Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
68/13.0TBCUB-D.E1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: OPOSIÇÃO DE JULGADOS
PRESSUPOSTOS
REGULAÇÃO DO PODER PATERNAL
ALTERAÇÃO
GRAVAÇÃO DA PROVA
RECURSO DE APELAÇÃO
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DA FAMÍLIA E MENORES - PROCESSOS TUTELARES CÍVEIS / AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO E JULGAMENTO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / GRAVAÇÃO DA AUDIÊNCIA FINAL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / PRAZOS DE RECURSO / RECURSO DE REVISTA / REVISTA EXCEPCIONAL ( REVISTA EXCECIONAL ).
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª ed., 50 (nota 80), 54, 159 (nota 252), 322 (nota 443), 328.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 155.º, N.º1, 629.º, N.º 2, 638.º, N.º 7, 671.º, Nº 2, 672.º, N.º 1.
ORGANIZAÇÃO TUTELAR DE MENORES (OTM): - ARTIGOS 158.º, N.º1, AL. C), 161.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 11/11/14, DISPONÍVEL IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Quando o acórdão da Relação se integra nas situações excepcionais do nº2, do art.629, não faz sentido apelar aos requisitos da revista excepcional, sendo admissível a revista independentemente da ocorrência de uma situação de dupla conformidade.

II – Verificam-se os pressupostos da contradição de julgados quando no acórdão recorrido se considerou aplicável o disposto no art.158º, nº1, al.c), da OTM, pelo que se entendeu não ser permitida a gravação da prova, e no acórdão fundamento, pelo contrário, se considerou tal norma revogada, pelo que se entendeu ser obrigatória tal gravação.

III - Dada a razão de ser do disposto no citado art.158º, nº1, al.c), não se pode dizer que o mesmo, ao proibir a redução a escrito da prova, tenha pretendido também proibir a respectiva gravação sonora.

IV - Ou seja, aquele artigo apenas proíbe a redução a escrito, nada prevendo a respeito da gravação, pelo que estamos perante um caso omisso, a resolver, nos termos do disposto no art.161º, da OTM, segundo as regras do processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores.

V - As regras do processo civil são no sentido de permitir a gravação (entre 1995 e 1/9/13), e, posteriormente, a partir de 1/9/13, no sentido de obrigar a gravação.

VI - Sendo que, não se vê que aquela permissão e esta obrigatoriedade contrariem os fins da jurisdição de menores, antes pelo contrário, tendo em conta, designadamente, o triplo objectivo que se visa alcançar com o registo das audiências finais e da prova nelas produzida, a que alude o preâmbulo do DL nº39/95, de 15/2.

VII - Consequentemente, no caso dos autos, nada impedia que a audiência fosse gravada, como, aliás, foi, ao abrigo das regras do processo civil supra referidas, pelo que dispunha a recorrente do acréscimo de 10 dias do prazo de recurso.

Decisão Texto Integral:

Revista nº68/13.0TBCUB-D.E1.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

Nos autos de alteração das responsabilidades parentais que AA intentou contra BB, foi, em 4/3/15, proferida sentença.

Dessa sentença interpôs recurso de apelação a requerida BB.

Tal recurso não foi admitido, por extemporaneidade, conforme despacho de 9/9/15.

A recorrente reclamou para o Tribunal da Relação de …, onde, após resposta do recorrido, o relator do processo, por despacho de 21/10/15, manteve o despacho reclamado.

Tendo a recorrente requerido que sobre a matéria daquele despacho recaísse um acórdão, o relator submeteu o caso à conferência, a qual, por acórdão de 17/12/15, confirmou o despacho do relator.

Desse acórdão foram interpostas revistas excepcionais pela recorrente e pelo M.ºP.º.

O recorrido contra-alegou, defendendo a não admissibilidade do recurso.

A formação a que alude o art.672º, nº3, do CPC (serão deste Código as demais disposições citadas sem menção de origem) determinou, por acórdão de 14/7/16, posteriormente complementado por acórdão de 21/7/16, a distribuição do processo como revista normal, embora com a indicação de que compete ao relator avaliar a admissibilidade desta revista.

 Distribuído o processo como revista normal, foi pelo relator proferido despacho nos seguintes termos:

«Estamos, assim, perante um acórdão da Relação, que confirmou o despacho do relator, que, por seu turno, confirmou a decisão do juiz da 1ª instância de não admissão da apelação.

O STJ já se debruçou, várias vezes, sobre situações idênticas e tem sempre entendido que não cabe revista de tal acórdão.

Nesse sentido, podem ver-se os acórdãos do STJ, de 24/10/13 (Relator: Conselheiro Oliveira Vasconcelos), 19/2/15 (Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Beleza), 9/7/15 (Relatora: Conselheira Fernanda Isabel), 28/1/16 (Relator: Conselheiro Abrantes Geraldes), 3/3/16 (Conselheira: Maria da Graça Trigo) e 5/5/16 (Relator: Conselheiro Oliveira Vasconcelos).

A jurisprudência deste STJ tem considerado que, em situações como a dos presentes autos, não se verifica a previsão do âmbito da revista do art.671º, nº1, do CPC, uma vez que o recurso não tem por objecto acórdão da Relação que conheça o mérito da causa, nem que ponha termo ao processo, absolvendo o réu da instância, ou sequer qualquer situação equiparável a esta.

Tem, ainda, considerado que, em casos como o dos autos, se respeitou já um duplo grau de jurisdição, na medida em que foi proferido despacho de não admissão da apelação pelo juiz da 1ª instância, o qual foi mantido por despacho do relator na Relação, tendo este sido confirmado pelo acórdão da conferência.

Não se trata, pois, de situação em que a Relação tenha apreciado, ex novo, uma questão de natureza processual.

No mesmo sentido, podem consultar-se Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª ed., pág.159, bem como José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil, Anotado, vol.3º, 2ª ed., pág.76, em anotação ao art.688º, onde estes defendem expressamente que «Mas decorre do novo regime que: a decisão de indeferimento da reclamação pela conferência é definitiva».

Note-se que o preceituado na redacção dada ao citado art.688º pelo DL nº303/2007, de 24/8, foi mantido no art.643º, do CPC, aprovado pela Lei nº41/2013, de 26/6, actualmente em vigor e que se aplica ao caso em apreço.

Assim, porque não vemos razões para divergir do entendimento que vem sendo sufragado neste STJ, também consideramos que, no caso, não é admissível revista.

Pelo exposto, não se admitem os recursos interpostos, condenando-se a recorrente nas custas do incidente».

Notificada daquele despacho, a recorrente reclamou para a conferência, a fim de se determinar ser admissível o recurso que interpôs da sentença proferida na 1ª instância em 4/3/15.

Cumpre, pois, decidir em conferência.

Considera a reclamante que a situação sub judice configura um caso em que o recurso é sempre admissível, porquanto, conforme alegou, o acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação de … em 17/12/15, está em contradição com o acórdão da Relação de Coimbra proferido em 6/10/15 no processo nº1009/11.4TBFIG-A.C1, já transitado, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito.

Sendo que, a impossibilidade de recurso ordinário advinha da situação de dupla conforme, na medida em que o acórdão recorrido, confirmando a decisão singular, confirmou a decisão da 1ª instância.

Considera, pois, a recorrente que tem aplicação ao caso o disposto no art.629º, nº2, al.d).

Vejamos.

Verifica-se que, quer a recorrente, quer o M.ºP.º, interpuseram recursos de revista excepcional do aludido acórdão da Relação de … de 17/12/15.

Assim, a recorrente invocou o disposto no art.672º, nºs1, al.c) e 2, al.c), alegando a referida contradição de julgados.

O M.ºP.º invocou o mesmo art.672º, nº1, mas alegando que, além de se verificar a aludida contradição de acórdãos, também se verificam os pressupostos das als.a) e b), daquele nº1.

Isto é, os recorrentes apostaram na revista excepcional, partindo, pois, do princípio de que se verificava uma situação de dupla conforme, pelo que a admissibilidade do recurso dependia da verificação de um dos pressupostos daquela revista.

Só que, a formação a que alude o nº3, do art.672º, nem sequer se pronunciou sobre tais pressupostos, por entender que havia que avaliar da admissibilidade da revista à luz do art.988º, nº2.

No entanto, o relator do presente processo considerou, em decisão singular, que, no caso, não é admissível revista, não por força daquele art.988º, nº2, já que não estamos perante uma resolução proferida segundo critérios de conveniência ou oportunidade, caso em que não é admissível recurso para o STJ, mas por se tratar de acórdão proferido em sede de reclamação contra o indeferimento do recurso, nos termos do disposto no art.643º, o qual não se inscreve no âmbito delimitado pelo art.671º, nº1.

Porém, como refere Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª ed., pág.159, nota 252, importa ressalvar os casos em que a recorribilidade encontra fundamento excepcional nos arts.629º, nº2 e 671º, nº2.

Na sua reclamação para a presente conferência, considera a recorrente que a situação que invocou quando interpôs recurso de revista excepcional – contradição de acórdãos (art.672º, nº1, al.c)) – configura caso em que o recurso é sempre admissível (art.629º, nº2, al.d)).

Vejamos, então, o que dispõem os citados artigos.

Art.629º, nº2, al.d):

«Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:

a) (…)

b) (…)

c) (…)

d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme».

Art.672º, nº1, al.c):

«Excepcionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no nº3 do artigo anterior quando:

a) (…)

b) (…)

c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme».

É manifesta a similitude da redacção dos citados artigos, sendo que, apesar de o art.629º, nº2, al.d) aludir a uma contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão da Relação, por maioria de razão deve ser admitida revista quando a aludida contradição se verificar relativamente a um acórdão do STJ, à semelhança do que se prescreve no art.672º, nº1, al.c) (cfr. ob.cit., pág.50, nota 80).

Refira-se, ainda, que, quando naquela al.d) se diz, «do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal», se quer significar que o preceito apenas é aplicável quando, não obstante o valor da acção exceder a alçada da Relação, se verifique uma exclusão por outro motivo legal.

Por isso que, neste caso, não se pode dizer que a admissibilidade do recurso prescinde do valor da causa e da sucumbência, ao contrário do que faria supor a integração da al.d) no proémio do nº2 (cfr. ob.cit., pág.54).

Dir-se-á, por último, que, apesar de aquela al.d) não o referir expressamente, apenas poderão ser invocados como fundamento do recurso de revista fundado em contradição jurisprudencial acórdãos que tenham transitado em julgado, como está explicitado no art.672º, nº1, al.c) (cfr., ainda, o art.671º, nº2, al.b)), nada justificando que seja outra a solução (cfr. ob.cit., pág.50, nota 80).

No caso dos autos, a acção é de valor equivalente à alçada da Relação e mais € 0,01, por se tratar de acção sobre interesses imateriais (art.303º, nº1).

Sendo que, malgrado o valor da acção exceder a alçada da Relação, verificando-se uma situação de dupla conforme, em princípio só era admissível o recurso de revista excepcional.

Todavia, quando o acórdão da Relação se integra nas situações excepcionais do nº2, do art.629, nem sequer faz sentido apelar aos requisitos da revista excepcional, sendo admissível a revista independentemente da ocorrência de uma situação de dupla conformidade (cfr. ob.cit., pág.322, nota 443, e pág. 328).

Na verdade, o nº3, do art.671º, começa por dizer: «sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível …».

Dúvidas não restam, pois, que, nos casos excepcionais previstos no nº2, do art.629º, há acesso imediato ao recurso de revista.

Resta saber se, no caso dos autos, se verifica a situação prevista na al.d), daquele nº2, ora invocada pela reclamante.

Como se diz no Acórdão do STJ, de 11/11/14, disponível in www.dgsi.pt, que seguiremos muito de perto, a possibilidade, de natureza extraordinária, prevista na al.d), do nº2, do art.629º, depende de pressupostos que devem ser apreciados com rigor.

Em 1º lugar, é necessário que o acesso ao Supremo não esteja vedado por razões ligadas à alçada da Relação.

Em 2º lugar, deve verificar-se uma relação de identidade entre a questão que foi objecto de um e outro acórdão, o que pressupõe que a subsunção jurídica feita em qualquer das decisões tenha operado sobre o mesmo núcleo factual.

Em 3º lugar, a questão de direito deve apresentar-se com natureza essencial para o resultado que foi alcançado em ambas as decisões.

Em 4º lugar, a divergência deve verificar-se num quadro normativo substancialmente idêntico.

Haverá, assim, que apurar se a concreta situação dos autos se integra nos aludidos requisitos que resultam do texto legal.

Verifica-se que no acórdão recorrido, proferido pela Relação de … em 17/12/15, se desenvolveu a seguinte argumentação:

«Ora, no caso dos autos, não estamos no domínio do processo comum, mas de processo especial, previsto na OTM - alteração da regulação das responsabilidades parentais - sendo que dispõe o art. 158º, nº 1, alínea c), da OTM que, na audiência de discussão e julgamento dos processos tutelares cíveis (que incluem o caso dos presentes autos – art. 146º, alínea d), da OTM), «as declarações e os depoimentos não são reduzidos a escrito», ou seja, não é permitido aquilo a que o legislador tem designado, em inúmeros diplomas, de «documentação da prova» (ou registo para efeitos de recurso), proibição que, actualmente, será de entender extensiva ao registo áudio ou vídeo de declarações ou depoimentos.

Deste modo, resulta claro que não deve ser admitida, sequer, a possibilidade de as partes requererem a gravação da prova nos processos tutelares cíveis.

Consequentemente, não existe - de todo - fundamento para o prolongamento de 10 dias ao prazo de 30 dias para apresentar alegações de recurso, o qual só é admissível nos termos expressamente previstos no art. 638º, nº 7, do CPC, que, como vimos, não tem aqui qualquer cabimento.

Neste sentido, podem ver-se, entre outros, o Ac. desta Relação de 13/9/2007 e o Ac. da R.P. de 28/10/2008 (nos quais foi relator o Ex.mo Juiz Desembargador Mário Serrano), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, bem como a anotação de fls. 45 in OTM anotada de Tomé d´Almeida Ramião, Quid Iuris Editora, que perfilhamos por inteiro, e ainda a Revista Julgar nº 24 em artigo subordinado ao tema “O que mudou nos processos de divórcio e das responsabilidades parentais com o Novo Código de Processo Civil - existiu alguma oportunidade perdida?”, págs.45/46, subscrito por Georgina Couto.

(…)

Voltando agora ao caso em apreço, apenas se adiantará que a reclamante foi notificada da sentença em 6/3/2015, iniciando-se a contagem do prazo de 30 dias para recorrer (cfr. art.638º nº1 do C.P.C.) em 9/3/2015 e terminando o mesmo em 17/4/2015, podendo o acto ainda ser praticado com multa até ao 3º dia útil seguinte (cfr. art.139º nº5 do C.P.C.), ou seja, até 22/4/2015.

No entanto, verifica-se que a interposição do recurso e as respectivas alegações apresentadas pela requerida apenas deram entrada em juízo em 27/4/2015 (isto é, quando já tinha findado o referido prazo de 30 dias e somados os 3 dias úteis seguintes para a prática do acto com multa), pelo que bem andou a Julgadora “a quo” ao considerar tal recurso extemporâneo».

Por seu turno, o acórdão fundamento, proferido pela Relação de Coimbra em 6/10/15, desenvolve o seguinte raciocínio:

«A Apelante arguiu a nulidade processual pela falta de gravação dos
depoimentos prestados em audiência, dizendo, em suma, ser obrigatória a gravação, por força do disposto no art. 155 n°l do CPC.

Objecta o Apelado com a norma do art. 158 n°l c) da OTM que proíbe a gravação da prova.    

A acção de alteração das responsabilidades parentais está prevista e regulada no art 182 da OTM, tratando-se de acção autónoma, a que corresponde processo especial (tutelar cível).

O art 158 da OTM que contém o regime sobre a audiência de discussão e julgamento no âmbito dos processos cíveis, estatui na alínea c) que as declarações e os depoimentos não são reduzidos a escrito”, significando o afastamento do registo da prova.

Regulando-se os processos especiais pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns (art. 549 n°l CPC), a disposição do art.155 CPC (que impõe a obrigatoriedade da gravação) sendo geral também se aplica aos processos especiais. Daqui resulta um conflito de normas: entre a do art.158 n°l c) da OTM e a do art. 155 n°l CPC.

Uma das soluções passará por convocar o critério da especialidade para afirmar que aquela é especial em relação a esta, visto regular a matéria na norma específica do regime da audiência, prevista na legislação especial, logo com prevalência. A ser assim, a falta de gravação não consubstancia a preterição de formalidade essencial, com influência na decisão da causa, e, portanto, não ocorre qualquer nulidade processual.

No entanto, a solução mais correcta, e que aqui se adopta, é a de considerar derrogada a norma do art.158 n°l c) da OTM por força da norma posterior do art. 155 n°l do CPC, impondo-se, por isso, a obrigatoriedade da gravação.

Com efeito, o registo da prova produzido em audiência é obrigatório e nem sequer depende agora do requerimento das partes, assentando num novo paradigma do processo civil moderno, com a possibilidade do efectivo controlo da decisão de facto, densificando, também por esta via, o direito a um processo equitativo.

Conforme se justificou no Ac RC de 10/7/2014, relatado pelo Des. Teles Pereira (proc. n° 64/13.7T6AVR) (disponível em www dgsi.pt) " o artigo 155°, n° l do CPC apresenta uma forte vocação de generalidade que não nos parece ceder perante razões específicas — lei especial — da adjectivação tutelar prevista na OTM, nos termos em que a gravação se coloca presentemente em relação à redução a escrito de depoimentos excluída pelo artigo 158°, n° l, alínea c) da OTM. Com efeito, se a redução a escrito de declarações e depoimentos prestados na audiência de discussão e julgamento realizada nestes processos (a alínea c) do n° l do preceito vem da redacção originária do Decreto-Lei n° 314/78, de 27 de Outubro) bulia com o carácter expedito e desformalizado pretendido imprimir a este tipo de procedimentos, no paradigma processual de 1978, a simples gravação é absolutamente compatível com esse carácter e potencia um efectivo direito ao recurso, no quadro processual actual".

Por conseguinte, em face da imperatividade do regime (geral) estabelecido no art. 155 CPC pode concluir-se pela revogação tácita da norma do art. 158 n°l c) da OTM, porque a intenção do legislador processual comum foi a de ampliar o regime da documentação da prova (registo fonográfico).

Refira-se que a recente Lei n° 141/2015 de 8/9, que aprovou o Regime do Processo Tutelar Cível, com entrada em vigor no dia 8 de Outubro, estabelece (art.29 n°3) a obrigatoriedade da gravação da audiência».

Toda a questão reside em saber se, no caso, a recorrente beneficia ou não do acréscimo de 10 dias ao prazo de interposição do recurso, nos termos do disposto no art.638º, nº7.

Assim, de harmonia com o disposto neste artigo, «Se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias».

Por conseguinte, tal acréscimo só se verificará se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada.

Para que tenha lugar esta reapreciação, é necessário, pois, que a prova tenha sido gravada.

No caso dos autos, o que consta é que a prova foi gravada por determinação da própria Juíza, sendo que no acórdão recorrido se entendeu que, por força do disposto no art.158º, nº1, al.c), da OTM, não é permitida a gravação da prova e que, por isso, não existe fundamento para o acréscimo de 10 dias ao prazo de 30 dias do recurso.

No acórdão fundamento, não ocorreu tal gravação, mas entendeu-se que a mesma era obrigatória, considerando derrogada a norma do citado art.158º, nº1, al.c), por força da norma posterior do art.155º, nº1, do CPC.

No entanto, neste acórdão não havia sido colocada a questão do aludido acréscimo de 10 dias, mas apenas a questão de saber se era obrigatória ou não a gravação dos depoimentos prestados em audiência no âmbito dos processos tutelares cíveis.

Só que, a nosso ver, esta questão de direito reveste-se de natureza essencial e decisiva para o resultado que foi alcançado em ambas as decisões.

Assim, o acórdão recorrido, entendendo que não era permitida a gravação da prova, face ao disposto no art.158º, nº1, al.c), da OTM, concluiu que não existia fundamento para o acréscimo do prazo, por não haver lugar a reapreciação da prova gravada.

Por seu turno, o acórdão fundamento, entendendo que era obrigatória tal gravação, por considerar derrogada aquela norma, não tendo a mesma sido efectuada, concluiu que ocorre clara nulidade processual, embora tenha considerado intempestiva a respectiva arguição, ficando, pois, sanada.

Ou seja, enquanto no acórdão recorrido se considerou aplicável o disposto no art.158º, nº1, al.c), da OTM, pelo que se entendeu não ser permitida a gravação da prova, no acórdão fundamento, pelo contrário, considerou-se tal norma revogada, pelo que se entendeu ser obrigatória tal gravação.

Dúvidas não restam que, no caso, se verificam os 1º e 4º requisitos atrás referidos.

Quanto aos 2º e 3º, isto é, quanto à identidade da situação que subjaz a cada uma das decisões e à contradição do acórdão recorrido com o acórdão fundamento, também nos parece que os mesmos ocorrem no caso dos autos, pelos motivos mencionados supra.

Face ao exposto, considera-se que o acórdão recorrido está em contradição com outro no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, dele não cabendo recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, sendo que não foi proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

Consequentemente, nos termos do disposto no art.629º, nº2, al.d), haverá que concluir que é admissível recurso do acórdão em questão.

Nada obsta, pois, à admissibilidade da revista, por força do citado artigo, revogando-se, assim, a decisão do relator que a não admitiu.

                                       *

Conhecendo-se da revista, dir-se-á que a única questão que importa apreciar consiste em saber se a recorrente dispunha ou não do acréscimo de 10 dias ao prazo de interposição do recurso, nos termos do art.638º, nº7.

Tal acréscimo só se verifica se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada, como já vimos.

Assim, para se decidir aquela questão, há que tomar posição quanto à questão de saber se a audiência de discussão e julgamento prevista no art.158º, da OTM, deve ser gravada.

Note-se que, no caso dos autos, a audiência foi gravada por determinação da Juíza.

Nos termos do disposto no art.158º, nº1, al.c), da OTM – DL nº314/78, de 27/10 – as declarações e os depoimentos prestados na audiência de discussão e julgamento não são reduzidos a escrito.

O DL nº39/95, de 15/2, consagrou, na área do processo civil, uma solução legislativa inovadora, ao prever e regulamentar a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida.

Como se diz no preâmbulo do citado DL, tal admissibilidade permitirá alcançar um triplo objectivo:

- em 1º lugar, a criação de um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto;

- em 2º lugar, o controlo do possível perjúrio do depoente que intencionalmente deturpa a verdade dos factos:

- em 3º lugar, a satisfação do próprio interesse do tribunal e dos magistrados, ou por inviabilizar acusações de julgamento à margem (ou contra) da prova produzida, ou por permitir auxiliar o julgador a rever e confirmar, no momento da decisão, as impressões pessoais que foi colhendo ao longo de julgamentos demorados.

Nesse sentido, foi introduzido no CPC o art.522º-B e o art.522º-C, optando este último por consagrar a regra da gravação sonora, numa perspectiva de realismo e de integral aproveitamento dos meios já existentes, mas sem prejuízo do uso de meios audiovisuais ou de outros processos técnicos semelhantes de que o tribunal possa dispor.

O citado art.522-B veio permitir a gravação sempre que alguma das partes o requeira ou quando o tribunal oficiosamente a determinar.

Este artigo foi sucessivamente alterado pelos DLs nºs 329-A/95, de 12/12, e 183/2000, de 10/8, mas mantendo sempre aquelas duas possibilidades de se obter a gravação da prova.

Entretanto, a partir de 1/9/13, com a entrada em vigor do NCPC, aprovado pela Lei nº41/2013, de 26/6, a audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares, passou a ser sempre gravada, nos termos do disposto no seu art.155º, nº1.

Consagrou-se, pois, a regra de que a audiência final é sempre gravada, pelo menos, em sistema sonoro (cfr. o nº2, do citado art.155º).

Quando o DL nº314/78, de 27/10 (OTM), previu a não redução a escrito das declarações e depoimentos prestados na audiência de discussão e julgamento, ainda não se encontrava consagrada na área do processo civil a regra da gravação sonora da prova produzida nas audiências finais.

Segundo cremos, a razão de ser daquela não redução a escrito tem a ver com a necessidade de tornar expeditos os processos tutelares cíveis.

Ora, as circunstâncias em que o citado DL foi elaborado não têm nada a ver com as condições específicas ao tempo da entrada em vigor do DL nº39/95, de 15/12.

Nesta altura, já os tribunais dispunham de meios que permitiam a gravação sonora das declarações e dos depoimentos.

A nosso ver, dada a razão de ser do disposto no citado art.158º, nº1, al.c), não se pode dizer que o mesmo, ao proibir a redução a escrito da prova, tenha pretendido também proibir a respectiva gravação sonora.

Ou seja, aquele artigo apenas proíbe a redução a escrito, nada prevendo a respeito da gravação, pelo que estamos perante um caso omisso, a resolver, nos termos do disposto no art.161º, da OTM, segundo as regras do processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores.

Dir-se-á, até, que estamos perante uma lacuna superveniente e não originária, pelo que nunca poderia tratar-se de uma omissão querida pelo legislador.

Ora, as regras do processo civil são, como já vimos, inicialmente, no sentido de permitir a gravação (entre 1995 e 1/9/13), e, posteriormente, a partir de 1/9/13, no sentido de obrigar a gravação.

Sendo que, não se vê que aquela permissão e esta obrigatoriedade contrariem os fins da jurisdição de menores, antes pelo contrário, tendo em conta, designadamente, o triplo objectivo que se visa alcançar com o registo das audiências finais e da prova nelas produzida, a que alude o preâmbulo do DL nº39/95, de 15/2, atrás mencionado.

Consequentemente, no caso dos autos, nada impedia que a audiência fosse gravada, como, aliás, foi, ao abrigo das regras do processo civil supra referidas.

Haverá, assim, que concluir que a recorrente dispunha do acréscimo de 10 dias ao prazo de interposição do recurso, nos termos do art.638º, nº7.

Deste modo, tendo a requerida sido notificada da sentença em 6/3/15 e iniciando-se a contagem do prazo de 40 dias (30+10) para recorrer em 9/3/15, o mesmo terminava em 27/4/15, mas podendo ainda ser praticado com multa até ao 3º dia útil seguinte, ou seja, até 30/4/15.

Assim, verificando-se que a interposição do recurso e as respectivas alegações apresentadas pela requerida deram entrada em juízo em 27/4/15, tal recurso não é extemporâneo, ao contrário do que decidiram as instâncias.

Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o acórdão recorrido, declarando-se que o recurso interposto pela requerida foi apresentado dentro do prazo, pelo que deverá ser proferido despacho que o admita, a não ser que se verifique qualquer outro motivo que justifique se indefira o requerimento.

Custas pelo recorrido.

Lisboa, 11 de janeiro de 2017

Roque Nogueira - Relator

Alexandre Reis

Pedro Lima Gonçalves