Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
274/17.8JACBR.C1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PAULO FERREIRA DA CUNHA
Descritores: RECLAMAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
LAPSO MANIFESTO
ERRO DE ESCRITA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES AGRAVADO
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ACLARAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
I. Dispõe o artigo 379, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal que “é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”.

II. A completude e cabal fundamentação e decisão de um Acórdão não dependem de uma exauriente análise de todos e quaisquer argumentos (ou mesmo eventuais excursos e obter dicta) das alegações das partes, mas de uma resposta clara, compreensível, lógica e fundamentada às questões efetivamente fundantes colocadas, em já de si resumidas nas Conclusões. Por uma questão, desde logo, de economia processual, celeridade na resposta e omissão devida de atos inúteis. Havendo profusa jurisprudência que o atesta. Cf. desde logo, o Acórdão deste STJ proferido no Proc.º n.º Proc. nº 35/18.7GBVVC. E1.S1, de 10-02-2020.

III. A nulidade por omissão de pronúncia apenas se verificará nos casos em que a omissão de conhecimento, relativamente a cada questão, é absoluta. Cf., v.g., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07-04-2016, Proc. 6500/07.4TBBRG.G2.S3, de 31-05-2016, de 15-02-2017, Proc. 3254/13.9TBVCT.G1.S1, e de 22-01-2019, Proc. 432/15.0T8PTM.E1.S1.

IV. A decisão reclamada padece de um lapsus calami, na verdade uma troca de palavras, que corresponde, linguisticamente, a um singular por um plural. Sucede, contudo, que a verdadeira e própria omissão de pronúncia não equivale a um mero lapso, como sucede nestes autos, antes consubstanciando a nulidade de uma decisão, cujo conhecimento pode, eventualmente, importar uma modificação essencial da mesma. Assim, in casu, este erro de escrita em nada contende com o sentido da decisão, tendo a mesma apreciado cabalmente o tipo criminal em causa e as questões invocadas.

V. O acórdão reclamado não padece de qualquer nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379, n.º 1, al. c) do CPP, uma vez que expressamente se pronunciou sobre a questão suscitada pelos recorrentes – qualificação jurídica errada em relação ao crime de associações criminosas – tendo decidido manter essa qualificação, por fundados motivos. O acórdão reclamado emite pronúncia inequívoca sobre o sentido da decisão e justifica-a de forma clara e sucinta, sendo que o lapso de escrita, sendo óbvio e manifesto, não impede a total compreensão do acórdão, não sendo de molde a afetar minimamente a sua fundamentação.

VI. No acórdão reclamado é fundamentada, de forma absolutamente completa e compreensível, a decisão de manutenção das penas aplicadas pelo tribunal de Primeira Instância, com recurso a factos concretos, não havendo, também nessa parte, qualquer omissão de pronúncia.

VII. Finalmente, invocam, ainda, os recorrentes, no que respeita à alegada omissão de pronúncia, a circunstância de terem sido erradamente condenados pelo ilícito de tráfico agravado de produtos estupefacientes, bem como a sua discordância relativamente à condenação de um dos arguidos, por o mesmo, face à sua deficiência, não ter sido capaz de praticar os crimes por que foi condenado. É notório que tais alegações não consubstanciam qualquer nulidade do acórdão reclamado, antes sendo uma nova manifestação da sua não conformação com a decisão condenatória. Sendo patente que tal discordância em momento algum se poderá confundir com a omissão de pronúncia ou falta de fundamentação, não sendo lícito aos recorrentes revisitar as questões anteriormente invocadas e já decididas, tentando apelar para um inexistente novo grau de jurisdição, sob a aparência de invocação de nulidades.

VIII. É patente que o acórdão reclamado apreciou cabalmente todas as questões que lhe foram invocadas, não padecendo de qualquer nulidade, pelo que se julga improcedente a reclamação apresentada. Assim se rejeita a reclamação.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça





I
Relatório



 1.Os arguidos AA, BB e CC, por Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido a 29 de setembro p.p., viram (assim outros requerentes, nos mesmos autos) confirmadas as suas condenações, nos termos do dispositivo seguinte:

“Termos em que, decidindo em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, se acorda em rejeitar aos recursos quer quanto à matéria de facto (segundo o art. 434 CPP) quer quanto às penas parcelares, por não ser admissível nos termos do art. 432 do CPP, e, conhecendo da matéria de direito, em não alterar as penas únicas, assim negando provimento aos recursos, e confirmando integralmente o Acórdão recorrido.”


2. Irresignados novamente, vêm agora arguir a nulidade desse acórdão, proferido por este Supremo Tribunal, como se disse a 29/09/2021 (e não 29/10/2021, como se refere logo no início do requerimento), invocando o art. 379, nº 1, al. c) e n.º 2, do CPP, por alegada omissão de pronúncia.


3. Fazem-no com os seguintes fundamentos:


“1.º

Os arguidos, ora requerentes, inconformados com o teor do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ...., interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pugnando entre o mais, pela não condenação pela comissão do crime de associações criminosas, e bem assim pela prática do crime de tráfico de produtos estupefacientes agravado.


2.º

Com efeito, foram os três arguidos/recorrentes condenados pelas instâncias pela prática de um crime de associações criminosas, p.p. pelo art.º 28º do Dec. Lei n.º 15/93 de 22/01, sendo que no que tange à arguida AA, a mesma foi condenada como chefe da associação criminosa.


3.º

Não nos parece, salvo o devido respeito, que alguém possa entender como assertivas estas decisões, e tanto assim é, que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, com uma fundamentação, de que aliás discordamos, expende uma série de argumentos a fls. 120 e seg. do douto acórdão, para sustentar condenações destes três arguidos, enquanto co-autores de um crime de associação criminosa, p.p. pelo art.º 299º do Cód. Penal, que, como é do conhecimento de todos, se trata  de um ilícito diferente, e com uma moldura penal flagrantemente menos exuberante e como tal mais branda.


4.º

Ora, não sendo este o ilícito pelo qual os requerentes foram condenados, não se pronunciou o acórdão proferido sobre questão suscitada pelos recorrentes, o que desde já se invoca.


5.º

No que tange às condenações pelo ilícito de trafico agravado de produtos estupefacientes, o Supremo Tribunal de Justiça parte da curiosa asserção que as situações de trafico normal são aquelas subsumíveis ao art.º 21º do Dec. Lei n.º 15/93 quando há muito que o tráfico dito “normal” e o trafico de menor gravidade são uma e a mesma realidade, e que, exceptuando as situações que já revestam alguma envergadura, somente estas, devem ser excluídas do âmbito de aplicação deste normativo e serem subsumíveis ao art.º 21º, e só em excecionalíssimas situações, é que o julgador deverá socorrer-se do art.º. 24º daquele diploma legal.


5.º

Com efeito, neste país ainda prolifera o chamado “tráfico de rua”, escasseando, em consequência, os casos em que a organização/sofisticação doa actos de tráfico justificam a aplicação da norma base.


6.º

Em qualquer bairro …… portuguesa ou da cidade do ..., qualquer individuo que faça da venda de estupefacientes a terceiros modo de vida, transacciona infinitamente mais substâncias estupefacientes ilícitas que a globalidade dos arguidos que compunham este processo alguma vez

transacionou, e, não estamos a ver que nas mais das vezes, a alguém tenha ocorrido subsumir tai condutas ao disposto no art.º 24º desde decreto lei.


7.º

Atente-se que no caso do arguido BB, deficiente profundíssimo desde a infância, alguém que para tudo necessita de auxílio de terceiros, que não mexe um musculo, que não tendo o mínimo grau de autonomia e que até para o simples acto de respirar precisa da ajuda de uma máquina, situação aliás de tal modo evidente, que na primeira sessão de julgamento, o Senhor Dr. Juiz Presidente convidou o signatário a requerer a dispensa do arguido das diversas sessões de julgamento, face às enormes fragilidades evidenciadas pelo mesmo.


8.º

No caso da pessoa em apreço, não há argumentação que colha quanto à possibilidade/susceptibilidade, deste inditoso e enfermo cidadão, ter qualquer papel numa associação criminosa de qualquer tipo, e tão pouco, nem recorrendo à imaginação mais privilegiada, se pode conjecturar quanto ao tipo de acto de trafico que estaria ao alcance de ser praticado por este arguido.


9.º

Do que acabamos de verter, resulta evidente e óbvio que a dimensão das penas aplicadas aos arguidos AA, BB e CC são de per si exageradas e de uma contundência a toda a prova.


10.º

Sendo que no caso do arguido BB, esta pena é inadmissível, na medida em que mais facilmente poderia ter ou conhecer algum papel, no que aos actos de trafico respeita, um cão ou um gato do que o arguido, a quem, na eventualidade de o acórdão objecto desta arguição se mantenha nos exactos termos em que foi proferido, carecerá de que seja erigida um novo estabelecimento prisional com um sem número de novas valências para acolher alguém no seu estado, uma vez que até o …… Prisão de ...., está longe de possuir valências que permitam que o arguido ai permaneça em reclusão.


11.º

Acresce que, continuamos sem perceber que raciocínios lógicos contribuíram para a escolha de quantum parcelares tão exageradamente robustos, o mesmo acontecendo em relação às penas únicas aplicadas.


12.º

Sendo que o acórdão proferido se limita a confirmar as penas cominadas, não fundamentando cabalmente, salvo o devido respeito por opinião diversa, as medidas das penas aplicadas.


13.º

Estabelece o art.º 425º n.º 4 do Cód. Proc. Penal que "É correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379º e 380º, sendo o acórdão ainda nulo quando for lavrado contra o vencido, ou sem o necessário vencimento".


14.º

Dispondo o citado art.º 379º n.º 1 alínea c) que é nula a sentença "quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento".


15.º

Com esta omissão de pronuncia, violou-se ainda o disposto no art.º 205º da Constituição da República Portuguesa, que impõe que as decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.


Nestes termos e nos melhores de Direito, requer-se a V. Exc. se dignem declarar a nulidade arguida, devendo esse Supremo Tribunal de Justiça conhecer das questões suscitadas pelos recorrentes no recurso por si interpostos.”

 

4. Neste Supremo Tribunal de Justiça, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta manifestou-se, num ponderado e direto Parecer, pela improcedência do requerimento, da seguinte forma:

“1 - Os arguidos AA, BB e CC vêm arguir a nulidade do acórdão proferido por este Supremo Tribunal a 29/09/2021 (e não 29/10/2021 como se diz no requerimento), invocando o art. 379º, nº 1, al. c) e nº 2, do CPP, por omissão de pronúncia.

2 - Argumentam que o acórdão não se pronunciou quanto às questões suscitadas no recurso, designadamente quanto ao enquadramento jurídico dos factos e à determinação da medida concreta das penas.

Não têm, porém, a nosso ver, qualquer razão.

Com efeito, o acórdão deste Supremo Tribunal conheceu e pronunciou-se sobre todas as questões suscitadas e fê-lo de forma clara e fundamentada.

E pronunciou-se e esclareceu porque não podia conhecer de algumas das questões colocadas, porque subtraídas aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.

Os requerentes vêm, apenas, mais uma vez, manifestar a sua discordância quer quanto à decisão de facto quer quanto à decisão de direito e, tal como se sublinhou no acórdão em crise, “em muitos casos, o que os Recorrentes afirmam é a sua realidade alternativa, o que resulta apenas numa versão contra a versão provada. E mesmo as manifestações de algum “escândalo” quanto ao provado e sentenciado obviamente não fazem mais que realçar a irresignação, mas não carreiam, por si, quaisquer elementos lógicos ou persuasivos, ao nível de persuasão que se exige nesta sede”.

3 - O que os recorrentes pretendem é, pois, uma nova pronúncia sobre questões específicas objecto do recurso e já tratadas e decididas no acórdão que agora pretendem pôr em crise.

Acresce que o Tribunal deve pronunciar-se sobre todas as questões, de facto e de direito, relevantes para uma justa decisão, mas não sobre todos e cada um dos argumentos aduzidos pelos recorrentes.1

Com efeito, a “nulidade resultante da omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – artigo 608º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º, do C.P.P.”2

A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide “sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão”.3


*


Em conformidade com o exposto, entendemos não se verificar a nulidade do acórdão invocada pelos arguidos AA, BB e CC, ou qualquer outra, devendo, em consequência, ser indeferido o requerimento por aqueles apresentado.”


Efetuado o exame preliminar, remeteu-se o processo a vistos legais e de seguida à Conferência, de acordo com o disposto no art. 419 do CPP.



IV

Fundamentação

A

Do Direito em geral




1. Como foi, inter alia, explanado no Acórdão deste STJ proferido no Proc.º n.º Proc. nº 35/18.7GBVVC. E1.S1, de 10-02-2020, a completude e cabal fundamentação e decisão de um Acórdão não dependem de uma exauriente análise de todos e quaisquer argumentos (ou mesmo eventuais excursos e obter dicta) das alegações das partes, mas de uma resposta clara, compreensível, lógica e fundamentada às questões efetivamente fundantes colocadas, em já de si resumidas nas Conclusões. Por uma questão, desde logo, de economia processual, celeridade na resposta e omissão devida de atos inúteis. Havendo profusa jurisprudência que o atesta.

Com efeito, a omissão de pronúncia, geradora de nulidade da decisão está em correspondência direta com o dever imposto ao juiz no sentido de o mesmo ter de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução (ou resposta) dada a outra.

Tal não significa, porém, que o juiz se tenha de ocupar de todas as considerações feitas pelas partes, já que são coisas diferentes deixar de conhecer de questão de que devia conhecer; e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento, ou razão produzida nos autos.

Em consequência, a nulidade por omissão de pronúncia apenas se verificará nos casos em que a omissão de conhecimento, relativamente a cada questão, é absoluta, ou quando se tenham descurado as razões e argumentos invocados pelas partes (e nas não, por exemplo, quando a apreciação das questões fundamentais à justa decisão da lide tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).

Vejam-se, neste sentido, a título meramente exemplificativo, os arestos do Supremo Tribunal de Justiça de 07-04-2016, Proc. 6500/07.4TBBRG.G2.S3, de 31-05-2016, de 15-02-2017, Proc. 3254/13.9TBVCT.G1.S1, e de 22-01-2019, Proc. 432/15.0T8PTM.E1.S1.


2. Dispõe o artigo 379, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal que “é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”

Por sua vez, preceitua o artigo 374 do mesmo diploma legal, relativamente ao conteúdo da sentença, que a mesma se inicia por um relatório, ao qual se segue “a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” (n.º 2).

Ademais, dispõe o artigo 425, n.º 4, do CPP que é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto no artigo 379 do mesmo diploma.

Face aos normativos atrás enunciados, e para o que agora interessa, “a omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal (art. 660.º, n.º 2, do CPC), e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deve conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual” (cf. Ac. deste STJ de 24 de outubro de 2012, processo n.º 2965/06.0TBLLE.E1).


3. Assim, estando em causa uma decisão, as exigências de pronúncia e fundamentação dos acórdãos devem sofrer as devidas adaptações em função do objeto e do âmbito do recurso, pelo que a omissão de pronúncia apenas ocorrerá quando o tribunal deixou de se pronunciar sobre uma questão que devia ter apreciado, seja a mesma suscitada pelas partes em recurso ou de conhecimento oficioso (artigos 425, n.º 4 e 379 do Código de Processo Penal).

Nesta senda, “as questões a decidir não se confundem com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes: a estes não tem o tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas aos que directamente contendam com a substanciação da causa de pedir e do pedido. Não ocorre a nulidade, por omissão de pronúncia, se não forem consideradas, na sentença, linhas de fundamentação jurídica que as partes hajam invocado”. (Ac. deste STJ de 9 de dezembro de 2014, Revista n.º 75/07.1TBCBT.G1.S1 - 1.ª Secção, acessível in www.stj.pt/jurisprudencia/sumários de acórdão/ Civil - Ano de 2014).



B

Da Pretensa Omissão de Pronúncia, no Caso



1. No caso dos presentes autos, invocam os recorrentes que há omissão de pronúncia em virtude de o acórdão proferido ter mantido a condenação, mas ter mencionado uma questão/ilícito diferente, pelo que os mesmos concluem que o Tribunal não se pronunciou sobre a questão por si suscitada.

No acórdão em causa, proferido a 29 de setembro de 2021, escreveu-se que:

“Em geral, podem considerar-se elementos do crime de associação criminosa: a pluralidade de elementos; os laços significativos (ainda que continuidade temporal; a estrutura organizatória; e, obviamente, o escopo criminoso, sem o que cairá por terra qualificação. A lei reconhece: elemento organizativo, de estabilidade e da finalidade criminosa — v. Acs. deste STJ, de 8-1-98, Proc. n.º 1042/97; e de 23-11-00, CJ, S, XIII, 3, p.220. É um crime doloso, de execução permanente e de perigo abstrato.

 Parece efetivamente, pelos elementos dos autos, não haver dúvidas de que estamos (inter alia) perante um crime de associação criminosa p. e p. pelo art 299, n.º 1, do CP, sendo que a arguida AA, ao chefiar a organização, fica sob a alçada da previsão do n.° 3 do mesmo artigo. Quem chefiar ou dirigir os grupos, organizações ou associações referidos nos números anteriores é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

Quem promover ou fundar grupo, organização ou associação, cuja finalidade ou atividade seja dirigida à prática de crimes é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

O bem jurídico primacial que se pretende tutelar com esta incriminação é a preservação da paz pública (e a ordem jurídica na sua integralidade, o que é, aliás, uma outra forma de o dizer).

Trata-se de atalhar a um especial perigo de perturbação que de per si viola a paz pública e atenta contra a ordem jurídica. Esta noção de "paz" é ampla, e de algum modo apela para uma latência e implica potencialidade de ser perdida. Pelo que a perda da paz (neste sentido) pode ocorrer antes da segurança ou da tranquilidade. Cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricence do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 1157.

A associação criminosa tem a virtualidade de (mais ou menos, consoante o seu tipo concreto) metamorfosear a personalidade, por vezes de comprimir até as manifestações mais evidentes da dignidade humana, criando por vezes conceitos (que podem ir da simples habituação à deliquência  a mutações ainda mais profundas e patológicas). Cria uma hierarquia própria, e, no limite, pode levar a que quem dela faz parte passe a viver numa “bolha” isolada ou com escassos contactos significativos com a sociedade envolvente e, pior ainda, operar um corte de vivências, de partilha de realidade e representações e sobretudo de valores sociais. Além disso, a hierarquia ou simplesmente até a solidariedade especial entre os membros da organização criminosa são desresponsabilizantes e até desestruturadoras da ipseidade dos membros. Embora possa sempre haver alguns (quiçá sobretudo os cabecilhas) com profundo ânimo individualista, por detrás do gregarismo de fachada, de que se servem.

O douto parecer do Ministério Público neste STJ alude longamente às divergências sobre este crime, nomeadamente remetendo para a jurisprudência referida no Ac. do STJ de 10/10/2018, in Proc. nº 5/16.0GAAMT.S1, como é uso acessível em www.dgsi.pt.

Refira-se, contudo, que, na divergência, há uma confluência substancial e essencial, que nos não permite duvidar sobre o tipo de realidade jurídica que temos perante nós.

Recorde-se o seguinte passo do Acórdão recorrido (p. 413 ss.) que se afigura essencial para a compreensão desta qualificação (interpretando, como é óbvio e necessário, a matéria de facto provada):

“Temos pelo menos 4 agregados familiares distintos, tendo em vista ou por último organizados tendo em vista a venda de produto estupefaciente. Assim há uma colaboração entre todos forma-se uma unidade, – traduzido em movimento de dinheiro e droga entre os vários núcleos de venda sempre que é necessário e com a direcção da arguida AA – todos acatando as orientações dadas por esta, mesmo que pessoalmente as relações não sejam as melhores. Com efeito, se é certo que a arguida DD refere que falava pouco com a mãe do seu companheiro – a arguida AA – porque não se davam muito bem, a verdade é que os seus contactos nesta atividade são intensos, sendo visível que a mesma acata as orientações dadas pela AA.

Como é referido na decisão recorrida é esta estrutura, esta organização hierarquizada que permite compreender que sempre que cada local de venda não tinha produto estupefaciente era acionada toda a organização para fornecer esse ponto de venda, retirando-se de um lado para outro; é esta estrutura organizada e hierarquizada que permite compreender que sejam vários os colaboradores que fazem o transporte da cocaína do ... para ... de forma regular, sendo que os mesmos são facilmente e rapidamente substituídos quando são detidos ou, por qualquer razão, algum deles está indisponível para fazer o transporte; é esta estrutura organizada e hierarquizada que permite compreender que o aluguer de viaturas para o transporte seja tratado por outras pessoas que não as que fazem o transporte; é esta estrutura organizada e hierarquizada que permite compreender que mesmo nos dias dos referidos transporte e durante o mesmo sejam dadas indicações via telefone sobre como distribuir a droga transportada, fluindo sem qualquer problema o transporte nos termos ordenados, mostrando que todos têm a noção clara desta rede organizada. Ainda que não se possa concluir daqui estarmos perante uma organização altamente profissional, ainda assim a mesma apresenta uma assinalável organização, hierarquização, divisão de tarefas e colaboração que extravasa a simples existência de uma família.

Os recorrentes referem, nomeadamente, “os correios” que não contactavam com grande parte dos elementos do grupo, nunca falaram com a AA. A recorrente EE refere que não foi fundadora da associação mas sim, a AA e como tal a sua actuação enquadra-se no nº 2 do artº 28 e não no nº 1.

Ora, se verificarmos todos os passos dados pelos membros deste grupo, o seu modo de actuar, idas ao ..., contactos telefónicos entregas de dinheiro, aluguer de viaturas, revela já alguma organização, disciplina e entreajuda dos membros do grupo.

O carácter duradouro da associação está bem patente no facto de se ter estendido por pelo menos um ano a actividade delituosa do grupo. Por outro lado, o grupo não tem que dispor de uma estrutura organizativa complexa, com uma hierarquia bem definida e com rígidas regras de funcionamento. (…)

Como muito bem é referido na decisão recorrida os laços familiares foram, importantes para o estabelecimento do núcleo duro deste grupo, onde as relações de confiança são essenciais e em família as mesmas são naturais, alicerçando a possibilidade de construir com esta base uma estrutura organizada e hierarquizada, uma rede que facilmente abarcasse outros elementos essenciais para o sucesso da mesma, designadamente “correios de droga” ou “vendedores à consignação”. Este alargamento dos elementos inicialmente integrantes desta organização, sem perda de eficiência apenas foi possível por ter a enquadrá-lo uma estrutura, uma rede organizada, com divisão de tarefas e correspetiva especialização. Estamos em face da constituição de um grupo resultante de um acordo ou pacto prévio ao cometimento dos crimes com a criação de um centro de facto autónomo que está acima dos agentes. Aliás, cada um dos elementos desta organização tinha tarefas específicas distintas, não controlando sequer a dimensão subjectiva do grupo, sendo apenas esta controlada pelo núcleo duro daquele grupo familiar, e, em última instância, pela arguida AA. (…)

Dentro deste grupo, é manifesto que não estão todos ao mesmo nível, uma vez que a arguida AA é quem toma as decisões e é desta, em ultima instância, que todos recebem as orientações. Nessa medida, apenas a esta se pode imputar o papel de chefe da organização. Quanto aos demais, da prova produzida apenas se pode concluir que os mesmos coadjuvavam a arguida AA, sendo que o papel relativo de cada arguido na tomada de decisões e seu cumprimento não releva para a qualificação jurídico-penal da sua conduta conforme imputado na pronúncia, mas apenas na determinação da medida concreta da pena.

Já no que respeita aos arguidos FF e GG resulta assente que os mesmos apenas integraram tal organização em finais de 2017, pelo que nunca os mesmos poderiam estar no grupo fundador da mesma, antes aderindo a esta quando a mesma já estava alguns meses em funcionamento. Nessa medida, o crime praticado não se situa no n.º 3 do art.º 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.1., antes se ircunscrevendo-se no n.º 2 do citado dispositivo legal, por referência ao n.º 1 do mesmo. (…)

No que respeita ao elemento subjectivo este Tribunal não ficou com dúvidas que os recorrentes agiram de forma deliberada, livre e conscientemente, criaram, integraram a organização criminosa supra referida e colaboraram com ela, respectivamente, conhecendo perfeitamente todas as actividades do grupo em que se inseriam e do qual aceitaram fazer parte, assumindo cada um a execução de actos necessários a alcançar os objectivos do grupo, tendo cada um deles funções específicas que visavam o desenvolvimento da actividade da comercialização de droga, actividade esta que constituía o modo de vida de todos e com o intuito de obterem avultados proveitos económicos através da comercialização de droga, sabendo que a mesma se destinava a ser distribuído por um grande número de pessoas. Para melhor concretizarem os seus objectivos, todos estes arguidos aceitaram zelar pelo desempenho eficaz daquela actividade organizada e pela continuidade do grupo. Mais sabiam todos aqueles arguidos que com esta sua actuação, constituindo um grupo rganizado que tinha como finalidade promover a prática de crimes tráfico de estupefacientes estavam a colocar em causa as expectativas sociais e a paz pública (…)” (sublinhado nosso).

Os factos apenas sintetizados e integrados neste passo identificam as características da atuação dos arguidos e a sua inserção num grupo criminoso (vulgo, num “bando”), indicando os laços que os uniam (e que, sendo por vezes familiares, transcendiam essa simples comunidade de sangue e de afetos, porque visando uma finalidade de empreendimento: a compra e venda de tráfico de estupefacientes. Sob a direção de AA. E viviam dessa atividade, auferindo até altos rendimentos.

Se esta narrativa, acolhida pelas Instâncias, é uma “cabala”, uma ficção literária ou cinematográfica, teria de ser não afirmado, ou sugerido, mas provado de forma a demolir a construção já de pé, com uma verosimilhança sólida, muito próxima, no essencial, com o que plausivelmente ocorreu. Apresenta-se, pois, como uma representação icástica do real, sem elementos fantásticos ou imaginativos, pelo contrário seguindo as regras da experiência comum. Pelo contrário, as narrativas alternativas não parece alcançarem persuasão que a esta afaste (dentro dos parâmetros da Lei), e tinham esse ónus”


2. Ora, é manifesto que a presente decisão padece de um lapso de escrita (lapsus calami), ao referir-se ao crime de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 299, n.º 1, do Código Penal, e não ao crime de associações criminosas, previsto e punido pelo artigo 28. o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, ilícito que é o que efetivamente está em causa nos presentes autos e aquele pelo qual os recorrentes foram condenados.

Sucede, contudo, que a omissão de pronúncia não equivale a um mero lapso, como sucede nestes autos, antes consubstanciando a nulidade de uma decisão, cujo conhecimento pode, eventualmente, importar uma modificação essencial da mesma. Assim, in casu, este erro de escrita em nada contende com o sentido da decisão, tendo a mesma apreciado cabalmente o tipo criminal em causa e as questões invocadas.


3. Consequentemente, e ao contrário do defendido pelo recorrente, o acórdão reclamado não padece de qualquer nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379, n.º 1, al. c) do CPP, uma vez que expressamente se pronunciou sobre a questão suscitada pelos recorrentes – qualificação jurídica errada em relação ao crime de associações criminosas – tendo decidido manter essa qualificação, pelos motivos aí aduzidos e que se transcreveram supra.

Pelo exposto, entende-se que o acórdão reclamado emite pronúncia inequívoca sobre o sentido da decisão e justifica-a de forma clara e sucinta, sendo que o lapso de escrita inicial, sendo óbvio e manifesto, não impede a total compreensão do acórdão, não sendo de molde a afetar minimamente a sua fundamentação.


4. Invocam, ainda, os Recorrentes que o acórdão proferido se limita a confirmar as penas cominadas, não fundamentando cabalmente as medidas das penas aplicadas.

Ora, “o dever de fundamentação, na dimensão que lhe é conferida enquanto princípio fundamental decorrente do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, e como manifestação do direito a um processo equitativo, nos termos do artigo 6.º da CEDH, implica que o tribunal de recurso, conhecendo das questões que lhe são colocadas, explicite os motivos pelos quais julga procedente ou improcedente o recurso.

Este dever de fundamentação insere-se numa exigência do moderno processo penal, com dupla finalidade: extraprocessualmente, ao constituir condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que a determinaram, e intraprocessualmente, realizar o objectivo de reapreciação da decisão por via do sistema de recursos.

[…]

A falta de fundamentação não se confunde, ou não pode ter a mesma dimensão compreensiva, da falta de convencimento que essa fundamentação opera no destinatário. Para este, a fundamentação pode não ser suficiente para os fins que prossegue e que anseia da decisão do órgão jurisdicional, mas esta perspectiva não pode obumbrar o fim constitucional do dever de fundamentação (Ac. deste STJ de 23 de maio de 2018, proferido no Proc.º n.º 630/13.0PBGMR.1.S2 - 3.ª secção, sumário disponível em www.stj/jurisprudência/acórdãos/sumários de acórdãos/Criminal - Ano de 2018. (Ac. deste STJ de 14 de maio de 2020, proferido no Proc.º n.º 498/18.0YRLSB.S1).


5. No acórdão reclamado é fundamentada, de forma absolutamente completa e compreensível, a decisão de manutenção das penas aplicadas pelo tribunal de primeira instância, com recurso a factos concretos, não havendo, também nessa parte, qualquer omissão de pronúncia.


6. Finalmente, invocam, ainda, os recorrentes, no que respeita à alegada omissão de pronúncia, a circunstância de terem sido erradamente condenados pelo ilícito de tráfico agravado de produtos estupefacientes, bem como a sua discordância relativamente à condenação do arguido BB, por o mesmo, face à sua deficiência, não ter sido capaz de praticar os crimes por que foi condenado.

É notório que tais alegações não consubstanciam qualquer nulidade do acórdão reclamado, antes sendo uma nova manifestação da sua não conformação com a decisão condenatória.

Todavia, é patente que tal discordância em momento algum se poderá confundir com a omissão de pronúncia ou falta de fundamentação, não sendo lícito aos recorrentes revisitar as questões anteriormente invocadas e já decididas, tentando criar um novo grau de jurisdição, sob a aparência de invocação de nulidades.


7. Por tudo o que atrás se expôs, o acórdão reclamado apreciou cabalmente todas as questões que lhe foram invocadas, não padecendo de qualquer nulidade, pelo que se julga improcedente a reclamação apresentada.



IV

Dispositivo



 Termos em que, decidindo em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça se acorda em rejeitar o requerimento, confirmando o Acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.

 Taxa de Justiça:  7 UCs


Supremo Tribunal de Justiça, 2 de dezembro de 2021


Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)