Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
155/13.4TCGMR.G1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 06/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DO RECORRENTE.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.º, N.º 5, 615.º, N.º 1, AL. D), 640.º, Nº 1, ALÍNEAS A) E B), E 2, ALÍNEAS A) E B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 22 DE FEVEREIRO DE 2010, DE 29 DE NOVEMBRO DE 2011, DE 4 DE ABRIL DE 2013, DE 2 DE DEZEMBRO DE 2013, IN WWW.DGSI.PT , DE 9 JULHO DE 2015, DE 10 DE DEZEMBRO DE 2015, DE 19 DE JANEIRO DE 2016, IN SASTJ, EM WWW.STJ.PT (PARA ALÉM DA DEMAIS JURISPRUDÊNCIA CITADA PELOS RECORRENTES, NESTE PRECISO SENTIDO).
-DE 28 DE MAIO DE 2009, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 24 DE SETEMBRO DE 2013, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. A reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância pois só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição.

II. Para que o segundo grau reaprecie a prova, não basta a alegação por banda dos Recorrentes em sede de recurso de Apelação que houve erro manifesto de julgamento e por deficiência na apreciação da matéria de facto devendo ser indicados quais os pontos de facto que no seu entender mereciam resposta diversa, bem como quais os elementos de prova que no seu entendimento levariam à alteração daquela mesma resposta.

III. A omissão dos aludidos elementos conduz à rejeição da impugnação da matéria de facto em sede recursiva.

IV. Se os Recorrentes, indicaram no seu recurso de Apelação, os pontos de facto que no seu entender mereceriam resposta diversa, bem como quais os elementos de prova que no seu entendimento levariam à alteração proposta, deram cabal cumprimento ao ónus decorrente do disposto no artigo 640º, nº2 do CPCivil.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I J e A intentaram contra F e M, acção declarativa com processo ordinário pedindo que seja julgada inexistente a sociedade irregular havida entre Autor e Réu, ou, quando assim se não entenda, julgada nula, com a consequência de se proceder à liquidação e partilha da mesma, recebendo o Autor o respectivo saldo liquidatário, e sendo os Réus condenados a pagar-lho, com juros de mora à taxa legal desde a citação, sempre com custas e procuradoria pelos mesmos Réus que deram causa à acção.

Alegam, para o efeito, que por combinação entre autor e réu decidiram constituir uma sociedade com vista a construírem para revenda um edifício urbano num prédio rústico dos réus, sendo os rendimentos divididos em partes iguais por Autor e Ré. Todavia, jamais sequer reduziram a escrito tal acordo, no âmbito do qual o autor efectuou várias despesas, tendo entretanto tomado conhecimento de que os Réus prometeram vender o prédio a um terceiro, sem que o autor tenha recebido qualquer quantia, sendo pois necessário proceder à respectiva liquidação.

Os Réus contestaram negando a existência de qualquer sociedade irregular, antes admitindo que as partes celebraram um contrato de empreitada, pelo qual o Autor, na qualidade de empreiteiro, se comprometeu a construir, para o Réu, como dono de obra, uma casa de r/c e andar, destinado a habitação, pelo preço de € 58.867,77, pelo que terminam pugnando pela improcedência total da demanda.

Os Autores, na réplica, concluíram como na Petição Inicial.

A final foi a acção julgada improcedente, com a absolvição dos Réus do pedido contra eles formulado.

Inconformados os Autores interpuseram recurso de Apelação, no qual, além do mais impugnaram a matéria de facto declarada como provada e não provada.

Foi produzido Acórdão, no qual não se conheceu da impugnação da matéria de facto por incumprimento por banda dos Recorrentes dos ónus impostos pelo normativo inserto no artigo 640º, nº2, alínea a) do CPCivil e julgou improcedente o recurso interposto, com a seguinte fundamentação, no que a este particular concerne:

«(…) Vem impugnada nos termos das conclusão 11 e 12, invocando-se, para a sua alteração, o depoimento de parte do réu (fls.250), e os das testemunhas … (fls.251), ….. (fls.254), …(fls.258), … (fls.259), … (fls.263) e … (fls.265).

Que dizer:

Para cumprimento do ónus que lhe é imposto pelo artº640.º, nº2, a), do CPC, o recorrente indica, entre parêntesis, após o nome da testemunha cujo depoimento convoca, a hora do início e do termo da prestação do depoimento, seguindo-se, após nova indicação do minuto de início do depoimento, com destaque a negrito, a transcrição das passagens que considera relevantes em abono dos seus pontos de vista – ver, por exemplo, fls.251 e 254.

Deste modo, não se cumpre aquele ónus, visto que, como se sabe, o tribunal deve ouvir, e não apenas ler, aquelas passagens, necessitando, para tanto, da indicação do termo destas, não estando previsto, nem sendo, por isso, legal, que as comece a ouvir no momento referido no recurso, e, de seguida, vá conferir se aquilo que ouviu corresponde às transcrições feitas. Aliás, sem indicação desse termo, não se sabe sequer até onde se deve ouvir a gravação.

A consequência, aliás gravosa (poderia, como noutros locais do Código, prever-se a possibilidade de dar, ao recorrente, o direito de corrigir a irregularidade), é, como se sabe, a da rejeição do recurso, na parte afectada.

Esta prova não pode, pois, ser aqui reapreciada.

A factualidade assente é, pois, a constante da decisão recorrida, para ela se remetendo, ao abrigo do disposto no artº663.º, nº6, do actual CPC.(…)».

De novo irresignados com o desfecho obtido, vieram os Autores recorrer, de Revista excepcional, tendo a Formação a que alude o artigo 672º, nº3 do CPCivil, por Acórdão de fls 411 e 412, ordenado a remessa dos autos à distribuição como Revista normal, por ser do entendimento que no caso de haver rejeição do recurso quanto á matéria de facto, pelo segundo grau, e se tal rejeição for objecto da impugnação recursiva, não existe dupla conforme, por a fundamentação decisória ser fundamentalmente diversa.

No que à economia do presente recurso de Revista normal diz respeito, os autores concluíram do seguinte modo:

- O Acórdão é nulo, nos termos do artigo 615º, nº1, alínea d) do CPCivil, porque não foi proferido tendo em atenção os preceitos contidos nos artigos 652º e 663º daquele mesmo diploma legal.

- O acórdão recorrido é ainda nulo, porque fundamentou a decisão de não poder julgar a pretendida alteração da matéria de facto na violação pelos recorrentes da regra imposta pelo artigo 640º, nº2, alínea a) do Código de Processo Civil, com o argumento, totalmente destituído de veracidade, de que os recorrentes embora indiquem após o nome dos depoimentos indicados a hora do início da respectiva prestação, não indicam o termo da gravação, e ainda por que a lei não consente no convite a corrigir a deficiência, uma vez que essa falta de especificação é cominada com a rejeição do julgamento da matéria de facto.

- A decisão recorrida é manifestamente nula por falta de fundamento, e sempre seria errada, ainda que não fosse nula: na verdade, em todos os depoimentos transcritos no texto do recurso de apelação foi indicado o início e o fim das gravações, este relativamente às partes que interessava analisar e conferir, como consta da anotação feita à margem de cada um deles (a parcela do depoimento de parte do réu, F começou a 00:00:00 e findou 19 minutos e 9 segundos depois de ter começado; e com os depoimentos das testemunhas sucedeu o mesmo - a parcela do depoimento de … começou a 00:00:00 e findou 3 minutos depois de ter começado, a parcela do depoimento de … começou, na única parte que interessa ouvir, em 00:00:00 e findou 4 minutos depois de ter começado, a parcela do depoimento de … começou, na única parte em que interessa ouvir, em 00:00:00 e findou nesse mesmo período e antes de completar o l.º minuto, a parcela do depoimento de … começou, na única parte em que interessa ouvir, em 00:00:00 e findou 6 minutos após o seu começo, a parcela do depoimento de … começou, na única parte em que interessa ouvir, em 00:00:00 e findou ao 2º minuto, e a parcela do depoimento de … começou, na única parte em que interessa ouvir, em 00:00:00 e findou 4 minutos depois).

- Assim, os recorrentes impugnaram a matéria de facto nos termos mais precisamente explicitados nas alegações produzidas, cumprindo os ónus que lhe são impostos pelo artigo 640º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, pois referiram os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, os concretos meios de prova que constam do registo de gravação que impõem decisão inversa sobre esses pontos da matéria de facto e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto

 - Com a alteração da matéria de facto preconizada, a acção deverá ser julgada procedente.

Nas contra alegações os Recorridos pugnam pela improcedência do recurso.

II Põem-se como problemas de direito a resolver no âmbito desta Revista, os de saber: i) se ocorre alguma nulidade da decisão recorrida; ii) e os Autores, aqui Recorrentes, aquando da sua impugnação recursiva para o Tribunal da Relação, cumpriram ou não os ónus versados no artigo 640º, nº2, alínea a) do CPCivil; iii) se ocorreu erro de julgamento.

A primeira instância deu como assente e não assente a seguinte matéria factual:

Factos Provados:

1. O Autor é empreiteiro de construção civil, profissão que exerce há quase 30 anos, com carácter lucrativo, dirigindo uma empresa própria, e disciplinando e orientando os respectivos trabalhadores, sediada na ….

2. Os Réus, por sua vez, são donos e possuidores de um prédio denominado C, situado no …, com a área de cerca de 3.000 m2 que faz parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o n.º…, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo…, a confrontar de Norte e Nascente com Rua do …, de Sul com … e a Poente com o Campo de … .

3. No decurso da obra, o Réu pagou do seu bolso, por assim ter sido acordado entre as partes, o devido pelo serviço de electricista e de carpinteiro.

4. O Autor procedeu, no prédio referido em 2, à construção de uma vivenda, de rés-do-chão e andar, devidamente licenciada pela Câmara Municipal de …, com a área de 221 m2, a confrontar de norte com caminho público e dos demais lados com herdeiros de M C.

5. Ao alvará de licença, do ano de 1996, coube na Câmara Municipal o n.º …, de 19 de Setembro de 1996, tendo a mesma Câmara Municipal, a requerimento de ambas as partes, deferido em 12 de Fevereiro de 1999, um pedido de licenciamento de muros de vedação, através do alvará …. de 17 de Dezembro de 1998, que o Autor também construiu.

6. A referida casa e muros foram levados a cabo através de pessoal contratado pelo Autor (trolhas, pedreiros, carpinteiros e electricistas), que exerce profissionalmente a indústria de empreiteiro de construção civil, e as construções ficaram concluídas cerca de dois anos após o início das obras, sendo a obra vistoriada pelos serviços camarários, que lhe concederam a licença de utilização n.º…/99.

7. O Réu, que tinha e tem capitais próprios, encontra-se reformado de uma actividade como emigrante na Suíça, onde constituiu um razoável pecúlio.

8. O Réu negociou, através de contraio promessa, a venda do prédio a um tal de A S, pelo preço de 25.000.000$00, tendo recebido de sinal, a importância total de 4.500.000$00.

9. O Réu marido consentiu que o citado promitente-comprador ocupasse a casa e nela ficasse a habitar com a sua família, o que de facto sucedeu, desde 1999 até 2008, ou seja durante nove anos.

10. Após essa ocasião, o Réu pediu ao Autor para pintar e o prédio, lavá-lo e instalar nele duas portas novas.

11. Foi o Réu quem pagou as tintas e vernizes para o efeito.

12. No prédio está instalado um filho do Réu, que casou, e onde constituiu a sua casa de morada de família.

13. O prédio rústico em causa foi pelos Réus adquirido a J C e mulher J P, através de escritura pública de compra e venda outorgada em 23 de Setembro de 1986, no Segundo Cartório Notarial de …, exarada a fls. 10 a 11-vº do Livro nº134-C.

14. O Réu, em 12.03.1996, requereu na Câmara Municipal de … a obtenção da licença para a execução de tal obra.

Factos não provados:

1. Em ocasião imprecisa do ano de 1999, os Autores e o Réu marido decidiram, utilizando aquele prédio, pôr esse mesmo prédio, o seu trabalho e actividade, bem como os conhecimentos de um e outro, em comum, por forma a constituírem uma sociedade resultante dessa união de esforços, mas sem pretenderem que a mesma assumisse a forma legal, com vista à produção de bens e realização de proveitos de que ambos deveriam beneficiar.

2. A sede e estabelecimento dessa sociedade assim informalmente constituída, e que não adoptou, sequer, uma razão social, ficou estabelecida, por acordo das partes, no Lugar de …, deste concelho, ou seja, no lugar onde se situava o referido prédio rústico.

3. A citada sociedade, conforme combinação de Autor e Réu marido, destinava-se à construção para revenda de um prédio urbano, que o Autor marido se obrigou a levar a cabo, naquele prédio rústico, prédio urbano esse que deveria ser posteriormente vendido pelos Réus a terceiros nele interessados, sendo os rendimentos respectivos divididos entre os sócios em partes iguais, ou seja, 50% para o A e 50% para o Réu marido.

4. As entradas dos sócios eram, assim, representadas do lado do Autor pela construção do prédio urbano destinado a habitação, nos termos, condições e demais características que as partes estabelecessem e, da parte do Réu, pelo terreno onde esse prédio urbano deveria ser construído.

5. Ficou combinado entre Autor e Réus que aquele tomava conta do referido prédio rústico pertencente aos Réus, ocupando-o, construía nele, a expensas suas, o prédio urbano nos termos e condições que ambos definissem, conforme as características arquitectónicas a estabelecer por técnico da escolha do Réu, como sucedeu.

6. Mais ficou combinado entre as partes que, concluída a construção, o prédio seria posto à venda, que teria lugar pelo melhor preço possível, e sempre após decisão e conferência das partes.

7. Ainda de acordo com o combinado, fixado que fosse e recebido o preço da venda, Autor e Réu marido dividiam entre si os lucros resultantes da venda do prédio, por forma tal que do preço da venda o Réu marido retirava para si o valor do terreno, que ambos fixaram em 5.500.000SOO, o Autor tirava para si o valor da construção, que ambos orçamentaram em 16.800.000$00, e dividiam o que para mais ainda restasse, na proporção de 50% para cada um deles.

8. Na execução do projecto assim estabelecido e após concretizado tecnicamente o objecto da construção, o Autor tomou conta do prédio rústico em questão, pertencente aos Réus.

9. Nas construções que empreendeu, o Autor, conjuntamente com o pessoal ao seu serviço, despendeu em mão de obra, materiais e pagamento de salários o valor de cerca de € 60.000,00.

10. O carpinteiro/electricista referidos em 1.3 foram contratados pelo Autor.

11. A vivenda referida em 1.4 tem jardim com cerca de 500 m2.

12. Logo após a conclusão das obras e a entrega do prédio pelo Autor, cerca de Agosto de 2002, prometeu-lhe iniciar o processo de venda do prédio, com vista a que o Autor recebesse o mais rapidamente possível o que, conforme o combinado lhe era devido

13. O Autor veio a saber do referido em 1.8, já em fins de 1998, quando a obra ainda não tinha sequer licença de utilização.

14. Em Novembro de 2005, o Réu informou o Autor que se tinha desentendido com o promitente-comprador, e, mais tarde, que ele e o referido promitente-comprador viriam a celebrar um novo acordo, mantendo a promessa de compra e venda, com um preço corrigido, e ficando a aguardar a aprovação do PDM que pretensamente viabilizará a transmissão.

15. Para além disso, o Réu, sem conhecimento do Autor, decidiu passar a receber uma renda de € 400,00 por mês do referido promitente-comprador, e ainda uma indemnização, não se sabe a que título, de € 1.800,00.

16. Com o referido em 1.10. o Autor despendeu mais € 10.000,00.

17. O Réu comunicou então ao Autor, entre evasivas e falsas promessas, que deveria aguardar o desfecho do negócio e a possível alteração do PDM que lhe permitiria vender apenas uma parte do prédio e manter o restante em sua propriedade, o que o Autor não pode aceitar, por há tantos anos já esperar o pagamento do que lhe é devido.

18. Aparentemente o contrato promessa em questão terá sido distratado entre as partes.

19. O Réu marido sustenta que o Autor precisa de aguardar melhor oportunidade de venda do prédio e só depois estará disposto a pagar-lhe o que, no saldo liquidatário da sociedade, lhe couber.

20. A descrita actividade do Autor e do Réu maridos, independentemente da natureza objectivamente comercial dos actos por si praticados, foi exercida em proveito comum dos respectivos casais, porque dela um e outro perspectivavam a obtenção de benefícios materiais, destinados a aumentar os proventos de cada um deles.

21. Entre o Autor e o Réu foi celebrado um contrato de empreitada, sob a forma verbal, através do qual o Autor, como empreiteiro, se obrigou a construir para o Réu, como dono da obra, um prédio urbano de rés-do-chão e andar, destinado a habitação, prédio urbano esse a implantar numa parcela de terreno de cerca de 221 m2, a destacar, por ser sua parte integrante, do prédio rústico propriedade do Réu, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº … e inscrito na matriz rústica sob o artigo ….

22.O preço da empreitada acordado entre o Autor e o Réu foi de Esc. ll.000.000$00 (onze milhões de escudos), ou seja, o correspondente à actual moeda em vigor (EURO) de € 54.867,77 (cinquenta e quatro mil oitocentos e sessenta e sete euros e setenta e sete cêntimos), o qual o Réu pagou ao Autor.

23. Foi o Réu quem pagou a mão-de-obra e materiais quando, em Outubro de 2009, decidiu dar uma limpeza geral interior no prédio urbano em causa e para tal o Réu adquiriu diluentes, lixas, fitas, fechaduras, vidros duplos, rodas, entre outros materiais, bem como pagou o polimento e envernizamento do soalho da casa

1. Nulidade da decisão recorrida, artigo 615º, nº 1, alínea d) e artigos 652º, nº2 e 663º, nº7 do CPCivil

Vejamos.

Como deflui inequivocamente do Acórdão produzido pelo segundo grau, que se pronunciou sobre esta nulidade, do mesmo resulta o seguinte:

«(…) A decisão recorrida foi, como dela consta, exarada em conferência, em que intervieram o relator e os Exmos Desembargadores que também a assinam e que, em face da respectiva antiguidade, eram os adjuntos do primeiro, não se descortinando nem os recorrentes dizendo de que modo este figurino se mostra violado.

O acórdão fez sua, por inteiro, a decisão singular antes exarada pelo relator, pelo que também o sumário desta se mostra apropriado pelo primeiro.

Não foi produzido um novo acórdão, sendo que, antes deste, de 26-11-2015, havia sido exarada, a 15-10-2015, uma decisão singular, da responsabilidade do relator. (…)»

Preceitua o artigo 615º, nº1, alínea d) do CPCivil, onde os Autores/Recorrentes se arrimam para sustentar esta sua impugnação, que a sentença é nula quando «O juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;».

Não se compreende ou mal se compreende, face ao texto legal supra transcrito e à decisão de que se recorre, onde se funda a irregularidade apontada pelos Recorrentes, porquanto foi produzida uma primeira decisão sumária, singular, pelo Relator do processo, fls 306 a 309, sobre a qual foi produzido um Acórdão, após reclamação dos Autores para a conferência, fls 340 a 344, Acórdão este que fez sua aqueloutra decisão e após vistos dos Exºs Adjuntos, fls 337 e 338, inexistindo assim, qualquer invalidade que possa inquinar o Aresto produzido, sendo certo que o sumário do mesmo, encontra-se corporizado na síntese de dele consta, mas mesmo que assim não fosse, nunca a ausência de sumário do Acórdão conduziria à declaração da sua nulidade, por a tal se opor a taxatividade constante do normativo inserto no artigo 615º, nº1 do CPCivil.

2. O recurso dos aqui Recorrentes quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto.

Insurgem-se os Autores/Recorrentes contra o Aresto impugnado, porquanto na sua tese o mesmo é nula por falta de fundamento, e sempre seria errado, ainda que não fosse nulo, pois na verdade, em todos os depoimentos transcritos no texto do recurso de apelação foi indicado o início e o fim das gravações, este relativamente às partes que interessava analisar e conferir, como consta da anotação feita à margem de cada um deles.

 

Analisemos este fundamento recursório.

Os Autores, aqui Recorrentes, no seu recurso de Apelação impugnaram a matéria de facto dada como provada e não provada, nas suas conclusões 3ª a 13ª, tendo deixado transcritos no corpo das alegações, os pontos dos depoimentos que consideravam importantes para sustentar aquela impugnação.

 

Lê-se no Acórdão impugnado, no que tange à apreciação da matéria de facto posta em crise pelos Réus, aqui Recorrentes o seguinte:

«(…) Vem impugnada nos termos das conclusão 11 e 12, invocando-se, para a sua alteração, o depoimento de parte do réu (fls.250), e os das testemunhas ... (fls.251), … (fls.254), … (fls.258), … (fls.259), … (fls.263) e … (fls.265).

Que dizer:

Para cumprimento do ónus que lhe é imposto pelo artº640.º, nº2, a), do CPC, o recorrente indica, entre parêntesis, após o nome da testemunha cujo depoimento convoca, a hora do início e do termo da prestação do depoimento, seguindo-se, após nova indicação do minuto de início do depoimento, com destaque a negrito, a transcrição das passagens que considera relevantes em abono dos seus pontos de vista – ver, por exemplo, fls.251 e 254.

Deste modo, não se cumpre aquele ónus, visto que, como se sabe, o tribunal deve ouvir, e não apenas ler, aquelas passagens, necessitando, para tanto, da indicação do termo destas, não estando previsto, nem sendo, por isso, legal, que as comece a ouvir no momento referido no recurso, e, de seguida, vá conferir se aquilo que ouviu corresponde às transcrições feitas. Aliás, sem indicação desse termo, não se sabe sequer até onde se deve ouvir a gravação.

A consequência, aliás gravosa (poderia, como noutros locais do Código, prever-se a possibilidade de dar, ao recorrente, o direito de corrigir a irregularidade), é, como se sabe, a da rejeição do recurso, na parte afectada.

Esta prova não pode, pois, ser aqui reapreciada.

A factualidade assente é, pois, a constante da decisão recorrida, para ela se remetendo, ao abrigo do disposto no artº663.º, nº6, do actual CPC.(…)».

O que se encontra aqui em causa é a questão do não cumprimento pelos Autores, ali Apelantes, do ónus o que se refere o nº2, alínea a) do artigo 640º do CPC por não terem indicado com exactidão as passagens do gravação em que se fundava o seu recurso, no que à impugnação da decisão proferido sobre a matéria de facto respeitava e porque o Acórdão não conheceu desta questão incorreu na nulidade previsto no artigo 615º, nº1, alínea d), do CPCivil.

Estatui o artigo 640º do CPCivil, no que à economia do processo concerne que quando seja impugnada a decisão sobre o matéria de facto, deve o Recorrente obrigatoriamente especificar, sob peno de rejeição, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrido e que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação dos provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.

Nas suas conclusões os Autores disseram o seguinte, quanto a este particular:

«A decisão recorrida é manifestamente nula por falta de fundamento, e sempre seria errada, ainda que não fosse nula: na verdade, em todos os depoimentos transcritos no texto do recurso de apelação foi indicado o início e o fim das gravações, este relativamente às partes que interessava analisar e conferir, como consta da anotação feita à margem de cada um deles (a parcela do depoimento de parte do réu, F começou a 00:00:00 e findou 19 minutos e 9 segundos depois de ter começado; e com os depoimentos das testemunhas sucedeu o mesmo - a parcela do depoimento de …. começou a 00:00:00 e findou 3 minutos depois de ter começado, a parcela do depoimento de … começou, na única parte que interessa ouvir, em 00:00:00 e findou 4 minutos depois de ter começado, a parcela do depoimento de … começou, na única parte em que interessa ouvir, em 00:00:00 e findou nesse mesmo período e antes de completar o l.° minuto, a parcela do depoimento de … começou, na única parte em que interessa ouvir, em 00:00:00 e findou 6 minutos após o seu começo, a parcela do depoimento de … começou, na única parte em que interessa ouvir, em 00:00:00 e findou ao 2.º minuto, e a parcela do depoimento de … começou, na única parte em que interessa ouvir, em 00:00:00 e findou 4 minutos depois).(…)».

Além desta especificação, repare-se que os Recorrentes transcreveram as passagens dos depoimentos onde se basearam para proceder à impugnação, cfr fls 250 a 268, sendo certo que estes elementos integram o ónus imposto pelo preceituado no artigo 640º, nº1, alíneas a) e b) e 2, alíneas a) e b) do CPCivil.

Se não.

A reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância pois só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição, cfr neste sentido inter alia o Ac STJ de 24 de Setembro de 2013 (Relator Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt.

Com efeito, embora não se tratando de um segundo julgamento, mas antes de uma reponderação, até porque as circunstâncias não são as mesmas, nas respectivas instâncias, não basta que não se concorde com a decisão dada, antes se exige da parte que pretende usar desta faculdade a demonstração da existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efectivamente, no caso, foram produzidos, mas não limita o segundo grau de sobre tais desconformidades previamente apontadas pelas partes, se pronuncie, enunciando a sua própria convicção, não estando, de todo em todo, limitada por aquela primeira abordagem pois não podemos ignorar que no processo civil impera o principio da livre apreciação da prova, artigo 607, º, nº5 do CPCivil, cfr Ac STJ de 28 de Maio de 2009 (Relator Santos Bernardino), in www.dgsi.pt.

Os Recorrentes, no caso sujeito, indicaram no seu recurso de Apelação, os pontos de facto que no seu entender mereceriam resposta diversa, bem como quais os elementos de prova que no seu entendimento levariam à alteração proposta.

Isto é, o que o segundo grau tomou como omissão do integrante do preceituado no artigo 640º, nº1, alíneas a) e b) do CPCivil, por forma a coarctar aos Recorrentes uma nova análise da factualidade em causa através da audição da gravação da prova produzida em julgamento, a ausência do apontamento quanto ao final dos depoimentos, para além de se encontrar devidamente consignado no alegatório conclusivo, mesmo que aí se não encontrasse, a sua eventual ausência sempre estaria suprida pela transcrição efectuada dos depoimentos na motivação, o que habilitaria a segunda instância a efectuar uma qualquer reapreciação factual dentro dos parâmetros objectivados por aquele normativo, pois tem sido entendimento deste STJ, neste preciso conspectu, dever-se-á ter como cumprida aquela exigência legal quando a parte indica o depoimento, identifica a pessoa que o prestou e assinala os pontos de facto que se pretendem ver reapreciados, cfr neste sentido os Ac STJ de 22 de Fevereiro de 2010 (Relator Fonseca Ramos), de 29 de Novembro de 2011 (Relator Alves Velho), de 4 de Abril de 2013 (Relator Moreira Alves), de 2 de Dezembro de 2013, da aqui Relatora, in www.dgsi.pt e de 9 Julho de 2015 (Relator Júlio Gomes, aqui segundo Adjunto), de 10 de Dezembro de 2015 (Relator José Rainho) e de 19 de Janeiro de 2016 (Relator Pinto de Almeida, aqui primeiro Adjunto), in SASTJ, site do STJ (para além da demais jurisprudência citada pelos Recorrentes, neste preciso sentido).

Por aqui se vê que a decisão inserta no Acórdão sob censura, não se pode manter, procedendo assim, as conclusões de recurso, ficando prejudicada, por ora, a apreciação do mesmo quanto ao fundo.

III Destarte, concede-se a Revista, revogando-se a decisão ínsita no Aresto impugnado, devendo o mesmo ser substituído por outro que conheça da impugnação da matéria de facto suscitada pelos Recorrentes e na sequência de tal apreciação, reaprecie o mérito.

Custas pelos Recorridos.

Lisboa, 7 de Junho de 2016

(Ana Paula Boularot)

(Pinto de Almeida)

(Júlio Manuel Vieira Gomes)