Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1448/12.3TBTMR.E1.S1
Nº Convencional: 7ª. SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: CONTRATO DE COMODATO
TRANSMISSÃO DE DIREITO REAL
OPONIBILIDADE
EFICÁCIA DO NEGÓCIO
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
CONTESTAÇÃO
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
FACTOS ESSENCIAIS
TIPICIDADE
DIREITO REAL
Data do Acordão: 09/22/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS / ÓNUS DE ALEGAÇÃO DAS PARTES - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, N.º 2, 406.º, N.º 2, 1306.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 264.º, N.º 1, 489.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGO 5.º, N.º 1, 573.º, N.º 1.
Sumário :
I. O réu tem o ónus de alegar na contestação os factos essenciais em que se baseiam as excepções peremptórias, sob pena de preclusão.

II. Um comodato celebrado entre os proprietários de um imóvel e terceiros não vincula futuros adquirentes do mesmo imóvel.

III. Nem as partes do contrato de comodato lhe poderiam atribuir semelhante eficácia, por a tanto se opor a regra da tipicidade dos direitos reais.

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA e BB, ambos menores e representados por sua mãe, CC, instauraram contra DD e sua mulher, EE, uma acção na qual pediram que se declarasse que são os proprietários do prédio urbano inscrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o nº 30…, devidamente identificado nos autos, por lhes ter sido doado em 18 de Novembro de 2011 pelos pais, CC e FF, “como forma de resolver as partilhas do seu divórcio”; e que se condenasse os réus a restitui-lo desocupado, por o deterem sem título bastante, nele residindo desde 2007.

Explicaram ainda que precisam de “tirar algum rendimento do imóvel, seja através de arrendamento, seja pela alienação ou fruição, como forma de manter a sua sobrevivência”; e que “os réus foram notificados por carta registada com A/R para entregaram o imóvel”, mas não o fizeram.

Na contestação, por entre o mais, os réus invocaram um contrato de comodato de parte do imóvel (casas e horta), celebrado entre o réu marido e GG (sua irmã) e marido, HH, depois de lhes ter vendido o referido imóvel, em 29 de Novembro de 1993, através do qual ficou acordado que o réu tinha o direito vitalício de continuar a residir e a utilizar o prédio, estendido ao seu cônjuge. Disseram ainda que FF, pai dos autores, havia por sua vez comprado o prédio em 18 de Setembro de 2009, sucedendo na posição contratual dos comodantes.

Notificados nos termos do disposto no nº 4 do artigo 5º da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, e por requerimentos de fls. 109 e 112, respectivamente, os réus e os autores manifestaram o entendimento de que a causa deveria ser julgada no despacho saneador.

Pelo despacho de fls. 100, foi determinada a citação de FF, pai dos autores, para, querendo, ratificar o processado; citado, FF nada disse, considerando-se assim ratificada a petição inicial (nº 3 do artigo 23º do Código de Processo Civil anterior).

Não se encontra no processo qualquer manifestação de desacordo entre os pais dos autores quanto à respectiva “orientação” (cfr., artigos 12º do anterios Código de Processo Civil e 18º, nº 2, do actual).

A fls. 114 foi proferido saneador-sentença, julgando a acção procedente, nestes termos:

“Ora, quanto à titularidade do imóvel pelos autores, dúvidas inexistem que os mesmos são os (…) legítimos donos” do imóvel. Tendo sido contraposta, pelos réus, “a existência de um contrato de comodato”, “o que cabe neste momento apreciar é se o contrato de comodato tem efeitos em relação aos novos adquirentes do imóvel, nomeadamente os autores, ou se apenas vincula quem o outorgou. (…) em relação aos autores, novo donos do imóvel, esse contrato não lhes é oponível(…). No caso dos autos, os autores em momento algum, em face do alegado, se comprometeram para com os réus a assumir o contrato de comodato que existia anteriormente e o seu comportamento em nada permite que se entenda que agem com abuso de direito, salientando-se que em nada releva a posição de seu pai, descrita em 8) dos factos provados. Pelo exposto, se conclui que o contrato de comodato referido em 5) dos factos provados não é oponível aos autores, devendo, por isso, os réus restituírem-lhes o imóvel livre de pessoas e coisas, por em relação aos mesmos, carecerem de título que lhes legitime a constituição da ocupação e fruição do imóvel. Julga-se, pelo exposto, a acção totalmente procedente”.

Esta decisão foi confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls. 163:

«C - Aplicação do direito aos factos        

Importa começar por referir que a defesa dos demandados DD e mulher, EE, em sede de contestação, alicerçou-se, em termos jurídicos, na circunstância de FF, pai dos Autores, ter “sucedido”, ao adquirir, em 18 de Setembro de 2009, o prédio ora reivindicado, na posição contratual que havia sido estabelecida entre os anteriores proprietários e o Réu marido, tendo este e mulher, por isso, título legitimo “para dele se servirem – artigo 1129º e seguintes do Código Civil”.

Além disso, e quanto à matéria de facto, não foi alegado, na mesma peça processual, qualquer acordo de vontades, entre os novos proprietários do prédio reivindicado e os referidos demandados, aquando das escrituras de 18 de Novembro de 2010 e de 18 de Setembro de 2009 ou posteriormente, constitutiva de uma relação jurídica obrigacional, “que legitime a recusa da restituição”. Na verdade, não se deduz da carta de 20 de Maio de 2011, com toda a probabilidade, a constituição de tal relação.

Assim sendo, a relação jurídica obrigacional legitimadora da recusa da restituição caducou, com a escritura de 18 de Setembro de 2009, sendo certo que outra não foi constituída.

Inexiste, pois, qualquer relação jurídica real ou obrigacional “que legitime a recusa da restituição”.

Os demandados, em sede de alegações, chamaram à colação o instituto do abuso de direito. Sem razão.

Na verdade, a pretensão dos demandantes AA e BB, ao reivindicarem o prédio (ou parte dele), a fim de extraírem, certamente, benefícios económicos, nada tem de antiético, ainda que o mesmo seja detido por familiar próximo dos reivindicantes. O “ideal de justiça” não fica beliscado.

Acresce, ainda, que, nestas circunstâncias, não se vislumbra que os ditos demandantes exerçam o seu direito de propriedade “fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apoditicamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante”.

Inexiste, pois, qualquer comportamento típico do abuso de direito.

Em síntese[1]: a relação jurídica obrigacional, decorrente de contrato de comodato, caduca com a transmissão da propriedade do imóvel, não sendo, por isso, oponível ao novo proprietário; nada tem de antiético ou ofensiva da “justiça e do sentimento jurídico dominante”, com a inerente inaplicabilidade da figura do abuso de direito, uma acção de reivindicação, a fim de se extrair benefícios económicos do prédio reivindicado, ainda que este seja detido por um familiar próximo dos reivindicantes.

  Decisão

Pelo exposto, decidem os juízes desta Relação, julgando a apelação improcedente, manter a sentença recorrida.»


2. Ao abrigo das alíneas b) e c) do artigo 672º do Código Civil, os réus interpuseram recurso de revista excepcional, invocando contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Maio de 2006, disponível em www.dgsi.pt, proc. nº 3834/2006-7 – cujo texto não juntaram, apesar de a junção ser expressamente exigida pelo disposto nos artigos 672º, nº 1, 2) e 637º, nº 2, do Código de Processo Civil – e estarem “em causa interesses de particular relevância social”.

Por acórdão da formação prevista no nº 3 do citado artigo 672º, não foi admitido o recurso de revista excepcional, por ter sido entendido não ocorrer o obstáculo de dupla conformidade de decisões, definido pelo nº 3 do artigo 671º do Código de Processo Civil, tendo em conta a apreciação, pela Relação, da “questão do abuso de direito (…), por invocação dos RR nas respectivas alegações de apelação”. Foi determinado que se procedesse à distribuição “para eventual admissão como revista”.


3. Respeitando esta decisão, e porque se verificam os pressupostos gerais de admissão do recurso de revista, procede-se à apreciação do recurso.

As conclusões das alegações apresentadas são as seguintes:

««1a- A decisão recorrida está em contradição com a adoptada no acórdão da Relação de Lisboa de 16-05-2006 Proc. 3834/2006-7 in www.dgsi, a propósito de uma situação inteiramente idêntica, pois que no acórdão recorrido se considera que o confronto entre o comodatário e o posterior adquirente do direito de propriedade deve ser resolvido sempre a favor do proprietário, ao passo que no citado acórdão da Relação de Lisboa se admite que nem sempre esse conflito de interesses terá de ser resolvido a favor do proprietário;

2a- designadamente na situação em que o adquirente do direito de propriedade tenha assumido a obrigação do comodante, como claramente sucedeu no caso sub judice, em que foi o pai dos menores o outorgante que representou os compradores, seus tios, no contrato de compra e venda pelo qual os comodantes adquiriram a propriedade do prédio; foi ele que depois o adquiriu para si próprio; e foi também ele que (com o ex-cônjuge) o doou aos filhos ora AA.

3a- Reconhecendo o referido pai dos menores como uma condição essencial do contrato de compra e venda de 20-11-1993 a salvaguarda do direito do vendedor de continuar a viver e usufruir do prédio vitaliciamente.

4a- Pelo que ao contrário do referido no acórdão recorrido a relação obrigacional não caducou com o contrato de compra e venda de 18 de Setembro de 2009.

5a- Ao contrário do que concluiu a Relação, deduz-se claramente da carta de 20 de Maio de 2011 com toda a probabilidade, a manutenção da mesma relação obrigacional de comodato há muito existente, conquanto dessa carta não se retire a constituição de uma nova relação obrigacional, nem tal seria necessário.

6a- E se dúvidas houvesse quanto à assunção das obrigações do comodante por parte dos sucessivos novos proprietários, então haveria que anular a sentença e sujeitar essa matéria a produção de prova.

7a- Estes factos são fundamento do pedido de revista excepcional, que deverá levar à uniformização de critérios e assim à improcedência da presente acção.

8a- Acresce que no presente caso estão também em causa interesses de particular relevância social, designadamente o direito de habitação dos RR. e particularmente do R. marido.

9a- Sendo especialmente chocante que este se tenha assegurado do direito ao uso vitalício da casa quando vendeu o prédio, sendo essa uma condição essencial do contrato e tenha visto essa obrigação respeitada sucessivamente por todos os donos do prédio durante cerca de 20 anos inclusivamente pelos ora AA.

10a- É assumido pelos próprios AA. que a doação que lhes foi feita pelos seus pais foi a forma de resolver as partilhas do seu divórcio e que não está em causa a existência do contrato de comodato mas sim a sua falta de registo (cf. Réplica).

11a- A vinculação dos sucessivos proprietários é subsumível no conceito de assunção externa de "obrigações", nos termos do art. 595°, n° 1, ai. b), do CC e afasta a aplicabilidade da norma do artigo 406° n° 2 do Código Civil.

12a- O contrato de comodato não está sujeito a qualquer forma, inexistindo, por isso, obstáculo formal a que a assunção da obrigação do comodante decorra de comportamentos tácitos, nos termos dos arts. 217°, n° 1, e 219° do CC.

13a- Relativamente aos AA. a vinculação é tacitamente revelada pelo conhecimento que tinham os seus representantes legais do acordo de comodato e pela sua atitude de não interferirem na situação que rodeava a ocupação da fracção por parte dos RR. ao tempo da celebração de escritura de compra de 2009 e de doação de 2010 bem como nos anos seguintes.

14a- Nos termos do art. 272° do CC, ex vi  art. 278° do CC, os pais dos AA. que tinham já eles próprios aceitado a sua vinculação ao contrato como comodantes, estavam obrigados a orientar as suas opções pelos ditames da boa fé, por forma a não comprometer a integridade do direito dos Réus.

15a- Tais ditames em termos objectivos seriam postergados com prejuízo para a situação jurídica dos RR. se aqueles quisessem fazer a transmissão do prédio para os AA. desvinculando estes do contrato de comodato.

16a- Deste modo, ainda que porventura não fosse possível submeter os AA. à vinculação contratual correspondente ao comodato, efeitos semelhantes, limitadores da sua intervenção como proprietários, decorrem da consideração de normas e princípios mais difusos que também encontram na matéria de facto apurada e nas mencionadas circunstâncias envolventes a necessária substanciação.

17a- Foi assim violada a norma do artigo 595° n° 1 al. b) do CCiv. cuja aplicação se sobrepunha no caso sub Judice à estrita aplicação do regime do contrato de comodato como vínculo sem eficácia externa sob invocação do disposto no artigo 406° n° 2 do Código Civil.

18a- Mesmo que assim não se entendesse, sempre a pretensão dos AA. cairia no âmbito do instituto do abuso de direito, sendo manifesto que a mesma excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, conforme previsto no artigo 334° do Código Civil.

19a- Os AA., por detrás das aparências, não podem ser considerados terceiros totalmente "indiferentes" ao que se passou antes de se terem tornado proprietários.

20a- Com tais fundamentos deverá o acórdão recorrida ser revogado e a acção julgada improcedente no que respeita à parte do prédio abrangida pelo contrato de comodato, ou seja, às casas agrícolas e à habitação bem como a uma área de terreno anexa à habitação, destinada a horta.»


Não houve contra-alegações.


4. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido, acrescentando números):

1 - Encontra-se registado a favor de AA e BB, por doação, na proporção de metade para cada um, o prédio urbano, sito em Quinta …, nº …, com a área de 31.680 m2, sendo 120 m2 de área coberta e 31.560 m2 de área descoberta, inscrito na matriz predial sob o nº 44…, composto de casa de rés-do-chão, com logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 30…/20090921, da freguesia de São João Batista;

2- Por escritura pública, outorgada em 18 de Novembro de 2010, no Cartório Notarial de Odivelas, FF e CC declararam doar, por conta da quota disponível dos seus bens, com dispensa de colação, aos seus filhos AA e BB, em comum e partes iguais, o prédio urbano antes identificado;

3- Os Réus habitam e fruem este prédio;

4- Por escritura pública, outorgada em 29 de Novembro de 1993, na Secretaria Notarial de Tomar, DD e EE declararam vender a GG, casada com HH, que, por sua vez, declarou comprar-lhes, o prédio rústico composto de terra de horta e casas agrícolas, no sítio da …, Carvalhos de Figueiredo, freguesia de São João Batista, concelho de Tomar, inscrito na matriz sob o artigo cadastral 13, secção I e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomara, sob o nº 59;

5- Em 30 de Julho de 1994, entre GG e marido, HH, na qualidade de primeiros outorgantes, e DD, na qualidade de segundo outorgante, foi declarado celebrar o seguinte acordo, por escrito, que denominaram “Contrato de Comodato”:

1ª- Os Primeiros Outorgantes são donos e legítimos possuidores do prédio, denominado Quinta da … (Norte), sito em Carvalhos Figueiredo, concelho de Tomar, composto de terra de cultivo e casas agrícolas e de habitação, que compraram ao Segundo Outorgante, por escritura pública de Compra e Venda, outorgada em 29 de Novembro do ano transacto (1993);

2ª - O Segundo Outorgante, seu familiar, continuará a utilizar, conforme acordo prévio estabelecido na fase de negociação da transacção, para habitação familiar do casal, as casas agrícolas e a habitação referidas na cláusula 1ª, e uma área de terreno sem limite definido, anexa a habitação, destinada a horta. O direito à habitação e ao cultivo da horta estende-se ao cônjuge, é vitalício e cessa com a morte de ambos.

 3ª- O Segundo Outorgante suportará os custos e contribuições e impostos inerentes à habitação e à parte que cultiva, obrigando-se a fazer à sua custa as obras necessárias de conservação das instalações”;

6- Por escritura outorgada, em 18 de Setembro de 2009, no Cartório Notarial a cargo do licenciado em direito, II, HH e mulher, GG, declararam vender, livre de ónus ou encargos, a FF, casado com CC, que declarou comprar-lhes, o prédio urbano sito em Quinta da …, nº …, São Lourenço, freguesia de São João Batista, concelho de Tomar, composto de casa de habitação de rés-do-chão, com superfície coberta de 120 m2 e logradouro com cerca de 31.500 m2, a confrontar do norte com o ribeiro, sul com HH, nascente com o rio Nabão e poente com a estrada nacional 110, a desanexar do descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 14…, registado a seu favor, nos termos da apresentação 2 de  5 de maio de 1986 e 12 de 25 de Janeiro de 1994, inscrito na matiz sob o artigo P 4.407 urbano, pendente de avaliação matricial e cuja edificação ainda não se encontra averbada na referida descrição predial. A parte sobrante do prédio passa a confrontar do lado norte com FF e fica reduzida a 40,000 m2, mantendo-se os restantes elementos da descrição;

7- CC enviou aos Réus uma carta registada com aviso de recepção, data de 6 de Junho de 2012, recebida pelo Réu no dia 11 seguinte, na qual solicitou o abandono pelos Réus do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 30…/20090921, da freguesia de São João Batista, no prazo de 30 dias;

8- FF enviou a DD um carta data de 20 de maio de 2011, onde escreveu:” Chegaram ao meu conhecimento as preocupações do Pai quanto ao seu direito de continuar a viver e usufruir do Prédio da Quinta da …. Pois quero Tranquilizá-lo quanto a isso, já que quando intervim na escritura de compra como procurador dos Tios fui informado de que essa era uma condição essencial e também me recordo de que os tios me diziam que logo que viessem a Portugal assinariam o que fosse necessário, pois que só tinha poderes para assinar a escritura. Desta forma, não vejo razões para que o Pai ande nervoso ou inquieto depois de tantos anos ter sido respeitado tal compromisso não é agora que alguém poderá facilmente pôr em causa o seu direito ao sossego”.


5. As questões que estão em causa neste recurso são, portanto:

“assunção das obrigações do comodante por parte dos sucessivos novos proprietários” e, consequentemente, vinculação dos autores desta acção ao comodato referido no ponto 5 dos factos provados, em termos de não poder proceder o pedido de reivindicação,

abuso de direito por parte dos autores.


6. Antes de mais, há que observar o seguinte:


– Não tendo sido admitido o presente recurso como recurso de revista excepcional, não é imperativo saber se procede ou não a afirmação de que o acórdão recorrido está em contradição com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Maio de 2006, proc. 3834/2006-7. Esse confronto, aliás, competiria à formação prevista no nº 3 do artigo 672º do Código de Processo Civil.

De qualquer forma, e porque as alegações seguem de muito perto os termos desse acórdão, suscitando questões que, ali, eram suportadas pela matéria de facto apurada – na 1ª Instância e na Relação –, sempre se observa que não existe a contradição apontada, justamente porque os factos provados e as ilações que deles a Relação tirou, no que poderia relevar para determinar se os autores estariam ou não vinculados pelo comodato, ou se agiriam ou não em abuso de direito, não têm correspondência com o caso presente.

Com efeito, no acórdão de 16 de Maio de 2006 foi dado como provado, como nele se lê, que o autor (proprietário reivindicante) “sabia do acordo [comodato, vigente até que se verificasse a condição descrita no acórdão] e com ele sempre se conformou até meados de 2001 [altura em que fez saber ao réu que devia desocupar o imóvel]”; e, sobretudo, foi entendido pela Relação, interpretando o “comportamento global do A” em “ integração no contexto histórico em que ocorreu”, que o autor tinha tacitamente assumido a vinculação ao comodato referido, nos termos acordados pelos contraentes iniciais: “a actuação deste [do autor], depois de adquirir o direito de propriedade, em 1999, numa altura em que o seu avô ainda era vivo, pode e deve ser interpretada como declaração tácita da vontade de assumir obrigações idênticas às que a sua mãe assumira através do contrato de comodato”. E entendeu-se ainda que, mesmo que assim não fosse, essa factualidade global permitia concluir que o autor, ao pretender a entrega do imóvel que reivindicava, agira em abuso de direito.

Ora, dos factos provados no presente processo nada resulta que permita concluir por uma vinculação dos próprios autores ao comodato referido no ponto 5 da matéria de facto; tanto basta para que se não possa entender que ocorreu a contradição invocada pelos recorrentes, quanto ao confronto entre o direito do proprietário posterior adquirente e o direito do comodatário. E o mesmo se diga quanto à eventualidade de abuso de direito: os factos em que assenta o acórdão da Relação de Lisboa de 16 de Maio de 2016 para paralisar o exercício do direito de propriedade do ali autor não têm equivalente na matéria de facto provada.

As diferenças na matéria de facto considerada pelo acórdão de 16 de Maio de 2016 e, agora, pelo acórdão recorrido impedem que se possa afirmar que são contraditórios “sobre a mesma questão fundamental de direito”, como os recorrentes assumem, ao interpor recurso de revista excepcional:

– Na contestação, os réus apenas alegaram que o pai dos autores havia sucedido na posição de comodante, quando comprara o prédio cuja restituição se pede neste processo. Nas alegações, vêm acrescentar que “relativamente aos AA., a vinculação é tacitamente revelada pelo conhecimento que tinham os seus representantes legais do acordo de comodato e pela sua atitude de não interferirem na situação que rodeava a ocupação da fracção por parte dos RR ao tempo da celebração de escritura de compra de 2009 e de doação de 2010 bem como nos anos seguintes” (concl. 14ª), sustentando seguidamente o que se pode ler nas conclusões acima transcritas para concluir pela improcedência do pedido de restituição.

Esta conclusão, que reproduz um trecho do acórdão de 16 de Maio de 2016 (“Ora, se quanto à R. (e seu falecido marido) a permanência na fracção nos moldes em que se verificava corresponde à aceitação daquela vinculação, relativamente ao A. a vinculação é tacitamente revelada pelo conhecimento que tinha do acordo e pela sua atitude de não interferir na situação que rodeava a ocupação da fracção, atitude esta especialmente qualificada pela proximidade familiar relativamente aos principais sujeitos do primitivo contrato: sua mãe, seu avô e a R., madrasta da sua mãe.”), nem tem cabimento no caso presente; nem poderia ser tirada pelo Supremo Tribunal de Justiça, por envolver um juízo de facto que lhe está vedado. Implicaria afirmar, se bem se entende, que o referido conhecimento pelos representantes legais dos autores – a mãe e o pai, presumindo que a mãe tinha conhecimento do comodato à data da doação – revela tacitamente que os autores estariam vinculados ao comodato, conclusão que se não pode retirar.

Nenhuma relevância tem, pois, a circunstância de o comodato não estar sujeito a forma legal; diga-se, aliás, que a natureza formal de uma declaração negocial não impede que seja tacitamente emitida, como se diz no nº 2 do artigo 217º do Código Civil;

– Nas alegações, como acima se transcreveu, os recorrentes sustentam que “se dúvidas houvesse quanto à assunção das obrigações do comodante por parte dos sucessivos novos proprietários, então haveria que anular a sentença e sujeitar essa matéria a produção de prova” (conl. 6ª). No entanto, nada foi alegado na contestação para sustentar tal assunção. Sendo manifestamente um facto essencial em que se basearia a excepção peremptória de comodato oponível aos autores, está fora de dúvidas que os então réus e agora recorrentes tinham o ónus de a alegar na contestação, sob pena de preclusão (artigos 264º, nº 1 e 489º, nº 1 do Código de Processo Civil em vigor na altura, correspondentes aos actuais artigo 5º, nº 1 e artigo 573º, nº 1). Acresce que essa afirmação dos recorrentes equivale a dizer que a causa não deveria ter sido julgada no saneador, o que haveria ter sido suscitado perante a Relação, supondo que o requerimento de fls. 109 o não impedia.


7. Não está em discussão que o comodato referido em 5. não tem por si só a virtualidade de vincular futuros adquirentes do imóvel em causa neste processo. Vale aqui a regra de que, fora dos casos especialmente previstos na lei, os contratos não têm eficácia perante terceiros (nº 2 do artigo 406º do Código Civil), vinculando apenas as respectivas partes; significando isto, no caso concreto, que o contrato não tem eficácia real.

Na realidade, nem as partes lhe poderiam ter atribuído semelhante eficácia, por a tanto se opor a regra da tipicidade dos direitos reais – das “restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito”, artigo 1306º do Código Civil. Não teria assim fundamento atribuir à falta de registo do contrato a sua inoponibilidade aos autores (cfr. alegações, fls. 181, em referência a uma posição atribuída aos autores).

Nem tem nenhum apoio no que vem provado apelar à figura da assunção de dívida, regulada no artigo 595º do Código Civil, ou à necessidade de respeito dos ditames da boa fé em caso de alienação de direitos dependentes de termo (278º do Código Civil) ou de condição (272º do Código Civil), como se fez no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Maio de 2006.

Nunca sequer se discutiu no processo a questão de saber se o conhecimento do comodato, por parte dos representantes legais (presumindo, portanto, o conhecimento também da mãe) vincula os representados, os menores aqui autores e donatários do imóvel.

Nada há pois a acrescentar ao que se observou nas instâncias, quanto à inoponibilidade do comodato e, portanto, à improcedência da defesa nele baseada.


8. E o mesmo se diga quanto à alegação de abuso de direito – abuso do direito de propriedade, que é o direito que os autores exercem na presente acção, pretendendo a restituição do imóvel através da acção de reivindicação (artigo 1311º e segs. do Código Civil).

O exercício abusivo do direito de propriedade, em termos que permita a quem invoca o abuso paralisar o concreto exercício dos diversos poderes que o integram (uso, fruição e disposição, que se decompõem numa multiplicidade de faculdades que não vem ao caso analisar) é um tema profusamente tratado pela jurisprudência e pela doutrina e de todos nós sobejamente conhecido.

No caso, ambas as instâncias observaram que não se encontram provados factos que permitam considerar que os autores estão a exercer abusivamente o direito de propriedade de que são titulares, sendo claramente insuficiente para o efeito a consideração da carta do respectivo pai, cujo conteúdo vem transcrito no ponto 8. dos factos provados, como se observa no saneador-sentença, a fls. 119, ou ainda a circunstância de o imóvel ter sido doado aos filhos para facilitar a partilha  entre os pais.


9. A terminar, diz-se ainda o seguinte:

Os recorrentes afirmam que a decisão é “materialmente injusta, ignorando todo o contexto de factos que o processo fornece e que permitem ter em conta a ambiência em que o contrato de comodato foi celebrado e em que tinha vindo a ser respeitado por todos os titulares do direito em causa, incluindo os próprios AA., seus pais e anteriormente seus tios-avós”. Mas este processo apenas permite conhecer as relações familiares entre os diversos intervenientes, a celebração do contrato de comodato, a manutenção do contrato enquanto os pais dos autores foram proprietários e a carta do ponto 8. dos factos provados. Nomeadamente, ignoram-se por completo – não têm rasto na prova – as razões pelas quais o comodato surgiu ou se manteve, ou ainda a ocorrência de qualquer desvio relativamente ao fim social ou económico próprio do direito de propriedade que pudesse ter motivado a propositura da presente acção; assim como não tem qualquer base factual uma hipotética actuação imputável aos autores apta a criar nos réus a convicção de que não lhes seria exigida a entrega do imóvel, como possível base de violação do princípio da boa fé.


10. Assim, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.


Lisboa, 22 de Setembro de 2016


Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego

__________
[1] Artigo 663º., nº 7 do Código de Processo Civil.