIZ E TRIBUNAL.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 43.º, N.º4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 27-05-1999, PROC. N.º 323/99;.
-DE 29-06-2000, PROC. N.º 943-B/98.
Sumário :

I - Nos termos do n.º 4 do art. 43.º do CPP, constitui fundamento do pedido de escusa que a intervenção do juiz no processo corra o risco de ser considerada suspeita, por se verificar motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

II - A seriedade e gravidade do motivo resultam de um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro), formulado com base na percepção que um cidadão médio tem sobre o reflexo daquele facto concreto na imparcialidade do julgador.

III - É do conhecimento normal de um cidadão médio que os atributos de objectividade e isenção no exercício da jurisdição estão tanto mais afastados quanto maior for a proximidade do julgador em relação a factos do litígio que lhe é proposto julgar, nomeadamente quando tal proximidade seja fruto de um conhecimento extraprocessual.

IV -O TEDH entende que a imparcialidade deve apreciar-se num duplo ponto de vista: aproximação subjectiva, destinada à determinação da convicção pessoal de tal juiz em tal ocasião; e também segundo uma apreciação objectiva, isto é se ele oferece garantias bastantes para excluir a este respeito qualquer dúvida legítima.

V - A imparcialidade, como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo ou preconceito, em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão.

VI -O TEDH tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário, que a imparcialidade objectiva releva essencialmente de considerações formais e que o elevado grau de abstracção na formulação de conceito apenas pode ser testado numa base casuística, na análise em concreto das funções e dos actos processuais do juiz.

VII - A juíza requerente invoca a qualidade de mãe do advogado interveniente no processo, cuja participação não se conteve nos limites de uma acção simbólica, mas revelou-se em actos processuais concretos e relevantes na tramitação processual. Como esta relação familiar é, só por si, susceptível de provocar uma sombra sobre o princípio da imparcialidade, existem fundamentos para determinar a escusa de intervenção da magistrada impetrante.
Decisão Texto Integral:

                                    Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

 A Dr.ª AA, Juiz de direito auxiliar no Tribunal da Relação do Porto, veio, nos termos dos artigos 430 e 450 do CPP, apresentar pedido de escusa nos seguintes termos:

Tendo-me sido distribuídos os autos de recurso nº1475/11.8TAMTS.P1, em que é assistente BB e arguidos CC e DD, verifico que o assistente constituí mandatários nos autos os Exm.Srs advogados associados e colaboradores da Sociedade EE, FF - Sociedade de Advogados, entre os quais se inclui o advogado GG filho da requerente. Cf. procuração de fls. 230.

O referido advogado filho da requerente intervém nos presentes autos, como se espelha ao longo de todo o processo, designadamente, estando presente nas declarações do assistente, subscrevendo requerimentos, intervindo na audiência de discussão e julgamento e subscreve a resposta ao presente recurso. cl.fls 174, 213 a 227, 454, 474, e 599 a 611.

Muito embora no Código de Processo Civil, tal circunstância seja causa de impedimento do juiz nos termos do artigo 122° nº1 al.d) do CPC, a verdade é que não consta do elenco taxativo do art° 39° do CPP, razão pela qual não se invoca directamente aquele preceito do CPC ex vi art0 40 do CPP.

No entanto, tal circunstância, configura no entendimento da requerente, a existência de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade do ponto de vista de um cidadão médio, representativo da comunidade, e em particular aos sujeitos processuais envolvidos, e como tal, correr o risco de a sua intervenção nos referidos autos de recurso ser considerada suspeita nos termos do art° 43° nº1 do CPP, ou socorrendo-nos das palavras do Prof. Cavaleiro Ferreira in " Curso de Processo Penal, voI. I, Lisboa, 1981, pág. 237-239 existir "o risco do não reconhecimento público da

Termina solicitando que verificados os requisitos, se declare a sua escusa para continuar a intervir nos mencionados autos.

Foi junta certidão relativa ao processo em recurso comprovativa do teor da invocação da ora requerente

                                             Os autos tiveram os vistos legais.

                                                                              *

                                                      Cumpre decidir:

-Nos termos do artigo 43 nº4 do Código de Processo Penal o juiz pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. Consequentemente constituem fundamento de escusa que:

- a sua intervenção no processo corra risco de ser considerada suspeita;

- por se verificar motivo, sério e grave;

- adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Estamos em face de circunstâncias específicas que contêm potencialidade para colidir com o comportamento isento e independente do julgador, colocando em causa a sua imparcialidade, bem como a confiança dos interessados e da comunidade.

É evidente que a seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, só podem conduzir à sua recusa ou escusa quando objectivamente consideradas. Assim, o mero convencimento subjectivo por parte de um interessado processual, ou o desvirtuamento da conduta do julgador, extraindo consequências perfeitamente exógenas ao funcionamento do instituto, nunca terão virtualidade para o fazer despoletar.

Falamos de uma razão séria e grave, da qual ou na qual resulte inequivocamente um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro). Visa salvaguardar-se um bem essencial na Administração da justiça que é a imparcialidade, ou seja, a equidistância sobre o litígio a resolver, de forma a permitir a decisão justa.

Mas, se está em causa uma tarefa essencial no desempenho do Estado, igualmente se procura defender a posição do Juiz, assegurando um instrumento processual que possibilite o seu afastamento quando, objectivamente, existir uma razão que, minimamente, possa beliscar a sua imagem de isenção e objectividade.

É evidente que não podem ser razões menores, quantas vezes fruto de preconceitos, quando não de razões pessoais sem qualificação, mas sim razões objectivas que se coloquem de forma séria. Fundamental é a formulação de um juízo hipotético baseado na percepção que um cidadão médio sobre o reflexo na imparcialidade do julgador daquele facto concreto.

Na verdade do que falamos é do risco da perda de objectividade, do afastamento isento que é indiciado pelo facto objectivo. Aqui, importa salientar que é do conhecimento normal de um cidadão médio que tais atributos do exercício da jurisdição estão tanto mais afastados quanto maior for a proximidade do julgador em relação a factos do litigio que lhe é proposto julgar, nomeadamente quando tal proximidade fruto de um conhecimento extraprocessual. A imparcialidade afasta-se quando as razões ditadas pela razão objectiva são substituídas pelas empatias contidas na emoção resultante da proximidade.

Neste sentido se vem pronunciando este Tribunal: «(4) - A regra do n.º 2 do art.º 43.º do CPP, agora introduzida pelo DL 59/98, de 25-08, só adquire sentido, como do próprio contexto do artigo dimana, se o fundamento da recusa que nele se contempla se apoiar nos mesmos pressupostos - os da existência de motivo sério e grave - que alicerçam aquele que se define no n.º 1 do referido normativo. (5) - É precisamente a imprescindibilidade desse motivo sério e grave que faz não só avultar a delicadeza desta matéria, como leva a pressentir que, subjacente ao instituto da recusa, se encontra a necessidade (e a conveniência) de preservar o mais possível a dignidade profissional do magistrado visado e, igualmente, por lógica decorrência e inevitável acréscimo, a imagem da justiça em geral, no significado que a envolve e deve revesti-la. (6) - Por isso é que, determinados actos ou determinados procedimentos (quer adjectivos, quer substantivos) só podem relevar para a legitimidade da recusa que se suscite, se neles, por eles ou através deles for possível aperceber - aperceber inequivocamente - um propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro. (7) - As meras discordâncias jurídicas com os actos processuais praticados ou com a sua ortodoxia, a não se revelar presciente, através deles, ofensa premeditada das garantias de imparcialidade, só por via de recurso podem e devem ser manifestadas e não através de petição de recusa» (Ac. do STJ de 27-05-1999, proc. n.º 323/99).

«(1) - O fundamento básico de recusa de juiz consiste em o mesmo poder ser considerado suspeito, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. (2) - Para a sua correcta processualização, haverá no entanto que alegar sempre factos concretos que possam alicerçar tal desconfiança e indicar as normas legais aplicáveis que fundamentam a recusa» (Ac. do STJ de 29-06-2000, proc. n.º 943-B/98).

Por seu turno o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entende que a imparcialidade deve apreciar-se de um duplo ponto de vista: aproximação subjectiva, destinada à determinação da convicção pessoal de tal juiz em tal ocasião; e também, segundo uma apreciação objectiva, isto é se ele oferece garantias bastantes para excluir a este respeito qualquer dúvida legítima.

É esta jurisprudência da maior relevância no caminho, a um tempo construtor do princípio da imparcialidade objectiva do tribunal e da sua aplicação à diversidade dos casos concretos, que vem trilhando a jurisprudência da instância europeia. A imparcialidade, como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo, ou preconceito, em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão. O TEDH tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário; e que, sendo assim, a imparcialidade objectiva releva essencialmente de considerações formais e o elevado grau de generalização e de abstracção na formulação de conceito apenas pode ser testado numa base rigorosamente casuística, na análise in concreto das funções e dos actos processuais do juiz.

No caso vertente a requerente invoca a qualidade de mãe do Sr. Advogado interveniente nos presentes autos. Tal intervenção não se conteve nos limites de uma acção simbólica, mas revelou-se em actos processuais concretos e relevantes na tramitação processual.

Igualmente é certo que, se por um lado temos um Advogado que exerce uma função nuclear num determinado processo, pelo outro teremos uma relatora do recurso que irá apreciar a justeza das posições processuais que aquele mandatário adoptou, sendo certo que o mesmo é seu filho. Objectivamente tal coincidência é susceptível de ocasionar perplexidades, e dúvidas, para o cidadão medianamente informado que, no mínimo, se questionará sobre a circunstância de a lei processual não conter meios susceptíveis de originar tal situação de melindre.

A regra base da imparcialidade, considerada objectivamente, é abalada quando os intervenientes processuais mantêm a relação familiar evidenciada nos autos que, só por si, é susceptível de provocar uma sombra sobre tal princípio  

      Estão assim demonstrados os pressupostos da invocada escusa.

Nesta conformidade, e nos termos do artigo 43 do CPP, entende-se que existem fundamentos para determinar a escusa de intervenção da Srª Magistrada impetrante o que se determina.

Sem custas

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Fevereiro de 2013

Santos Cabral (Relator)

Oliveira Mendes