Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA | ||
Descritores: | PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL PODERES DA RELAÇÃO ACÇÃO DE HONORÁRIOS REMISSÃO ABDICATIVA CONDIÇÃO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO PROVA PERICIAL LAUDO ORDEM DOS ADVOGADOS PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA | ||
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Data do Acordão: | 05/22/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTE DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATO DE MANDATO/ HONORÁRIOS / REMISSÃO ABDICATIVA / EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES / PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA / MATÉRIA DE FACTO | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: 684.º-A, N.ºS 2 E 4; NCPC 2013: ARTS. 358.º, 627.º, N.º 1, 635.º, N.º 4 E N.º 5; 636.º, N.º 2, 674.º, N.º 3, 682.º, N.º 2; CÓDIGO CIVIL: ART. 270.º | ||
Jurisprudência Nacional: | AC. STJ 27-05-2010, PROC. N.º 330/2002.C1.S1 AC. STJ DE 24-03-2011, PROC. N.º 52/06.0TVPRT.P1.S1; AC. STJ DE 19-04-2012, PROC. N.º 34/09.0T2AVR.C1.S1; AC. STJ DE 23-09-2008, PROC. N.º 08B2346; AC. STJ DE 16-04-2009, PROC. N.º 77/07.8TBCTB.C1.S1; AC. STJ DE 04-11-2010, PROC. N.º 2916/05.9TBVCD.P1.S1; AC. STJ DE 20-01-2010, PROC. N.º 2173/06.0TVPRT.P1.S1; | ||
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Sumário : | I - Ao STJ não está vedado controlar se uma determinada carta enviada pela autora ao ré comporta a interpretação que lhe foi conferida pelo Tribunal da Relação, desde que esse controlo se confine à verificação da concreta apreciação de critérios legais de interpretação das declarações negociais – arts. 236.º e ss. CC. II - Nada se tendo apurado quanto à vontade real das partes, nenhuma censura merece a conclusão extraída pela Relação de que, tendo em atenção o teor da carta, no contexto em que a mesma foi enviada, uma pessoa medianamente informada, colocada na posição de destinatário concreto da carta – com os seus concretos conhecimentos do contrato com a autora, da natureza da actividade profissional desta, do trabalho por si desenvolvido e da decisão da ré de não realizar a venda – entenderia a decisão ali plasmada de não cobrar honorários pelo trabalho desenvolvido como estando condicionado à circunstância de esse mesmo trabalho não ser utilizado. III - Em sede de recurso de revista para o STJ, não pode a ré impugnar uma decisão de facto que não impugnou perante o tribunal da Relação, na ampliação do objecto de recurso que deduziu nas suas contra-alegações da apelação. IV - Um laudo realizado pela Ordem dos Advogados é um juízo pericial sujeito às regras da valoração deste específico meio de prova. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:
1. AA – Sociedade de Advogados, instauraram uma acção contra BB, pedindo a sua condenação no pagamento de € 750.000,00, com juros vencidos, calculados à taxa legal, como pagamento por “serviços de assessoria jurídica, de natureza contratual e fiscal”, relativos à venda de um terreno a CC. Segundo alega, o réu desistiu da venda, circunstância em que a autora entendeu não cobrar honorários; mas, na realidade, o terreno veio a ser vendido a CC, através de uma sociedade, beneficiando do trabalho por si desenvolvido, o que lhe proporcionou “uma considerável poupança fiscal”. O réu contestou. Invocou ineptidão da petição inicial, por falta de concretização da causa de pedir, alegou a falta de apresentação de nota de honorários e impugnou diversos factos alegados. A autora replicou. Convidada a aperfeiçoar a petição inicial pelo despacho de fls. 147, a autora apresentou o articulado de fls. 154, parcialmente não admitido pelo despacho de fls. 206. No despacho saneador, por entre o mais, foi afastada a ineptidão invocada pelo réu. Por iniciativa do tribunal, foi solicitado à Ordem dos Advogados que desse parecer sobre os honorários pretendidos; foi apresentado parecer no sentido de ser concedido laudo favorável pelo valor de € 35.000,0¸ mas não pelo montante peticionado. A acção foi julgada improcedente pela sentença de fls. 434. Em síntese, o tribunal entendeu que a autora tinha renunciado ao recebimento de honorários (renúncia abdicativa), numa carta dirigida ao réu, com data de 11 de Março de 2005, na qual “a autora (…) declarou não cobrar quaisquer honorários, uma vez que a metodologia da operação por si proposta não tinha merecido acolhimento” (sentença, fls. 444). Esta sentença, todavia, foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls. 547, que condenou o réu a pagar à autora a quantia de € 35.000,00, acrescida de juros de mora vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, contados à taxa legal. Começando por observar que a renúncia abdicativa é uma causa específica de extinção do direitos reais, mas não de créditos, a Relação considerou não ser possível interpretar a carta de 11 de Março de 2011, com o sentido de acto unilateral de extinção gratuita do crédito de honorários, que a 1ª Instância lhe atribuiu, nestes termos: “Ora, da conjugação dos factos G), H) e U) resulta, para nós à evidência, que a chamada "renúncia" da A teve como pressuposto que o R. tinha desistido de levar a bom termo as operações com vista às quais contactou a A, e bem assim, tinha ínsita uma condição resolutiva: o R. nada pagaria à A desde que não viesse a fazer uso dos elementos que obteve por força dos trabalhos desenvolvidos pela A. (…) Resumindo: a "remissão" por banda da A. não se pode considerar concretizada porque, desde logo, não revestiu a natureza contratual; não está demonstrada a aquiescência do devedor; mas ainda que se pudesse defender que essa concordância foi dada, sempre haveria que atender à condição imposta pela a A. – a remissão só operava na medida em que do trabalho realizado pela A. não fosse retirada qualquer utilidade prática. Assim, verificada a condição, a remissão (a aceitar-se a sua concretização), enquanto contrato, tem-se por resolvido – artº 270º e 276º do CC, assistindo à A. o direito de ser ressarcida pelos trabalhos desenvolvidos” (acórdão recorrido, fls. 560-561). Concluindo que a autora tinha direito a ser paga, a Relação entendeu aceitar o laudo da Ordem dos Advogados, “dado ser a entidade com a mais reconhecida competência técnica para emitir um juízo justo e equilibrado, em respeito pelas regras que norteiam a profissão”.
2. O réu recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões: “1. A Recorrida não tem direito a receber quaisquer honorários do Recorrente por, aliás livremente, a eles ter abdicativamente renunciado, conforme carta que lhe dirigiu em 11 de Março de 2005 (cfr. fls. 135-147 dos autos), recebida em 14 de Março de 2005; 2. Ainda que se entenda que, por se tratar de um direito obrigacional e não de um direito real, a renúncia abdicativa ao crédito por honorários não é juridicamente admissível mas tão só o sendo a respectiva remissão, a carta de fls. 135-137 constituiu uma verdadeira e própria proposta de remissão, formulada pela Recorrida, tácita e inequivocamente aceite pelo Recorrente, conforme decorre do comportamento concludente deste último posterior à recepção de tal comunicação remitiva; 3. Assim, por força da proposta de remissão, dirigida pela Recorrida ao Recorrente, da eventual dívida deste, para consigo, de honorários, este último não deve à primeira qualquer importância a tal título; 4. E, mesmo que se entenda ter tal remissão, proposta e aceite, ficado sujeita à condição resolutiva da não utilização, pelo Recorrente, da solução que lhe foi proposta pela Recorrida, a verdade é que, porque tal solução não foi utilizada, a sobredita condição não se verificou e, logo, também por esta via há que concluir nada dever o primeiro à segunda; 5. Os artºs 682º, nº 2 e 674º, nº 3 do Cód. Proc. Civil, permitindo ao Supremo Tribunal de Justiça que conheça e que, consequentemente, repare, via de revista, ofensa expressa de lei que fixe a força de determinado meio de prova, implicam que a mesma instância suprema considere, no seu elevado julgamento, os factos constantes de escritura pública constante dos autos nos quais, inclusivamente, se louvou o tribunal de primeira instância; 6. É que, por força do disposto nos artºs 368º/1 e 383º/1, do Código Civil, os factos constantes da certidão da escritura inserta nos autos a fls. 138-142, mormente os resultantes da apreensão do notário fazem prova plena e, por isso, não podem ser desconsiderados no juízo rogado a este Supremo Tribunal; 7. Tais factos e outros constantes dos autos atestam suficientemente não ter o recorrente utilizado, na venda do prédio a que procedeu em 6 de Julho de 2005, qualquer solução ou metodologia constantes da proposta que a Recorrida lhe fornecera antes, pelo que é patente que a condição admitida na conclusão ‘4’ não se verificou e, por isso, aquela nada deve à Recorrida; 8. Porém, mesmo que doutamente se entenda que, no exercício do direito de livre venda do imóvel a terceiro o Recorrente fez uso de qualquer parcela das ditas metodologias ou solução propostas pela Recorrida e que, por isso, esta tem direito a dele perceber uma importância a título de honorários, nunca esta importância poderia ser a de € 35.000,00, objecto de laudo de honorários lavrado no pressuposto de tal metodologia ou solução ter sido utilizada integralmente pelo primeiro; 9. A admitir-se ser devida à Recorrida, pelo Recorrente, qualquer importância a título de honorários, necessariamente inferior à de € 35.000,00, pela utilização parcial da solução que esta lhe propôs para a venda do prédio de que era proprietário, na medida em que esta parcela, atentos os elementos disponíveis nos autos, é insusceptível de ser quantificada, sempre o apuramento da mesma importância teria que ser relegado para execução do assim julgado, nos termos do artº 609º, nº 2, do Cód. Proc. Civil; 10. Na hipótese contemplada na conclusão anterior, face à condenação do Recorrente a pagar à Recorrida o que se viesse a apurar em liquidação do julgado, sempre haveria que julgar não se encontrar aquele em mora relativamente ao pagamento do valor em que viesse a ser condenado senão depois da sua notificação da mesma liquidação”. Conclui que o recurso deve ser provido, determinando-se a sua absolvição. Subsidiariamente, que deve o recurso ser parcialmente provido, remetendo-se para liquidação a determinação do montante a pagar à recorrida; “e, neste caso, julgando não se encontrar o Recorrente em mora senão quando, uma vez liquidada a indemnização eventualmente devida à Recorrida sem que aquele, imediatamente, a satisfaça”. A ré contra-alegou, sustentando a manutenção do decidido.
3. Vem provado o seguinte:
A.A autora é uma sociedade de advogados de direito português que se dedica à prestação de serviços jurídicos relacionados com as diversas áreas do Direito. -Al. A) Factos Assentes B. Em Fevereiro de 2005 o réu solicitou à autora serviços de assessoria jurídica de natureza contratual e fiscal, relativos à venda de um terreno que adquirira na qualidade de industrial do grupo C, entidade equiparada a pessoa colectiva com C. Esses serviços consistiam na análise e proposta da melhor forma, do ponto de vista contratual e fiscal, de venda do referido terreno a um indivíduo de nome D. Para tanto, a autora promoveu diversas reuniões, algumas com o filho do réu e com o contabilista do réu e, uma outra, também, com o advogado das E. Nessas reuniões foram entregues à autora vários documentos de informação e para análise, incluindo a cópia de um protocolo assinado com a Câmara de F. Em 23 de Fevereiro de 2005 a autora, a pedido do réu, faz chegar ao referido G. Na posse dos elementos atrás referidos, em reunião realizada em 9 de Março H. Nessa sequência, a autora, em carta que endereçou ao réu em 11 de Março de 2005 e que este recebeu a 14 de Março do mesmo ano, declarou não cobrar quaisquer honorários, uma vez que a metodologia da operação por si proposta não tinha merecido acolhimento. - al.H) FA I. O terreno acima referido veio a ser vendido pelo réu ao mencionado CC, em 6 de Julho de 2005, pela quantia de € 15.465.140,00, através de uma sociedade anónima por esse último controlada, cujo objecto é a revenda de imóveis adquiridos para esse fim. - al.I) FA J. Essa aquisição foi efectuada com isenção de IMT. - al.J) FA K. O réu havia adquirido o terreno acima mencionado, em 16 de Março de1983, pela quantia de Esc. 9.300.000$00, com dispensa do pagamento de imposto de sisa. - al.L) FA L. O mesmo informou a autora que não tinha liquidado esse imposto no termo dos três anos posteriores à aquisição referida na alínea anterior. - al.M) FA M. O réu informou, ainda, a autora de que sempre fizera uso privado do terreno acima referido, explorando-o, nomeadamente para fins agrícolas.- al.N) FA N. Após estudo da questão submetida pelo réu, a autora sustentou que a não liquidação de sisa referida em M. bem como a utilização do terreno mencionada em N. permitiam fundamentar a transmissão, em 1986, do mesmo terreno da esfera do réu enquanto industrial do grupo C para a sua esfera pessoal. - resp. art.° 1.° BI O. A autora apresentou ao réu, como proposta de solução para as questões colocadas, referidas em C), uma operação, que englobava essa mesma transferência para a esfera pessoal do réu e a celebração de diversos contratos, referidos em F), a que se referem as minutas de fls. 114 a 134 e 176 a 180, tal como descrito no diagrama de fls. 405. - resp. art.° 2.° BI P. Para obter uma segunda opinião sobre a mesma solução, a autora consultou um especialista em direito fiscal e recolheu do mesmo um parecer jurídico. -resp. art.° 3.° BI Q. Tendo acordado com o mesmo fiscalista que esse parecer seria pago logo após o pagamento da nota de honorários que iria apresentar ao réu .- resp. art.° 4.° BI R. O réu utilizou parte da solução proposta pela autora (no segmento que pressupunha a declaração de transferência do imóvel para a sua esfera pessoal e subsequente alienação com benefício de isenção do IMT para o comprador) para realizar a venda referida em I), dessa forma alcançando os objectivos que se propunha, referidos em C). - resp. art.° 5.° BI S. A solução utilizada pelo réu permitiu a este uma poupança no IRS de 2005 no valor de € 5.767.134,26. - resp. art.° 6.° BI T. Quando da apresentação da operação ao réu, a autora informou-o que cobraria o valor de € 750.000,00 pela sua concretização; face à desistência do réu, referida em G), a autora declarou que não cobraria qualquer importância, nos termos do escrito que enviou ao mesmo, a que se refere a cópia de fls. 135 a 137, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. - resp. art.° 7.° BI U) A carta referida em H) e T), enviada pela A. ao R e por este recebida a 14/3 de 2005 tinha o seguinte teor: "Assunto: Mais Valia fiscal a venda de terreno. 1. Na sequência da nossa reunião de anteontem e em face comunicação da vossa decisão de não concretização da venda do terreno nos termos da solução de melhor eficiência fiscal possível por nós proposta, venho informá-lo que a minha decisão e dos colegas que comigo trabalharam na procura e construção da proposta de operação que lhe foi feita, foi a de não cobrar qualquer importância a esse titulo. 2. No entanto e para que não subsistam dúvidas ou equívocos quanto à operação por nós proposta, peço licença para recordar que a mesma assentava em dois momentos distintos: a. Um primeiro momento relacionado com a ultrapassagem da dificuldade resultante do facto da aquisição e registo do referido terreno ter sido feita (conforme a escritura) na sua qualidade de industrial colectado no grupo C (sendo que a solução por nós proposta foi inclusivamente aceite pelo vosso contabilista também presente na reunião realizada com o seu Exm° filho DD); e b. Um segundo momento relacionado com a transferência do referido terreno para uma sociedade instrumental (o que permitiria várias vantagens, entre as quais a natureza do seu destino final; o problema da integração em zona objecto de elaboração de plano de pormenor e a realização da mais valia na sua esfera pessoal permitindo, nomeadamente, a melhor origem de suprimentos). 3. Legitimamente entendeu não realizar esta operação (sobretudo atentos os custos da mesma) garantindo que não seria utilizado, em qualquer transmissão do referido terreno, os mecanismos, as informações, as metodologias ou os instrumentos que por nós vos foram sendo transmitidos quer nos documentos quer ao longo das várias reuniões realizadas. Pela nossa parte estamos absolutamente tranquilos que assim será. Seguro que esta oportunidade permitirá o surgimento de novas oportunidades e agradecendo a distinção que nos concedeu com a sua consulta, apresento os melhores cumprimentos. (José Manuel Mesquita)"
4. Colocam-se no presente recurso as seguintes questões (nº 4 do artigo 635º do Código de Processo Civil):
– Extinção do direito a receber honorários, por renúncia da autora, ou por aceitação tácita de proposta de remissão; – Não verificação de eventual condição, por não ter sido utilizada, pelo réu, qualquer solução ou metodologia proposta pela autora; – A entender-se ter havido uma utilização parcial, deve remeter-se para liquidação a determinação do montante devido. – Inexistência de mora e, portanto, da obrigação de pagamento de juros moratórios.
5. O recorrente sustenta que não deve honorários nenhuns à autora, “por duas razões alternativas”: porque (1) “esta renunciou abdicativamente aos seus direitos”, (2) “porque, mesmo que se entenda que, sendo o direito à percepção de honorários um direito de crédito e não um direito real, só a estes estando reservada a possibilidade de renúncia abdicativa operante e que a carta da Recorrida transcrita na alínea U) da matéria de facto assente constitui apenas uma proposta negocial de remissão (…), sempre a conduta do Recorrente, posterior à recepção da referida comunicação escrita da recorrida, foi concludente no sentido de que aceitou tal proposta de remissão” (alegações, fls. 575). A 1ª Instância decidiu que o direito de crédito invocado pela autora se extinguiu por renúncia abdicativa, entendida esta como um acto unilateral e gratuito dirigido a essa extinção. Considerou ainda não estar provado que a eficácia da renúncia tivesse ficado dependente de qualquer condição resolutiva – no caso, da “não utilização pelo réu da operação delineada pela autora, no exercício dessa prestação de serviços forenses” (sentença, fls. 446). Como se viu, a Relação discordou da solução jurídica encontrada; mas, sobretudo, entendeu que a 1ª Instância não tinha julgado em conformidade com a prova produzida; e nenhum reparo merece esta conclusão. Na verdade, não tem consequências práticas, no caso presente, optar por considerar que a declaração constante da carta de 11 de Março de 2005 (pontos H), T) e U) dos factos provados) deve ser juridicamente entendida como um acto unilateral da autora, dirigida à extinção do seu direito de crédito e eficaz como acto unilateral, ou apenas como uma proposta de um acto bilateral dirigido a esse mesmo efeito; nem tão pouco interessa verdadeiramente saber, optando por esta qualificação, se foi ou não tacitamente aceite, como, subsidiariamente, defende o ora recorrente. Com efeito, em presunção insindicável por este Supremo Tribunal de Justiça (cfr. por exemplo os acórdãos de de 27 de Maio de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 330/2002.C1.S1, de 24 de Março de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 52/06.0TVPRT.P1.S1, de 19 de Abril de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 34/09.0T2AVR.C1.S1), a Relação interpretou a relação entre os factos a que se referem os pontos G), H) e U) no sentido de que a declaração da autora (deva ela ser havida, juridicamente, como renúncia, ou antes como proposta de remissão) se tinha baseado no pressuposto de que o réu não utilizaria “os elementos que obteve por força dos trabalhos desenvolvidos pela A.”. E a este propósito, cumpre verificar que não está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça controlar se o sentido retirado da carta comporta a interpretação que lhe foi conferida pelo tribunal recorrido, independentemente da sua articulação factual com a informação referida em G. e com o envio da carta de 11 de Março na sequência da reunião na qual foi prestada aquela informação. Esse controlo, todavia, há-de confinar-se à verificação da concreta aplicação dos critérios legais de interpretação das declarações negociais, constantes dos artigos 236º e segs. do Código Civil. (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Setembro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2346, de 16 de Abril de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 77/07.8TBCTBCTB.C1.S1). Como se escreveu já no acórdão de 4 de Novembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 2916/05.9TBVCD.P1.S1, está subtraído à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça “o controlo da interpretação de declarações negociais, no que se refere à determinação do sentido da vontade real dos intervenientes, por se tratar de questão ainda situada no domínio dos factos, como o Supremo Tribunal de Justiça repetidamente tem salientado; apenas lhe é permitido avaliar a aplicação dos critérios legais de interpretação”. Ora, do teor da carta, entendido no contexto em que foi enviada, resulta objectivamente que uma pessoa medianamente informada, colocada na posição do destinatário concreto da carta – com os seus concretos conhecimentos do contrato com a autora, da natureza da actividade profissional da autora, do trabalho desenvolvido e da sua própria decisão de não realizar a venda nos termos que lhe foram apresentados – entenderia a decisão de não cobrar honorários pelo trabalho desenvolvido como estando condicionada à não utilização do resultado desse trabalho. Nada se tendo apurado quanto à vontade real das partes, nenhuma censura merece a conclusão, extraída pelo acórdão recorrido, de que o efeito extintivo do direito ao pagamento de honorários (seja por acto unilateral, seja por remissão acordada entre as partes) ficou dependente da condição resolutiva de que os elementos resultantes do trabalho da autora, que o réu obteve, não fossem por ele utilizados.
6. O recorrente sustenta que, de qualquer forma, a condição não se verificou, por não terem sido utilizados esses elementos (artigo 270º do Código Civil). Manteve-se, portanto, a renúncia, ou a remissão. A primeira observação a fazer, quanto a este ponto, é a de que o recorrente está a pretender que o Supremo Tribunal de Justiça altere a decisão sobre a matéria de facto, no que respeita ao ponto R (“R. O réu utilizou parte da solução proposta pela autora (no segmento que pressupunha a declaração de transferência do imóvel para a sua esfera pessoal e subsequente alienação com benefício de isenção do IMT para o comprador) para realizar a venda referida em I), dessa forma alcançando os objectivos que se propunha, referidos em C). - resp. art.° 5.° BI”) e, na medida em que se relaciona com este, ao ponto S (“S. A solução utilizada pelo réu permitiu a este uma poupança no IRS de 2005 no valor de € 5.767.134,26. - resp. art.° 6.° BI).” Deixando por enquanto de lado o ponto S, impugnado perante a Relação apenas quanto ao montante da poupança, o que agora não tem qualquer relevância, a verdade é que o recorrente não pode vir questionar perante o Supremo Tribunal de Justiça uma decisão de facto que não impugnou perante o Tribunal da Relação, na ampliação do objecto do recurso que deduziu nas contra-alegações da apelação – cfr. nº 1 do artigo 627º do Código de Processo Civil: os recursos destinam-se a impugnar decisões e o recorrente não provocou nenhuma decisão da Relação sobre a matéria. A possibilidade de o recorrido vir ampliar o objecto do recurso, nas contra-alegações, foi introduzida no Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro, que lhe aditou o (então) artigo 684º-A. Releva agora particularmente o nº 2 do citado artigo 684º-A (correspondente ao nº 2 do actual artigo 636º), que permitia ao recorrido que, prevenindo a hipótese de procedência das questões suscitadas pelo recorrente, impugnasse “a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente”. Não tendo sido ampliado o objecto da apelação, quanto à matéria de facto julgada provada e constante do ponto R, tem plena aplicação o disposto no preceito então vigente, o nº 4 do artigo 684º do Código de Processo Civil (actual nº 5 do artigo 635º do Código de Processo Civil): o julgamento de facto consolidou-se, não podendo ser questionado perante o Supremo Tribunal de Justiça. Sempre existiria aliás a dificuldade decorrente de o julgamento do ponto R (correspondente ao quesito 5º) ter resultado da consideração conjunta de diversos meios de prova, alguns dos quais sujeitos à regra da livre apreciação, susceptíveis, portanto, de apenas uma grau de recurso – cfr. fundamentação do julgamento de facto, de fls. 429 e segs. O que se disse vale quanto ao julgamento constante do ponto S, na parte em que não diz respeito ao montante da poupança. Não releva, portanto, saber se, para apreciar a impugnação agora em causa, são ou não questionados apenas meios de prova susceptíveis de controlo no âmbito da revista, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 674º e do nº 2 do artigo 682º do Código de Processo Civil.
7. O recorrente alega ainda que, a entender-se ter havido uma utilização parcial dos elementos obtidos em consequência do trabalho da autora, deve remeter-se para liquidação a determinação do montante dos honorários devidos. Mas não tem manifestamente razão; e, novamente, vem suscitar questões insusceptíveis de apreciação neste recurso. Em primeiro lugar, porque está provado em que parte o trabalho desenvolvido pela autora foi utilizado pelo réu – cfr. ponto R acabado de transcrever: “O réu utilizou parte da solução proposta pela autora (no segmento que pressupunha a declaração de transferência do imóvel para a sua esfera pessoal e subsequente alienação com benefício de isenção do IMT para o comprador) para realizar a venda referida em I), dessa forma alcançando os objectivos que se propunha, referidos em C)”, em segundo lugar, porque o que verdadeiramente o recorrente está a pôr em causa neste recurso é a apreciação que o Tribunal da Relação fez no que toca ao laudo apresentado pela Ordem dos Advogados, enquanto meio de prova (pericial) para aferição do valor adequado aos honorários pedidos pela autora (que Relação entendeu adequado, note-se, estando provado já que parte do trabalho da autora tinha sido usada pelo réu). O Supremo Tribunal de Justiça já por mais de uma vez teve a ocasião de dizer expressamente que tal laudo é um juízo pericial, como tal, sujeito às regras da valoração deste específico meio de prova (cfr. por ex. o acórdão de 20 de Janeiro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 2173/06.0TVPRT.P1.S1) No caso, se é certo que o acórdão recorrido afirmou que as partes estiveram de acordo quanto à conclusão de que, a serem devidos honorários, então deviam corresponder ao valor a que a Ordem dos Advogados chegou, o que o recorrente questiona, é igualmente certo que se trata de um argumento meramente adjuvante ao juízo de que, vindo da “entidade com a mais reconhecida competência técnica para emitir um juízo justo e equilibrado, em respeito pelas regras que norteiam a profissão”, o tribunal não vê razões para o afastar.
8. Finalmente, e para a hipótese de se entender serem devidos honorários, o recorrente afirma que, sendo ilíquida a quantia devida – o recorrente fala em “importância indemnizatória” a pagar –, então só entrará em mora quando for liquidada e se não satisfizer imediatamente tal quantia. Refere ainda o recorrente que a quantia “não se encontra ainda liquidada nem é, por outro lado, susceptível de o ser nos presentes autos”, admitindo a hipótese de ser “condenado em importância a liquidar em execução de julgado” (alegações, fl. 608). Mas não está em causa nenhuma indemnização, apenas o pagamento de honorários; e a quantia não é ilíquida: não estando provada qualquer interpelação anterior, tal como se entendeu no acórdão recorrido, vale como tal a citação para esta acção. A autora não logrou o pagamento do montante peticionado, mas isso em nada altera a questão. Sempre se diz, a final, que, a ser necessário proferir uma condenação genérica, nos termos previstos no artigo, remetendo para momento posterior a liquidação, ela se efectuaria “nos presentes autos” nos termos previstos nos artigos 358º e segs. do Código de Processo Civil, e não em execução de sentença.
9. Nestes termos, nega-se provimento à revista. Custas pela recorrente.
Lisboa, 22 de Maio de 2014
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora) Salazar Casanova Lopes do Rego |