Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
805/07.1TCFUN.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: ESTIPULAÇÕES VERBAIS ACESSÓRIAS
CONTEMPORÂNEAS DO DOCUMENTO
PROVA TESTEMUNHAL
TRESPASSE
Data do Acordão: 06/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS/ NEGÓCIO JURÍDICO / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS
Doutrina: - Antunes Varela, in “R. L. J., Ano 115º”, pág. 253, nota I.
- Aragão Seia, “Arrendamento Urbano”, Anotado e Comentado, 3ª Ed., pág. 514.
- I. Galvão Telles (com a colaboração do Dr. Januário Gomes) – Parecer, in “Col., Ano XV, 2º/25”, depois reiterado, também em Parecer, na “Col., Ano XVII, 1º/53”.
- João Melo Franco e Herlander Antunes Martins, in “Dicionário de Conceitos e Princípios Jurídicos”, 3ª Ed., págs. 396 a 398 e 855.
- Mota Pinto, in Col., 1985, 3º/9, in “ Teoria Geral”, 3ª Ed., págs. 433
-Pinto Furtado, in “Manual de Arrendamento Urbano”, Vol. II, 4ª Ed., págs. 698/699, 709 e 711.
- Pires de Lima e Antunes Varela, in “CC Anotado”, Vol. I, 4ª Ed., pág. 343.
- Vaz Serra, in “R. L. J., Ano 113º”, págs.146, 147.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 221.º, N.º1, 394.º, N.º1, 399.º, 880.º, 942.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 03/04/91, IN AJ, 18º/21;
-DE 26/04/95, EM WWW.DGSI.PT;
-DE 26/09/96, COL/STJ, 3º/14;
-DE 04/12/07, PROC. 07B4168, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 07/02/08, PROC. 07B3934, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 24/01/12, PROC. 239/07.8TBSTS.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT .

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
-DE 02/07/92, COL. , 4º/231.
Sumário :
I- Ainda que a estipulação verbal acessória e contemporânea do documento mencionado no artº 221º, nº 1 do CC, tenha natureza adicional ao conteúdo deste, é admissível a respectiva prova testemunhal, no caso de o facto a provar estar já tornado verosimil por um começo de prova por escrito ou de existir já prova documental susceptível de formar a convicção da verificação do facto alegado, quando se trate de interpretar o conteúdo de documentos ou completar a prova documental.

II- Não enferma de nulidade, por impossibilidade legal do respectivo objecto, o contrato de trespasse relativo a estabelecimento comercial apenas em formação (“ in fieri”), porquanto são legalmente admissíveis contratos sobre bens futuros, exceptuadas as doações ( CC artºs 399º, 880º e 942º).
Decisão Texto Integral:

                     Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1AA e BB instauraram, em 12.12.07, na comarca do Funchal, acção declarativa de condenação, com processo comum, na forma ordinária, contra CC, pedindo que, declarado nulo o trespasse mencionado na p. i., seja a R. condenada a restituir-lhes a quantia de € 75 000,00, acrescida dos juros de mora vencidos, no montante de € 22 652,00, e dos vincendos até à impetrada restituição, sempre à taxa legal.

       Fundamentando a respectiva pretensão, alegaram, em resumo e essência:

                                                 

--- Por escrito particular de 06.05.04, pelo preço de € 75 000,00, que as AA. pagaram, a R. e estas declararam que aquela lhes trespassava uma loja comercial de restauração;

--- Aquando da outorga desse escrito, na loja que se disse ser objecto de trespasse, não existia nem funcionava qualquer estabelecimento comercial de restauração, estando, pelo contrário, “em bruto”, fechada, sem clientela e vazia de qualquer mercadoria, móveis e utensílios necessários ao exercício da actividade comercial em causa, sendo, por isso, nulo o celebrado negócio de trespasse, por o seu objecto ser legalmente impossível e contrário à lei.

     Em contestação, a R. excepcionou a prescrição do direito invocado pelas AA. a obterem a restituição da quantia que lhes foi entregue por força do ajuizado contrato. Simultaneamente, invocou a mesma a inexistência dos pressupostos necessários à operância do instituto do enriquecimento sem causa, o abuso de direito por parte das AA. quando pedem a nulidade de um negócio que quiseram, conheciam, foi efectuado com aconselhamento jurídico, materialmente executado e do qual as AA. tiraram proveitos económicos. E, deixando impugnada a matéria articulada pelas demandantes, formulou pedido reconvencional de condenação das AA.-reconvindas a ressarcir a R.-reconvinte em montante não inferior a € 75 000,00, acrescido dos respectivos juros de mora a contar da citação, a título de compensação pelas despesas a que aquelas deram lugar e dos rendimentos que a R. deixou de auferir.

       Na subsequente réplica, pugnaram as AA.-reconvindas pela improcedência das deduzidas excepções e da reconvenção.

       Foi proferido despacho saneador em que, além do mais tabelar, foi julgada improcedente a deduzida excepção peremptória da prescrição, com subsequente e irreclamada enunciação da matéria de facto tida por assente e organização da pertinente base instrutória (b. i.).

       Prosseguindo os autos a sua tramitação, veio, a final, a ser proferida (em 12.01.11) sentença que, julgando improcedente a acção, absolveu a R. do pedido.

       Inconformadas, apelaram as AA., tendo a Relação, na improcedência da apelação, confirmado a sentença recorrida.

       Daí a presente revista interposta pelas AA., visando a revogação do acórdão impugnado, conforme alegações culminadas com a formulação de longas e emaranhadas “conclusões” que, por isso e de seguida, tentaremos resumir:

                                                 /

1ª – O tribunal recorrido entendeu que era permitido ouvir testemunhas quanto ao teor do contrato dos autos;

2ª – O nº18 da b. i. (reproduzido, agora, no nº14 dos factos dados como provados) foi dado como provado com fundamento, apenas, no depoimento de testemunhas;

3ª – Está em causa uma cláusula contemporânea e adicional ao documento referido em 1 dos factos provados e, mais do que acessória, é essencial e, por isso e por alterar o seu objecto, valem quanto à mesma as razões por que se exige a forma escrita para a declaração negocial, na certeza de que não ou mal se concebe um estabelecimento de restauração (gelataria e confeitaria) sem recheio, móveis e electrodomésticos;

4ª – Trata-se de uma estipulação dirigida ao conteúdo essencial do negócio ou de cláusula essencial não só à existência do estabelecimento em si próprio como, depois, necessário ao próprio objecto do trespasse, pelo que se impunha que constasse daquele documento, sob pena da inexistência daquele (estabelecimento) e nulidade deste (trespasse), não podendo, pois, quanto a tal, ser admitida prova testemunhal;

5ª – Aliás, a ter sido querida ou pensada tal cláusula, aquando da redução do contrato a escrito, não se percebe a razão por que não havia de ter sido incluída no mesmo, tanto mais que, na elaboração deste, intervieram os dois advogados do facto provado em 14;

6ª – Assim, a resposta ao nº 18º da b. i. deve ter-se por não escrita;

7ª – Porém, mesmo aceitando (por hipótese) como válidos todos os factos dados como provados, daí e dos documentos juntos aos autos não emana o trespasse nem a entrega às recorrentes de qualquer estabelecimento comercial;

8ª – Aquando da outorga do documento referido em 1º da p. i., na loja ou espaço comercial aí dito e tido como objecto de trespasse, não era nem funcionava qualquer estabelecimento comercial, nomeadamente, gelataria, confeitaria e similares;

9ª – Essa loja estava fechada e completamente vazia de clientela e de qualquer mercadoria, assim como então não tinha móveis ou utensílios adequados e necessários à actividade de restauração, designadamente, vitrinas, prateleiras, máquinas, mesas, cadeiras, balcões, montras, pratos, copos, jarros, bules, chávenas, fogões, panelas ou, mesmo, qualquer outro apetrecho de cozinha;

10ª – A recorrida, pelo contrato, declara trespassar às recorrentes (no que estas acordaram) uma loja fechada, em bruto e completamente vazia de mercadoria, não se transmitindo quaisquer vitrines, prateleiras, máquinas e demais utensílios que estão referidos nos documentos juntos ao processo nem mercadorias ou clientela, porque não havia nem tinha;

11ª – A loja, aquando do contrato de trespasse (Maio de 2004), não tinha licença de utilização necessária, esta só foi pedida a 2 de Setembro de 2004 (4 meses depois) e foi passada pela C. M. do Funchal, em 19.11.04, isto é, 6 meses após a assinatura do contrato;

12ª – Nem, tão pouco, aquando ou pelo contrato junto, a loja em apreço estava ou foi arrendada, apesar de, nele, se dizer «que é celebrado e reciprocamente aceite o presente contrato de arrendamento de duração limitada e que se regerá nos termos constantes das cláusulas seguintes»;

13ª – As recorrentes, na loja dos autos, não iniciaram nem continuaram qualquer exploração comercial e só há trespasse quando existe e se transmita um estabelecimento comercial aberto ao público ou em condições de o ser e isso de modo algum aconteceu no caso dos autos;

14ª – Neste, havia uma loja, sem nada dentro ou mesmo à porta, sem clientela e aviamento e isso jamais é um estabelecimento comercial e, portanto, aquela não pode ser objecto de trespasse;

15ª – A recorrida nunca entregou nem transmitiu qualquer estabelecimento às recorrentes, nem elas o usufruíram nem pagaram algo por isso;

16ª – Sendo o trespasse um contrato oneroso de alienação de bens, ao mesmo é aplicado as normas da compra e venda e, nos termos do art. 879º, al. b) do CC, este tipo de contrato tem como efeito essencial a obrigação de entregar a coisa;

17ª – A recorrida não entregou o estabelecimento às recorrentes nem estas alguma vez exerceram lá a actividade de geladaria e cafetaria;

18ª – O contrato celebrado é, irremediavelmente, nulo e, assim sendo, a declaração de nulidade do contrato tem efeito retroactivo, devendo, pois, ser restituídos os € 75 000,00 que foram pagos pelas recorrentes;

19ª - O contrato celebrado não configura qualquer trespasse ou arrendamento, mas aquilo que se costuma chamar de «venda de chave», conduta proibida por lei e que integra crime de especulação – art. 14º do DL nº 321-B/90, de 15.10, – sendo, por isso, também nulo e originador daquela restituição;

20ª – Em suma: o douto acórdão é excessivamente permissivo na admissão da prova testemunhal para, no nosso caso, concluir pela existência de um qualquer estabelecimento comercial, como volta a sê-lo quando conclui ter havido trespasse de um estabelecimento comercial de geladaria e cafetaria sem que este tivesse, aquando da redução da sua negociação a escrito, as existências dos factos provados em 3, 4, 6 a 9, 10 a 12, 15, 16, 20 e 21 e mormente algum recheio, móveis e electrodomésticos;

21ª – A sentença recorrida, ao julgar de forma diversa, violou, entre outros, os arts. 220º, 221º, nº1, 280º, nº1, 289º, 394º, nº1, 879º, al. b) e 939º do CC, 115º do RAU e 722º, nº3, parte final, do CPC.

       Contra-alegando, defende a recorrida a manutenção do julgado.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                                 *

 2 – A Relação teve por provados os seguintes factos:

                                                  

1 – Por escrito particular de 06.05.04 e pelo preço de € 75 000,00 €(setenta e cinco mil euros), a R. e as AA. declararam que aquela trespassava a estas a loja comercial de restauração designada pela letra Q do rés do chão do Edifício ..., situada na Rua …, …, freguesia de …, concelho do Funchal, inscrita na matriz sob o artigo …, descrita na C.R.P. do Funchal sob o n° … da freguesia de … … (A);

2 – As AA. pagaram à R. aqueles € 75 000,00, através de 3 cheques, em 10.05.04, 16.09.04 e 16.10.04 (B);

3 – Aquando da declaração e outorga do documento referido em 1, na loja aí dita ser objecto de trespasse, não existia nem funcionava qualquer estabelecimento comercial de restauração, nomeadamente geladaria, confeitaria e similares (C);

4 – Pelo contrário, estava fechada e completamente vazia de clientela e de qualquer mercadoria, assim como então não tinha algum móvel ou utensílio adequado e necessário à actividade de restauração, designadamente vitrinas, prateleiras, máquinas, mesas, cadeiras, balcões, montras, pratos, copos, jarros, bules, chávenas, fogões nem panelas ou mesmo qualquer outro apetrecho de cozinha (D), (E) e (F);

5 – As AA. pagaram à R. o valor do contrato (G);

6 – A R apenas tinha e dispunha do espaço correspondente a uma loja que necessitava de obras para poder funcionar como estabelecimento comercial do ramo de restauração, para fins de geladaria e de cafetaria, sem confecção própria e similares, vulgo "Café" (1º);

7 – A R. apresentou na Câmara Municipal do Funchal, em 20.11.03, um projecto para geladaria e confeitaria (7º);

8 – Tal projecto para estabelecimento comercial de geladaria e cafetaria foi apresentado na edilidade porque as AA. manifestaram interesse junto da R. em adquirir, exclusivamente, um estabelecimento comercial para aquele ramo de negócio (8º);

9 – A R. pagou € 1 186,50 para efectuar o projecto de geladaria e cafetaria (9º);

10 – A R. pagou a quantia de € 34 976,09, acrescida de IVA à taxa de 15%, num total de € 40 212,15, pelas obras necessárias ao funcionamento do estabelecimento comercial de geladaria e cafetaria (10°);

11 – As obras e montagens de equipamentos destinados a pôr o estabelecimento comercial pronto a funcionar, a que se aludiu no item anterior, decorreram nos meses de Julho e Agosto de 2004 (11º);

12 – As AA. só pagaram a quantia prevista na alínea b) da cláusula Quarta do Contrato de Trespasse, depois de a R. ter requerido, em 02.09.04, mediante documento registado sob o n° … da Câmara Municipal do Funchal, a passagem de licença de utilização e/ou ocupação, a qual foi deferida (13º);

13 – O contrato de trespasse foi elaborado pelo Dr. DD, advogado estabelecido na cidade do Funchal e entregue pelo empregado forense deste às AA., as quais, por sua vez, o levaram ao Dr. EE, seu advogado na altura, e também estabelecido nesta cidade, o qual, inclusivamente, sugeriu algumas pequenas alterações de pormenor no texto do contrato, que foram acolhidas pela R. (14° a 17°);

14 – Aquando da celebração do contrato referido em 1, AA. e R., verbalmente, acordaram que todo o recheio, móveis e electrodomésticos do estabelecimento ficavam por conta das primeiras (18°);

15 – A R. não transmitiu quaisquer utensílios, mercadoria ou clientela porque não os havia nem tinha (20°);

16 – A R. mantém a fruição da loja (21°);

17 – As obras realizadas valorizaram, melhoraram e enriqueceram o prédio da R. (22°);

18 – Essas obras não podem dele separar-se sem detrimento das mesmas e do próprio prédio (23°);

19 – Tais obras não trouxeram para as AA. qualquer mais valia (24°);

20 – As AA., na loja dos autos, não iniciaram qualquer exploração comercial, designadamente, não abriram qualquer geladaria e cafetaria (25°);

21 – As AA. não pagaram nenhuma renda (26º).

                                               *

3 - Perante o teor das conclusões formuladas pelas recorrentes – as quais (exceptuando questões de oficioso conhecimento não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso (arts. 660º, nº2, 661º, 672º, 684º, nº3, 690º, nº1 e 726º, todos do CPC[1] na pregressa e, aqui, aplicável redacção) –, constata-se que duas são as questões por si suscitadas e que, no âmbito da revista, demandam apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso, a saber:

                                             

I – Inadmissibilidade da produzida prova testemunhal quanto ao que é indagado no quesito 18º;

II – Nulidade do contrato em apreço nos autos, por impossibilidade legal do respectivo objecto, dada a inexistência, no caso, de qualquer trespasse.

       Apreciando:

                                              *

4I – Quanto à 1ª das enunciadas questões, dir-se-á, antes de mais e na senda do entendimento perfilhado no Ac. deste Supremo, de 26.04.95, relatado pelo Ex. mo Cons. Raul Mateus e acessível em www.dgsi.pt, que “É lícito ao Supremo, no uso da competência que lhe está cometida pelo art. 722º, nº2, censurar a violação pela Relação, no estabelecimento do quadro fáctico, das regras que proíbem o recurso à prova testemunhal”.

       Isto dito, impõe-se atentar em que, nos termos do disposto no art. 221º, nº1, do CC “As estipulações verbais acessórias anteriores ao documento legalmente exigido para a declaração negocial, ou contemporâneas dele, são nulas, salvo quando a razão determinante da forma lhes não seja aplicável e se prove que correspondem à vontade do autor da declaração”.

       Comentando esta disposição legal, expendeu o Prof. Vaz Serra, com a autoridade que lhe é reconhecida (in “R. L. J., Ano 113º/146”): “As estipulações anteriores ao documento ou contemporâneas dele devem satisfazer à forma exigida pela lei para o negócio jurídico, sem o que são nulas (nº1 do art. 221º), salvo verificando-se três requisitos: a) – tratar-se de estipulações acessórias e não de estipulações essenciais; b) – não serem abrangidas pela razão de ser da exigência do documento; c) – provar-se que correspondem à vontade das partes”.

       E, segundo aquele ilustre Mestre, “A distinção entre cláusulas essenciais e cláusulas acessórias do negócio jurídico, para o efeito de determinar se estão, ou não, sujeitas à forma que a lei prescreve para a declaração negocial, parece dever ser estabelecida atendendo às razões desse requisito legal. Tais razões podem ser para precaver os declarantes contra a sua precipitação e ligeireza, dar maior segurança à conclusão do negócio e ao conteúdo negocial, facilitar a prova, dificultar o negócio, facilitar o controlo no interesse geral, garantir a sua reconhecibilidade por terceiro, dar às partes a oportunidade de obter o conselho de peritos” (in “Ob. citada, pags. 147”).

       Paralelamente, é a seguinte a correspondente lição do saudoso Prof. Mota Pinto (in “Teoria Geral”, 3ª Ed., pags. 433): “No art. reconhece-se a validade das estipulações verbais anteriores ao documento exigido para a declaração negocial ou contemporâneas dele, desde que se verifiquem, cumulativamente, as seguintes condições: a) Que se trate de cláusulas acessórias – não deve tratar-se de estipulações essenciais e parece dever igualmente tratar-se de estipulações adicionais, que completem o documento, que estejam para além do conteúdo do mesmo e não de estipulações que o contradigam, que estejam em contrário dele; b) Que não sejam abrangidas pela razão de ser da exigência do documento; c) Que se prove que correspondem à vontade das partes – este requisito é óbvio, pois traduz-se na prova de que a estipulação existiu, se sobre o ponto acessório há cláusula no documento, o facto verbal não será válido, pois tem de se admitir que as partes, regulando aquele ponto no documento, não quiseram, de todo, o pacto verbal anterior ou contemporâneo”.

       Na mesma linha, aliás, vem sendo firmada a Jurisprudência deste Supremo, mencionando-se, a título meramente exemplificativo, o Ac. de 26.09.96, relatado pelo Ex. mo Cons. Costa Marques e publicado na COL/STJ – 3º/14).

       Em convergente perspectiva, estatui, por outro lado, o art. 394º, nº1, do CC que “É inadmissível prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos arts. 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”.

       Porém, como se decidiu no Ac. deste Supremo, de 07.02.08 – Proc. 07B3934, acessível em www.dgsi.pt – “A regra do art. 394º do CC que estabelece a inadmissibilidade da prova por testemunhas, se tiver por objecto convenção contrária ou adicional ao conteúdo de documento particular mencionado nos arts. 373º a 379º, não tem um valor absoluto, sendo admitida a prova testemunhal quando houver  um começo ou princípio de prova por escrito, ou mesmo quando as circunstâncias do caso concreto tornam verosímil a convenção”.

       Também para Mota Pinto (in Col., 1985 – 3º/9) “Constitui excepção à regra do art. 394º e, por isso, deve ser permitida a prova por testemunhas, no caso de o facto a provar estar já tornado verosímil por um começo de prova por escrito. Também deve ser admitida tal prova testemunhal, existindo já prova documental susceptível de formar a convicção da verificação do facto alegado, quando se trate de interpretar o conteúdo de documentos ou completar a prova documental”.

       Sendo, em nosso entendimento, decisiva a lição dimanada dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela (in “CC Anotado”, Vol. I, 4ª Ed., pags. 343) e de que, entre outros, se fez eco o Ac. deste Supremo, de 03.04.91 – in AJ, 18º/21 –, nos termos da qual o art. 394º do CC só proíbe a produção de prova testemunhal em relação ao conteúdo dos documentos nele visados, na parte abrangida pela eficácia probatória destes.

       Assim, nada obstava, no caso em apreço, à admissibilidade da produzida prova testemunhal quanto ao que era indagado no quesito 18º, certo sendo que o correspondente facto, para além de não contrariar a força probatória dimanada do documento escrito subscrito pelas recorrentes e recorrida e formalizador do celebrado contrato, coincide com a apurada vontade das partes e mostra-se perfeitamente verosímil perante as circunstâncias que emolduram o caso – a recorrida assumiu o custeio das obras complementares a realizar no objecto mediato do contrato, obrigando-se as recorrentes, por seu turno, a suportar o custo do recheio, móveis e electrodomésticos idóneos a conferir funcionalidade ao trespassado estabelecimento comercial.

       Improcedendo, assim, as correspondentes conclusões formuladas pelas recorrentes.                                                

II – Sustentam, por outro lado, as recorrentes a nulidade do questionado contrato, por impossibilidade legal do respectivo objecto, por inexistência, no caso, de qualquer estabelecimento comercial susceptível de trespasse.

       Com respeito pela opinião contrária, não têm, porém, razão.

       Como é sabido, a lei não define o conceito de trespasse, motivando que a doutrina e a jurisprudência se venham empenhando na procura da sua identificação, podendo, hoje e de acordo com a doutrina dominante, entender-se tal conceito como “a transmissão definitiva, por acto entre vivos (seja a título oneroso, seja a título gratuito), da titularidade do estabelecimento comercial” (Prof. Antunes Varela, in “R. L. J., Ano 115º”, pags. 253, nota I).

       Por seu turno, por estabelecimento comercial pode entender-se “a estrutura material e jurídica integrante, em regra, de uma pluralidade de coisas corpóreas e incorpóreas – coisas móveis e ou imóveis, incluindo as próprias instalações, direitos de crédito, direitos reais e a própria clientela ou aviamento – organizados com vista à realização do respectivo fim” (Ac. deste Supremo, de 04.12.07 – Proc. 07B4168, acessível em www.dgsi.pt), ou seja e em linguagem mais acessível, “uma organização estável e autónoma de um conjunto de elementos que permitem o desempenho de uma actividade daquela natureza” (Ac. deste Supremo, de 24.01.12 – Proc. 239/07.8TBSTS.P1.S1, acessível, identicamente, em www.dgsi.pt) (Muitas outras definições de ambos os conceitos se mostram difundidas, remetendo-se, para obviar a fastidiosa transcrição, para “Dicionário de Conceitos e Princípios Jurídicos”, de João Melo Franco e Herlander Antunes Martins, 3ª Ed., pags. 396 a 398 e 855).

       No caso dos autos, as recorrentes argumentam com a ausência ou, pelo menos, grande exiguidade dos elementos que, em termos comuns, deveriam integrar o estabelecimento comercial a que se reporta o celebrado contrato de trespasse. No que foram contrariadas, em termos convincentes e que, aqui, podemos perfilhar, pela inventariação da factualidade provada a que, proficientemente, se procedeu no douto acórdão impugnado, com rigorosa e apropriada concatenação de tal factualidade, na perspectiva da afirmação e demonstração da existência do “quid” ou âmbito mínimo integrante do questionado estabelecimento comercial. Factualidade em que avulta a acolhida em 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14 e 15 e que, nos termos desenvolvidos no douto acórdão impugnado, não pode deixar de consubstanciar a integração, em tal circunstancialismo, da sobredita figura do estabelecimento comercial.

       Aliás, como, com a autoridade que lhe é reconhecida, defendeu o saudoso Prof. I. Galvão Telles (com a colaboração do Dr. Januário Gomes) – Parecer, in “Col., Ano XV, 2º/25”, depois reiterado, também em Parecer, na “Col., Ano XVII, 1º/53” – “Sem dúvida, é possivel – assim se tem entendido e bem – ceder a exploração (ou fazer o trespasse) de um estabelecimento comercial que ainda não entrou em funcionamento ou que, inclusive, ainda está em formação e portanto se mostra incompleto. Nós vamos mais longe e sustentamos, mesmo, que a cessão de exploração (ou o trespasse) pode recair sobre um estabelecimento de que ainda nada existe, que não está sequer em começo de formação, como pura realidade futura, pois são legalmente admissíveis contratos sobre bens futuros, exceptuadas as doações (CC, arts. 399º, 880º e 942º)”.

       Esta posição doutrinal merece a frontal oposição de Pinto Furtado (in “Manual de Arrendamento Urbano”, Vol. II, 4ª Ed., pags. 698/699 e 711), o qual, abordando a temática do estabelecimento ainda apenas em formação (“in fieri”), e após considerar que “o punctum prurens estará em saber – e é aí que divergem as respostas – qual o estádio exacto em que, a montante, a crisálida já é estabelecimento susceptível de ser trespassado, não obstante não ser ainda insecto perfeito, ou, a jusante, que fracção residual pode continuar a considerar-se ainda estabelecimento para o efeito de ser trespassada”, sustenta que “a tese da recondução do trespasse da alienação de um estabelecimento em formação, não integrado por outros elementos além do prédio (“só paredes”, como costuma dizer-se na linguagem comum) em que deverá funcionar, será, para nós, completamente inaceitável”.

       Não obstante, apesar da respectiva discutibilidade (Cfr. Ac. da Rel. do Porto, de 02.07.92, relatado pelo falecido Cons. Lopes Furtado – “Col. – 4º/231”), a transcrita tese do Prof. I. Galvão Telles mostra-se perfilhada, designadamente e em termos incondicionais, pelo Cons. Aragão Seia, a pags. 514 do seu “Arrendamento Urbano”, Anotado e Comentado, 3ª Ed., não vislumbrando nós qualquer razão plausível para não a abraçar, em sintonia, aliás, com o entendimento sufragado nas instâncias.

       Diga-se, finalmente, que, mesmo que se perfilhasse o entendimento subscrito pelas recorrentes, não nos confrontaríamos com a nulidade do contrato fundamental de transmissão nem com um trespasse nulo, uma vez que, então e como sustenta Pinto Furtado, a pags. 709 da sua citada obra, pura e simplesmente não haveria trespasse, não sendo, pois, associável ao negócio fundamental o efeito deste, de tudo resultando ser totalmente inaceitável, em tais hipóteses, declarar a nulidade do contrato e restituir o “trespassante” à fruição da loja, “como, sem razão, se julgou no Ac. do SUPREMO, de 24.06.75 (BOL. 248º/439)”.

       Improcedendo, pois, também por esta acrescida razão, as remanescentes conclusões formuladas pelas recorrentes.

                                              *

5 – Na decorrência do exposto, acorda-se em negar a revista.

      Custas pelas recorrentes.

                                           

Lisboa, 5 de Junho de 2012

Fernandes do Vale (Relator)

Marques Pereira

Azevedo Ramos

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[1]  Como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados.