Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
334/21.0GBCTX.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
PLURALIDADE DE AÇÕES
CRIME CONTINUADO
CONCURSO DE INFRAÇÕES
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - Tendo sido fixada a matéria de facto provada e entendido para o efeito da qualificação jurídica operada que houve pluralidade de resolução criminosa (na prática de 75 (setenta e cinco) crimes de abuso sexual de crianças, 45 (quarenta e cinco) dos quais previstos e puníveis pelos arts. 171.º, n.os 1 e 2 , e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, e 30 (trinta) previstos e puníveis pelos arts. 171.º, n.os 1 e 2 e 177.º, n.º 1, als. a) e c), ambos do CP) por isso se tendo condenado o arguido nas penas parcelares de 6 (seis) anos de prisão pela prática de cada um deles e em 13 anos de pena unitária; a solução do crime continuado não é subsumível dos factos e muito menos seria permitida nos termos do art. 30.º, n.º 3, do CPP por se tratar de bens eminentemente pessoais.
II - A jurisprudência do STJ tem perfilhado, maioritariamente, o entendimento que afasta quer a continuação criminosa quer a figura do crime exaurido, de trato “sucessivo”, nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.
III - A fixação em patamar de 13 anos a pena de prisão unitária, a partir de uma moldura com um mínimo de 6 anos pelo crime mais grave, não se assume como desproporcional ou exagerado, considerando uma moldura penal abstracta do concurso entre 06 e 25 anos de prisão, a elevadíssima ilicitude dos factos, o grau de culpa intenso, a necessidade de uma robusta censura do comportamento, o facto de serem suas filhas as vítimas desde os 4 anos até aos 9 anos de idade, a desestruturação de modelo de pai confiável , pena essa de prisão configurando a linha correcta da expressão equilibrada das necessidades de prevenção e de censura institucional e comunitária expectáveis na protecção dos bens jurídicos em causa. A prática de actos de sexo oral vaginal e anal sobre as suas filhas, desde tenra idade, e durante, pelo menos, setenta e cinco vezes, ao longo de cerca de 06 anos e a não evidenciação de actos de decisivo arrependimento (que não decorre, per se, da mera confissão, ainda que parcial) justificam claramente a pena aplicada.
IV - A ausência de antecedentes criminais não deixa de se considerar que não é por si uma atenuante (também não agrava a responsabilidade), pois o bom comportamento é um dever de qualquer cidadão.”
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º334/21.0GBCTX.L1.S1

Recurso de Acórdão do Tribunal Colectivo de Lisboa Norte- Central Criminal de ...- J...

Juiz Conselheiro Relator- Agostinho Torres

Tribunal Recorrido:-Lisboa Norte- Central Criminal de ...- J...

Recorrente (s):- Arguido AA

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

(5ª Secção Criminal)

I-Relatório

1.1. Por acórdão de  20 de outubro de 2022 proferido no Processo Comum (Tribunal Coletivo) 334/21.0GBCTX.L1 que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., Lisboa Norte- Central Criminal de ...- J... foi decidido em relação ao arguido AA (nascido em .../.../1989  e  idº  nos autos) atualmente preso preventivamente no Estabelecimento Prisional ...:

“(…):

1. Absolver o arguido, AA, da prática de cento e dez crimes de abuso sexual de crianças, previstos e puníveis pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alíneas a) e c), ambos do Código Penal;

2. Condenar o arguido, AA, pela prática de 75 (setenta e cinco) crimes de abuso sexual de crianças, 45 (quarenta e cinco) dos quais previstos e puníveis pelos artigos 171.º, n.ºs 1   e 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, e 30 (trinta)

previstos e puníveis pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alíneas a) e c), ambos do Código Penal, nas penas parcelares de 6 (seis) anos de prisão pela prática de cada um deles;

3. Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão, nos termos do disposto no artigo 77.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código Penal, condenar o arguido, AA, na pena única de 13  (treze) anos de prisão;

4. Condenar o arguido, AA, na pena acessória de inibição das responsabilidades parentais, pelo período de 15 (quinze) anos no que se refere à menor BB e pelo período de 20 (vinte) anos em relação à menor CC;

5. Condenar o arguido, AA, a pagar, a título de indemnização, à menor BB a quantia de 25.000 € (vinte e cinco mil euros) e à menor CC o montante de 15.000 € (quinze mil euros);

*

II. DA AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO RESULTARAM PROVADOS OS SEGUINTES

FACTOS:

1. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o ano de 2011, o arguido AA partilha cama, mesa e habitação com DD (doravante DD);

2. Fruto do relacionamento mantido com DD, nasceu BB (doravante BB) em .../.../2012 e CC em .../.../2017 (doravante CC);

3. No período compreendido entre o ano de 2011 e o ano de 2016, o arguido e DD residiram na cidade ...;

4. Em data não concretamente apurada do ano de 2016, o arguido e DD fixaram a residência comum na Rua ... ..., ... e ali residiam com as menores BB e CC e EE, mãe de DD e

avó de BB e CC;

5. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o ano de 2016, que DD exerce funções de auxiliar em Lar, apenas gozando um fim de semana por mês de folga;

6. Em virtude de DD trabalhar ao fim de semana, BB e CC ficavam nesse período aos cuidados do arguido;

7. Em datas não concretamente apuradas, mas no final do ano de 2016, após BB perfazer 4 anos de idade, ainda na residência sita no ..., o arguido, aproveitando o facto de DD não se encontrar em casa, levou BB para o seu quarto e colocou o pénis ereto no interior da boca da menor, compelindo-a a lamber o mesmo até ejacular;

8. Após a mudança de residência para ..., o arguido continuou a obrigar a sua filha menor a manter contactos sexuais com o mesmo;

9. Assim, desde o ano de 2016 até 10 de outubro de 2021 em datas não concretamente apuradas, mas pelo menos uma vez por mês ao fim de semana, o arguido, aproveitando o facto de DD não se encontrar em casa, levou BB para o seu quarto e ali levou a menor a praticar consigo atos de cariz sexual;

10. O arguido, sempre naquelas circunstâncias de tempo e de lugar, aproveitando a ausência de DD, colocou o pénis ereto no interior da boca de BB;

11. Em ato contínuo, de modo não concretamente apurado, agarrou na cabeça de BB e empurrou-a em sentido ascendente e descendente, por forma a que os lábios de BB se envolvessem no pénis do arguido, provocando sucção, até ejacular no interior da boca de BB;

12. Nessas circunstâncias, BB pediu por diversas vezes ao arguido para parar, porém aquele só parava quando queria;

13. Em data não concretamente apurada, numa das ocasiões em que o arguido colocou o pénis ereto no interior da boca de BB, em consequência da sua conduta, provocou dores e corte com sangramento na garganta de BB;

14. Naquelas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido ordenou a BB que esta colocasse os testículos na sua boca e com as mãos agarrasse o pénis ereto do mesmo efetuando movimentos ascendentes e descendentes e que BB ao mesmo tempo com a língua lambesse o seu pénis, até ejacular;

15. Em datas não concretamente apuradas, mas aos fins de semana, o arguido, aproveitando a ausência de DD, após despir BB da cintura para baixo, colocou os dedos sobre a vagina de BB manipulando-os e massajando a vagina da mesma;

16. Nessas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido colocou a boca sobre a vagina de BB, tendo chupado a mesma e mexido a língua contra a vagina da menor;

17. Em data não concretamente apurada, o arguido, aproveitando a circunstância de BB se encontrar a dormir no seu quarto consigo, colocou a mão sobre a vagina de BB e apalpou-a;

18. Em datas não concretamente apuradas, mas aos fins de semana e na ausência de DD, o arguido, que se encontrava deitado na cama, após despir BB da cintura para baixo, colocou a menor em cima de si, virada de costas, e em posição de cócoras e, após, com o pénis ereto, introduziu-o no ânus de BB, fazendo força para conseguir a penetração, provocando-lhe dores;

19. Em datas não concretamente apuradas e em número não concretamente apurado de vezes, o arguido, aproveitando o facto de estar a dar banho a BB, colocou o pénis ereto na boca daquela e ordenou que a mesma o chupasse até ejacular;

20. Nessas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido colocou a língua e os dedos na vagina de BB manipulando-a;

21. Em datas não concretamente apuradas, mas no decurso do ano de 2021, pelo menos por cinco vezes, após CC perfazer 4 anos de idade, aos fins de semana, aproveitando a ausência de DD, o arguido levou CC para o seu quarto e colocou o pénis ereto no interior da

boca daquela, compelindo-a a chupar e a lamber o mesmo, até ejacular;

22.O arguido tinha plena consciência que praticou os atos supra descritos desde que BB tinha 4 anos até perfazer os 8;

23.Tinha ainda o arguido plena consciência de que, à data, a menor CC tinha apenas 4 anos de idade;

24.O arguido bem sabia que BB e CC eram suas filhas e que tinham menos de 14 anos de idade, sabendo ainda que era ele, juntamente com a mãe de BB e CC, sua companheira, quem providenciava pela educação e sustento das suas filhas, exercendo também sobre as mesmas

as competentes responsabilidades parentais, e que tal circunstância, o facto de ser pai de BB e CC, lhe agravava a responsabilidade criminal em que sabia incorrer;

25.BB e CC, tendo em conta as suas idades, naturalmente não compreendiam nem tinham discernimento para entender o alcance e o significado dos atos sexuais que o arguido praticou com as mesmas, nem conseguiam autodeterminar-se sexualmente;

26.BB e CC apenas permitiram que o arguido levasse a cabo os atos sexuais acima referidos devido à sua ingenuidade, imaturidade, falta de experiência e incapacidade de avaliar as consequências dos aludidos atos em face das suas tenras idades, e porque o arguido, como pai, tinha ascendência sobre as mesmas, aproveitando-se o arguido do seu estatuto de pai e da natural incapacidade de resistência das menores, suas filhas, para dessa forma satisfazer os seus instintos libidinosos;

27.O arguido também sabia que era ele e a mãe de BB e CC quem deviam providenciar, na qualidade de progenitores, pela educação das filhas, sabendo ainda que sempre exerceu as responsabilidades parentais relativamente às suas filhas e que as mesmas lhe estavam, naturalmente, confiadas para educação e assistência;

28. O arguido atuou da forma supra descrita com o propósito concretizado de, por meio do corpo das suas filhas, satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que os atos sexuais e de cariz sexual que praticou com BB e CC desde os 4 anos de idade destas até ao dia 10 de outubro de 2021, eram adequados a prejudicar o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade das suas filhas na sua esfera sexual, aproveitando-se da idade destas que a tornavam incapazes de opor resistência aos atos que levou a cabo, bem como da sua ingenuidade e inexperiência e da sua qualidade de pai, assim as obrigando a suportar os atos sexuais e as constrangendo, perturbando e ofendendo na sua liberdade de autodeterminação sexual;

29.Ao atuar do modo acima descrito, o arguido sujeitou as menores BB e CC, suas filhas, a satisfazerem os seus desejos libidinosos, bem sabendo que por via disso causava às suas filhas um desgosto profundo e que perturbava o correto e saudável desenvolvimento das suas

personalidades ainda em formação;

30. O arguido sabia ainda que tinha o dever de respeitar as suas filhas, muito em particular por se tratarem de pessoas particularmente indefesas em razão da idade e que, ao atuar da forma acima descrita, impediu a BB e a CC de terem um crescimento saudável e harmonioso, provocando constrangimentos do desenvolvimento das menores decorrentes de terem vivenciado, inúmeras vezes, as situações acima descritas, o que quis e conseguiu;

31. O arguido agiu em todas as circunstâncias atrás descritas livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era suscetível de pôr em causa o desenvolvimento, a formação e a liberdade de autodeterminação das suas filhas, quer como pessoas quer como mulheres, o que quis e conseguiu;

32.O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime;

33.O arguido confessou parcialmente os factos;

34.Do relatório social de fls. 457 a 460, resulta que:

II Condições sociais e pessoais

À   data   dos   alegados   factos   que   deram   origem   ao   processo   em   causa, AA coabitava com a companheira e com as duas filhas menores de idade, na casa da mãe da companheira, situada na ....

À   data   da   prisão   o   arguido   encontrava-se   a   trabalhar   na   empresa  L...,  de  cargas  e  descargas  de   mercadoria,  para  a  empresa  J....

Em termos de perspetivas futuras, o arguido verbaliza a intenção de fixar residência junto da progenitora e padrasto, na zona de .... No plano profissional, refere pretender “começar do zero” (sic), em qualquer área de atividade.

Em termos de enquadramento sociofamiliar, o arguido beneficia de apoio emocional    e    financeiro,    principalmente    por    parte    da    progenitora,    do padrasto   e  das   irmãs.   A   irmã   FF,   apesar   de   se   disponibilizar para o apoiar, assume alguma dificuldade na manutenção de uma relação de proximidade com o irmão, de quem guarda grande mágoa, pelos maus tratos por ele infligidos.

A   progenitora   salienta   como   fontes   de   sofrimento,   quer   a   tipologia   de crime pela qual  o arguido se encontra indiciado, quer o afastamento das netas, de quem está impossibilitada de se aproximar por determinação do Tribunal.

III – Impacto da situação jurídico-penal

AA  encontra-se  em  prisão  preventiva  desde 16  de  outubro  de 2021,     estando     desde    10    de     fevereiro     de    2022     no    Estabelecimento Prisional ..., à ordem do processo 334/21.0GBCTX do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo Central Criminal ... – Juiz ....

O arguido reconhece a gravidade e censurabilidade dos ilícitos pelos quais vem acusado, apresentando uma postura de resignação, mostrando-se recetivo a, em caso de condenação, sujeitar-se a intervenção especializada no âmbito da sexualidade.

O envolvimento no presente processo surge numa fase em que o arguido assume alguma insatisfação sexual na relação de intimidade com a companheira.

A situação jurídico-penal do arguido teve um forte impacto na vida dos seus familiares, quer pelo choque e forte sentimento de censura dos familiares face aos seus comportamentos abusivos, quer pelo afastamento das menores, com quem existia um relacionamento de proximidade. Em ambiente prisional, o arguido apresenta um comportamento de acordo com o normativo institucional. Encontra-se laboralmente inativo. Não tem acompanhamento na valência de Psicologia dos Serviços Clínicos do Estabelecimento Prisional.

IV – Conclusão

O processo de desenvolvimento e socialização de AA, foi caracterizado pela ausência de modelos de identificação positivos e estruturantes e por um contexto sociofamiliar desorganizado e disfuncional.

O abandono escolar precoce, a trajetória laboral precária e descontinuada e as dificuldades no estabelecimento de relações afetivamente competentes, vieram a refletir-se negativamente na sua trajetória de vida, intensificando a sua instabilidade emocional. No presente o apoio familiar do arguido encontra-se condicionado pelo choque e forte sentimento de censura dos familiares face aos seus comportamentos abusivos. Em simultâneo, AA reconhece censura nos comportamentos pelos quais se encontra em julgamento, aceitando como legitima a intervenção de justiça.

Atento o referido, em caso de condenação, identificamos como necessidades de intervenção a promoção de um estilo de vida normativo e estruturado, com a definição de um projeto laboral consistente. Identificam-se, em paralelo, vantagens na sujeição do arguido a acompanhamento psicológico regular, intervenção na área da sexualidade e integração no Programa de Intervenção Técnica dirigido a Agressores Sexuais, de modo a potenciar o pensamento autocrítico, de autoanálise e interiorização do desvalor e gravidade da sua conduta, promovendo em paralelo o desenvolvimento de competências de autocontrolo, pensamento consequencial e descentração”; 35. O arguido não tem quaisquer condenações anteriores.

III. FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provou que:

1.      O   referido   em   9.   aconteceu,   pelo   menos   em   três   fins   de   semanas   por mês.

V. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL

(…)

Reportando-nos ao caso em apreço e considerando a factualidade provada nos mesmos, dúvidas não restam de que estão verificados todos os pressupostos objetivos e subjetivos do crime em análise.

Importa, para tanto, atentar na factualidade provada sob 7. a 21..

Com efeito, desde o ano de 2016, até 10 de outubro de 2021, em datas não concretamente apuradas, mas pelo menos uma vez por mês ao fim-de-semana, o arguido praticou atos sexuais de relevo com a sua filha menor BB (cfr. pontos 10., 11., 13., 14., 15., 16., 17., 18., 19. e 20. da factualidade provada), bem como o fez no decurso do ano de 2021 com a sua filha menor CC (cfr. ponto 21. da factualidade provada).

Considerando o provado sob os pontos 22. a 32., constata-se ter o arguido atuado com plena consciência que praticou os referidos atos sexuais de relevo com a sua filha BB desde que esta completou 4 anos e até aos seus 8 anos de idade, bem como de que o fez em relação à sua filha CC quando esta tinha 4 anos de idade, levando-as a satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que por via disso causava às suas filhas um desgosto profundo e que perturbava o correto e saudável desenvolvimento das suas personalidades em formação.

Agiu o arguido em todas as circunstâncias descritas nos factos provados de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era suscetível de pôr em causa o desenvolvimento, a formação e a autodeterminação das suas duas filhas, quer como pessoas, quer como mulheres, o que conseguiu. Questão   que   se   coloca   é   a   de   saber   se   estamos   perante   uma   unidade ou pluralidade de infrações sexuais de relevo com as ofendidas BB e CC.

No caso dos autos, provou-se que desde o ano de 2016 e até 10 de outubro de 2021, em datas não concretamente apuradas, mas pelo menos uma vez por mês ao fim-de-semana, o arguido aproveitando o facto de DD não se encontrar em casa, levou BB para o seu quarto e ali levou a menor a praticar consigo atos de cariz sexual. Da mesma forma, provou-se que em datas não concretamente apuradas, mas no decurso do ano de 2021, pelo menos cinco vezes, após CC perfazer 4 anos de idade, aos fins-de-semana, o arguido levou aquela para o seu quarto e colocou o seu pénis ereto no interior da boca daquela, compelindo-a a chupar e a lamber o mesmo, ate ejacular.

Em virtude de tudo o referido, mostram-se imputados ao arguido 180 crimes de abuso sexual de crianças, na pessoa da menor BB e 5 crimes de abuso sexual de crianças, na pessoa da menor CC.

Em face da dificuldade de apurar qual o número de crimes sexuais praticado, pronunciou-se alguma jurisprudência no sentido de resolver este problema de contagem do número de crimes falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou   de   trato   sucessivo,   em   que   se   convenciona   que   há   só   um   crime   (neste   sentido,

acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de novembro de 2012, disponível em www.dgsi.pt).

Tal questão encontra-se, porém, hoje pacificada no sentido de que “a prática, pelo agente, em momentos distintos, de actos lesivos da autodeterminação sexual de uma criança integra uma pluralidade sucessiva de crimes, não existindo base legal para que as diversas condutas sejam consideradas como um único crime de trato sucessivo” – cfr. acórdão da Relação de Coimbra, de 30 de março de 2022.

No mesmo sentido, poderá ver-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de maio de 2017, disponível em www.dgsi.pt, onde se escreveu que “…A unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada ato sexual de relevo, e sem que legalmente esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei, desde logo, por não aplicação do regime do concurso de crimes. Isto é, não podendo unificar-se a prática de todos aqueles atos no crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, então apenas nos resta aplicar o disposto no art. 30.º, n.º 1, do CP. Entender que tendo sido o mesmo tipo legal de crime preenchido diversas vezes pela conduta do arguido, ainda assim devemos entender como estando apenas perante um único crime, será decidir contra legem”.

No mesmo sentido poderão ver-se os acórdãos da Relação de Évora de 24 de novembro de 2020 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 13 de julho de 2020, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

Impõe-se, assim, recorrer aos factos provados para apurar o número de crimes praticados pelo arguido e pelos quais deverá ser condenado.

No que se refere à menor CC, estão definidos factos suscetíveis de integrar a prática por parte do arguido do crime de abuso sexual de crianças por cinco vezes, sendo que no que se refere à menor BB, em face do período descrito em 9. dos factos provados e da periodicidade ali referida, se impõe concluir pela prática pelo arguido do referido crime por 70 vezes, estando por isso em causa 70 crimes de abuso sexual de crianças na pessoa da menor BB e não de 180 conforme vinham imputados ao arguido.

Termos em que, deve o arguido ser condenado pela prática de 75 crimes de abuso sexual de crianças, 45 dos quais previstos e puníveis pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal e 30 previstos e puníveis pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea a) e c), ambos do Código Penal. Deve, de igual modo, o arguido ser absolvido dos demais crimes que lhe vinham imputados.

VI. DA MEDIDA CONCRETA DA PENA

(…)O crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, é punível com pena de prisão de 3 a 10 anos, pena essa agravada nos termos do artigo 177.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código Penal sendo, pois aplicável uma moldura penal compreendida entre os 4 e os 13 anos e 4 meses de prisão.

Nos termos do artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, a medida da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, dentro dos limites definidos pela lei.

(…)

No caso dos autos, SÃO MUITO ELEVADAS AS EXIGÊNCIAS DE PREVENÇÃO GERAL porquanto estamos nos autos perante uma infração penal que exige uma resposta institucional intensa e eficaz, sobretudo de carácter preventivo.

Com efeito, a gravidade do conjunto dos factos ora em julgamento é significativa, impondo-se colocar um sério travão ao comportamento do arguido, e transmitir, de forma absolutamente clara, que este tipo de comportamento não pode ser repetido quer pelo próprio, quer por outrem.

Na determinação concreta da pena, o tribunal atende também a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente os critérios referidos nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.

Assim, no caso dos autos, devem atender-se aos seguintes critérios, ao abrigo daquele artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal:

Assim, no caso dos autos, devem atender-se aos seguintes critérios, ao abrigo daquele artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal:

-                    Considerando a violência emocional, psicológica, sexual e física utilizada pelo arguido relativamente às ofendidas, a natureza, intensidade e duração dos atos praticados sobre aquelas, as consequências para a sua saúde física, emocional e psicológica e as ações de imposição do seu ascendente parental para forçar a satisfação da sua líbido à custa da intimidade e autodeterminação sexual das ofendidas, o grau de ilicitude é muito elevado;

-           O dolo é direto; O arguido confessou parcialmente os factos;
- O arguido tem, como habilitações literárias, o 9.º ano de escolaridade;
- O arguido não tem quaisquer condenações anteriores.

Exceção feita à ausência de condenações anteriores por parte do arguido e à
colaboração do mesmo na descoberta da verdade, fatores sem carácter determinante na
formação    da    convicção    do    Tribunal,             os    demais     fatores    terão    de    ser    valorados

negativamente na medida da pena, concluindo o Tribunal por que relevam de forma muito elevada as exigências de prevenção especial positiva no caso concreto, motivo pelo qual o Tribunal decide condenar o arguido nas penas parcelares de 6 anos de prisão pela prática de cada um dos crimes de abuso sexual de crianças que cometeu.

*

Cumpre agora apurar a pena única em que o arguido será condenado, em face

dos critérios contidos no n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal.

Ora, somando as penas parcelares aplicáveis aos crimes que o arguido cometeu obtém-se o valor de 450 anos, sendo certo que, nos termos dos artigos 41.º, n.ºs 2 e 3, e 77.º, n.º 2, do Código Penal, o limite superior da moldura penal aplicável não pode ultrapassar os 25 anos de prisão. O limite mínimo é a mais elevada das penas concretamente aplicadas, ou seja, 6 anos de prisão.

Encontrando-se  apurada  a  moldura  abstrata,  a  pena  única  é  determinada  de

acordo     com    a    parte     final     do     n.º     1     do     artigo    77.º     do     Código     Penal,    ou    seja,

considerando em conjunto, os factos e a personalidade do agente, sendo esta última determinante para a aferição da pena unitária. Ora, ponderada a gravidade dos factos na sua globalidade e a personalidade do arguido espelhada na multiplicidade dos factos que praticou, dando-se por reproduzidos os fatores acima referidos em sede de apreciação dos critérios elencados no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, entende-se que se mostra adequada à culpa e às exigências de prevenção geral e especial de socialização do arguido, fixar a pena única em que se condena o mesmo em 13 (treze) anos de prisão.

*

Nos termos do artigo 69.º-C, n.º 3, do Código Penal “é condenado na inibição do exercício de responsabilidades parentais, por um período fixado entre cinco e vinte anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, praticado contra descendente do agente, do seu cônjuge ou de pessoa com quem o agente mantenha relação análoga à dos cônjuges”.

Dispõe o n.º 1, do artigo 65.º, do Código Penal, em conformidade com o disposto no n.º 4, do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa, que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.

Assim, a pena acessória de inibição de responsabilidades parentais, prevista no artigo 69.º-C, n.º 3, do Código Penal, nunca será aplicada enquanto efeito automático e necessário da prática de um crime, mas apenas quando dos factos alegados e provados se considere necessária a sua aplicação, atendendo à perigosidade do agente e à censurabilidade do seu comportamento.

Como sustentou Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial    Notícias,    Lisboa,    1993,    págs.    157-158,    §    196,    é    pressuposto    material    da

condenação   na   pena   acessória   a   comprovação   de   um   particular   conteúdo   ilícito,   que justifique materialmente a aplicação em espécie da pena acessória.

In casu, tendo em consideração a idade das menores BB e CC à data da prática dos factos pelo arguido, bem como o tempo durante o qual o arguido persistiu na prática desses factos, entende o Tribunal dever o mesmo ser condenado na pena acessória de inibição das responsabilidades parentais, a qual se fixa em 15 anos no que se refere à menor BB e em 20 anos em relação à menor CC.

(…)”

1.2. Inconformado com essa decisão, o arguido recorreu directamente para este STJ nos termos do artº 432º, nº1, alínea c) do CPP, apresentando as seguintes conclusões:

“(…)

b) O presente recurso destina-se ao reexame da matéria de direito, designadamente, no que respeita à aplicação de diversas penas parcelares, concretamente, em relação às ofendidas, pela prática de setenta e cinco crimes de abuso sexual de crianças - menores dependentes, agravados, bem como àmedida concreta da pena aplicada, relativamente ao douto Acórdão proferido nos autos, nos termos do qual foi o ora Recorrente condenado em cúmulo jurídico na pena de treze anos de prisão:

c) O Tribunal a quo, deveria ter antes concluído pela figura do crime continuado relativamente aos invocados tipos legais de crime. Ao assim não o ter feito, violou o disposto nos artigos 30.º, n.º 2, 77.º e 79.º do Código Penal, devendo, por conseguinte, ser nesta parte revogado, e alterado o douto Acórdão sob recurso.

d) E, uma vez efetuada esta alteração, ser fixada a medida da pena em obediência ao plasmado nos artigos 71.º e 79.º do Código Penal, tendo-se em devida atenção as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do Arguido, nomeadamente, a confissão; o facto de ser primário; bem como as suas condições pessoais e a sua situação económica; sem esquecer a ilicitude, as exigências de prevenção geral, exigências do fim preventivo especial ligadas à reinserção social do delinquente, e demais circunstâncias que deponham a favor e contra o mesmo que supra se deixaram vertidas na matéria de facto dada como provada.

e) Acresce que, também foi condenado na pena acessória de inibição das responsabilidades parentais, pelo período de quinze anos no que se refere à menor BB e pelo período de vinte anos em relação à menor CC e ainda do pagamento monetário de indemnização às filhas, à primeira, vinte e cinco mil euros e à segunda quinze mil euros

f) Conforme,            entendimento           do       STJ,      explanado      no       AC       Nº 862/11.6tapfr.s1 -da 5ª secção, sobre abuso sexual de crianças     abuso sexual     de

menores        dependentes-  concurso de infracções coacção:“- A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido

- O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202,citado no “Código Penalanotado” de P.P.Albuquerque). … Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma. Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.

g) Um crime prolongado ou de trato sucessivo visto como uma «unidade resolutiva», havendo necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).

h) Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma…..

i) Ora, no caso dos crimes de trato sucessivo, a punição faz-se pelo ilícito mais grave entretanto cometido, agravada, nos termos gerais, pela sobreposição dos demais.

j) Apunição, em relaçãoa cadaumdos crimes de trato sucessivoemcausa, deve fazer-se como a de um crime agravado de abuso sexual de crianças para proteger a sua liberdade e autodeterminação sexual.

k) Deveria, por conseguinte, o Tribunal a quo, ter antes concluído estarmos perante a figura do crime continuado

l) Ao assim não o ter feito, violou o disposto nos artigos 30.º, n.º 2, 77.º e 79.º do Código Penal, devendo, por conseguinte, ser nesta parte revogado, e alterado o douto Acórdão sob recurso.

m) Após ser efetuada esta alteração, ser fixada a medida da pena em obediência ao plasmado nos artigos 71.º e 79.º do Código Penal, tendo-se em devida atenção as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do Arguido,

n) Nomeadamente, o facto de ser primário, bem como as suas condições pessoais e a sua situação económica, constante da matéria de facto dada como provada,

o) Fixando-se então a pena junto dos limites mínimos da respetiva moldura abstrata, e com isso, reduzir-se, finalmente, a pena única resultante, igualmente para junto dos limites mínimos da respetiva moldura abstrata, o que ora se peticiona

p) Há que ter em atenção que a enorme gravidade do conjunto de factos imputados ao arguido tem de ser contextualizada por comparação com as molduras penais que se encontram no Código Penal para outros crimes, pois, por mais grave que pareça a conduta em causa – e seguramente que o é – não deve equiparar-se a um caso de homicídio qualificado, cuja pena se fixaria entre os 12 e os 25 anos de prisão.

 q) Os factos que sobre si recaem foram confirmados pelo recorrente que os confessou sem reservas, de livre e espontânea vontade, demonstrando um arrependimento sincero, e por isso,

r) Na audiência de discussão e julgamento, procedeu com humildade e arrependimento, consternação pela sua conduta e assumiu a gravidade dos factos por si praticados;

s) O Recorrente, apresenta uma forte auto censura quanto aos crimes praticados e apresenta-se consciente das consequências dos seus atos, o que mostra a possibilidade de um juízo de prognose favorável à sua reintegração na sociedade;

t) Daí que, ao determinar a medida da pena o douto Tribunal a quo, poderia e deveria ter levado em conta a confissão, o arrependimento e vontade manifestada pelo arguido em reparar a sua atitude e tomar um novo rumo na sua vida;

u) Nessa medida e apenas no que concerne ao quantum da pena aplicada pelo Tribunal a quo ao arguido, houve, salvo o devido respeito, violação do disposto no Artigo 71.º do Código Penal, que foi excessiva;

v) Recorrente entende que o Tribunal o deverá condenar numa pena mais proporcional e justa face às circunstâncias acima expostas, de acordo com o disposto no Artigo 71.º do Código Penal, que desta forma se realizará de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, a proteção dos bens jurídicos ofendidos e a sua reintegração.

w) Até porque, além da condenação pena de prisão de treze anos, também lhe foram aplicadas   as            penas  acessórias      de        inibição          das responsabilidades parentais (afastamento das menores) e compensações indemnizatórias elevadíssimas.

Face ao exposto, (…) deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e revogar a aliás douta sentença. (…)”

1.3. Responderam  ao recurso quer o  MPº quer as ofendidas, dizendo:

A) O Ministério Público:

“(…)Analisadas as conclusões de recurso, afigura-se-nos que o recorrente pretende impugnar os critérios do Tribunal na fixação da pena aplicada ao arguido, bem como a qualificação jurídica dos factos provados.

Pretende o arguido/recorrente ser condenado apenas por um crime continuado Ora, o Código Penal prevê apenas a figura do crime continuado, excluindo, de forma expressa, a sua aplicação aos crimes praticados contra bens eminentemente pessoais (artigo 30º, n.º 3 do Código de Processo Penal).

O crime de trato sucessivo não tem consagração legal e a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça têm afastado a sua aplicação aos crimes sexuais.

por considerar que, ainda que esteja em causa a mesma vítima, à multiplicidade de actos ofensivos desta, correspondem autónomas resoluções criminosas, a serem subsumíveis a uma pluralidade de crimes, individualmente considerados para efeitos de punição. (Acórdão do STJ de 1/10/2020, relatado pelo Conselheiro Clemente Lima).;Rec. 1079/20.4PASNT.S1, secção. Ac. STJ, de 2021-12-15 (Rec. 71/19.6JAPTM.E1.S1, secção.

 As razões pelas quais o tribunal a quo condenou o arguido naquela pena constam, de forma bem explícita, do acórdão recorrido.

Analisado acórdão recorrido, não se verifica qualquer violação das normas que regem a determinação da medida concreta da pena, nomeadamente os artigos 30.º, n.º 2, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º, 77.º e 79.º, todos do Código Penal, os quais foram, devida e criteriosamente aplicados, não merecendo o acórdão qualquer censura, pois bem ajuizou a prova produzida em audiência, fazendo a correcta qualificação dos factos e aplicando correctamente a pena.

Nestes termos, não deverá ser concedido provimento ao recurso, mantendo-se o douto acórdão recorrido. (…)”

B) A ofendida BB

“(…)

Analisadas as conclusões de recurso, afigura-se-nos que o recorrente pretende impugnar os critérios do Tribunal na fixação da pena aplicada ao arguido, bem como a qualificação jurídica dos factos provados.

Pretende o arguido/recorrente ser condenado apenas por um crime continuado. Ora, o Código Penal prevê apenas a figura do crime continuado, excluindo, de forma expressa, a sua aplicação aos crimes praticados contra bens eminentemente pessoais (artigo 30º, n.º 3 do Código de Processo Penal).

O crime de trato sucessivo não tem consagração legal e a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça têm afastado a sua aplicação aos crimes sexuais por considerar que, ainda que esteja em causa a mesma vítima, à multiplicidade de actos ofensivos desta, correspondem autónomas resoluções criminosas, a serem subsumíveis a uma pluralidade de crimes, individualmente considerados para efeitos de punição. (Acórdão do STJ de 1/10/2020, relatado pelo Conselheiro Clemente Lima).(Rec. 1079/20.4PASNT.S1, secção. Ac. STJ, de 2021-12-15 (Rec. 71/19.6JAPTM.E1.S1, secção.

 As razões pelas quais o tribunal a quo condenou o arguido naquela pena constam, de forma bem explícita, do acórdão recorrido.

Analisado o acórdão recorrido, não se verifica qualquer violação das normas que regem a determinação da medida concreta da pena, nomeadamente os artigos 30.º, n.º 2, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º, 77.º e 79.º, todos do Código Penal, os quais foram, devida e criteriosamente aplicados, não merecendo o acórdão qualquer censura, pois bem ajuizou a prova produzida em audiência, fazendo a correcta qualificação dos factos e aplicando correctamente a pena.

Tendo em conta quantidade e gravidade de crimes cometidos a aplicação de uma pena de prisão inferior a 13 anos seria completamente desprovida de sentido.

Não deve por isso ser dado qualquer provimento ao recurso interposto pelo arguido quando alega que devia ter sido condenado ao abrigo da figura do crime continuado.

Andou também bem o Tribunal “a quo” na medida de prisão aplicada de 13 anos, uma vez que perante a quantidade e gravidade de crimes cometidos menos que 13 anos seria absurdo e desprovida de sentido.

Assim como também andou bem o Tribunal “a quo” nas penas acessórias aplicadas de inibição de responsabilidades parentais e na fixação de indemnizações, valores que nunca chegarão para colmatar o sofrimento e o normal desenvolvimento educativo e pessoal que uma criança deve ter.

Nestes termos, não deverá ser concedido provimento ao recurso, mantendo-se o douto acórdão recorrido.

(…)”

B2) A ofendida CC

“(…)

Entende a ofendida CC que bem andou o Tribunal “a quo” ao condenar o arguido numa pluralidade sucessiva de crimes, por ser aplicável o nº 3 do artigo 30º do Código Penal, pelo que não se pode unificar a prática de todos os actos.

 Quanto à medida da pena também aqui, bem andou o Tribunal “a quo”, por considerar que o comportamento do arguido reveste uma especial censurabilidade,  levando necessariamente a que          o            livre desenvolvimento da personalidade das vítimas seja afectado, atenta por um lado, a sua tenra idade e por outro lado, o facto das ofendidas serem suas filhas.

Sendo  também           adequada        a          pena    acessória          de        inibição das responsabilidades parentais.

Tal como é adequada a condenação do arguido nas indemnizações a pagar às ofendidas, no valor indicado no douto acórdão proferido pelo Tribunal Nestes termos deverão manter a douta Decisão “a quo”, declarando a improcedência do Recurso. (…)”

1.4. Remetidos os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, o Exmº Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, argumentando, em suma:

“(…)

Se almeja tal alteração da qualificação jurídica, o recorrente não a fundamenta doutrinalmente, limitando-se a invocar alguns arestos do Supremo Tribunal de Justiça, que, com todo o respeito, não constituem a sua jurisprudência uniforme, muito menos a mais recente.

O ponto de partida para o apuramento do número de crimes cometidos é a questão-de-facto assente, que permite quantificar o número de vezes que a acção típica foi preenchida, com violação do bem-jurídico-penal, isto é, do objecto da acção protegido.

(…)

Segundo nos parece, a relevância do “trato sucessivo” pressupõe, em geral, a referência aos “crimes sem vítima”,(…) casos em que ao bem jurídico-penal tutelado não acresce um concreto objecto da acção protegido.

(Os casos de “violência doméstica” ou de “maus-tratos” são situações de configuração típico-normativa específica, em que o próprio legislador-penal pode estabelecer, como pressuposto da sua punição autónoma adentro dos vários crimes contra a integridade física, contra a liberdade pessoal ou contra a honra, a prática, por regra, de actos reiterados).

A categoria conceitual em análise em nada se adequa, no plano da realização da justiça material, ao crime de “abuso sexual de criança” (…)com a firme convicção de que o primado na definição do arranjo legal deve passar pelo imperativo de defesa eficaz do interesse individual do ofendido.

 Cada acto sexual cometido sobre as menores representou para elas, inexoravelmente, um novo e diverso atentado à sua sexualidade (em potência ou em formação), uma nova lesão no seu estado somático-psíquico-emocional, que reiteradamente as colocou mais longe de poderem vir a gozar, na idade certa, de uma sexualidade sem complexos, sem traumas e de satisfação plena.

Em cada actuação, uma nova vitimização, com autonomia ético-penal. E, reversamente, cada acto de sexo cometido pelo arguido sobre as menores, deu a este a oportunidade de repetida, resoluta e pensadamente, satisfazer os seus instintos lascivos mais ímpios e obscenos, em vez de lhe servir como alerta da sua consciência ética mal-formada, para lhe despertar os factores de inibição que desde o início não teve.

Não é pela reiteração de actos homogéneos – assente na hipotética (mas quase virtual) unidade resolutiva – que o respectivo crime assume natureza de habitual, mas, isso-sim, em função do concreto arranjo da tipicidade, onde aquela reiteração deve estar inscrita.

No necessário cotejo com os factos, há que ter presente, nomeadamente:

Que a menor BB foi sujeita a tais ofensas durante cerca de cinco anos, numa idade de aceleradas modificações físicas, emocionais e psicológicas;

Durante tal período, a família mudou de casa.

O que, inelutavelmente, foi criando/modificando novas ambiências situacionais e relacionais, que se foram constituindo em estímulos volitivos diversos e, por isso, induzindo bem distintas manifestações/renovações da vontade.

Trata-se de crimes cometidos contra bens eminentemente pessoais, avessos a quaisquer tentativas de unificação dos juízos de censura (objectiva e subjectiva) do agente.

Nesta matéria, para além dos Acórdãos do STJ citados (…) cremos ser se destacar com mais amplidão, pela sua pertinência e assertividade, o Ac. 04.05.2017, já referido no Acórdão sub judice.

 Não violou a douta decisão recorrida o disposto no art. 30º do Código Penal.

 Não concorda o recorrente com a pena única que lhe foi aplicada, que considera excessiva – sem estar, porém, disposto a quantificá-la.

Contrapomos nós, todavia, que as concretas circunstâncias da prática dos crimes, com relevância ao nível da formulação dos juízos de ilicitude e de culpa (que constam dos factos-provados e são ponderadas na douta fundamentação) – valoradas, pois, à luz dos critérios tipológicos previstos nas disposições dos arts. 71º e 77º/1 do Código Penal para a determinação da pena –, permitem a conclusão de que a pena única concretamente aplicada não se mostra, adentro da sua moldura abstracta do concurso, excessiva, dando expressão mínima às exigências do princípio da culpa e da prevenção geral e especial (necessidade, adequação e proporcionalidade).

Quanto à a alegada ausência de antecedentes criminais e intenção de reparação da sua atitude, sendo o factum a matriz lógica e ontológica (genética) do Direito Penal, apenas de forma acessória considerações que lhe sejam exteriores poderão ser erigidas em critérios essenciais na valoração atinente à determinação da pena concreta, sem nunca, porém, poder conduzir à absoluta substituição do agir pelo ser como objecto da censura jurídico-criminal.

Aliás, demonstra a estatística criminológica que os agentes de crimes sexuais cometidos no recato do lar, contra familiares ou pessoas próximas, não cometem normalmente outros crimes da mesma natureza fora da “segurança” do seu meio de origem, por normalmente se “acovardarem” na confrontação face a potenciais vítimas de um meio que não é o do seu conforto.

Não violou a decisão “sub judice” o disposto nos arts. 71º e 77º do Código Penal.

Em síntese:

Os crimes contra a autodeterminação sexual não são de “trato-sucessivo”; Cometeu o arguido 75 crimes de “abuso sexual de criança” porque em, pelo menos, outras tantas ocasiões, durante cerca de 05 anos, praticou “actos sexuais de relevo” sobre crianças;

A pena única de 13 anos de prisão não é excessiva.

O presente recurso não merece provimento, sendo de manter os termos da decisão recorrida. (…)”.

1.5. Notificados do parecer do  Exmo PGA neste STJ, os recorrentes nada vieram dizer.

 1.6. Após exame preliminar determinou-se que fossem cumpridos os vistos legais, ao que se seguiu realização da conferência.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

II.  O DIREITO e a fundamentação

2.1- Como é ampla e reiteradamente sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões pelo recorrente extraídas da respectiva motivação (art.º 412.º, n.º 1, do CPP). 

Os  poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP), sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432.º do CPP.

Por outro lado, não ocorrendo quaisquer dos vícios previstos nas alíneas a), b) ou c) do n.º 2 do art. 410º, do CPP, nem nulidades ou irregularidades de conhecimento oficioso, deverá considerar-se definitivamente fixada a decisão proferida sobre a matéria de facto.

2.2- O recorrente coloca, neste recurso per saltum do acórdão da 1ª instância, as seguintes questões, de direito apenas, que identifica:

-Da qualificação jurídica dos crimes- (defende deverem ser subsumidos à figura do crime continuado)

- Da medida  da pena unitária -(o recorrente entende que devia ser calculada em concreto para perto dos mínimos moldurais)

*

2.3 – O Direito

2.3.1- Da qualificação jurídica dos crimes

O arguido, AA, foi condenado pela prática de 75 (setenta e cinco) crimes de abuso sexual de criança, 45 (quarenta e cinco) dos quais previstos e puníveis pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, e 30 (trinta) previstos e puníveis pelos artigos 171.º, n.ºs 1e2e177.º, n.º1, alíneas a) ec), ambos do Código Penal, nas penas parcelares de 6 (seis) anos de prisão pela prática de cada um deles;

- Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão, nos termos do disposto no artigo 77.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código Penal, , na pena única de treze anos de prisão, e ainda

- na pena acessória de inibição das responsabilidades parentais, pelo período de quinze anos no que se refere à menor BB e pelo período de vinte anos em relação à menor CC, acrescendo

- o arbitramento oficioso, a título de indemnização, nos pagamentos, à menor BB a quantia de vinte e cinco mil euros e à menor CC o montante de quinze mil euros.

Nos termos do acórdão  recorrido e que constam já transcritos, foi  entendido para o efeito da qualificação jurídica operada que houve pluralidade de resolução criminosa. É o que resulta da própria matéria de facto provada.

A solução do crime continuado defendida pelo recorrente, se bem se percebe dos termos em que se arrima no recurso , não é de acolher.

A figura do crime continuado merece desde já um breve excurso sobre a sua configuração.[1]

Na versão originária do Código Penal de 1982 (aqui, neste segmento intocada pela Reforma de 1995), estabelecia o Artigo 30.º(Concurso de crimes e crime continuado):

1 – O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo for preenchido pela conduta do agente.

2 – Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

Com a 23.ª alteração do Código Penal, introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro (Diário da República, I Série, n.º 170, de 4-09, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 102/2007, de 25-10, publicada no Diário da República, 1.ª série – n.º 210, de 31 de Outubro), foi introduzido o n.º 3, que passou a estabelecer:

3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima.

Em anotação ao artigo 30.º, na redacção então em vigor, relata Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 11.ª edição, 1997, pág. 152 (e mesmo lugar na 12.ª edição de 1998), que o preceito teve por fonte principal o artigo 33.º do Projecto de Parte Geral de Código Penal de 1963 e que na sua discussão foi aprovado um último período para o n.º 2, que seria o seguinte:

“A continuação não se verifica, porém, quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo tratando-se da mesma pessoa”.

Mais referindo que a supressão/não aceitação do período “não significa que outra solução deva ser adoptada, mas tão só que o legislador considerou a afirmação desnecessária, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado”.

A versão de 2007 consagrou assim a solução preconizada pelo Projecto de 1963, na proposta feita por Maia Gonçalves a 8 de Fevereiro de 1964.

A este propósito, pode ver-se Maria do Carmo Silva Dias, Repercussões da Lei n.º 59/2007, de 04-09, nos crimes contra a liberdade sexual (Revista do Centro de Estudos Judiciários, 1.º trimestre de 2008, n.º 8 (especial), pág. 225), Maria da Conceição Valdágua, As Alterações ao Código Penal de 1995, relativas ao crime continuado, propostas no Anteprojecto de Revisão do Código Penal, em palestra proferida em Maio de 2006, no âmbito de Colóquio sobre a revisão do Código Penal de 1995 (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 16, N.º 4, Outubro-Dezembro 2006, págs. 531-533) e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, UCE, 2008, págs. 137/8. (O Autor alude a esta anotação da 1.ª edição na nota 22, pág. 221, da 3.ª edição de Novembro de 2015).

Com a Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro, que operou a 26.ª alteração ao Código Penal, entrada em vigor em 3 de Outubro de 2010, foi alterada a redacção do n.º 3, que passou a estabelecer:

3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.

Com a dita alteração foi suprimida a expressão final “salvo tratando-se da mesma vítima”, do que resultou o fim da figura do crime continuado que atinja bens essencialmente pessoais, mesmo quando a vítima dos diversos actos seja a mesma pessoa.

O crime continuado ficou assim restringido à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independentemente de haver uma ou mais vítimas.»

«Como se afirma no acórdão deste Supremo de 23-01-2008, no processo n.º 4830/07 - 3.ª, versando caso de abuso sexual de crianças agravado- «O fundamento da unificação criminosa consiste na diminuição da culpa do agente, resultante da “cedência” a uma solicitação exterior, e não na unidade de resolução criminosa ou na homogeneidade da actuação delitiva. Esta última, assim como a proximidade temporal das condutas, é um elemento meramente indiciário da continuação criminosa, que deverá ser confirmado pela verificação de uma solicitação exterior mitigadora da culpa. Por sua vez, a unidade de resolução criminosa nem sequer existe no crime continuado, pois o que caracteriza esta figura é precisamente a renovação de tal resolução perante as solicitações externas exercidas sobre o agente. Por isso, sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, que ocorra independentemente de qualquer solicitação externa, ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes e não crime continuado» (também do cit. Ac. STJ de 5/4/2017, Rel. Raul Borges).

Todavia se antes da mencionada alteração de 2010, ao art. 30.º do CP, ainda havia quem defendesse a continuação criminosa (caso de Figueiredo Dias na 1.ª edição do Comentário Conimbricense do Código Penal e na edição de 2007 do seu Direito Penal—Parte Geral, o qual alterou a posição, em face da referida alteração operada pela Lei 40/2010, na 2.ª edição de 2012 do referido Comentário  quando estivesse em causa a mesma vítima, após a mesma deve considerar-se verificado o concurso de crimes, dado estarmos perante bens eminentemente pessoais, sempre que o agente pratique vários actos sexuais de relevo, quer estejamos, ou não, perante a mesma vítima.

O crime continuado tem o seu fundamento na menor culpa do agente e em circunstâncias exógenas que facilitam a execução do crime.

No caso dos  crimes dos presentes autos estão em causa bens eminentemente pessoais e, além da repetição da conduta criminosa não se dever a qualquer circunstância exógena, não há qualquer diminuição da culpa do agente, mas antes um acentuado agravamento da mesma, pelo que aquela figura tem que ser arredada.

Mas mesmo antes da citada alteração de 2010, a esmagadora maioria da jurisprudência afastava a continuação criminosa no crime de abuso sexual de criança quer a vítima fosse, ou não, a mesma.

Não é apenas a continuação criminosa que se deve afastar dos crimes eminentemente pessoais mas também a figura do crime exaurido, que a jurisprudência tem considerado verificar-se, por exemplo, no crime de tráfico de estupefacientes, de que são exemplo os sumários a seguir transcritos:

Ac. STJ de 18/4/1996, CJACSTJ, IV, T. II, pág. 170

 Ac. STJ de 5/12/2007, Proc. 07P3406, Rel. Raul Borges

Em sentido similar, Acs. STJ de 8/2/2007, Proc. 06P4460, Rel. Arménio Sottomayor; de 19/4/2007, Proc. 07P449, Rel. Rodrigues da Costa; de 6/6/2018, Proc. 1/15.4GAMTS.S1, Rel. Manuel A. Matos.
A propósito dos crimes sexuais, escreve Helena Moniz no artigo sobre
Crime de trato sucessivo”, publicado na Revista Julgar on line- Abril de 2018 que:
«Ora, o entendimento dos crimes sexuais como crimes de trato sucessivo pretende abarcar uma multiplicidade de atos, a que corresponde uma multiplicidade de resoluções, num único ato globalmente unificado a partir de uma unidade resolutiva, todavia salientando que não estamos perante uma única resolução, mas perante uma “unidade resolutiva”, querendo com isto apenas evidenciar uma homogeneidade resolutiva. Mas, este entendimento que agrega múltiplos atos típicos e ilícitos numa globalidade de comportamento ilícito com uma unificação resolutiva aproxima-nos, contra a lei, da figura do crime continuado, pese embora a jurisprudência expressamente afirme não haver uma menor culpa do agente, ou uma situação de menor exigibilidade.»

A jurisprudência do STJ tem perfilhado, maioritariamente , o entendimento que afasta quer a continuação criminosa quer a figura do crime exaurido, de trato “sucessivo”, nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.

Após as alterações de 2010 ao artº 30.º do CPP, apenas se detectou divergência no Ac. STJ de 29/11/2012, Proc. 862/11.6TAPFR.S1, Rel. Santos Carvalho (com voto de vencido), que optou pela figura do crime de trato sucessivo ( porém  os factos, ali, foram anteriores às alterações de 2010).

Em retrato do alinhamento sobre a questão, vejam-se as decisões mais recentes e de maior relevo do STJ:

· Ac. STJ de 26/2/2009, Proc. 08P2873, Rel. Arménio Sottomayor

· Ac. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0490, Rel. Armindo Monteiro

· Ac. STJ de 10/10/2012, Proc. 617/08.5PALGS.E2.S1, Rel. Armindo Monteiro

· Ac. STJ de 29/11/2012, Proc. 862/11.6TAPFR.S1, Rel. Santos Carvalho (tem voto de vencido de Manuel Brás)

· Ac. STJ de 12/6/2013, Proc. 1291/10.4JDLSB.S1, Rel. Isabel Pais Martins

· Ac. STJ de 17/9/2014, Proc. 67/12.9JAPDL.L1.S1, Rel. Santos Cabral

· Ac. STJ de 17/9/2014, Proc. 595/12.6TASLV.E1.S1, Rel. Pires da Graça

· Ac. STJ de 22/4/2015, Proc. 45/13.0JASTB.L1.S1, Rel. Sousa Fonte

· (Ac. STJ de 13/7/2016, Proc. 154/15.1JDLSB.E1.S1, do mesmo Relator afasta a figura do trato sucessivo do crime de abuso sexual de criança)

· Ac. STJ de 14/1/2016, Proc. 414/12.3TAMCN.S1, Rel. Manuel A. Matos

· Ac. STJ de 6/4/2016, Proc. 19/15.7JAPDL.S1, Rel. Santos Cabral

· Ac. STJ de 14/7/2016, Proc. 677/13.7TAAGH.L1.S1, Rel. Souto de Moura

· Ac. STJ de 30/11/2016, Proc. 444/15.3JAPRT.G1.S1, Rel. Pires da Graça

· Ac. STJ de 14/12/2016, Proc. 3/15.0T9CLB.C1.S1, Rel. Sousa Fonte

o Ac. STJ de 4/5/2017, Proc. 110/14.7JASTB.E1.S1, Rel. Helena Moniz (idem, da mesma relatora,

o cfr. Ac. STJ de 20/4/2016, Proc. 657/13.2JAPRT.P1.S1).

· Ac. STJ de 13/7/2017, Proc. 1205/15.5T9VIS.C1.S2, Rel. Rosa Tching

· Ac. STJ de 18/1/2018, Proc. 239/11.3TALRS.L1, Rel. Lopes da Mota

· Ac. STJ de 22/3/2018, Proc. 467/16.5PALSB.L1-S1, Rel. Souto de Moura

Mais recentemente ainda, com manutenção à saciedade dos argumentos amplamente defendidos sobre a impossibilidade de qualificação como continuação criminosa e/ou da questão da pluralidade de infracções neste tipo de crimes, vide ainda o AC de 14 de julho de 2022, (Helena Moniz) no procº 42-19.2JAPTM.E1.S1 – 5 (in Sumários Crime- STJ 2022) e de 28 de Janeiro de 2021 ( Isabel S Marcos) (idem-  Sumários- Crime do STJ- 2021).

Assim, não vislumbrando que haja melhores ou novos argumentos justificativos da alteração da posição maioritária, que aqui acolhemos e à qual aderimos, improcede o recurso do arguido neste segmento.

 

2.3.2- Da medida  da pena única

Defende o recorrente, muito resumidamente, que “ponderando as circunstâncias concretas da sua atuação, as suas circunstâncias de vida e personalidade, não poderá deixar de considerar-se que tanto a ilicitude como a culpa do arguido, in casu, nunca justificaria a concreta pena de prisão efetiva por treze anos que lhe foi aplicada, dizendo que há que ter em atenção que a enorme gravidade do conjunto de factos imputados ao arguido tem de ser contextualizada por comparação com as molduras penais que se encontram no Código Penal para outros crimes, pois, por mais grave que pareça a conduta em causa – e seguramente que o é – não deve equiparar-se a um caso de homicídio qualificado, cuja pena se fixaria entre os 12 e os 25 anos de prisão.”

Assim, considera  que “deveria ser aplicada uma pena menos gravosa, que se situasse próxima do limite mínimo da moldura abstrata aplicável por forma a adequar-se à efetiva culpa do seu agente, à ilicitude dos factos e às concretas necessidades de prevenção.”

 Ora,
Segundo o art. 77.º, n.º 1, d,o Código Penal, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, como bem se refere no Ac. deste  STJ, de 08-07-2020, Proc. n.º 1667/19.1T8VRL.S1 - 3.ª Secção:
-“I. A medida da pena conjunta deve definir-se entre um mínimo imprescindível à estabilização das expetativas comunitárias e um máximo consentido pela culpa do agente. II - Em sede de cúmulo jurídico a medida concreta da pena única do concurso de crimes dentro da moldura abstrata aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente. III - À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente. IV - De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente- exigências de prevenção especial de socialização”.
 E, também como ensina Figueiredo Dias [in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 291. ] na escolha da medida da pena única «tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.

 Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta».

Tal como aliás bem referenciado foi já no Ac do STJ de 06-04-2016  no procº 19/15.7JAPDL.S1. , “ (…) o ponto de partida da individualização penal é a determinação dos fins das penas pois que só arrancando de fins claramente definidos é possível determinar os factos que relevam na respectiva ponderação.  Aqui, é preciso, em primeiro lugar, readquirir a noção da importância fundamental que assume a justa retribuição do ilícito, e da culpa, adquirindo o princípio da culpa quer uma função fundamentadora, quer uma função limitadora da mesma pena. Ao mesmo nível que a retribuição justa situa-se o fim da prevenção especial. Nunca é demais acentuar o papel da culpa como critério fundamentador da medida da pena, ao invés da preponderância que alguns, entre os quais Jakobs, outorgam à prevenção geral, colocando-a acima da retribuição da culpa pelo delito quando é esta, na realidade, que justifica a intervenção penal. O arguido tem direito a esperar, e espera, uma resposta ao facto injusto e culposo que cometeu. Realçando-se a prevenção como critério fundamental desvanece-se, com prejuízo da justiça individual, a orientação que o Direito penal faz da responsabilidade do agente pela sua acção. A culpa e a prevenção situam-se em planos distintos. A culpa responde à pergunta de saber se, e em que medida, o facto deve ser reprovado pessoalmente ao agente, assim como qual é a pena que merece. Só então se coloca a questão, totalmente distinta da prevenção em que se decide qual a sanção que parece apropriada para introduzir de novo o agente na comunidade e para influir nesta num sentido social-pedagógico. A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente uma finalidade da mesma. A culpa, se é o limite superior da pena, também deve ser co-decisivo para toda a determinação da mesma que se encontre abaixo daquela fronteira. Aliás, e fundamentalmente, ao limitar-se a fixação concreta da pena a fins preventivos, a decisão do juiz perde o ponto de conexão com a qualificação ética do facto que é julgado, e a pena, por esse facto perde também todo a possibilidade de influir a favor daqueles objectivos de prevenção. Só apelando à profundidade moral da pessoa se pode esperar, tanto a ressocialização do condenado, como também uma eficácia socio-pedagógica da pena sobre a população em geral. A renúncia ao critério da culpa para a pena concreta é um preço demasiado alto por evitar o problema da liberdade na teoria da culpa (Hans Heinrich Jescheck, "Evolución del concepto jurídico penal de culpabilidad en Alemania y Austria Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia Núm. 05 (2003)”

Descendo de novo ao caso concreto, muito relevantes se mostram, pois, as necessidades de prevenção especial,  não só porquanto o arguido embora confessando parcialmente os factos, também nunca revelou um pensamento activo e estruturado suficientemente convincente sobre a sua real vontade e capacidade de mudança, carecendo aliás, conforme o salienta claramente o relatório social, de intervenção e acompanhamento psicológicos regulares e na área da sexualidade e integração no programa de Intervenção Técnica dirigido a agressores sexuais.
De igual modo face aos valores tutelados nas normas violadas, elevadas são as necessidades de prevenção geral.
O arguido carece de fortes medidas de  intervenção  no potenciar do pensamento autocrítico e autoanalítico e no desenvolvimento de competências de autocontrolo, pensamento sequencial e descentração.
Impressiona particularmente na sua acção com dolo intenso no reiterar dos actos ao longo de anos numa total indiferença pelos danos provocados na sólida  formação e desenvolvimento sexual e psicológico das suas próprias filhas desde tenra idade. O seu comportamento gera forte reprovabilidade social, sendo consequencial a medida de interdição de responsabilidades parentais como prevenção a longo prazo de continuação desses danos.
A comparação com outros crimes mais graves  não tem qualquer sentido, já que o quadro de censura dos crimes de abuso sexual praticados se baliza por opções de politica criminal definidas pelo legislador no quadro da preponderância e equilíbrio de valores em protecção tidos por fundamentais.
Nestes termos, a fixação em patamar de 13 anos de prisão a partir de uma moldura com um mínimo de 6 anos pelo crime mais grave, não se assume como desproporcional ou exagerado.
Numa moldura penal abstracta do concurso entre 06  e 25 anos de prisão, tendo em conta a elevadíssima ilicitude dos factos, o grau de culpa intenso, a necessidade de uma robusta censura  do comportamento, o facto de serem suas filhas as vitimas, a desestruturação de modelo de pai confiável deitado a perder de forma praticamente irreversível, 13 anos de prisão configuram a linha correcta da expressão equilibrada das necessidades de prevenção e de censura institucional e  comunitária expectáveis na protecção dos bens jurídicos em  causa. O arguido praticou actos de sexo sobre as menores suas filhas, de tenra idade, de penetração bucal, vaginal e também anal, durante, pelo menos, nos termos descritos e provados, setenta e cinco vezes, ao longo de cerca de 06 anos e não evidenciou actos de decisivo  arrependimento (que não decorre, per se, da mera confissão, ainda que parcial).
Quanto à ausência de antecedentes criminais não deixa de se considerar que não é por si uma atenuante (também não agrava a responsabilidade), pois o bom comportamento  é um dever de qualquer cidadão.
Nestes termos, confirma-se a decisão recorrida, em toda a sua extensão.

III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta 5ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

Julgar o recurso improcedente.

Condenar o arguido recorrente em 6 Uc de taxa de justiça criminal.

Supremo Tribunal de Justiça, 11 de Maio de 2023
[Texto Processado em computador, elaborado e revisto integralmente pelo Relator (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos].

Agostinho Soares Torres  (Juiz Conselheiro Relator)
António Latas (Juiz Conselheiro Adjunto)
José Eduardo Sapateiro (Juiz Conselheiro Adjunto)

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[1] Seguindo aqui de muito perto, por economia de esforço e texto, o excelente estudo feito sobre a matéria no Ac do STJ de 27-11-2019 procº 1257/18.6SFLSB.L1.S1 (Nuno Gonçalves)  in  Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (dgsi.pt)  bem como no Ac do STJ de 07-03-2019 Proc. n.º 412/14.2PFLRS-C.S1 - 3.ª Secção  ( Vinicius Ribeiro)