Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1065/14.3TJVNF.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
MATÉRIA DE FACTO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MÁ FÉ
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / APELAÇÃO / JULGAMENTO DO RECURSO / MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO.
Doutrina:
-ANTÓNIO VAZ SERRA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 108.º, 1975/1976; p. 357;
-PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I, 2.ª Edição, 1979, p. 555.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 662.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 19-01-2017, PROCESSO N.º 841/12.6TBMGR.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - As questões de facto estão reservadas às instâncias, cabendo a derradeira decisão à Relação, a quem estão conferidos os poderes específicos consagrados no art. 662.º, n.º 1, do CPC.

II - Os factos resultantes da prova por presunções judiciais também não podem ser sindicados pelo STJ, embora possa apreciar a legalidade do seu uso.

III - Enquadrando-se o resultado das presunções judiciais dentro da lógica de certas situações da vida comum, não padecendo da falta de lógica e de coerência, não está em causa a legalidade do uso das presunções judiciais.

IV - Na impugnação pauliana, o requisito da má fé do devedor e terceiro, com um sentido psicológico, preenche-se com a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – RELATÓRIO


Banco AA (que, entretanto, passou a denominar-se BB, S.A.) instaurou, em 15 de maio de 2014, no então 3.º Juízo Cível da Comarca de Vila Nova de Famalicão (Juízos Cíveis da Instância Central de Guimarães, Comarca de Braga), contra BB, CC, DD, EE, FF, S.A., e GG, S.A., ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que fosse declarada a nulidade dos contratos de compra e venda e de permuta identificados nos artigos 8.º a 13.º da petição inicial e ordenado o cancelamento do registo de aquisição do direito de propriedade a favor das 5.ª e 6.ª RR. e eventuais registos que viessem a efetuar-se na pendência da ação relativamente aos mesmos prédios; subsidiariamente, que se declarasse assistir ao A. o direito de impugnar os mesmos contratos de compra e venda e de permuta e executar os imóveis na medida do seu crédito, no valor de € 214 528,75, acrescido dos juros vincendos, no património das 5.ª e 6.ª RR.

Para tanto, alegou, em síntese, ser credor dos 1.º e 2.º RR., como avalistas de livranças subscritas por BB, S.A., que, vencidas, não foram pagas; os mesmos RR., em 2012, simularam a venda de vários prédios, com o intuito de prejudicar terceiros, designadamente os seus eventuais credores; todos os RR. estavam ainda conscientes do prejuízo que causavam, visto que de tais vendas decorria a impossibilidade do A. vir a obter o recebimento do seu crédito.

Citados os Réus, contestaram os 1.º e 2.º RR., alegando, desde logo, que o crédito do A. sofreu modificação em consequência da aprovação e homologação do plano de recuperação da BB, S.A., e impugnando ainda a simulação do negócio e a impugnação pauliana.

Contestou também a 6.ª R.. alegando a sua seriedade e boa fé no negócio celebrado e concluindo pela improcedência da ação.

Foi proferido o despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 22 de fevereiro de 2017, sentença, que, julgando a ação improcedente, absolveu os Réus dos pedidos.

Inconformado, o Autor apelou para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por acórdão de 15 de fevereiro de 2018, dando parcial procedência ao recurso, revogou a sentença e reconheceu que o Autor tem direito de executar os bens que identifica no património das 5.ª e 6.ª Rés, ficando estas obrigadas a restituir tais bens ao património dos 1.º e 2.º Réus, na medida necessária à satisfação do direito de crédito do Autor, no montante reconhecido de € 214 528,75.

Inconformados, os 1.º e 2.º Réus recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça, e, tendo alegado, formularam essencialmente as conclusões:

a) O Tribunal recorrido violou os arts. 393.º, 394.º e 395.º do Código Civil e não podia ter dado como provado que BB, Lda., recorreu a saldos “descobertos na sua conta corrente”, porquanto o mesmo não é suscetível de prova testemunhal.

b) É ilógica, incoerente e contraria a regras da experiência, a presunção de que os RR. tenham realizado negócios no ano de 2012 com vista a diminuírem ou dificultarem a cobrança do crédito do A.

c) Há abundante prova acerca do património dos avalistas, sendo certo que as quotas que detêm na referida sociedade têm um valor reconhecido pelos credores e pelos imóveis, sua propriedade, dados como garantia de cumprimento do PER.

d) Os títulos que os avalistas detêm sobre a sociedade devedora têm valor pecuniário e patrimonial e são bens penhoráveis.

e) O Tribunal a quo não indica os elementos probatórios em que se baseou para dar como provado que “os avalistas não utilizaram esses recursos materiais     (€ 260 000,00) para a satisfação de obrigações da sociedade em dificuldades financeiras”, ao mesmo tempo que não especificou os fundamentos decisivos para a formação da sua convicção, pelo que violou o disposto no n.º 4 do art. 607.º, e n.º 1 do art. 662.º do CPC.

f) Cabia ao A. a prova de que os avalistas não utilizaram o preço recebido pelos negócios realizados para a satisfação das obrigações da sociedade, pelo que a presunção desse facto viola os arts. 342.º do CC e 607.º, n.º 4, do CPC.

g) Essa presunção é ainda contraditória com facto dado como provado (“desconhecem o destino dos € 260 000,00”).

h) O crédito do A. venceu-se em data posterior a todos os negócios, pelo que o acórdão recorrido violou o disposto na alínea a) do art. 610.º do CC.

i) Resulta da prova documental que os avalistas comprovaram o recebimento dos preços dos negócios realizados, pelo que não houve qualquer diminuição da garantia patrimonial do credor/banco.

j) Não se provou a má fé dos avalistas, mas, antes, a sua boa fé, pelo que foi violado o disposto no art. 612.º do CC.


Com a revista, os Recorrentes pretendem a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por decisão que julgue totalmente improcedente a ação, absolvendo os RR. dos pedidos formulados.


Contra-alegou o Autor, no sentido da improcedência do recurso.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


No recurso, está em discussão, essencialmente, a verificação dos pressupostos da impugnação pauliana.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:


1. Em virtude de operações praticadas no exercício da atividade de instituição de crédito a que se dedica, o A. é credor dos 1.º e 2.º RR. em montante que ascende ao total de € 214 528,75, crédito titulado por duas livranças subscritas por BB & C.ª, Lda., à ordem do A. e avalizadas pelos 1.º e 2.º RR., vencidas no dia 13.12.2013, no valor de € 157 993,64 e € 56 535,11.

2. O crédito titulado nas livranças tem origem em dois contratos de financiamento celebrados entre o A. e a BB & C.ª, Lda., em 18.11.1996 e em 30.10.2000, respetivamente, cujo pagamento é garantido pelos 1.º e 2.º RR.

3. BB, S.A., foi alvo de um processo especial de revitalização, que correu termos sob o n.º 1520/13.2TJVNF.

4. No âmbito desse processo, os credores aprovaram a reestruturação financeira da sociedade por via da aprovação do plano de recuperação, tendo o crédito do A. sido aí incluído.

5. Tal plano prevê, relativamente aos “créditos comuns (bancos)”, entre os quais o crédito do A., a consolidação e regularização integral da dívida de capital nas seguintes condições: a) Prazo: 12 anos a contar da data de homologação do plano de recuperação; b) Plano de liquidação de capital: carência do pagamento de capital pelo prazo de 24 meses, vencendo-se a primeira prestação de capital no 25.º mês após a data da sentença de homologação do plano de recuperação; c) Periodicidade do pagamento de capital: mensal e postecipada; d) Periodicidade do pagamento de juros: mensal, vencendo-se a primeira prestação no último dia do mês seguinte ao da data da sentença de homologação de plano de recuperação; e) Taxa de Juro: Euribor (6 meses), acrescida de um spread de     2,5 % para os primeiros 24 meses e Euribor (6 meses), acrescida de um spread de 3,5 % para os restantes meses; f) Hipoteca de terrenos melhor identificados no plano e na proporção dos créditos reclamados; g) Outras condições: perdão de juros vencidos e não pagos até à data da publicação da lista definitiva de créditos, não havendo lugar a quaisquer juros de carácter compensatório, de mora ou de outra natureza que não remuneratória.

6. O plano de recuperação foi aprovado e homologado em 17 de dezembro de 2013.

7. Em cumprimento do plano de revitalização, a hipoteca referida em 5. e 6. foi constituída por escritura pública de 27.12.2013, versando sobre cinco prédios e garantindo créditos até ao montante global de € 2 091 372,87, reportando-se       € 228 331,26 ao ora A.

8. Corre termos, sob o n.º 3524/13.6TJVNF, ação executiva em que são executados os 1.º e 2.º RR. e exequente o ora A., sendo que na pesquisa aí efetuada os Executados não apresentam bens.

9. Através de escritura pública de compra e venda, outorgada em 26.01.2012, os 1.º e 2.º RR. declararam vender e a 6.ª R. declarou comprar o prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão, sob o n.º ..., freguesia de Vila Nova de Famalicão.

10. Por escritura pública de compra e venda de 24.07.2012, os 1.º, 2.º, 3.º e 4.º RR. declararam vender e a 5.ª R. declarou comprar o usufruto dos seguintes imóveis: o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende, sob o n.º ..., freguesia de Gemeses; o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão, sob o n.º ..., freguesia de Portela.

11. Na mesma data, por escritura pública de compra e venda, os 1.º, 2.º, 3. e 4.º RR. declararam vender também à 5.ª R., que declarou comprar, os seguintes imóveis: prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão, sob o n.º ..., freguesia de Portela; prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão, sob o n.º ..., freguesia de Portela.

12. Por escritura pública de permuta de 03.08.2012, os 1.º e 2.º RR. declararam ceder à 5.ª R. os seguintes imóveis, aos quais atribuíram o valor global de                     € 266 000,00: a) fração autónoma designada pelas letras “AT” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão, sob o n.º ..., freguesia de Antas; fração autónoma designada pelas letras “EE” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão, sob o n.º ..., freguesia de Antas.

13. Através dessa mesma escritura, a 6.ª R. declarou ceder aos 1.º e 2.º RR. a fração autónoma designada pela letra “D” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão, sob o n.º ..., freguesia de Ávidos, a que os contraentes atribuíram o valor patrimonial de         € 6 000,00, e comprometeu-se a pagar também aos 1.º e 2.º RR. a quantia de       € 260 000,00.

14. Em 02.10.2012, através de escritura pública de compra e venda, os 1.º, 2.º, 3.º e 4.º RR. declararam vender à 5.ª R., que declarou comprar, o usufruto da fração autónoma designada pelas letras “AE” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão, sob o n.º ..., freguesia de Vila Nova de Famalicão.

15. Em 18.11.1996, BB & C.ª, Lda., subscreveu um título de crédito, com a denominação “livrança”, no valor de € 157 993,64.

16. Em 30.10.2000, BB & C.ª, Lda., subscreveu um título de crédito, com a denominação “livrança”, no valor de € 56 535,11.

17. Nesses títulos de crédito, constam as assinaturas dos 1.º e 2.º RR., com a menção: “dou o meu aval à firma subscritora”.

18. Os outorgantes estavam cientes das dificuldades financeiras da avalizada BB, S.A., e de que, em consequência delas, o A. podia ficar impossibilitado ou com dificuldades de cobrar da mesma, no todo ou em parte, o seu crédito (aditado pela Relação).

19. Em consequência do PER aprovado, foram perdoados os juros vencidos e não pagos até à data da publicação da lista definitiva de credores, prescindidos quaisquer juros compensatórios, de mora ou de outra natureza, e estabelecido que apenas se venceriam juros remuneratórios a partir da aprovação do Plano, sendo o capital a pagar às prestações mensais, em 12 anos, com 2 anos de carência, vencendo-se a primeira no 25.º mês após a sentença homologatória (aditado pela Relação).

20. Os outorgantes estavam cientes de que, em consequência dos negócios realizados, o A. ficaria impossibilitado de cobrar dos 1.º e 2.º RR. qualquer parcela do seu crédito, por lhes não restarem no seu património bens penhoráveis suficientes (aditado pela Relação).

21. Na execução referida em 8., os 1.º e 2.º RR. não pagaram nem o A. conseguiu cobrar qualquer parcela do seu crédito (aditado pela Relação).

22. O preenchimento das livranças foi completado pelo A. após incumprimento das obrigações que elas visavam garantir, decorrentes dos negócios referidos em 1., 2. e 15. a 17., e em conformidade com o que havia sido acordado (aditado pela Relação).



***



2.2. Delimitada a matéria de facto, com a modificação decidida pela Relação, e expurgada de redundâncias, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente quanto à verificação dos requisitos da impugnação pauliana.

Os Recorrentes, porém, questionam a matéria de facto, quer pelo uso indevido de presunções judiciais, quer pela impropriedade da prova testemunhal, quer ainda pelo desprezo de prova existente nos autos, nomeadamente quanto ao seu património.

No âmbito da apreciação da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, que integrava o objeto da apelação, a coberto do disposto no art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), a Relação modificou a decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto, como se especificou no elenco da sua descrição.

Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito – art. 46.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário). De forma expressiva e clara, estabelece-se a regra de que, em sede de revista, o Supremo conhece somente matéria de direito. Assim, as questões de facto estão reservadas às instâncias, cabendo a derradeira decisão à Relação, a quem estão conferidos, nesta matéria, os poderes específicos consagrados no art. 662.º, n.º 1, do CPC.

Exceção à regra encontra-se prevista no art. 674.º, n.º 3, do CPC, nomeadamente quando haja violação do direito material probatório, nomeadamente por ofensa a uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Com efeito, em relação à chamada prova legal, o julgador está vinculado aos termos especificamente regulados na lei, não podendo, nesse âmbito, decidir segundo a sua livre convicção, como sucede noutro tipo de prova. Por isso, neste caso, o Supremo pode apreciar se as regras legais foram devidamente observadas na decisão sobre a matéria de facto.

Por outro lado, para além de não ser possível interferir no juízo de facto formulado pela Relação, esta também não está impedida de recorrer a presunções judiciais para prova de factos.

As presunções judiciais correspondem a ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal – arts. 349.º e 351.º, ambos do Código Civil (CC).

As presunções judiciais resultam da experiência geral da vida, das regras da ciência, arte ou técnica (A. VAZ SERRA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 108.º, 1975/1976, pág. 357).


No caso vertente, não se tipifica qualquer situação de violação do direito probatório material.

Os Recorrentes referem, em concreto, o uso ilógico, incoerente e contrário às regras da experiência das presunções judiciais, nomeadamente quanto à impossibilidade ou dificuldade do Recorrido cobrar o seu crédito sobre os Recorrentes.

Os factos resultantes da prova por presunções judiciais também não podem ser sindicados pelo Supremo, dado tratar-se de matéria de facto da competência das instâncias.

Contudo, num plano diverso, pode o Supremo apreciar da legalidade do uso das presunções judiciais, por se tratar de mera questão de direito.

Assim, se a presunção judicial é extraída a partir de facto falso, facto não provado e matéria sem admissão legal de prova testemunhal, ou, por outro lado, se a presunção judicial se revela com manifesta e evidente falta de lógica, pode a questão ser apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de janeiro de 2017, processo n.º 841/12.6TBMGR.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt).


A Relação, com efeito, recorreu às provas produzidas nos autos, designadamente à testemunhal, que especificou, bem como às presunções judiciais decorrentes das regras da experiência comum, para a prova da impossibilidade ou dificuldade do Recorrido obter a cobrança do seu crédito.

Desde logo, o resultado da prova testemunhal não é sindicável, como já se referiu.

Acresce que a natureza dos factos declarados provados não impedia também a sua prova por via testemunhal.

De resto, a alusão, feita pelos Recorrentes, aos “descobertos na conta”, para além de não corresponder a um facto declarado provado, a sua materialidade podia ser objeto de prova testemunhal, enquanto resultado de uma mera operação contabilística.

Por outro lado, o resultado da prova, por uso de presunções judiciais, enquadra-se dentro da lógica de certas situações da vida comum, nomeadamente de dificuldade económica a ponto de poder gerar incumprimento das obrigações para com terceiros, não padecendo também da falta de lógica e de coerência, em matéria como a da perda de garantia patrimonial, mediante alienação maliciosa de bens, domínio em que a prova é extremamente difícil e há necessidade do uso de presunções judiciais, sob pena de comprometimento da justa composição do litígio.

Nestas circunstâncias, acabando por não estar em causa a legalidade do uso das presunções judiciais, não pode o Supremo Tribunal de Justiça interferir no juízo de facto resultante das mesmas presunções judiciais e modificar o acervo da matéria de facto declarada provada.

Acresce ainda que a modificação da matéria de facto pela Relação resultou da reapreciação, no uso dos seus poderes legais, conferidos pelo disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC, e que, estando no âmbito da sua livre apreciação da prova, o Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar.

Em suma, o presente caso está excluído do âmbito da exceção prevista no art. 674.º, n.º 3, do CPC, e, nessa medida, a matéria de facto passou a estar, em definitivo, assente pelo acórdão recorrido, cujos factos são os únicos a considerar para efeitos de subsunção jurídica.


A questão da nulidade dos negócios jurídicos, por simulação, alegada na petição inicial, não integrando o objeto do recurso, deixou de interessar para a economia do processo.

Resta apenas, por isso, fazer incidir a análise sobre a outra questão, nomeadamente a impugnação pauliana, que o acórdão recorrido, após modificação da matéria de facto decidida pela 1.ª instância, julgou verificada, mas com a impugnação dos Recorrentes, que alegaram não estarem reunidos os seus pressupostos, quer pela consideração de factos indevidamente dados como provados pela Relação, quer ainda pela inexistência da má fé. 

A impugnação pauliana ou acção pauliana representa um meio de que o credor se pode servir para garantir a conservação do património do devedor, cuja universalidade constitui a garantia geral das suas obrigações (art. 601.º do CC).

A impugnação pauliana depende, fundamentalmente, da reunião de dois requisitos: a anterioridade do crédito e o ato lesivo da garantia patrimonial (art. 610.º do CC).

Tratando-se de ato oneroso, acresce ainda um terceiro requisito, o da má fé do devedor e terceiro (art. 612.º do CC).

A má fé, com um sentido psicológico, preenche-se com a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor, incluindo as situações de negligência consciente. Não é, pois, necessária a intenção de prejudicar o credor, basta a consciência do prejuízo. Mas deve ser bilateral, no sentido de que devedor e terceiro atuem com consciência do prejuízo que o ato causa ao credor.


No caso sub judice, não há qualquer dúvida de que o crédito a favor do Recorrido é anterior a qualquer dos atos de disposição celebrados pelos Recorrentes.

É irrelevante que, ao tempo dos atos, o direito de crédito ainda não estivesse vencido. Com efeito, não obsta ao exercício da impugnação o facto do direito do credor não ser ainda exigível, como decorre do disposto no art. 614.º, n.º 1, do CC, em paralelo com o que sucede em matéria de sub-rogação (art. 607.º do CC). Sendo certo o direito do credor, este pode ter interesse legítimo em impugnar o ato antes de vencido o seu crédito, para impedir a dissipação dos bens (VAZ SERRA, citado por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I, 2.ª edição, 1979, pág. 555).

Por outro lado, também está devidamente comprovada a impossibilidade, resultante dos referidos atos de disposição, para o Recorrido, de obter a satisfação integral do seu crédito. Na verdade, no património dos Recorrentes não ficaram bens suficientes para garantir o crédito do Recorrido, como está lapidarmente exemplificado na execução instaurada contra os mesmos, na qual não foram encontrados bens na sua titularidade suscetíveis de penhora, nem paga qualquer quantia do crédito exequendo.

Garantindo os bens do devedor o cumprimento das obrigações, nos termos gerais do art. 601.º do CC, é indiferente que os bens possam ter sido adquiridos depois da constituição da obrigação.   

Para além disso, com os atos de disposição, os outorgantes, que estavam cientes das dificuldades financeiras da devedora principal, suscetíveis de impossibilitar ou dificultar o pagamento do crédito do Recorrido, tinham consciência de que, em consequência daqueles atos, o Recorrido ficaria impossibilitado de cobrar aos Recorrentes qualquer parcela do seu crédito, por não lhes restarem, no património, bens penhoráveis suficientes.

Nestas circunstâncias, todos os outorgantes tinham consciência de que dos atos resultava um prejuízo para o credor, pois este, perdendo a garantia patrimonial, ficava impossibilitado de obter a satisfação integral do seu crédito. Na verdade, para além de ser conhecida, por todos, a difícil situação económica da devedora principal, suscetível de impossibilitar ou dificultar a cobrança do crédito, ainda que parcialmente, os mesmos sabiam que o Recorrido ficaria impossibilitado de obter o crédito dos Recorrentes, por insuficiência ou falta de bens que o garantam, nomeadamente através de cumprimento coercivo. Tanto os devedores como, igualmente, os terceiros tinham perfeita consciência do prejuízo que, desse modo, causariam ao credor, ao impossibilitá-lo de recuperar o seu crédito.  

Assim, neste contexto, que emerge, com clareza, da prova produzida, não pode deixar de se concluir pela verificação, também, do requisito da má fé, previsto no art. 612.º do CC.

Nesta conformidade, estando cumulados todos os pressupostos da impugnação pauliana, tal como se decidiu no acórdão recorrido, carece de fundamento a revista interposta pelos Recorrentes.


2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. As questões de facto estão reservadas às instâncias, cabendo a derradeira decisão à Relação, a quem estão conferidos os poderes específicos consagrados no art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

II. Os factos resultantes da prova por presunções judiciais também não podem ser sindicados pelo Supremo Tribunal de Justiça, embora possa apreciar a legalidade do seu uso.

III. Enquadrando-se o resultado das presunções judiciais dentro da lógica de certas situações da vida comum, não padecendo da falta de lógica e de coerência, não está em causa a legalidade do uso das presunções judiciais.

IV. Na impugnação pauliana, o requisito da má fé do devedor e terceiro, com um sentido psicológico, preenche-se com a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor.


2.4. Os Recorrentes, ao ficarem vencidos por decaimento, são responsáveis pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.


2) Condenar os Recorrentes (Réus) no pagamento das custas.


Lisboa, 28 de junho de 2018


Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado

Sousa Lameira