Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
12/23.6GAARL.E1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
REQUISITOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 01/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Nos recursos extraordinários para fixação de jurisprudência, previstos no art. 437.º e ss., do C.P.P., o recorrente só pode indicar apenas um acórdão fundamento.

II. Com efeito, a exigência legal da invocação de um só acórdão fundamento (do STJ ou do Tribunal da Relação) faz todo o sentido, visando delimitar, com todo o detalhe, o âmbito da questão jurídica a dirimir, o que, em princípio, só se alcançará quando colocados frente a frente apenas os dois pontos de vista precisos, cada um deles expresso no respetivo aresto, tendo por base uma mesma situação de facto e identidade de quadro legislativo.

II. Se indicar mais do que um (no caso em apreço, foram indicados três), o recurso em causa terá de ser rejeitado, nos termos do art. 441.º n º 1, do C.P.P., sendo certo que não há lugar, relativamente às exigências substanciais, a convite do relator para suprir falhas.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. O arguido AA, com os sinais dos autos, veio interpor, em 06/10/2023, recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do art. 437.º n.º 2, do C.P.P., do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12/07/2023, e transitado em julgado em 02/10/2023, que negou provimento ao seu recurso e manteve a condenação, proferida pela primeira instância, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de multa de € 400,00 e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 4 meses, apresentando as seguintes Conclusões (Transcrição):

I. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recorrente;

II. Existe contradição entre os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora referidos em 1 – a) e 1- b) e o Acórdão também prolactado pela mesma Relação de Évora e referido em 2, todos melhor identificados a seguir;

III. 1 - a) - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora por unanimidade em 08.09.2015 no Proc. n.º 457/14,2GTABF.E1, que teve com relator o Desembargador João Correia de Sousa. Disponível em www.dgsi.pt

1 – b) - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora decidido por unanimidade em 17.06.2010 no Proc.º n.º 89/07.GTABF.E1 que teve como relatora a Desembargadora Maria Graça Santos Silva. Disponível em www.dgsi.pt

2 - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora decidido por unanimidade em 20.01.2015 no Proc.º n.º 314/13.0GFLLE.E1 que teve como relator o Desembargador Sérgio Corvacho. Disponível em www.dgsi.pt

IV. O Acórdão proferido nos autos pelo Distinto Tribunal da Relação de Évora, Acórdão Recorrido, mostra-se em contradição com outros Acórdão da mesma Relação todos transitados em julgado e proferidos no âmbito da mesma legislação em vigor à data dos factos;

V. Sendo controvertida na jurisprudência, a data a partir da qual se conta o prazo dos 10 anos, se a data da publicação em DR do despacho de homologação do modelo do IPQ, ou a data da publicação em DR do despacho de aprovação para uso da ANSR, em face da data em que ocorreram os factos 20.01.2023, data em que o arguido foi controlado pelo aparelho Drager Alcoteste 7110 MK III-P, em 20 de Janeiro de 2023, independentemente de uma ou outra publicação do DR, tal fiscalização ocorreu sempre fora do prazo de validade qualitativa do aparelho;

VI. Impõe-se concluir que nessa data o aparelho não cumpria os requisitos para fazer prova em juízo, tal como estipulado pelo Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas. Ou seja, mostra-se incumprido o disposto no n.º 1 e 2 do Art.º 14º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas e do n.º 3 do Art.º 6º do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros - aprovado pela Portaria nº 1556/2007 de 10 de Dezembro;

VII. Tratando-se de prova legal vinculada à existência de homologação e aprovação, não existindo esta, o valor probatório do alcoolímetro é nulo;

VIII. Trata-se pois de saber se à data a que se reportam os factos em 20.01.2023 o referido instrumento de medição se encontrava dentro do seu período de validade de 10 anos, apto para obter um resultado fiável para sustentar uma acusação em processo de natureza criminal;

IX. A questão da caducidade do prazo de validação da aprovação do modelo pelo IPQ situado em 10 anos, diz respeito a um prazo que a lei expressamente determina e que extingue os efeitos da aprovação, não podendo ser o interprete a dar-lhe qualquer outro sentido que não aquele que resulta dos próprios efeitos da caducidade;

X. Desde a data de aprovação do concreto modelo de alcoolímetro em 06.06.2007, até à data em que foi utilizado para obter a pesquisa de álcool no ar expirado ao arguido em 20.01.2023, decorreram quase 16 anos;

XI. Razões pelas quais a medição assim efectuada não pode servir como prova incriminatória, única que pode sustentar a condenação do arguido;

XII. Deve pois o arresto recorrido ser revogado e que o conflito que se suscita venha a ser resolvido, por fixação de jurisprudência no sentido contrário ao arresto recorrido;

XIII. Para tal sugere-se a seguinte redacção:

“Decorrido o prazo de 10 anos da aprovação do alcoolímetro Drager Alcotest 7110 MKIII P, mostra-se verificada a sua caducidade, sendo que o resultado da medição de ar expirado para efeitos de alcoolemia no sangue levada a efeito em tal aparelho, não vale como meio de prova.”;

Nestes termos e melhores de Direito, que V.ª Exas, Venerandos Conselheiros doutamente suprirão, deverá ser admitido o recurso dando-lhe provimento porquanto o Acórdão proferido pelo Distinto Tribunal da Relação de Évora, Acórdão Recorrido, se mostra profunda e claramente em contradição com outros Acórdão da mesma Relação todos transitados em julgado e proferidos pela mesma legislação em vigor à data dos factos.

Mais deve o arresto recorrido ser revogado e que o conflito que se suscita venha a ser resolvido, fixando jurisprudência no sentido contrário ao arresto recorrido.

Para tal sugere-se a seguinte redacção: “Depois de decorrido o prazo de 10 anos da aprovação do alcoolímetro Drager Alcotest 7110 MKIII P, mostra-se verificada a sua caducidade, sendo que o resultado da medição de ar expirado para efeitos de alcoolemia no sangue levada a efeito em tal aparelho não vale como meio de prova.”

2. O recurso em causa foi admitido por despacho do Senhor Desembargador relator, de 10/10/2023.

3. O Ministério Público, junto do tribunal recorrido, respondeu, em 15/11/2023, ao recurso do arguido, defendendo que o mesmo deveria ser rejeitado, dado o recorrente ter apresentado 3 recursos que servem de fundamento.

4. Por sua vez, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal, emitiu, em 11/12/2023, douto parecer, defendendo, igualmente, a rejeição do recurso, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 440.º n.ºs 3 e 4 e 441.º n.º 1, 1.ª parte, do C.P.P.

Observado o contraditório, o recorrente não respondeu ao parecer do Ministério Público.

5. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, previsto no art. 437.º e ss., do C.P.P., tem como finalidade específica evitar contradições entre acórdãos dos tribunais superiores, assegurando, assim, a uniformização da jurisprudência e, reflexamente, os princípios da segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e da igualdade dos cidadãos perante a lei1.

Os antecedentes deste recurso parece, segundo Germano Marques da Silva2, citando os Professores Mário Júlio de Almeida Costa e Alberto dos Reis, encontrarem-se nas façanhas medievais e, mais modernamente, nos Assentos da Casa da Suplicação.

O Decreto n.º 12 353, de 22/09/1926, criou um recurso destinado à uniformização da jurisprudência, com um regime análogo ao recurso para o tribunal pleno, que viria a ser consagrado nos Códigos de Processo Civil de 1939 e 1961.

Integrados no mesmo Capítulo, encontram-se três espécies deste recurso, cada uma com as suas especificidades: recurso de fixação de jurisprudência próprio sensu (arts. 437.º a 445.º), recurso de decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (art. 446.º) e recursos interpostos no interesse da unidade do direito (art. 447.º).

Iremos, por razões óbvias, apenas nos focar no primeiro.

Ora, de acordo com a doutrina3 e jurisprudência4 dominantes, constituem requisitos formais de admissibilidade deste recurso para o Supremo Tribunal de Justiça:

a. a legitimidade e interesse em agir do recorrente;

b. a interposição do mesmo no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;

c. a invocação, no recurso, do acórdão fundamento, com junção de cópia deste ou do lugar da sua publicação;

d. o trânsito em julgado dos dois acórdãos; e

e. justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência.

Por seu turno, são requisitos substanciais de admissibilidade:

a. existência de julgamentos da mesma questão de direito entre dois acórdãos do STJ, dois acórdãos da Relação ou entre um acórdão do STJ e outro da Relação – o acórdão recorrido e o acórdão fundamento;

b. os acórdãos em causa assentem em soluções opostas, de forma expressa e a partir de situações de facto idênticas; e

c. serem ambos proferidos no domínio da mesma legislação, ou seja, quando durante o intervalo da sua prolação não tiver ocorrido alteração legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão controvertida.

Saliente-se ainda que a jurisprudência do Supremo vai no sentido de que a expressão soluções opostas diz respeito às decisões e não aos fundamentos.

2. Voltando, agora, ao caso sub judice, constata-se que o recorrente tem legitimidade e interesse para recorrer, sendo também o recurso tempestivo (foi interposto em 6/10/2023 e o acórdão recorrido transitou em julgado em 02/10/2023), mas acontece que indicou, não um acórdão fundamento, conforme estatui o art. 438.º n.º 2, do C.P.P.5, mas 3 (três) acórdãos fundamento (!!), todos do Tribunal da Relação de Évora.

Ora, como é sabido, nestes casos, ou seja, em relação às exigências substanciais, não há lugar a convite para suprir falhas6, tanto mais que o recorrente até foi alertado para tal pelo parecer do Ministério Público que levantou, com pertinência, esta questão e nada veio dizer ou requerer aos autos.

Saliente-se, a propósito, que a obrigatoriedade da invocação de um só acórdão fundamento (do STJ ou do Tribunal da Relação) faz todo o sentido, visando delimitar, com todo o detalhe, o âmbito da questão jurídica a dirimir, o que, em princípio, só se alcançará quando colocados frente a frente apenas os dois pontos de vista precisos, cada um deles expresso no respetivo aresto, tendo por base uma mesma situação de facto e identidade de quadro legislativo.

Nesta conformidade, de acordo com a jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal de Justiça7, o recurso extraordinário interposto terá de ser rejeitado, dado estar comprometida a verificação do requisito substancial da oposição de julgados.

III. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em rejeitar o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do art. 441.º n.º 1, 1.ª parte, do C.P.P.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, a que acresce mais 3 UC (art. 420.º n.º 3, do C.P.P.).

Lisboa, 31 de janeiro de 2024

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Maria Teresa Féria de Almeida (Adjunta)

Teresa de Almeida (Adjunta)

______


1. Vide Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, Verbo, 1994, pg. 353., e ac.do STJ de 16/3/2022, relator o Senhor Conselheiro Nuno Gonçalves, in www.dgsi.pt.

2. Curso de Processo Penal cit., pg. 355.

3. Por todos, José Damião da Cunha e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Vol. II, 5.ª edição atualizada, Universidade Católica Portuguesa, anotação aos arts. 437.º e 438.º, e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, Rei dos Livros, pg. 169 e ss.

4. Cfr., entre outos, os acórdãos do STJ de 8/11/2023, Proc. n.º 204/22.5YUSTR.L1-A.S1, 28/9/2023, Proc n.º 919/20.2PWPRT-A.P1-A.S1, 16/3/2022, Proc. n.º 5784/18.7T9LSB.L1-A-A.S1, 10/3/2022, Proc. n.º 218/20.0GCACB-A.C1.S1, 2/12/2021, Proc. n.º 344/19.8JABRG-C.S1, e 2/12/2021, Proc. n.º 17648/08.8TDPRT-J.P1-A.S1, cujos relatores são, respetivamente, os Senhores Conselheiros Lopes da Mota, Orlando Gonçalves, Nuno Gonçalves, M. Carmo Silva Dias, Adelaide Magalhães Sequeira e Ana Barata Brito, todos disponíveis no indicado sítio.

5. Nesse sentido também, José Damião da Cunha e Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit, pgs. 734 e 737.

6. Cfr. Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, 4.º Edição Revista, Almedina, pg. 1487.

7. Vide acórdãos de 12/10/2022 e de 24/3/2021, cujos relatores são, respetivamente, os Senhores Conselheiros Paulo Ferreira da Cunha e Nuno Gonçalves, Procs. n.ºs 2113/21.6T9AVR-A.P1-A.S1 e 64/15.2IDFUN.L1, no sítio referenciado.