Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
187/09.7TBPFR.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
DIREITO DE PERSONALIDADE
PRAZO RAZOÁVEL
FILIAÇÃO
PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE OU UNIDADE DO ESTADO
ESTATUTO PESSOAL
ESTATUTO PATRIMONIAL
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 04/09/2013
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS - DIREITO DA FAMÍLIA / FILIAÇÃO.
DIREITO CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS - TRIBUNAIS - FISCALIZAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE.
Doutrina:
- Fernando Cunha e Sá, Abuso do Direito, p. 640.
- Guilherme de Oliveira, em “Caducidade das Acções de Investigação”, Lex Familiae, pp. 12-13; em Estudo publicado, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1997, Vol. I, pp. 50 a 58.
- Jorge Duarte Pinheiro, em comentário ao Acórdão do TC 23/2006, de 10.1, Cadernos de Direito Privado, nº 15 Julho/Setembro, pp. 50 a 52
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 1817.º, N.º1, 1842.º, 1873.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 1.º, Nº1, 2.º, 16.°, N.°1, 18°, N.°2, 26.º, N.º1, 36°, N.°1, 204.º, 281º, Nº1, A) E 282º, Nº1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 28.11.96, IN CJSTJ, 1996, III, 117;
-DE 17.4.2008 – PROCESSO 08A474, IN WWW.DGSI.PT ; DE 21.9.2010 – PROC. 495/04-3TBOR.C.1.S.1 – IN WWW.DGSI.PT; DE 6.9.2011 – PROC. 1167/10.5TBPTL.S1;
-DE 29.11.2012, PROC.367/10.2TBCBC-A.G1.S1 – IN WWW.DGSI.PT .

ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-DE 8.2.2006, N.°23/2006, IN DR I SÉRIE-A;
-DE 10.1.2006, PUBLICADO NO D.R. DE 8.2.2006, I SÉRIE, PP. 1026 A 1034;
-DE 22.5.2012, PROCESSOS N.º 247/2012 E 638/2010, EM WWW.DGSI.PT .
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ACÓRDÃO DO PLENÁRIO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, PROC. 401/2011, DE 22.11.
Sumário :
1. O prazo-regra de dez anos para investigação da paternidade, previsto no art. 1817º, nº1, do Código Civil, pese embora estar em causa um direito de personalidade, pessoalíssimo, é um prazo razoável e proporcional que não coarcta o exercício do direito do investigante, no confronto com o princípio da confiança e de tutela dos interesses merecedores de protecção do investigado e, por isso, não enferma de inconstitucionalidade material.

2. As consequências jurídicas do reconhecimento da paternidade podem ser restringidas nos seus efeitos à questão de estado – a filiação – não valendo para as consequências patrimoniais desse reconhecimento, permitindo, em casos concretos, afastar o investigante da herança do progenitor, não sendo violado o princípio da indivisibilidade ou unidade do estado, podendo afirmar-se que, em caso de manifesto abuso do direito, o investigante, apesar de reconhecida a sua paternidade, poderá não beneficiar da vertente patrimonial inerente ao status de herdeiro.

4. É no contexto do abuso do direito que tal distinção de efeitos deve ser enfocada, admitindo que qualquer pretensão jurídica pode ser paralisada se o respectivo exercício for maculado pelo seu abuso – a questão da “caça à fortuna” – nos casos em que o investigante, a coberto de averiguar a sua filiação, da proclamada intenção de conhecer as suas raízes, que apareceria como um propósito legítimo e da maior importância pessoal e social, pretenderia, primordialmente, acautelar aspectos patrimoniais, visando o estatuto de herdeiro para aceder à partilha dos bens do progenitor.

5. O facto do art. 1817º, nº1, do Código Civil, na redacção da Lei 14/2009, de 1.4, estabelecer um prazo de caducidade de dez anos, não resolve a questão de saber se, mesmo que se considere imprescritível o direito ao estabelecimento da paternidade, é possível, no plano constitucional ou infra-constitucional, cindir os efeitos dessa declaração, afirmando o direito pessoal, o status de filiação, mas recusar o direito patrimonial se as circunstâncias forem de molde a considerar que o exercício do direito é abusivo – art. 334º do Código Civil – por, a coberto da pretensão do conhecimento da identidade genética, da busca do ser, se visa o ter, para almejar interesses de natureza patrimonial, o que afrontaria a consciência ética e os sentimentos sócio-afectivos.
Nesta perspectiva, seriam violados os princípios constitucionais da igualdade, da confiança e da primazia das situações jurídicas.

6. Não sendo de afirmar a inconstitucionalidade da norma do vigente nº1 do art. 1817º do Código Civil, por o prazo de dez anos nela fixado não ser arbitrário, nem desproporcionadamente limitador do exercício da acção de investigação da paternidade e considerar que, casuisticamente num quadro factual exuberante de abuso do direito, se poderá cindir, sem ofensa da Lei Fundamental, o estatuto pessoal do estatuto patrimonial inerentes à declaração de filiação, para, acolhendo aquele e os seus efeitos imateriais (filiação, estabelecimento da avoenga), se poderem limitar as consequências desse reconhecimento, excluindo os efeitos patrimoniais como sejam os direitos sucessórios, quando e se se evidenciar que o desiderato primeiro foi o de obter o estatuto patrimonial, entendemos que, se tal pretensão tiver sido exercida num quadro de actuação abusiva do direito, deve ser paralisada.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

            AA, intentou, em 2.2.2009, no Tribunal Judicial da Comarca de Paços de Ferreira, com distribuição ao 1º Juízo – acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária – para investigação da sua paternidade, contra:

BB.

 Pedindo que seja declarada judicialmente a paternidade da Autora relativamente ao aqui Réu.

Alegou, para tal, que nasceu em consequência das relações sexuais que o réu manteve com a sua mãe, CC, relações sexuais que foram mantidas entre aqueles com total exclusividade.

Citado, o Réu contestou, invocando a caducidade da acção, referindo que, mesmo que a Autora viesse a ser reconhecida como filha do Réu, deveriam ser sempre excluídos os efeitos patrimoniais de tal declaração, nomeadamente o direito a quinhoar a herança do Réu, sendo manifesto que a Autora ao pretender a investigação da sua paternidade decorrido mais de 30 anos sobre o momento em que, tendo atingido a maioridade, poderia fazê-lo por iniciativa sua, age com manifesto abuso de direito, nomeadamente na modalidade de “venire contra factum proprium”.

Impugnou, ainda, os factos invocados pela Autora na sua petição inicial.

A Autora, na réplica, referiu que a excepção da caducidade deveria ser julgada improcedente, inexistindo, ainda, qualquer abuso de direito, uma vez que a Autora desde jovem que tem o desejo que o réu a reconheça como filha, mantendo os factos por si alegados na petição inicial.

O Réu, a fls. 49 e segs., deduziu articulado superveniente, invocando uma alteração legislativa – a publicação da Lei 14/2009 de 1.4 – tendo o mesmo sido admitido por despacho proferido a fls. 56.

Foi proferido despacho saneador, tendo sido apreciada e julgada improcedente a invocada excepção da caducidade da acção, recusando-se a aplicação do disposto no n°1 do art. 1817° do Código Civil, ex vi do art. 1873° do referido Código, por inconstitucionalidade do prazo aí previsto.

Foi relegada para decisão final a invocada excepção de abuso de direito, por depender de matéria de facto controvertida.

Proferida sentença foi decidido:

a) Julgar improcedente a invocada excepção do abuso de direito.

b) Declarar que o Réu BB é pai da Autora, AA, para todos os efeitos legais, – consequentemente, e ao abrigo do disposto no art. 69°, n° 1, al. b), do C. R. Civil, determinar o averbamento dos registos respeitantes à paternidade e à avoenga paterna no respectivo assento de nascimento da autora.

            […].”

Inconformado, o Réu apelou para o Tribunal da Relação do Porto, que, por Acórdão de fls. 358 a 366, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

         Inconformado, o Réu recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça – [revista excepcional] – formulando as seguintes conclusões:

         I) - Não obstante o Tribunal da Relação haver confirmado a decisão da 1ª Instância sem voto de vencido, a questão equacionada nestes autos possui enorme relevância jurídica, que justifica, face à ausência de jurisprudência inequívoca sobre a matéria, e para uma melhor aplicação do direito, a necessidade da sua apreciação em sede de revista excepcional, nos termos da alínea a) do n°1 do art. 721°-A do Código de Processo Civil.

II – Estão também manifestamente em causa interesses de particular relevância social, que igualmente exigem definição através de pronúncia desse Colendo Tribunal, nos termos da alínea b) daquela disposição legal;

III – Ora, Tribunal da Relação não se pronunciou sobre uma questão levantada na respectiva alegação de recurso e, aliás, expressamente referida nas conclusões que balizavam o objecto da apelação, assim cometendo a nulidade prevista na alínea d) do n°1 do art. 668º do Código de Processo Civil, que constitui fundamento para a revista, nos termos da alínea e) do n°1 do art. 772º daquele Código;

IV – Com efeito, constituía objecto daquele recurso, além do mais, a questão vertida nos pontos 2. e 3. das conclusões da alegação da apelação, ou seja, de que na presente acção, instaurada décadas depois de a investigante ter atingido a maioridade e poder investigar a sua paternidade, os efeitos do reconhecimento judicial desta devem restringir-se ao estatuto pessoal da investigante e do investigado, por as razões que justificariam a inconstitucionalidade daquele prazo apenas terem que ver com o direito à identidade pessoal da investigante e não se estenderem a esses efeitos patrimoniais, sob pena de violação do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no art. 2° da CRP, pelo que teria que considerar-se inconstitucional, por violação do referido normativo constitucional, a norma do n°1 do art. 1817º do Código Civil se interpretada no sentido de o reconhecimento da paternidade na presente acção poder abranger os efeitos patrimoniais do reconhecimento — questão que não foi sequer abordada no douto acórdão recorrido;

V – O respeito pelo direito fundamental à identidade pessoal da autora investigante levou a que as instâncias considerassem não se verificar a caducidade da presente acção, apesar de ultrapassado em muito o prazo previsto na redacção vigente do n°1 do art. 1817º do Código Civil, por entenderem ser inconstitucional a fixação desse (ou de qualquer) prazo de caducidade para a propositura de uma acção de investigação da paternidade;

VI – O respeito por esse direito, porém, apenas impôs a desconsideração do prazo de caducidade para o efeito de a investigante poder obter a definição do seu estatuto pessoal, com reconhecimento da sua paternidade como elemento do seu direito fundamental à sua identidade pessoal, com a s consequências éticas e jurídicas resultantes dessa relação de parentesco;

VII – A vantagem da obtenção de efeitos patrimoniais, nomeadamente de índole sucessória, decorrentes da paternidade, nunca justificará por isso a desconsideração do prazo de caducidade para a propositura da acção, e não está, manifestamente, incluído nas razões pelas quais o Tribunal entendeu ser inconstitucional o prazo previsto no citado art. 1817º, n°1, e por isso não considerou caduca a acção;

VIII – É por outro lado indiscutível que a certeza e a segurança do direito, e a estabilidade das relações jurídicas constituídas pacificamente ao longo de dezenas de anos, constituem valores fundamentais do Estado de Direito democrático, consagrado no art. 2° da CRP;

IX – No caso presente, a investigante não só há muito mais de três dezenas de anos poderia ter investigado judicialmente a sua paternidade, ou pelo menos ter tomado atitudes que inculcassem essa intenção, como jamais existiu da parte do investigado qualquer atitude de reconhecimento da paternidade, pelo que este pôde, durante a sua longa vida, realizar com inteira liberdade de espírito, – todos os actos jurídicos que entendeu, nomeadamente de disposição de bens, criando relações jurídicas que se estabilizaram completamente ao longo de dezenas de anos;

X - Por isso, e para evitar a ofensa aos valores do Estado de direito democrático, há que procurar a compatibilização entre os princípios constitucionais do direito à identidade pessoal da investigante (que conduziu à desconsideração do prazo de caducidade para a acção) com os valores da certeza e segurança do direito, que constituem pedras angulares do Estado de direito democrático, também constitucionalmente consagrado;

XI – Tal compatibilização é conseguida, como se defendeu, restringindo aos efeitos pessoais do reconhecimento da paternidade da autora, nomeadamente ao reconhecimento da paternidade do réu, com todas as consequências não só éticas, mas também jurídicas que daí decorrem ao nível do estatuto pessoal do investigado e da investigante, mas excluindo os efeitos patrimoniais, designadamente sucessórios desse reconhecimento;

XII – Se assim não fosse, a desaplicação do prazo de caducidade previsto na actual redacção do n°1 do art. 1817º à presente acção, violaria manifestamente — no que excede as consequências do reconhecimento da paternidade quanto à definição da identidade pessoal da autora e ao seu estatuto pessoal — o princípio do Estado de Direito democrático, sendo claramente inconstitucional aquela norma se interpretada (como fizeram as instâncias) no sentido de se não aplicar o prazo de caducidade aí previsto, se dessa aplicação resultar alargar-se aos efeitos patrimoniais os efeitos do reconhecimento obtido na acção, não os restringindo aos efeitos pessoais do estatuto pessoal das partes.

XIII – Consequentemente deve, admitido o presente recurso, o mesmo ser julgado procedente e declarado que o reconhecimento da paternidade da autora não abrange os efeitos patrimoniais, designadamente sucessórios, decorrentes da relação de paternidade assim reconhecida, alterando em consequência a douta decisão recorrida.

A Autora contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão.

Neste Supremo Tribunal de Justiça, a Formação de Magistrados a que alude o art. 721º, nº3, do Código de Processo Civil, proferiu o Acórdão de fls. 435 a 443, de 17.1.2013, que admitiu a revista excepcional, escrevendo a fls. 441/442:

 “ […] A questão a que o recorrente atribui especial relevância jurídica consiste, como resulta dos seus dizeres, em saber se os efeitos do reconhecimento da paternidade numa acção instaurada várias décadas após o termo do prazo de dez anos fixado pela norma do n.°1 do art. 1817° do Código Civil, na redacção dada pela Lei n ° 14/2009, de 1/04, se devem restringir ao estatuto pessoal de investigante e investigado resultante de tal reconhecimento jurídico da relação de filiação biológica, ou seja, ao estatuto e identidade pessoal do investigante, por as razões determinantes da declaração, feita pelas instâncias, de inconstitucionalidade daquele norma apenas terem que ver com o direito à identidade pessoal do investigante, – de forma que, mesmo ultrapassado o prazo de dez anos ali previsto, se for considerada inconstitucional aquela norma o investigante mantém o direito de investigar esse seu estatuto –, mas já não aos efeitos patrimoniais, ficando, após esse mesmo prazo, excluído o direito do investigante de obter vantagens patrimoniais resultantes desse seu estatuto, não podendo por isso, nomeadamente, comungar da eventual herança do investigado, sendo inconstitucional aquela norma se interpretada no sentido do reconhecimento da paternidade em acção instaurada décadas depois de o investigante ter atingido a maioridade não se restringir ao respectivo estatuto pessoal produzindo irrestritamente todos os efeitos patrimoniais decorrentes da filiação […]”.

         Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

            1) - No dia 17 de Abril de 1956, nasceu, na freguesia de Penamaior, a Autora, conforme documento junto de fls. 12 e 13, cujo teor se dá como integralmente reproduzido – (A)

2) - Foi a mesma registada na Conservatória do Registo Civil de Paços de Ferreira como sendo filha de CC e de pai incógnito. - (B)

3) - A mãe da autora trabalhava como criada de servir na casa do réu. (10)

4) - Foi durante esse período em que trabalhava na casa do Réu, que o mesmo a seduziu, cortejando-a, facilitando o facto de ser o filho e futuro patrão dela. (2°)

5) - Ambos mantiveram relações sexuais, com total exclusividade, nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam e de que resultou o nascimento da autora. (3°)

6) - Após o nascimento da autora, a sua mãe continuou o seu trabalho como criada em casa do réu. (4°)

7) - O relacionamento entre a mãe da autora e o réu, devido às diferenças sociais, não era consentido pela família deste. (5°)

8) - Ao Réu era-lhe destinado para esposa uma mulher pelo menos com “posses” idênticas às suas ou com alguma formação que lhe permitisse ter um estatuto social idêntico (6°)

9) - À época, era habitual que uma criada de servir casasse com alguém de categoria social idêntica. (7°)

10) - A mãe da autora dependia dos seus patrões, pais do aqui réu, já que estes eram a única fonte de sustento que tinha para si e para a autora. (9° e 10°)

11) - Toda a freguesia sabia que a autora era filha da sua mãe, CC, e do réu. (11°)

12) - O réu durante a infância da autora sempre se preocupou com a autora, nomeadamente com o seu estado de saúde e com a sua alimentação. (12°)

13) - O réu durante os primeiros 13 anos da autora preocupou-se com esta proporcionando-lhe carinho e atenção. (13°)

14) - Entretanto o Réu constituiu uma nova família. - (15°)

15) - O pai do réu, em Agosto de 1969, quando a autora tinha 13 anos disse-lhe que ela teria que deixar de servir em sua casa. (16°)

16) - Nunca a Autora ou a sua mãe procurou o Réu após 1969, nem este as procurou. (23°).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber, se tendo a Autora instaurado acção para reconhecimento da sua paternidade quando tinha 52 anos de idade, muito para além de atingir a maioridade legal, e tendo sido reconhecida essa paternidade, os efeitos jurídicos desse reconhecimento devem apenas ter relevância no estatuto pessoal da Autora – assim definitivamente considerada filha do Réu – mas já não ter qualquer repercussão no que respeita a efeitos patrimoniais, ou seja, para efeitos sucessórios tal reconhecimento da filiação não relevaria.

Na sua contestação o Réu excepcionou a caducidade da acção, considerando aplicável o prazo de dez anos estatuído na Lei 14/2009, de 1.4 publicada na pendência da acção.

Dispunha o art. 1817º, n.°1, do Código Civil, aplicável à investigação de paternidade, por força do art. 1873°, vigente à data da propositura desta acção, que a acção de investigação de maternidade (paternidade) só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.

À data da propositura da acção – 2.2.2009 – já havia sido proferido o Acórdão do Tribunal Constitucional n.°23/200, in DR I Série-A de 8.2.2006, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n° 1 do art. 1817° do Código Civil, aplicável por força do art. 1873° do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos arts. 16°, n.°1, 36°, n.°1 e 18°, n.°2, da Constituição da República Portuguesa.

Na pendência da acção entrou em vigor a Lei n.°14/2009, de 1.4, que alterou, além do art. 1842° do Código Civil, o referido art. 1817°, designadamente no seu n.°1, que agora prevê que tal acção possa ser intentada durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posterior à sua maioridade ou emancipação.

O Réu pugnou em articulado superveniente que tal lei fosse aplicada à acção.

Na contestação, o Réu considerou que a Autora agia com manifesto abuso do direito, nomeadamente na modalidade de venire contra factum proprium – cfr. arts. 51º e 52º – já que é “firme convicção do Réu que a Autora age por instigação de terceiros, apenas com a esperança de tentar extorquir-lhe vantagens patrimoniais, em consequência do escândalo e do choque que sabe causar ao Réu e à sua família”.

Não é assim exacto que o Réu não tivesse excepcionado o abuso do direito de accionar da Autora, tese que agora não coloca de forma expressa, sustentando antes, que, mesmo a admitir-se a constitucionalidade da ausência de prazo para investigar a paternidade, a possibilidade da investigação a todo o tempo seria inconstitucional, por violar o art. 2º da Lei Fundamental, sendo violadora da Lei Fundamental a norma vigente do art. 1817º, nº1, do Código Civil “se interpretada no sentido de reconhecimento da paternidade, em acção instaurada décadas depois de a investigante ter atingido a maioridade, não se restringisse ao respectivo estatuto pessoal, produzindo irrestritamente todos os efeitos patrimoniais decorrentes da filiação, e assim pondo em causa a estabilidade das relações jurídicas, nomeadamente das já constituídas ao longo de dezenas de anos, com evidente violação do direito a certeza e segurança dos demais sujeitos dessas relações jurídicas já constituídas.”

A acção foi intentada depois do Tribunal Constitucional ter declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº1 do artigo 1817º do Código Civil aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16º, nº1, 36º, nº1, e 18º, n°2 da Constituição da República Portuguesa.

Até ao dia 2 de Abril de 2010, data da entrada em vigor da Lei nº4/2009, de 1.4, as acções de investigação de paternidade ficaram sem prazo de caducidade, podendo por isso ser instauradas a todo o tempo, o que foi entendido como consagração da imprescritibilidade desse direito.

A recorrida, nas suas peças processuais, alude, frequentemente ao Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17.4.2008 – Processo 08A474 – relatado pelo ora Relator, aresto acessível in www.dgsi.pt, onde se afirmou:

“O Acórdão do Tribunal Constitucional nº23/2006, de 10.1 decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral da norma constante do n.º1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, nº1, 36.º, nº 1, e 18.º, nº2, da Constituição da República Portuguesa.”

Como se lê no douto Acórdão do Tribunal Constitucional:

“A possibilidade ilimitada correspondia ao regime consagrado antes de 1966, no Código de Seabra – incluindo à data da concepção e nascimento do investigante, ora recorrente –, segundo o qual as acções podiam ser intentadas a todo o tempo.

Na verdade, o artigo 130.º do Código de Seabra proibia a investigação da paternidade, salvo nos casos de escrito de pai, de posse de estado, de estupro violento e de rapto.

 Mas essa regra foi alterada em 1910 pelo artigo 37.º do Decreto n.º 2, de 25 de Dezembro, que determinava que “acção de investigação da paternidade ou da maternidade só pode ser intentada em vida do pretenso pai ou mãe, ou dentro do ano posterior à sua morte, salvas as seguintes excepções (...)”. Limitava-se, pois, o direito a requerer a investigação da paternidade, mas determinante era o momento da morte do pretenso pai…”.

A questão decidida pelo Tribunal Constitucional, no sentido da inconstitucionalidade do prazo de caducidade, não repristina qualquer norma, apenas deixa sem prazo tais acções.

A problemática objecto da decisão constitucional há muito que vinha sendo debatida na doutrina e na jurisprudência constitucional, sendo que a solução legal do Código Civil Português, de certo modo, era minoritária em relação à solução acolhida noutros Códigos.

No citado Acórdão pode ler-se:

“Assim, por exemplo, o artigo 270.º do Código Civil italiano dispõe que a acção para obter a declaração judicial da paternidade ou da maternidade “é imprescritível para o filho”.

Segundo o artigo 1606.º do Código Civil brasileiro, a “acção de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz” (a Lei n.º 8.560, de 29 de Dezembro de 1992 veio regular a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento).

Nos termos do artigo 133.º do Código Civil espanhol, por sua vez, a “acção de reclamação de filiação não matrimonial, quando falte a respectiva posse de estado, cabe ao filho durante toda a sua vida”.

E também o legislador alemão optou pela regra da imprescritibilidade: o artigo 1600 e, n.º1, do Código Civil alemão, prevendo a legitimidade do filho para a acção de investigação (consagrada no artigo 1600 d), não prevê qualquer prazo.

 Como se salienta na doutrina:

“Não existe em princípio qualquer prazo para a acção de investigação de paternidade. Se o filho não tiver pai estabelecido, seja devido ao casamento, seja por perfilhação, o seu progenitor pode ser judicialmente investigado a todo o tempo, e, se for o caso, mesmo que o filho já seja há muito adulto.

Pelo contrário, se estiver estabelecida a paternidade (…), esta tem, em primeiro lugar, de ser afastada por impugnação da paternidade (…), para que a via para a investigação judicial de outro homem como pai fique livre. Como existem prazos para isso (§ 1600 b [que prevê um prazo de dois anos a contar do conhecimento de circunstâncias que depõem contra a paternidade]), cujo decurso bloqueia também a investigação judicial do verdadeiro pai, também existe mediatamente, nesta medida, um prazo para a investigação judicial da paternidade” (Palandt/Diederichsen, BGB, 59ª ed., Munique, 2000, anot. 4 ao § 1600d).”

Mesmo o Código Civil de Macau, aprovado em 1999 e tendo como modelo o Código Civil português de 1966, adoptou uma solução diferente da do legislador português: o n.º 1 do artigo 1677.º dispõe, claramente, que “a acção de investigação da maternidade pode ser proposta a todo o tempo”, sendo tal norma aplicável ao reconhecimento judicial da paternidade por força da remissão do artigo 1722.º, à semelhança do que acontece no Código Civil português (em compensação, para evitar os inconvenientes de tal solução, nomeadamente por meros intuitos de “caça à fortuna”, o artigo 1656.º, n.º 1, do Código de Macau veio prever duas hipóteses em que o estabelecimento do vínculo produz apenas efeitos pessoais, excluindo-se os efeitos patrimoniais”.

A questão da sujeição de tais acções a prazo de caducidade envolvia a ponderação de direitos conflituantes.

Por um lado, o direito do investigante a conhecer as suas raízes, a sua filiação biológica, a sua identidade pessoal, o que tem a ver com a dignidade da pessoa humana – arts. 1º, nº1, e  26º, nº1, da CR.

Esse direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se inscreve no direito de personalidade é um direito inviolável e imprescritível.

 Por outro lado, o direito do investigado à sua reserva da intimidade da vida privada – art. 26º, nº1, da C.R. – entendendo-se que, para além de certo prazo considerado razoável, a estabilidade das suas relações pessoais e familiares e o seu passado não devem ser objecto de devassa, para além do facto de, a ser possível a investigação a todo o tempo, tal poderia dar azo a actuações oportunistas – “a caça à fortuna” – sabendo-se serem de êxito fácil tais acções de investigação, sobretudo, quando baseadas na falível prova testemunhal.

Esta protecção que o prazo de caducidade conferia, passou a ser contestada quando, confrontados tais interesses e direitos antagónicos, se passou a considerar prevalecente o direito de investigação, tanto mais que a possibilidade da paternidade ser determinada através de exame de ADN frustra, cerce, a tentativa de “caça à fortuna” do ponto em que permite apurar com elevadíssimo grau de probabilidade[2], senão de certeza, se o investigado foi ou não o progenitor do investigante.

            […]

 Em nome da verdade, da justiça e de valores que merecem diferente tutela, deve prevalecer o direito à identidade pessoal sobre a “paz social” daquele a quem o mero decurso do tempo poderia assegurar impunidade, em detrimento de interesses dignos da maior protecção, como seja o de um filho poder a todo o tempo investigar a sua paternidade, sobretudo, se visa, genuinamente, uma actuação que o Direito não censura, pelo modo como é exercida – art. 334º do Código Civil.

No Direito alemão, considera-se como direito de personalidade o conhecimento da origem genética, é o chamado “Direito ao conhecimento das Origens” [Recht des Kindes auf Kenntnis der eigenen Abstammung].

            O direito ao conhecimento da ascendência biológica, deve ser considerado um direito de personalidade e, como tal, possível de ser exercido em vida do pretenso progenitor e continuado se durante a acção morrer, correndo a acção contra os seus herdeiros, por se tratar de um direito personalíssimo, imprescritível, do filho investigante.

Países como a Itália, a Espanha e a Áustria optaram pela imprescritibilidade das acções de investigação da paternidade, por considerarem que a “procura do vínculo omisso do ascendente biológico é um valor que prevalece sobre quaisquer outros relativos ao pretenso progenitor”.

Afinal a prevalência do ser sobre o ter.

O Professor Guilherme de Oliveira em Estudo publicado – págs. 50 a 58 – Outubro de 2002 – no Volume I, “Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1997”, escreveu, reponderando a sua anterior perspectiva sobre a questão da caducidade:

“ Voltando hoje ao assunto, penso que alguns dados mudaram.

Nesta balança em que se reúnem os argumentos a favor do filho e da imprescritibilidade da acção, e os argumentos a favor da protecção do suposto progenitor e da caducidade, creio que os pratos mudaram de peso.

Desde logo parece claro o movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens. Os desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, têm acentuado a importância dos vínculos biológicos e do seu determinismo, porventura com exagero; e com isto têm sublinhado o desejo de conhecer a ascendência biológica [Se não fosse esta tendência não se teria notado o movimento no sentido de acabar com o segredo acerca da identidade dos progenitores biológicos na adopção e na inseminação com dador].

                Nestas condições, o “direito à identidade pessoal” e o “direito à integridade pessoal” ganharam uma dimensão nova que não pode ser desvalorizada.

Devemos acrescentar, também, um novo direito fundamental implicado na questão: o “direito ao desenvolvimento da personalidade” (…), introduzido pela revisão constitucional de 1997 — um direito de conformação da própria vida, um direito de liberdade geral de acção cujas restrições têm de ser constitucionalmente justificadas, necessárias e proporcionais. É certo que tanto o pretenso filho como o suposto progenitor têm o direito de invocar este preceito constitucional, mas não será forçado dizer que ele pesa mais do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens, a sua família, numa palavra, a sua localização” no sistema de parentesco...”. e ao findar “ Julgo, em suma, que se tornou sustentável alegar a inconstitucionalidade dos prazos estabelecidos nos arts. 1817.° e 1873° CCiv (…). Os casos-limite — em que pareça chocante o exercício do direito de investigar — deveriam ser tratados como casos excepcionais, aplicando o instrumento do abuso do direito ou outro remédio expressamente previsto, inspirado nas mesmas ideias (…).” (destaque e sublinhado nossos).

O Acórdão do Tribunal Constitucional de 10.1.2006, publicado no D.R. de 8.2.2006, I série, págs. 1026 a 1034, apenas decidiu sobre a inconstitucionalidade do prazo de caducidade do nº1 do art. 1817º do Código Civil, aplicável por força do art. 1873º e, porque a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral implica a remoção da norma do ordenamento jurídico, não podendo ser aplicada pelos Tribunais – art. 204º da C.R. – sem que isso imponha que o julgador aja com recurso ao art.10, nº3, do Código Civil, tendo que criar norma consonante com o espírito do sistema, porquanto não estamos perante lacuna da lei.

Não pode ser assimilada a lacuna legal, a postular a aplicação daquele normativo do Código Civil, à supressão de norma legal, por via da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.

Nos termos dos arts. 281º, nº1, a) e 282º, nº1, da Lei Fundamental, a consequência, in casu, é a imprescritibilidade da acção de investigação de paternidade que deixou de estar sujeita a qualquer prazo de caducidade, sendo manifesto que tendo sido declarado inconstitucional o prazo [que era de caducidade], não se pode considerar que, agora, deve ser aplicável um prazo de prescrição, como decidiu a 1ª instância.

 A declaração, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional, da inconstitucionalidade de uma norma tem efeitos ex tunc, tudo se passando, em princípio, como se a norma nunca tivesse vigorado”.

Ao tempo em que foi proferido este Acórdão, não estava em vigor a Lei nº 14/2009 de 1.4 que, alterando o nº1 do art.1817º do Código Civil, estabeleceu, como regime-regra, o prazo de caducidade de 10 anos posteriores à maioridade ou emancipação do investigante.

            Com a vigência da Lei de 2009 não findou a controvérsia sobre dois aspectos cruciais: primeiro, saber se o direito de investigar a paternidade era imprescritível, ou estava sujeito a prazo de caducidade; outro, o de saber se aquele prazo era um prazo razoável e não violador da Constituição por coarctar um direito de personalidade.

            Isto, apesar de ninguém pôr em dúvida que o direito ao conhecimento da ascendência biológica, o direito a conhecer as suas raízes em termos de filiação, ser um direito de personalidade que se reveste de manifesta da maior importância do ponto em que está em causa uma das vertentes da direito à identidade pessoal e o direito à integridade pessoal inerentes à dignidade da pessoa humana – art. 1º da Constituição da República.

            Mantendo-se a controvérsia, o Tribunal Constitucional no seu Acórdão de 22.5.2012[3] – Processo n.º 638/10 – foi chamado a decidir se as normas constantes do n.º1 do artigo 1817º do Código Civil e da alínea b) do n.º 3 do mesmo artigo, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril, nas quais se prevêem, respectivamente, prazos de caducidade para o direito de investigar a paternidade, e a sua aplicação às acções pendentes eram materialmente inconstitucionais.

            O Acórdão decidiu:

“a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817º n.º 1 do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante;

b) Não julgar inconstitucional a norma da alínea b) do n.º 3 do artigo 1817º do Código Civil, quando impõe ao investigante, em vida do pretenso pai, um prazo de três anos para interposição da acção de investigação de paternidade”.

O Tribunal Constitucional, no seu Acórdão, reafirmou a doutrina do Plenário daquele Tribunal, que, chamado a pronunciar-se nos termos previstos no n.º 1 do artigo 79º-A da LTC, decidiu, no Acórdão n.º401/2011, in Diário da República, 2ª Série, de 3 de Novembro de 2011:

 “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817º n.º 1 do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante”.

                O Acórdão do Plenário – Proc. 401/2011 – por sete votos a favor e cinco contra -  decidiu-se:

“ Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante.”

O citado Acórdão, abordando a questão da constitucionalidade do prazo previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, ponderou:

“O limite temporal em causa no presente recurso é o prazo de caducidade estabelecido no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, aplicável às acções de investigação de paternidade, por força da remissão constante do artigo 1873.º, n.º 1, do mesmo diploma, segundo o qual essas acções só podem ser propostas durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação. Contudo, o alcance deste prazo só pode ser compreendido numa ponderação integrada do conjunto de prazos de caducidade estabelecidos nos diversos números do artigo 1817.º, do Código Civil.

Embora o disposto em todos estes preceitos não integre o objecto da questão de constitucionalidade que nos ocupa, o seu conteúdo não pode deixar de ser tido em consideração na apreciação da norma impugnada, uma vez que a sua eficácia flanquea­dora tem interferência no alcance extintivo do prazo de caducidade sob fiscalização. Os efeitos da aplicação deste prazo, só podem ser medidos, na sua devida extensão, se ponderarmos também a latitude com que são admitidas, no regime envolvente daquela norma, causas que obstem à preclusão total da acção de investigação, por força do decurso do prazo geral de dez anos, após a maioridade.

Ora, enquanto no n.º 2 se estabeleceu que se não fosse possível estabelecer a maternidade em consequência de constar do registo maternidade determinada, a acção já podia ser proposta nos três anos seguintes à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório, no n.º 3 permitiu-se que a acção ainda pudesse ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos: a) ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a maternidade do investigante; b) quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe; c) e em caso de inexistência de maternidade determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação.

Como já acima se explicou, os prazos de três anos referidos nos transcritos n.º 2 e 3 do artigo 1817.º do Código Civil, contam-se para além do prazo fixado no n.º 1, do mesmo artigo, não caducando o direito de proposição da acção antes de esgotados todos eles. Isto é, mesmo que já tenham decorrido dez anos a partir da maioridade ou emancipação, a acção é ainda exercitável dentro dos prazos previstos nos n.º 2 e 3; inversamente, a ultrapassagem destes prazos não obsta à instauração da acção, se ainda não tiver decorrido o prazo geral contado a partir da maioridade ou emancipação.

Isto significa que o prazo de dez anos após a maioridade ou emancipação previsto no n.º1 do artigo 1817.º do Código Civil não funciona como um prazo cego, cujo decurso determine inexoravelmente a perda do direito ao estabelecimento da paternidade, mas sim como um marco terminal de um período durante o qual não opera qualquer prazo de caducidade.

Verdadeiramente e apesar da formulação do preceito onde está inserido ele não é um autêntico prazo de caducidade, demarcando antes um período de tempo onde não permite que operem os verdadeiros prazos de caducidade consagrados nos n.º 2 e 3, do mesmo artigo.

Face ao melindre, à profundidade e às implicações que a decisão de instaurar a acção de investigação da paternidade reveste, entende-se que num período inicial após se atingir a maioridade ou a emancipação, em regra, não existe ainda um grau de maturidade, experiência de vida e autonomia que permita uma opção ponderada e suficientemente consolidada.

Apesar de na actual conjuntura a cada vez mais tardia inserção estável no mundo profissional poder acarretar falta de autonomia financeira, eventualmente desin­centivadora de uma iniciativa, por exclusiva opção própria, a alegada falta de maturidade e experiência do investigante perde muito da sua evidência quando se reporta aos vinte e oito anos de idade, ou um pouco mais cedo nos casos de emancipação. Neste escalão etário, o indivíduo já estruturou a sua personalidade, em termos suficientemente firmes e já tem tipicamente uma experiência de vida que lhe permite situar-se autonomamente, sem dependências externas, na esfera relacional, mesmo quando se trata de tomar decisões, como esta, inteiramente fora do âmbito da gestão corrente de interesses.

O prazo de 10 anos após a maioridade ou emancipação, consagrado no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, revela-se, pois, como suficiente para assegurar que não opera qualquer prazo de caducidade para a instauração pelo filho duma acção de investigação da paternidade, durante a fase da vida deste em que ele poderá ainda não ter a maturidade, a experiência de vida e a autonomia suficientes para sobre esse assunto tomar uma decisão suficientemente consolidada.

Por estas razões cumpre concluir que a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante, não se afigura desproporcional, não violando os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, abrangidos pelo direitos fundamentais à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º, n.º 1, e o direito a constituir família, previsto no artigo 36.º, n.º 1, ambos da Constituição.”. (destaque e sublinhado nosso).

Antes da doutrina do Plenário do Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal de Justiça considerou em vários arestos a imprescritibilidade do prazo para averiguação da paternidade por considerar um direito pessoalíssimo ao conhecimento da identidade genética, ao “conhecimento das raízes”.

O ora relator assumiu tal posição no referido Acórdão de 17.4.2008, mas muitos outros se poderiam citar como o Acórdão de 21.9.2010 – Relator Sebastião Póvoas – Proc. 495/04-3TBOR.C.1.S.1 – in www.dgsi.pt. e o de 6.9.2011 – Proc. 1167/10.5TBPTL.S1 – Relator Gabriel Catarino – proferido antes do Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional, Proc. 401/2011, de 22.11, cujo sumário transcrevemos:

I – Mostra-se inconstitucional o estabelecimento ou estatuição, pelo art. 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 14/2009, de 01-04, de um prazo legal para que o filho possa investigar a verdade biológica da sua filiação.

II – Na ponderação da equação dos direitos fundamentais em lide posicionam-se, do lado do filho-investigante, o “direito à identidade pessoal”, o “direito à integridade pessoal” e o “direito ao desenvolvimento da personalidade” e, do lado do pretenso pai-investigado, os de “reserva da intimidade da vida privada e familiar” e o “direito ao desenvolvimento da personalidade.”

III – Estando em causa direitos de raiz e feição absoluta, a regra será a não restrição dos direitos fundamentais, a menos que estejam em causa ou possam interferir no exercício desses direitos outros valores de “rango” constitucional que justifiquem a regulação por via legislativa.

 IV - Há que indagar quais os factores de ponderação que, no caso concreto, podem ser alinhados para aferição dos direitos e valores em causa e, nesta ponderação, terão que intervir critérios ou princípios de proporcionalidade, de razoabilidade, de adequação, de integração pessoal e familiar e de equivalência dos efeitos na esfera pessoal e familiar de cada um dos sujeitos involucrados.

 V – No conspecto dos valores em confronto, deve privilegiar-se aqueles que abonam e exornam a pessoa humana em detrimento de valores de perturbação da tranquilidade familiar, da aquisição das situações pessoais e familiares estabelecidas e estabilização das relações económicas e/ou sucessórias, pelo que o n.º 1 do art. 1817.º do Código Civil, na versão da Lei n.º 14/2009, de 01-04, deve ser considerado inconstitucional, por impor um limite temporal ao direito de alguém ver reconhecida a sua paternidade.”

Actualmente, tendo em conta a publicação da Lei 14/2009, de 1 de Abril e a doutrina do Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional, Portugal queda-se apartado dos regimes jurídicos de matriz romanística que consideram imprescritível o direito de investigação da paternidade. Por outro lado, tendo em conta que da parte do investigado e da sua família sobretudo se a investigação ocorre após o seu decesso (o que não é o caso), sistemas jurídicos há que ponderam se não devem ser relativizados os dois interesses conflituantes: o direito de personalidade de conhecer as origens e o direito de não intromissão na vida privada e o direito à paz social, inerentes aos princípios da segurança e da estabilidade das relações pessoais.   
Daí que não seja de excluir a possibilidade de fazer intervir a figura do abuso do direito – art. 334º do Código Civil – para paralisar pretensões exercidas em manifesto abuso do direito.
Dispõe o citado normativo:

É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

O instituto do abuso do direito relaciona-se com situações em que a invocação ou o exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça.

 “O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.” – cfr. inter alia, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.11.96, in CJSTJ, 1996, III, 117.

Como ensina Fernando Cunha e Sá, in “Abuso do Direito” – pág. 640:

“O abuso prescinde quer da causação de danos (pode haver um acto abusivo não danoso) quer, quando os haja, qualquer elemento subjectivo, na forma de dolo ou de mera culpa; ora sendo assim, a exigência de culpa requisito da responsabilidade civil por actos abusivos, depende da possibilidade de emitir um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, pois nisso mesmo é que consiste a culpa.

 Dito por outras palavras, depende da existência de um dever que impenda sobre o titular do direito subjectivo ou da diversa prerrogativa jurídica e que este tenha violado voluntariamente.”

A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.

Importa ponderar se a um direito absoluto se pode aplicar o regime do abuso do direito, o que passa por saber se a fixação de prazo para investigação de paternidade é admissível e, se o for, qual o critério para a sua fixação tendo em conta o direito exercendo, sendo certo que esse prazo há-de respeitar o princípio da proporcionalidade de modo a que o prazo possa ser considerado equitativo e razoável, contemplando situações de pessoas que não podem dispor tão lestamente quanto seria desejável dos elementos que lhes permitam o exercício de um direito da maior relevância pessoal e até social.

Vejamos primeiro, e até certo ponto revendo a posição que já como relator assumimos, se a fixação de um prazo – no caso de dez anos – se mostra incompatível com o exercício do direito em apreciação.

No Acórdão nº247/2012, de 22.5.2012 do Tribunal Constitucional, fazendo-se alusão ao Acórdão nº401/2011, pode ler-se:

“Com efeito, como o Tribunal Constitucional reconheceu no citado aresto interesses gerais ou valores de organização social em torno da instituição familiar podem justificar a consolidação definitiva na ordem jurídica de uma paternidade, porventura não correspondente à realidade biológica, a partir do decurso de um determinado lapso de tempo. Nessa situação estarão os interesses da segurança e da certeza jurídicas respeitantes ao comércio jurídico em geral, que exigem a estabilização das relações de filiação já estabelecidas. Os referidos valores exigem que as relações de parentesco sejam dotadas de estabilidade, impondo-se aos interessados o ónus de agirem rapidamente, de forma a clarificarem as relações de parentesco existentes.

 Tais considerações mantêm toda a validade nos casos em que ocorreu posse de estado. E, assim, uma opção válida do legislador pretender da segurança jurídica”.

[…] É também essa a exigência mínima que decorre da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que aceita a sujeição das acções de estabelecimento da filiação ao cumprimento de determinados pressupostos, entre eles a exigência de prazos, desde que não se tornem impeditivos do uso do meio de investigação em causa, ou representem um ónus exagerado (assim, se referiu no caso Mizzic, Malta). A existência de um prazo limite para a instauração duma acção de reconhecimento judicial da paternidade não é, só por si, violadora da Convenção, importando verificar se a natureza, duração e características desse prazo resultam num justo equilíbrio entre o interesse do investigante em ver esclarecido um aspecto importante da sua identidade pessoal, o interesse do investigado e da sua família mais próxima em serem protegidos de demandas respeitantes a factos da sua vida íntima ocorridos há já muito tempo, e o interesse público da estabilidade das relações jurídicas. Sustenta a jurisprudência do TEDH.”

A magna questão que se coloca com a não imposição legal de prazo para averiguação da paternidade é a de saber se é razoável, proporcional, na acepção constitucional do conceito, permitir o exercício as alternam de um direito que tem repercussões na vida e património daqueles contra quem o direito é exercido; de notar que na actual redacção do art. 1817º do Código Civil o prazo geral de dez anos pode ser ultrapassado pelo investigante, mesmo após a morte do investigado desde que, neste caso, a posse de estado se mantenha nessa data.

O prazo de dez anos foi considerado razoável pelo Tribunal Constitucional e não contraria a jurisprudência do Tribunal dos Direitos do Homem cujo critério de julgamento é o de que os prazos não sejam impeditivos da investigação e não criem ónus excessivos em termos probatórios para as partes.

O Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 29.11.2012, Proc.367/10.2TBCBC-A.G1.S1 – in www.dgsi.pt considerou que “O prazo a que alude o art. 1817.º, n.º 1, do Código Civil – na redacção conferida pela Lei n.º 14/2009, de 01.04 – não é inconstitucional”. Na esteira do citado Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional, afirmou-se que o dito prazo de década não é desproporcional e, por isso, não viola os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, abrangidos pelos direitos fundamentais à identidade pessoal, previsto no art. 26º, nº1, e o direito a constituir família, previsto no art. 36º ambos da Constituição.

Aspecto do maior melindre é a que a revista excepcional convoca – qual seja a de saber se o reconhecimento da paternidade pode ser restringido nos seus efeitos à questão de estado – a filiação e estabelecimento dos vínculos de filiação – já não valendo para as consequências patrimoniais desse reconhecimento o que, desde logo, afastaria o filho de comungar na herança do progenitor.

Dito de forma mais clara, será divisível o direito podendo afirmar-se que, ao menos em certos casos que seriam aqueles de manifesto abuso do direito, o investigante apesar de reconhecida a sua paternidade, estabelecidos os laços de filiação, poderia não ter direitos patrimoniais inerentes ao status de herdeiro.

É no contexto do abuso do direito que esta abordagem pode ser enfocada, admitindo que qualquer direito pode ser paralisado se o seu exercício for maculado pelo seu abuso – a questão da “caça à fortuna”: o investigante a coberto de averiguar a sua filiação, da proclamada intenção de conhecer as suas raízes, que apareceria como um propósito legítimo e da maior importância pessoal e social, pretenderia acautelar aspectos patrimoniais, na veste de herdeiro comungando na partilha do progenitor.

Admitir que assim possa ser não exclui, em tese, a invocação do abuso do direito para restringir os efeitos do reconhecimento da paternidade à questão de estado.

 Por isso é que por exemplo o Código Civil de Macau admite, em certos casos, que possa ser considerado abusivo o direito e não obstante o reconhecimento da paternidade, limitar os efeitos do reconhecimento ao estatuto pessoal, excluindo o direito patrimonial que apareceria como leitmotiv para a investigação da paternidade que, podendo ter sido exercida muitos anos antes só o foi quando, por exemplo, houve e foi conhecida do investigante melhoria de fortuna do investigado pretenso pai, e seria, então, vantajoso o reconhecimento da paternidade, direito imaterial de personalidade, que apareceria apenas como o caminho ínvio para atingir um fim mais comezinho e quiçá menos nobre – a obtenção de vantagens materiais.

Por nós admitimos que, num quadro com estes contornos, poder-se-ia, se provados os pertinentes factos, considerar aplicável o instituto do abuso do direito e restringir os efeitos pretendidos pelo investigante apenas ao seu estatuto pessoal.

A exigência e o rigor probatórios ficariam, desparre a cargo do investigado, não se excluindo a consideração oficiosa pelo Tribunal.

Mas será que estando em causa um direito constitucional – direito à identidade pessoal – esta ponderação seria compatível com o reconhecimento da filiação, ou seja, tal direito, que tem implicações no estatuto pessoal e patrimonial do investigante, seria cindível, podendo considerar-se, a um tempo, que A era filho de B mas que não obstante, teria prescrito ou caducado o direito de petição de herança?

Esta questão, que não vemos abordada na jurisprudência do TC e dos Tribunais Superiores, mormente, deste Supremo Tribunal de Justiça, foi abordada, cautelosamente, pelo Professor Jorge Duarte Pinheiro em comentário ao Acórdão do TC 23/2006, de 10.1, nos “Cadernos de Direito Privado”, nº 15 Julho/Setembro, quando sob o item, “Proposta de uma interpretação do art. 1817º do Código Civil que seja conforme á Constituição”, escreveu – págs. 50 a 52:

“A principal razão que determinou a solução do art. 1817°, n°1, do Código Civil (pelo qual se circunscreve a possibilidade de proposição da acção de investigação ao período da menoridade do filho ou aos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação) foi evitar o uso da acção de investigação unicamente para alcançar benefícios sucessórios.

E, na verdade, muitos dos litígios em torno dos prazos atinentes ao reconhecimento judicial da paternidade surgem a propósito de acções de investigação que foram intentadas fora do prazo-regra, estabelecido no referido art. 1817.°, n.°1, num cenário em que sente o peso dos assuntos hereditários nas preocupações das partes.

Sendo o interesse do filho a identidade pessoal superior a considerações éticas de índole patrimonial, condenam a utilização de uma acção de estado enquanto puro instrumento de “caça à herança”, não haverá uma forma de, cumulativamente, providenciar a satisfação daquele interesse e prevenir a produção defeitos patrimoniais (não directamente integrados na ideia de responsabilidade parental) conseguidos por uma via censurável?

Em 1999, a Provedoria da Justiça recomendou que a lei fosse alterada no sentido de, “a par da existência de prazo para propositura de acções com fins patrimoniais, ser consagrada a imprescritibilidade para a propositura das acções de investigação de paternidade e maternidade, desde que os efeitos pretendidos sejam de natureza meramente pessoal” (…).

 Na sequência da posição da Provedoria, foi apresentado um projecto de lei, em que se dispunha: “desde que os efeitos pretendidos sejam de natureza meramente pessoal, a acção de investigação da maternidade pode ser proposta a todo o tempo”.

No entanto, a iniciativa acabou por caducar, mantendo-se inalterada a redacção do art. 1817. °, do Código Civil com a modificação que foi introduzida pela Lei n.°21/98, de 12/5.

 Seja como for, a mudança legislativa visada não chegaria para eliminar a inconstitucionalidade das normas do art. 1817.°, quando submetidas a uma interpretação declarativa. Como eram conservadas as balizas temporais das acções de investigação, a não ser que o autor renunciasse aos eventuais efeitos patrimoniais decorrentes do estabelecimento da filiação, condicionava-se o exercício do direito à identidade pessoal a uma tomada de posição do respectivo titular no campo patrimonial, o que se não adequava ao relevo hierárquico do direito em apreço.

 A admissibilidade do reconhecimento da paternidade ou maternidade não pode depender de uma ponderação centrada nos efeitos patrimoniais do vínculo de filiação a constituir. De mais a mais, a alteração legislativa projectada introduzia limitações excessivas consequências do vínculo de parentesco: a referência aos efeitos patrimoniais excluía, além dos direitos sucessórios, a obrigação de alimentos.

No quadro legal e constitucional vigente, Guilherme de Oliveira, actualmente defensor da imprescritibilidade do direito de investigar, sugere (in “Caducidade das Acções de Investigação” (citado, supra, nota 9), Lex Familiae, pp. 12-13 = Comemorações, pp. 57-58.) que se aplique a figura geral do abuso do direito (art. 334º do Código Civil) para que, em casos extremos, o autor de uma acção de investigação “possa ser tratado como se não tivesse o direito que invoca” nomeadamente, quando “não pretende mais do que facturar no seu activo patrimonial”.

A sugestão pode ter, porém, vários inconvenientes: abre uma brecha na alegada imprescritibilidade do direito de investigar, cujo alcance será inicialmente difícil de apurar; remete directamente para a figura geral do abuso do direito, quando talvez fosse plausível lançar mão de possíveis concretizações, o que diminuiria o grau de incerteza; reage ao exercício abusivo do direito paralisando-o totalmente, em vez de permitir a produção de alguns dos seus efeitos, dentro do que fosse aceitável (p. ex., se a finalidade do investigante é a mera obtenção de benefícios sucessórios, não bastará negar-lhe tais benefícios, autorizando a constituição do vínculo de filiação?); ao paralisar totalmente o direito de investigar, por causa de uma actuação censurável do investigante, não contempla a posição de terceiros que possam estar legitimamente interessados no estabelecimento da filiação entre o investigante e o pretenso pai (v. g., dos filhos do investigante: o direito à identidade ou historicidade pessoal não se reduz ao conhecimento e reconhecimento do parentesco no 1. ° grau da linha recta).

Tudo ponderado e dado que a posição sucessória legal que é atribuída aos familiares do de cujus não cabe nos efeitos característicos do direito de constituir família (…), supomos que o melhor caminho será o de uma interpretação que, acentuando o elemento teleológico em detrimento do elemento literal, permita extrair do art. 1817.° do Código Civil um sentido compatível com o art. 26.°, nº1, da CRP, com o art. 36.°, n.°l, com princípio do aproveitamento das disposições legais (implícito no art. 9. °, n. °3, do Código Civil) e com o princípio da rejeição do exercício inadmissível de situações jurídicas (subjacente ao art. 334. ° do Código Civil).

Os prazos do art. 1817.° devem ser observados se o investigante quiser obter benefícios sucessórios do vínculo de filiação. Há que confinar o art. 1817.° à disciplina do prazo para a proposição de uma acção de investigação com efeitos sucessórios.

Onde se lê, p. ex., no n.°1,que “a acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação” deve subentender-se “para efeitos sucessórios”.

 Deste modo, a propositura da acção fora dos prazos do art. 1817.° não obsta ao estabelecimento da filiação, sendo assegurado, sempre, o exercício do direito à identidade pessoal e do direito de constituir família. E o art. 1817.°conserva um sentido útil, que, simultaneamente, se ajusta à motivação principal do legislador do Código Civil de 1966 – dissuadir a “caça à herança paterna” – e traduz uma concretização da figura do abuso do direito.

Será uma interpretação razoável à luz do chamado princípio da indivisibilidade ou unidade do estado (…)?

Pode alguém ser considerado filho de uma pessoa para uns efeitos e não para outro., v.g. sucessórios? Não implica o status a atribuição de um complexo, de toda uma massa de situações jurídicas, activas e passivas?

O princípio da indivisibilidade do status familiae não deve ser sobrevalorizado.

São legítimas derrogações plenamente justificadas (…), de que constituem exemplo os arts. 1603º e 1856º do Código Civil. Concebido para evitar a utilização do reconhecimento (voluntário) da paternidade com o objectivo de aquisição de vantagens sucessórias (…), é justamente o último artigo que ilustra a viabilidade de uma interpretação do art. 1817.º que se desvia da regra da unidade do estado.

A interpretação que se propõe coloca as normas do art. 1817.° a salvo de um juízo de inconstitucionalidade: fazer depender os direitos sucessórios do filho da instauração de uma acção de investigação dentro dos prazos deste artigo não colide nem com o direito à identidade pessoal, nem com o direito de constituir família.” (destaque e sublinhado nossos)


            A longa citação, de que nos penitenciamos, ilustra bem que, apesar de ulteriormente ter sido publicada lei a estabelecer prazo de caducidade, tal não afasta a discussão sobre saber se, mesmo que se considere imprescritível o direito ao estabelecimento da paternidade é possível no plano constitucional ou infra constitucional, cindir os efeitos dessa declaração afirmando o direito pessoal o
status de filiação, mas recusar o direito patrimonial se as circunstâncias forem de molde a considerar que o exercício do direito é abusivo – art. 334º do Código Civil – por, a coberto da pretensão do conhecimento da identidade genética, o ser, se visa o ter, meros aspectos de natureza patrimonial o que não deixa de chocar a consciência ética e os sentimentos sócio-afectivos, ou seja, nesta perspectiva estariam violados os princípios constitucionais da igualdade, da confiança e da primazia das situações jurídicas, violando, a nosso ver, uma interpretação conforme à Constituição.

  No caso sob apreciação importa considerar que a acção foi proposta antes da alteração do art. 1817º, nº1, pela Lei 14/2009, de 1.4, tendo sido recusada a sua aplicação no processo, por decisão transitada em julgado, assim como transitou em julgado a decisão proferida no despacho saneador que considerou que a acção não tinha caducado.

Muito embora neste recurso de revista o recorrente não pretenda discutir se à situação se aplica o art. 334º do Código Civil nada impede que o Tribunal, por se tratar de excepção material de conhecimento oficioso, a enfoque nessa perspectiva.

Quanto a este aspecto, reafirmamos que, na sua contestação, o Réu invocou que a Autora apenas visava a melhoria da sua situação patrimonial e daí que a sua pretensão fosse abusiva do direito. As instâncias à míngua de factos que integrassem uma conduta passível de tal enquadramento não consideraram abusiva essa actuação.

Também este Tribunal considera que a Autora não actuou com abuso do direito.

 Para concluir, e tendo em conta a argumentação expendida, considera-se que não sendo de afirmar a inconstitucionalidade da norma do vigente nº1 do art. 1817º do Código Civil, por o prazo de dez anos nela fixado não ser limitador do exercício da acção de investigação da paternidade, e considerar que casuisticamente – num quadro factual exuberante de abuso do direito – se poderá cindir sem ofensa da Lei Fundamental o estatuo pessoal do estatuto patrimonial inerentes à declaração de filiação, para acolhendo aquele e seus efeitos imateriais (filiação, estabelecimento da avoenga). se podem limitar as consequências desse reconhecimento excluindo aspectos patrimoniais, como sejam os direitos sucessórios, quando e se se evidenciar que o desiderato primeiro foi o de obter estatuto patrimonial e que a pretensão exercida merece censura no quadro da actuação abusiva do direito – art. 334º do Código Civil.

Neste quadro não se considera que esta interpretação viole a Constituição da República, mormente, o preceito que o recorrente considera violado – o art. 2º da Lei Fundamental – que, na perspectiva do recorrente, consagra a certeza, a segurança do direito, e a estabilidade das relações jurídicas.

Sumário – art.713º, nº7 do Código de Processo Civil

1. O prazo-regra de dez anos para investigação da paternidade, previsto no art. 1817º, nº1, do Código Civil, pese embora estar em causa um direito de personalidade, pessoalíssimo, é um prazo razoável e proporcional que não coarcta o exercício do direito do investigante, no confronto com o princípio da confiança e de tutela dos interesses merecedores de protecção do investigado e, por isso, não enferma de inconstitucionalidade material.

2. As consequências jurídicas do reconhecimento da paternidade podem ser restringidas nos seus efeitos à questão de estado – a filiação – não valendo para as consequências patrimoniais desse reconhecimento, permitindo em casos concretos, afastar o investigante da herança do progenitor, não sendo violado o princípio da indivisibilidade ou unidade do estado, podendo afirmar-se que, em caso de manifesto abuso do direito, o investigante, apesar de reconhecida a sua paternidade, poderá não beneficiar da vertente patrimonial inerente ao status de herdeiro.

4. É no contexto do abuso do direito que tal distinção de efeitos deve ser enfocada, admitindo que qualquer pretensão jurídica pode ser paralisada se o respectivo exercício for maculado pelo seu abuso – a questão da “caça à fortuna” – nos casos em que o investigante, a coberto de averiguar a sua filiação, da proclamada intenção de conhecer as suas raízes, que apareceria como um propósito legítimo e da maior importância pessoal e social, pretenderia, primordialmente, acautelar aspectos patrimoniais, visando o estatuto de herdeiro para aceder à partilha dos bens do progenitor.

5. O facto do art. 1817º, nº1, do Código Civil, na redacção da Lei 14/2009, de 1.4, estabelecer um prazo de caducidade de dez anos, não resolve a questão de saber se, mesmo que se considere imprescritível o direito ao estabelecimento da paternidade, é possível, no plano constitucional ou infra-constitucional, cindir os efeitos dessa declaração, afirmando o direito pessoal, o status de filiação, mas recusar o direito patrimonial se as circunstâncias forem de molde a considerar que o exercício do direito é abusivo – art. 334º do Código Civil – por, a coberto da pretensão do conhecimento da identidade genética, da busca do ser, se visa o ter, para almejar interesses de natureza patrimonial, o que afrontaria a consciência ética e os sentimentos sócio-afectivos.

Nesta perspectiva, seriam violados os princípios constitucionais da igualdade, da confiança e da primazia das situações jurídicas.

6. Não sendo de afirmar a inconstitucionalidade da norma do vigente nº1 do art. 1817º do Código Civil, por o prazo de dez anos nela fixado não ser arbitrário, nem desproporcionadamente limitador do exercício da acção de investigação da paternidade e considerar que, casuisticamente num quadro factual exuberante de abuso do direito, se poderá cindir, sem ofensa da Lei Fundamental, o estatuto pessoal do estatuto patrimonial inerentes à declaração de filiação, para, acolhendo aquele e os seus efeitos imateriais (filiação, estabelecimento da avoenga), se poderem limitar as consequências desse reconhecimento, excluindo os efeitos patrimoniais como sejam os direitos sucessórios, quando e se se evidenciar que o desiderato primeiro foi o de obter o estatuto patrimonial, entendemos que, se tal pretensão tiver sido exercida num quadro de actuação abusiva do direito, deve ser paralisada.

Decisão.

Nega-se a revista.

Custas pelo recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça,  9 de Abril de 2013

 
Fonseca Ramos (Relator)
Salazar Casanova ( Com declaração de voto)
Fernandes do Vale

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[2] Nos últimos anos, foram descobertas técnicas, pelos cientistas, James Watson, americano, e Francis Crick, inglês, que utilizam o DNA como marcador da individualidade biológica, que têm tornado possível excluir ou admitir a paternidade ou a maternidade, em 100% dos casos.

[3] Acessível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120247.html

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1. A questão está em saber se é admissível instaurar ação de investigação de paternidade para além do prazo de caducidade previsto no artigo 1817.º/1 do Código Civil, o que significa considerar-se a inconstitucionalidade da fixação desse prazo, admitindo-se, porém, que a procedência da ação possa considerar-se restringida aos efeitos não patrimoniais. Ou seja, o dito prazo de caducidade não seria encarado como um prazo de caducidade de ação de investigação de paternidade mas como um prazo de caducidade do direito sucessório daquele que, para além do prazo de 10 anos, visse ser reconhecida a sua filiação quando se provasse que o seu interesse na ação tinha em vista apenas adquirir a qualidade de herdeiro. Por isso, proposta ação dentro do prazo de 10 anos, fossem quais fossem as intenções do autor, a sua qualidade de herdeiro não seria questionada.

2. A solução, a meu ver, conduz necessariamente à questão da inconstitucionalidade do aludido prazo que, a ser seguida, determina a imprescritibilidade da ação de investigação de paternidade.

3. Significa isto que as considerações atinentes ao abuso do direito se suscitam logicamente num momento posterior, ou seja, no momento em que, reconhecida a paternidade numa ação intentada depois do aludido prazo, se constata que a motivação do investigante tinha apenas por objetivo a obtenção do estatuto de herdeiro.

4. Impor-se-iam , portanto, duas alterações: ao nível constitucional considerar-se a inconstitucionalidade da fixação de qualquer prazo de caducidade para a proposição da ação ( cf. artigo 1817.º/1 do Código Civil); depois, ao nível do direito positivo, considerar-se que uma ação de investigação de paternidade, proposta para além de determinado prazo, possibilita a restrição dos efeitos derivados da constituição da filiação, designadamente a atribuição da qualidade de herdeiro legítimo sucessível (artigos 2132.º e 2133.º/1, alíneas a) e b) do Código Civil) e legitimário (artigo 2157.º do Código Civil).

5. No momento presente, o reconhecimento da constitucionalidade do aludido prazo leva a que esta segunda questão não tenha, a meu ver, interesse prático, salvo se fosse defendido que o investigante que propôs a ação dentro dos 10 anos a que alude o artigo 1817.º/1, podia ver restringido o alcance do estatuto de filiação por se entender que ao instaurar a ação o que visava era constituir-se herdeiro, o que não vejo ser sustentado, evidenciando-se, assim, que a fixação desse prazo tem em vista unicamente a caducidade da ação de investigação de maternidade/paternidade.

6. Nos casos em que a ação foi proposta antes da introdução do prazo de 10 anos pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril e em que se considere valer a imprescritibilidade, a questão tem interesse pois não se suscitaria a incoerência de afinal já não interessarem as motivações do investigante que propôs a ação dentro do prazo fixado.

7. Creio, no entanto, que a atribuição do estatuto sucessório se funda na atribuição por lei de determinadas classes de sucessíveis que são chamados pela ordem imperativamente fixada (artigos 2132º, e 2133.º do Código Civil), não sendo admissível a introdução contra legem de restrições à plena capacidade sucessória salvo as que decorrem do motivo de indignidade (artigo 2034.º do Código Civil).

8. Com efeito, dizer-se que alguém é herdeiro legítimo inserido numa determinada classe de sucessíveis e, depois, retirar-lhe capacidade sucessória que a lei confere a " todas as pessoas nascidas ou concebidas ao tempo da abertura sucessão, não excetuadas por lei" (artigo 2033.º/1 do Código Civil) por via do reconhecimento de uma causa de indignidade que atinge todo aquele que pretende ver reconhecida a sua filiação para se constituir sucessor, utilizando-se a via do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil), não se me afigura aceitável.

9. Desde logo porque o abuso do direito não pode existir a partir do momento em que se aceita que uma ação de investigação de paternidade seja proposta a todo tempo. Ou se admite que a ação pode ser proposta imprescritivelmente ou não se admite. Se se admite, o que se está a sancionar é a motivação de quem propõe a ação, mas atingindo as consequências que advêm, no plano sucessório, por força da lei, a todo aquele que é filho de outrem. Mas então, assim sendo, se o mal está na motivação, devias atacar-se a causa (a possibilidade de se constituir a filiação) e não a consequência ( a sucessão legítima/legitimária). Aquilo que se imporia, de jure condendo, seria obstar, no plano substantivo, a que pudesse ser constituída a filiação em benefício daquele que apenas quer obter o estatuto de sucessível.

10. E - repare-se - no que respeita a outro sucessível, o cônjuge, então, também não será censurável a "caça ao dinheiro" do futuro marido/mulher? Censura-se aquele que pretende ver reconhecida a paternidade, retirando-lhe a sua capacidade para herdar, mas, tratando-se de cônjuge, já a caça à fortuna não é chocante?

11. E qual a razão por que se sanciona uma pessoa que é filha de outra por dela querer ser herdeira? Mas não é essa pretensão tão igual à dos filhos que foram reconhecidos como tal pelos pais? A filiação do perfilhado é mais moral do que a filiação daquele que o pai rejeitou?

12. Por isso, ainda que se tivesse provado que a autora propôs a presente ação apenas porque, reconhecida como filha, tinha em vista vir a receber o património do pai, tal razão poderá ser interessante numa perspetiva de mera crítica moral (que tenho por discutível) mas não me parece aceitável no plano jurídico e, designadamente, no que respeita ao direito constituído.

Salazar Casanova