Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
157/12.8TUGMR.G1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: RECURSO DE FACTO
CONCLUSÕES
REJEIÇÃO DO RECURSO
Data do Acordão: 02/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.
Doutrina:
- António Abrantes Geraldes, in Recursos no Código de Processo Civil, Almedina, 2014, 2.ª edição, p.135.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 640.º, N.ºS 1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 23.02.2010, P. 1718/07.2TVLSB.L1.S1;
-DE 22.09.2015, P. 29/12.6TBFAF.G1.S1;
-DE 01.10.2015, P. 824/11.3TTLRS.L1.S1;
-DE 22.10.2015, P. 212/06.3TBSBG.C2.S1.
Sumário :
I. Tendo a recorrente identificado no corpo alegatório os concretos meios de prova que impunham uma decisão de facto em sentido diverso, não tem que fazê-lo nas conclusões do recurso, desde que identifique os concretos pontos da matéria de facto que impugna.

II. Se, para além disso, se retira das conclusões, inequivocamente, o sentido que a recorrente entende dever retirar-se das provas invocadas e analisadas no corpo alegatório, não há fundamento para rejeição do recurso por parte da Relação.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.


1. AA instaurou contra BB, LDA., a presente ação especial emergente de acidente de trabalho.

2. Proferida sentença a julgar a ação procedente, a R. interpôs recurso de apelação, impugnando a decisão relativa quer à matéria de facto, quer a de direito.

3. O Tribunal da Relação de Guimarães rejeitou o recurso da decisão de facto, por alegada inobservância dos ónus neste âmbito consagrados no art. 640.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

4. Do assim decidido, a R.: (i) arguiu a nulidade do acórdão, invocando que, por força do disposto nos arts. 655.º, n.º 1, 3.º, n.º 3, e 195.º, do CPC, se impunha que o Desembargador Relator tivesse dado à recorrente a possibilidade de se pronunciar antes de ser proferido acórdão, arguição julgada extemporânea, por despacho do Relator do Tribunal da Relação, com base no disposto no arts. 149.º, n.º 1 do CPC; (ii) interpôs a presente revista.

5. Não foram apresentadas contra-alegações.

6. O Exm.º Procurador-Geral Adjunto não emitiu parecer, uma vez que o Ministério Público assegurou sempre o patrocínio do sinistrado, agora recorrido (cfr. art. 87.º, n.º 3, do CPT).

7. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC[1]), em face das conclusões da alegação de recurso, a única questão a decidir[2] é a de saber se o Tribunal da Relação deveria ter conhecido do recurso de apelação, no que respeita à impugnação da matéria de facto.

E decidindo.




II.

8. Relativamente ao sentido e alcance dos requisitos formais de cumprimento dos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecidos no art. 640.º, n.º 1 e 2, do CPC, têm vindo a consolidar-se no STJ as linhas jurisprudenciais expressas, entre outros, nos seguintes arestos, assim sumariados na parte que ora releva:

- Ac. STJ de 01.10.2015, P. 824/11.3TTLRS.L1.S1, desta Secção Social (Relatora: Ana Luísa Geraldes):

I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorretamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.

II - Servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.


III - Não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados, assim como as respostas alternativas propostas pelo recorrente, não foram, contudo, enunciados os fundamentos da impugnação nem indicados os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1.ª instância, requisitos estes que foram devidamente expostos na motivação.


IV – Com efeito, o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640.º do Novo CPC, não exige que as especificações referidas no seu nº 1 constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação.


- Ac. STJ de 22.10.2015, P. 212/06.3TBSBG.C2.S1, 2ª Secção (Relator: Tomé Gomes):

1. O sentido e alcance dos requisitos formais de impugnação da decisão de facto previstos no n.º 1 do art.º 640.º do CPC devem ser equacionados à luz das razões que lhes estão subjacentes, mormente em função da economia do julgamento em sede de recurso de apelação e da natureza da própria decisão de facto.
2. O meio impugnatório mediante recurso para um tribunal superior não visa propriamente um novo julgamento global da causa, mas apenas uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida.
3. A decisão de facto tem por objeto os juízos probatórios parcelares, positivos ou negativos, sobre cada um dos factos relevantes, alcançando ainda a respetiva fundamentação ou motivação.
4. Neste quadro, a apreciação do erro de julgamento da decisão de facto é circunscrita aos pontos impugnados, embora, quanto à latitude da investigação probatória, o tribunal de recurso tenha um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa, como decorre do preceituado no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, incluindo os mecanismos de renovação ou de produção dos novos meios de prova, nos exatos termos do n.º 2, alíneas a) e b), do mesmo artigo, sem estar adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido.
5. São as referidas condicionantes da economia do julgamento do recurso e da natureza da decisão de facto que postulam o ónus, por banda da parte impugnante, de delimitar com precisão o objeto do recurso, ou seja, de definir as questões a reapreciar pelo tribunal ad quem, especificando os concretos pontos de facto ou juízos probatórios, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 640 do CPC.
6. Impõe-se também ao impugnante, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, o requisito formal de indicar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
7. O impugnante não satisfaz tais requisitos quando (…) omita completamente a especificação daqueles pontos, bem como a indicação da decisão a proferir sobre cada um deles, limitando-se a discorrer sobre o teor dos depoimentos convocados com afloramentos de um ou outro resultado probatório que entendem ter sido logrado na produção da prova.

- Ac. STJ de 22.09.2015, P. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção (Relator: Pinto de Almeida):

(…)
II - Na impugnação da decisão de facto, recai sobre o recorrente “um especial ónus de alegação”, quer quanto à delimitação do objeto do recurso, quer no que respeita à respetiva fundamentação.
III - Na delimitação do objeto do recurso, deve especificar os pontos de facto impugnados; na fundamentação, deve especificar os concretos meios probatórios que, na sua perspetiva, impunham decisão diversa da recorrida (art. 640.º, n.º 1, do NCPC) e, sendo caso disso (prova gravada), indicando com exatidão as passagens da gravação em que se funda (art. 640.º, n.º 2, al. a), do NCPC).
IV - A inobservância do referido em III é sancionada com a rejeição imediata do recurso na parte afetada.
V - Se essa cominação se afigura indiscutível relativamente aos requisitos previstos no n.º 1, dada a sua indispensabilidade, já quanto ao requisito previsto no n.º 2, al. a), justifica-se alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão.
VI - Se a falta de indicação exata das passagens da gravação não dificulta, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, nem o exame pelo tribunal, a rejeição do recurso, com este fundamento, afigura-se uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável.

- Ac. STJ de 23.02.2010, P. 1718/07.2TVLSB.L1.S1, 6ª Secção (Relator: Fonseca Ramos):

I - Não se exige ao recorrente, no recurso de apelação, quando impugna o julgamento da matéria de facto, que reproduza nas conclusões tudo o que alegou no corpo alegatório e preenche os requisitos enunciados no art. 690.º-A, n.º1, als. a) e b), e n.º 2, do Código de Processo Civil, o que tornaria as conclusões, as mais das vezes, não numa síntese, mas numa complexa e prolixa enunciação repetida do que afirmara.
II – Esta consideração não dispensa, todavia, o recorrente de nas conclusões fazer alusão àquela pretensão sobre o objeto do recurso, mais não seja pela resumida indicação dos pontos concretos que pretende ver reapreciados, de modo a que delas resulte, inquestionavelmente, que pretende impugnar o julgamento da matéria de facto.
III – Tendo a recorrente, na conclusão primeira, afirmado de modo insofismável que pretendia recorrer do julgamento da matéria de facto, parece-nos eivada de formalismo a decisão que rejeitou o recurso nessa parte, por considerar que nas conclusões a recorrente omitiu os requisitos que estava obrigada a alegar para que a questão fosse apreciada pela Relação.

9. In casu, a recorrente, nas alegações do recurso de apelação (cfr. fls. 230/255):

- Identifica os pontos da matéria de facto que em concreto impugna, enumerando-os e transcrevendo-os, afirmando que os mesmos, tendo sido considerados não provados, deveriam ter sido dados como provados (fls. 234 a 236);

- Identifica o depoimento de parte do sinistrado, com data, hora e minuto em que o mesmo se iniciou, transcrevendo as passagens do referido depoimento e fazendo, a propósito de cada excerto transcrito, uma análise crítica do mesmo, após o que assinala a matéria que, tendo por base tal depoimento, deveria ter sido dado como provada;

- Identifica os depoimentos das testemunhas CC, DD e EE, com as respectivas datas, horas, minutos e segundos em que se iniciaram, transcrevendo também as passagens de cada um dos depoimentos dessas testemunhas e procedendo à respetiva análise crítica, identificando depois, com base em tais depoimentos, em que sentido determinados factos deveriam ter sido julgados;

- No que respeita à prova documental, procede a uma análise de alguns documentos, identificando-os, bem como as folhas do processo em que os mesmos se encontram e o que pode ser retirado da análise dos mesmos;

- Por último, relativamente à inspecção judicial, a recorrente fez também uma análise do que ficou consignado em ata.

10. Nas conclusões da apelação (cfr. fls. 255/258), a recorrente, reportando-se a toda a análise da prova testemunhal, documental e inspectiva que fez no corpo alegatório, sustenta que tinham que ser dados como provados, necessariamente, os factos constantes dos quesitos 9.º, 10.º, 13.º a 19.º, 21.º a 29.º.

11. A impugnação da matéria de facto agora em discussão poderá não ter sido efetuada exemplarmente.

Todavia, em sede de alegações, a recorrente observa os ónus de impugnação previstos no art. 640.º, n.ºs 1, als. a), b) e c), e n.º 2, al. a), do CPC, sendo que, em sede de conclusões, também observou o ónus que sobre si impendia de especificar os concretos pontos de facto que considerava incorretamente julgados.[3]

Neste contexto, não lhe era exigível que nas conclusões voltasse a concretizar/especificar os meios de prova que cabal e claramente já tinha identificado e analisado em sede alegatória.  

Com efeito, a recorrente afirmou/identificou nas conclusões, em termos inequívocos, o sentido que em seu entender devia extrair-se das provas invocadas e analisadas no corpo alegatório, procedendo mesmo à transcrição de várias passagens da gravação, em termos que suficientemente permitem apreender as questões por si suscitadas e o alcance das respostas visadas pela mesma no plano do recurso de facto.

Deste modo, afigurando-se-nos que a recorrente cumpriu os ónus estabelecidos nos n.os 1 e 2 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, carece de fundamento a rejeição do recurso interposto do julgamento de facto, impondo-se a revogação da deliberação recorrida.




III.

12. Em face do exposto, concedendo a revista, acorda-se em revogar o acórdão recorrido, determinando-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Guimarães, a fim de se conhecer do recurso de apelação, na parte relativa à reapreciação da decisão da matéria de facto oportunamente impugnada e posterior conhecimento das questões jurídicas suscitadas no âmbito desse recurso.

Custas da revista a cargo da recorrida.
Anexa-se sumário do acórdão.

                               Lisboa, 11 de fevereiro de 2016


Mário Belo Morgado (Relator)


                                                                        
Ana Luísa Geraldes


António Ribeiro Cardoso

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[1] Todas as referências ao CPC são reportadas ao regime processual introduzido pela Lei 41/2013, de 26 de junho, que é o aplicável à revista.
[2] O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem sequer vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.
[3] Veja-se a este propósito António Abrantes Geraldes, in Recursos no Código de Processo Civil, Almedina, 2014, 2.ª edição, pp.135, que faz uma destrinça clara sobre o que tem que constar das conclusões, do que tem que constar das alegações e em que se pronuncia sobre quando é que pode efetivamente verificar-se rejeição total ou parcial do recurso.