Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4669/21.4T8VNF-C.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
SOCIEDADE COMERCIAL
DIREITOS DOS SÓCIOS
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
Data do Acordão: 10/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I - A competência afere-se em função dos termos da ação, tendo em consideração a pretensão formulada pelo autor e os respetivos fundamentos, tudo independentemente da idoneidade do meio processual utilizado e do mérito da pretensão

II - Direitos sociais são, e nomeadamente, os que integram a esfera jurídica do sócio, por força do contrato de sociedade, sendo inerentes à qualidade e estatuto de sócio e dirigidos à proteção dos seus interesses sociais.

III - Se a pretensão cautelar dos sócios se funda essencialmente na prejudicialidade que de um certo acordo firmado por outro sócio resulta para a sociedade, isso relaciona-se inseparavelmente com o nuclear direito daqueles sócios (direito social, corporativo), subjacente ou imanente à lei societária e ao contrato de sociedade, qual seja, o direito à preservação da sociedade, á devida prossecução do seu objeto social e ao lucro.

IV - Para o conhecimento de uma tal pretensão cautelar está a competência material deferida aos juízos de comércio, nos termos dos n.ºs 1, alínea c) e 3 do art. 128.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 4669/21.4T8VNF-C.G1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação de Guimarães

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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

A..., S.A., e AA intentaram, pelo Juízo de Comércio ..., procedimento cautelar comum com dispensa de citação prévia contra Hidurbe, Serviços, S.A., e Plainwater Serviços, SGPS, S.A., pedindo que seja ordenado às Requeridas que se abstenham, cada uma delas, de:

1. Transmitir, prometer transmitir, onerar, prometer onerar, total ou parcialmente, ou por qualquer forma, dispor a favor de terceiros, a qualquer título, e ainda que para entidade do mesmo grupo de empresas, as respetivas ações representativas, em conjunto, de 75% do capital social da A..., S.A., e respetivos direitos inerentes, e, bem assim, ceder e/ou prometer ceder os respetivos créditos, a que título for, sobre a sociedade;

2. Exercer os direitos económicos e sociais inerentes às respetivas ações e de proceder à cobrança ou recebimento dos créditos, a que título for, que detêm sobre a A..., S.A., pessoa coletiva nº ..., com sede na Rua ... ..., incluindo abster-se do exercício do direito de voto relativamente às ações de que são titulares, nomeadamente para deliberar qualquer matéria atinente ao Acordo de Subordinação e a distribuição de dividendos ao seu favor;

3. Exercer o direito consignado no nº 2 do artigo 375º do Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente quando a Assembleia de Acionista a convocar tenha por fim deliberar sobre a matéria referida no número anterior;

4. Praticarem qualquer ato, seja de que natureza for incluindo darem instruções aos respetivos representantes no conselho de administração da A..., S.A., que visem o cumprimento do Acordo de Subordinação;

5. Devendo, em consequência, ser ainda decretado que os direitos referidos nos números anteriores ficam suspensos até decisão final a ser proferida na ação principal a propor.

Providências estas a serem decretadas e que deverão manter-se enquanto não transitar em julgado a sentença a proferir no âmbito da ação principal a propor, de que este procedimento cautelar constituirá apenso.

Adicionalmente,

6. Ser ordenada a inscrição no livro de registo de ações do presente procedimento cautelar e da suspensão do exercício dos direitos respeitantes às ações detidas pelas

requeridas e dos respetivos créditos sobre a A..., S.A.;

7. Serem as requeridas notificadas de que estão impedidas de praticar quaisquer dos atos indicados nos números 1 a 4 anteriores;

Ainda

8. Ordenar o registo da presente providência na matrícula da A..., S.A, designadamente das providências requeridas nos pontos 1 a 5 deste pedido, por forma a dar publicidade e tornar oponível a qualquer terceiro que venha a adquirir o capital social das requeridas e/ou da A..., S.A.

Alegaram para o efeito, em muito apertada síntese, que:

- Tal como sucede com as Requeridas (acionistas maioritárias), são acionistas (acionistas minoritários) da sociedade A..., S.A;

- Tal sociedade foi constituída e feita funcionar nos termos de parceria previamente estabelecida entre os dois distintos Grupos societários em que se inserem, respetivamente, as Requeridas e a 1ª Requerente, e que foi objeto (a parceria) de um prévio contrato denominado “Acordo de Constituição de Agrupamento Concorrente Denominado A..., S.A”;

- Ocorre que as Requeridas violaram, através de um “Acordo de Subordinação”(tendente à reestruturação de dívida de sociedade terceira do Grupo a que pertencem) e de que a 2ª Requerida - que detém a 100% a 1ª Requerida - foi parte outorgante, obrigações que para elas resultavam de tal contrato;

- Razão pela qual têm os Requerentes direito, nos termos do aludido “Acordo de Constituição de Agrupamento Concorrente Denominado A..., S.A”, a que lhes sejam transmitidas todas as ações detidas pelas Requeridas na referida sociedade;

- Tal “Acordo de subordinação” é lesivo para a sociedade A..., S.A., pois que, atentando contra o modelo financeiro da sociedade e plano de investimentos e afetando o cumprimento do Contrato de Concessão a que a sociedade se encontra vinculada para com o Município ..., estabelece obrigações relativas à mesma, traduzidas na obrigação de aprovação da libertação de fluxos financeiros, mas sem que nisso a sociedade logre interesse ou vantagem;

- A referida aprovação apresenta-se como livre para as Requeridas, na medida em que detêm a maioria do capital social da sociedade;

- A sustentabilidade económico-financeira e de gestão da dívida da A..., S.A., que apresenta uma situação líquida negativa, depende da sua capacidade de se financiar nomeadamente junto dos seus acionistas.

As pretendidas providências foram deferidas, sem audição das Requeridas.

Em sede da oposição que deduziram posteriormente, invocaram as Requeridas, e entre o mais, a incompetência material do Juízo de Comércio, por isso que o caso não cairia na previsão do art. 128.º da LOSJ.

Aduziram para o efeito, em síntese, que a pretensão cautelar em causa não assenta na qualidade de sócios e no consequente exercício de direitos sociais, mas no direito à transmissão das ações ao abrigo do falado “Acordo de Constituição de Agrupamento”.

Veio depois a ser proferida decisão que, desatendendo essa exceção da incompetência do tribunal, teve por materialmente competente o Juízo de Comércio.

Inconformadas com o assim decidido, apelaram as Requeridas.

Fizeram-no sem êxito, pois que a Relação de Guimarães confirmou a decisão.

Mantendo-se inconformadas, pedem as Requeridas revista.

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Da respetiva alegação extraem as Requeridas as seguintes conclusões:

1. Os presentes autos tiveram início com a instauração, pelos Recorridos, de procedimento cautelar comum junto do Tribunal de 1.ª Instância, com requerimento de dispensa de audição prévia das Recorrentes, e destinado a obter uma providência contra estas, fundada no alegado incumprimento do Acordo de Constituição de Agrupamento, que vigora entre Recorrentes e Recorridos, acionistas da A..., S.A, concessionária da exploração e gestão dos serviços públicos de águas em ... (cf. doc. n.º 12 junto com o requerimento inicial).

2. O Acordo de Constituição de Agrupamento foi celebrado no contexto da preparação e apresentação de proposta em concurso público lançado pelo Município ... para esta concessão e vigora até hoje.

3. Na sequência da instauração do procedimento cautelar e da produção de prova pelas Recorridas, o Tribunal de 1.ª Instância decretou efetivamente – embora sem razão – a providência cautelar requerida, sem o contraditório prévio das Recorrentes.

4. As Recorrentes foram, então, notificadas para deduzirem Oposição e invocaram, entre outras, a exceção de incompetência material do Tribunal de 1.ª Instância para julgar o procedimento cautelar, por se encontrar fora do âmbito previsto pelo artigo 128.º, n.º 1 e 3 da LOSJ, relativo à competência dos juízos de comércio.

5. Decidindo sobre a invocada exceção, o Tribunal de 1.ª Instância entendeu que a mesma improcedia e, inconformadas com esta decisão, as Recorrentes interpuseram recurso de apelação para o Tribunal Recorrido.

6. No entanto, o Tribunal a quo confirmou, no Acórdão Recorrido, a decisão do Tribunal de 1.ª Instância e declarou-o materialmente competente para julgar o procedimento cautelar.

7. Fê-lo, no entanto, com uma fundamentação de que as Recorrentes discordam e que têm, até, dificuldade em compreender na íntegra; estando inconformadas com o Acórdão Recorrido, as Recorrentes vêm, por isso, dele recorrer para este Tribunal.

8. Versando sobre competência em razão da matéria, o recurso do Acórdão Recorrido é sempre admissível, incluindo o recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos conjugados do disposto nos artigos 629.º, n.º 2 alínea a) e 671.º, n.º 2 alínea a) do CPC.

B. O ACÓRDÃO RECORRIDO

9. O Acórdão Recorrido decidiu que a matéria dos presentes autos estaria reservada à competência dos Juízos de Comércio, por se referir ao “exercício de direitos sociais” previsto no artigo 128.º n.º 1 alínea c) da LOSJ, mas não resulta evidente qual o exato sentido da sua fundamentação.

10. Procurando retirar dele um sentido útil, o Acórdão Recorrido terá entendido que, apesar da existência do Acordo de Constituição de Agrupamento e de nele estarem estipuladas consequências para determinadas condutas das acionistas da A..., S.A, nomeadamente a nível de deliberações sociais, as realidades reguladas pelo Acordo emanam do exercício de direitos sociais pelas acionistas e impactam a qualidade de acionistas da A..., S.A.

11. Salvo o devido respeito, a fundamentação do Acórdão Recorrido não é procedente, dado que o objeto do procedimento cautelar, tal como configurado pelos Recorridos, emana apenas, e muito claramente, do Acordo de Constituição de Agrupamento – mais concretamente, reconduz-se ao seu alegado incumprimento pelas Recorrentes, portanto “nasce e morre” no Acordo de Constituição de Agrupamento, sendo independente da, e indiferente à, relação dos acionistas com a A..., S.A.

12. Estamos, portanto, perante um procedimento cautelar, e uma projetada ação principal, que incidem sobre matéria contratual, o que os arreda das matérias taxativamente inscritas pela lei na competência material dos Juízos de Comércio – nomeadamente no segmento da alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º, relativo ao “exercício de direitos sociais” – e determina a incompetência material do Tribunal de 1.ª Instância.

C. MOTIVOS QUE DETERMINAM A FALTA DE ACERTO DO ACÓRDÃO RECORRIDO

C.1. O OBJETO DOS PRESENTES AUTOS EMANA DO ACORDO DE CONSTITUIÇÃO DE AGRUPAMENTO

13. As Partes são as atuais acionistas da A..., S.A e a parceria que deu origem à sua constituição foi forjada entre o grupo empresarial dos Recorridos e um grupo empresarial terceiro – que, entretanto, transferiu a sua posição às Recorrentes –, a fim de organizar a sua participação no já mencionado concurso lançado pelo Município ....

14. O Acordo de Constituição de Agrupamento foi celebrado em 05.05.2003 no contexto desta parceria e antes da constituição da A..., S.A, vigorando até hoje (cf. doc. n.º 12 junto com o requerimento inicial).

15. Lido o requerimento inicial dos Recorridos, é evidente que os presentes autos têm por objeto, apenas, o pretenso incumprimento do Acordo de Constituição de Agrupamento pelas Recorrentes, concretamente da sua Cláusula 16.ª alínea b), e as respetivas consequências desse alegado incumprimento, previstas na Cláusula 17.ª (cf. doc. 12 junto com o requerimento inicial).

16. Em particular, os Recorridos alegam que, por via da celebração de um determinado contrato com terceiros, no qual nem os Recorrentes nem a A..., S.A são parte – o denominado “Acordo de Subordinação” –, as Recorrentes teriam violado os termos da alínea b) da referida Cláusula 16.ª do Acordo de Constituição de Agrupamento, que elenca determinadas matérias em que as acionistas da A..., S.A acordaram a maioria qualificada de dois terços para deliberar no seio dos órgãos sociais da A..., S.A.

17. Com base nesse pretenso incumprimento, os Recorridos pretendem desencadear o mecanismo compensatório estabelecido na Cláusula 17.ª do Acordo de Constituição de Agrupamento, que prevê a aquisição, pela parte não faltosa do Acordo de Constituição de Agrupamento, das ações da parte faltosa na A..., S.A; o procedimento cautelar tem por objetivo conservar a situação de facto que permita essa eventual aquisição em sede de ação principal.

18. Assim, a tarefa a desenvolver pelo tribunal competente para julgar o procedimento cautelar será determinar se houve, ou não, incumprimento do Acordo de Constituição de Agrupamento pelas Recorrentes, por terem celebrado – na realidade só a segunda Recorrente celebrou – o Acordo de Subordinação com terceiros e, consequentemente, se as Recorrentes devem, ou não, ser condenadas no cumprimento do mecanismo de aquisição de ações previsto na Cláusula 17.ª do Acordo de Constituição de Agrupamento.

C.2. O OBJETO DOS PRESENTES AUTOS ESTÁ FORA DO ÂMBITO DE COMPETÊNCIA MATERIAL DOS JUÍZOS DO COMÉRCIO

19. As matérias cuja preparação e julgamento compete aos Juízos do Comércio encontra-se taxativamente indicada nas diversas alíneas do artigo 128.º, n.º 1 da LOSJ, a saber:

“a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;

b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;

c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;

d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As ações de liquidação judicial de sociedades;

f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;

g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais; h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;

i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras” (destacado nosso).

20. O n.º 3 do mesmo artigo 128.º da LOSJ esclarece ainda que “a competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões”, pelo que os Juízos de Comércio são competentes para conhecer do mérito da ação principal e dos respetivos incidentes e apensos (como é o caso de uma providência cautelar) relativos às matérias indicadas nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ.

21. A competência do tribunal, enquanto pressuposto processual que é, determina-se à data da entrada da ação (in casu, da providência) e por referência à pretensão formulada e sustentada pelo autor ou requerente, tanto na vertente objetiva (pedido e causa de pedir), como na vertente subjetiva (relativa às partes).

22. Assim, é tomando por base a relação material controvertida, tal como configurada pelo autor ou requerente, que a análise sobre a competência do tribunal deve ser levada a cabo.

23. Neste sentido se tem pronunciado, de forma pacífica, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, nomeadamente deste Douto Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal de Conflitos, além dos diversos Tribunais da Relação.

24. Por outro lado, no que respeita à competência material para a apreciação do procedimento cautelar, a mesma será aferida à luz da configuração ou projeção do que virá a ser a correspondente ação principal (cf. artigos 91.º, n.º 1 e 364.º do CPC).

25. Neste sentido, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13.02.202015, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23.01.202016, e de 09.04.201917, todos concordando que a competência em razão da matéria para as providências cautelares não tem autonomia, dado que o procedimento cautelar está na dependência da ação principal, derivando por isso da sua configuração (ou projeção, no caso em que é instaurada previamente ao início daquela).

26. Portanto, para aferir da competência material dos Juízos de Comércio para julgar os presentes autos é necessário que (i) o objeto do processo (aqui, como nos autos principais) seja subsumível a uma das alíneas do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ e que (ii) a competência material do Tribunal de 1.ª Instância seja aferida por referência à competência para a apreciação e julgamento da ação principal a intentar pelos Recorridos.

27. O objeto da ação principal a instaurar pelos Recorridos não se subsume a qualquer das matérias previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ, maxime à matéria prevista na sua alínea c), referente a “ações relativas ao exercício de direitos sociais”.

28. De facto, ao contrário do que afirma o Acórdão Recorrido, não é a qualidade de acionistas da A..., S.A que determina o exercício, pelos Recorridos, dos direitos aqui em causa, mas sim a sua qualidade de partes do Acordo de Constituição de Agrupamento.

29. Por isso, estes autos (e os autos principais que se lhe seguirão) tratam de uma pretensão e de uma causa de pedir de natureza puramente civil e contratual (entre Recorridos e Recorrentes), que não se reconduz ao exercício de qualquer “direito social” dos Recorridos.

30. Embora a LOSJ não explicite o que deve entender-se por “direitos sociais” para efeitos do preenchimento da alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ, tem sido pacificamente entendido que “direitos sociais” são direitos cuja matriz, direta e imediatamente, se funda na lei societária e/ou no contrato de sociedade.

31. Neste sentido se tem pronunciado a doutrina e a jurisprudência dos nosso Tribunais superiores.

32. De facto, existir especificidade societária é o pressuposto subjacente à delimitação da competência especializada dos juízos do comércio.

33. Assim sendo, o simples facto de estarmos perante direitos e obrigações existentes entre acionistas da A..., S.A não torna esses direitos “sociais” para efeito do disposto no artigo 128.º, n.º 1, alínea c), da LOSJ, dado que não decorrem da relação social – isto é, da relação da sociedade com o sócio.

34. Estes direitos e obrigações são, aliás, alheios à sociedade A..., S.A, e saber se as Recorrentes – ou uma delas – violou o Acordo de Constituição de Agrupamento por ter celebrado o Acordo de Subordinação com terceiros é matéria que deve ser aferida à luz das regras de direito dos contratos e direito das obrigações; tratar-se-á de uma ação por incumprimento contratual e este é o respetivo procedimento cautelar prévio.

35. Em conclusão, (i) ao fazerem assentar a sua causa de pedir no pretenso incumprimento do Acordo de Constituição de Agrupamento pelas Recorrentes e (ii) ao reconhecer que requererão, na ação principal subsequente a este procedimento, a condenação das Recorrentes no mecanismo de incumprimento previsto na Cláusula 17ª do Acordo de Constituição de Agrupamento, os Recorridos não estão a fazer valer um “direito social” para os efeitos da alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ.

36. Por esse motivo, os Juízos de Comércio são materialmente incompetentes para tramitar a ação principal a ser instaurada pelos Recorridos e, por inerência, são também materialmente incompetentes para conhecer o presente procedimento cautelar.

37. Assim, em face do exposto, deve ser reconhecida a incompetência material do Tribunal de 1.ª Instância que, nos termos dos artigos 96.º alínea a) do CPC, corresponde a uma incompetência absoluta, que é uma exceção dilatória (cf. artigos 576.º, n.º 2 e 577.º alínea a) do CPC).

38. Esta exceção obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, o que, neste caso, determina a revogação imediata da providência já decretada pelo Tribunal de 1.ª Instância (cf. artigos 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a) e 372.º, n.º 3, todos do CPC).

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Os Requerentes contra-alegaram, concluindo pela improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

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É questão a conhecer:

- Incompetência material do tribunal.

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III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Dão-se aqui por reproduzidos os factos processuais acima (no relatório) descritos.

De direito

Defendem as Recorrentes que o tribunal (Juízo de Comércio) onde o procedimento foi instaurado carece de competência material para o efeito.

Mas não é assim.

Justificando:

É ponto assente nos círculos jurisprudenciais e doutrinários que a competência dos tribunais afere-se em função dos termos da ação, tendo em consideração a pretensão formulada pelo autor e os respetivos fundamentos, tudo independentemente da idoneidade do meio processual utilizado e do mérito da pretensão. Como indica Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, p. 91), a competência do tribunal determina-se pelo quid disputatum (quid decidendum, por contraposição com aquilo que será mais tarde o quid decisum), que traduz precisamente a ideia de que a competência se determina em função do objeto (pedido e seus fundamentos) da causa tal como definido pelo demandante.

Estabelece a alínea c) do n.º 1 do art. 128º da LOSJ (Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, sucessivamente alterada) que compete aos juízos de comércio, e nomeadamente, preparar e julgar as ações relativas ao exercício de direitos sociais; e o n.º 3 estabelece que tal competência abrange os respetivos incidentes e apensos.

Direitos sociais são, numa primeira perspetiva mais restritiva, os direitos dos sócios - estabelecidos na lei ou nos estatutos da sociedade - que têm a ver com a vida ou dinâmica interna das sociedades (direitos dos sócios no domínio da sociedade). Nesta medida, direitos sociais são todos aqueles direitos que uma pessoa possui enquanto sócio de uma sociedade, tendentes, portanto, à proteção das vantagens decorrentes do facto de ser membro da sociedade. São direitos que nascem na esfera jurídica do sócio enquanto tal, estando subjacente a eles o contrato de sociedade. Ao invés, os direitos, nomeadamente os de crédito, que aos sócios de uma sociedade possam advir para além do contexto da vida ou dinâmica interna da própria sociedade, serão direitos extrassociais.

Daqui que, e como adequadamente se aponta no acórdão da Relação do Porto de 18 de Abril de 2016 (processo n.º 84362/15.3YIPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt), e passa-se a citar, “para efeitos de integração na alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, «direitos sociais» são os que integram a esfera jurídica do sócio, por força do contrato de sociedade, sendo inerentes à qualidade e estatuto de sócio e dirigidos à proteção dos seus interesses sociais”, de sorte que “os direitos sociais ou corporativos, integráveis na previsão legal do normativo citado pressupõem: i) que o autor tenha a qualidade de sócio; ii) que o direito que visa realizar através da ação se alicerce no contrato de sociedade; iii) que com o pedido formulado vise a proteção de um qualquer dos seus interesses sociais”.

Também Luis Brito Correia (Direito Comercial, 2º Volume, AAFDL, 1987, p. 306) nos diz que direitos sociais ou corporativos são “os direitos que os sócios têm como sócios da sociedade e que tendem à proteção dos interesses sociais”. Por seu turno, Miguel Pupo Correia (Direito Comercial, 8ª ed., p. 574) expende que em matéria de direitos dos sócios há que distinguir entre os direitos extracorporativos ou extrassociais (estes direitos “são os direitos dos sócios que os posicionam como estranhos à sociedade, como terceiros face à relação jurídica social”) e os direitos corporativos ou sociais (estes direitos são os que cabem aos sócios enquanto membros da instituição societária, e que “integram o que podemos chamar o lado ativo da sua participação social”). Ainda, diz-nos Paulo Olavo Cunha (Breve Nota sobre os Direitos dos Sócios, in Novas Perspetivas do Direito Comercial, Almedina, 1988, p. 232) que “Os direitos sociais são direitos «sui generis» que resultam da posição que os sócios ocupam na sociedade, enquanto sócios. Estão fora do seu âmbito os «direitos creditórios» ou «extra-corporativos» - direitos de terceiros ou direitos dos sócios enquanto terceiros, ou seja, independentemente da sua posição social ou, conquanto dela possam ter resultado, autonomizaram-se quando concretizados”.

Numa segunda perspetiva mais ampla, e como se aponta no acórdão deste Supremo de 8 de maio de 2013 (processo n.º 5737/09, disponível em www.dgsi.pt) e no acórdão da Relação de Coimbra de 11 de Abril de 2019 (processo n.º 591/18.0T8LRA.C1, disponível em www.dgsi.pt), será ainda de entender que sendo embora os sócios os sujeitos do contrato de sociedade, os direitos sociais não se esgotam na sua titularidade, desde logo, porque, gozando as sociedades de personalidade jurídica, será difícil recusar a qualificação de sociais aos direitos de que ela, uma vez constituída, é titular, e que emergem especificamente do contrato de sociedade ou da lei societária (v. a propósito o art. 71.º e seguintes do CSComerciais). Será assim de concluir, nas palavras do referido acórdão deste Supremo, que “uma vez constituída a sociedade, titulares dos direitos sociais tanto podem ser os sócios, como a própria sociedade; logo, os direitos sociais são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária e/ou no contrato de sociedade”.

Ora, passando ao caso vertente, é certo que os Requerentes começam por fazer derivar geneticamente a sua pretensão de um antecedente “Acordo de Constituição de Agrupamento Concorrente Denominado A..., S.A”, e este não emerge enquanto tal da lei societária ou do contrato de sociedade da A..., S.A. (embora se possa dizer que esse contrato pressupõe, reflete ou tem subjacente o que foi firmado naquele Acordo).

Porém, menos certo não é que os Requerentes não se limitam a pedir em função do direito que lhes é atribuído nesse “Acordo” à transmissão das ações em caso de incumprimento por banda da outra parte das obrigações nele estabelecidas, senão também em função dos interesses da sociedade, e, como assim, dos seus próprios interesses sucedâneos de sócios da sociedade.

Com efeito, e como supramencionado, a pretensão dos Requerentes, sócios (acionistas), funda-se igualmente (aliás, essencialmente) na prejudicialidade que do falado “Acordo de Subordinação” resulta para a sociedade A..., S.A.. E isto relaciona-se inseparavelmente com o nuclear direito dos sócios (direito social, corporativo), subjacente ou imanente à lei societária e ao contrato de sociedade, qual seja, o direito à preservação da sociedade, á devida prossecução do seu objeto social e ao lucro (v. art.s 21.º do CSComerciais e 980.º do CCivil).

Está essencialmente em causa, pois, tal como o pedido e os seus fundamentos estão estruturados, o interesse social ou corporativo dos Requerentes enquanto sócios da A..., S.A., tudo se movendo no contexto da vida ou dinâmica interna da própria sociedade. E as providências que foram requeridas revelam-se aptas á satisfação de tais finalidades, constituindo o alegado direito à transmissão forçada das ações nos termos do referido “Acordo de Constituição de Agrupamento” o meio que os Requerentes entendem ser o adequado á neutralização da suposta lesão.

Portanto, e diferentemente do que defendem as Recorrentes («…o alegado incumprimento pelas Recorrentes (…) “nasce e morre” no Acordo de Constituição de Agrupamento, sendo independente da, e indiferente à, relação dos acionistas com a A..., S.A», não pode dizer-se que o presente procedimento tem em vista simplesmente o exercício de um direito extrassocial, muito pelo contrário.

Deste modo, tem o Juízo de Comércio onde o procedimento foi apresentado competência material, pois que é precisamente isso que decorre da alínea c) do n.º 1 e do n.º 3 do art. 128.º da LOSJ.

Improcede, pois, o recurso, sendo de manter o acórdão recorrido e a decisão da 1ª instância.

Por último: escusado será reafirmar que a questão da competência nada tem a ver com o mérito da pretensão. Interessa-nos para aqui apenas a pretensão tal como deduzida e os seus fundamentos, sendo para o caso indiferente saber se aquela pode ou não proceder e se foram ou não alegados factos com suficiência em ordem à procedência.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.

Regime de custas

As Recorrentes são condenadas nas custas da revista.

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Lisboa, 11 de outubro de 2022

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

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Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).