Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4111/19.0T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DA RELAÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
LEI PROCESSUAL
VIOLAÇÃO DE LEI
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS DE INSTÂNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Apenso:
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Por força do disposto nos arts. 640.º, n.º 4, 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC, o STJ apenas pode apreciar e alterar a decisão relativa à matéria de facto nas situações em que haja ofensa de uma disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova.

II. A não sindicabilidade pelo STJ da decisão sobre a matéria de facto abrange também a decisão sobre os meios de prova produzidos/a produzir, salvo nas hipóteses excepcionais previstas na parte final do n.º 3 do art. 674.º que aqui não se verificam.

III. Tendo os autores recorrido do segmento decisório respeitante à propriedade das águas, que condenou os réus a reconhecerem os autores enquanto proprietários de ½ da água, pugnando para que a Relação entendesse que as águas eram sua propriedade exclusiva, e não tendo os réus apelado da sentença nem contra-alegado, estava a Relação impedida de modificar a decisão em termos mais desfavoráveis aos autores apelantes.

IV. Tendo improcedido as pretensões dos recorrentes relativas à decisão da matéria de facto, assim como aos meios de prova produzidos, perante a factualidade dada como provada não merece censura a decisão do acórdão recorrido de manter a decisão de improcedência do pedido de condenação dos réus a reporem a situação anterior às obras por estes realizadas na sua vinha.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA e BB instauraram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC e DD (1.ºs RR.), EE e FF (2.ºs RR.), GG e HH (3.ºs RR.), e II e JJ (4.ºs RR.), pedindo:

a) A condenação de todos os réus a reconhecerem o direito de propriedade dos AA. sobre os prédios referidos no artigo 1.º da p.i., e sobre a água referida, e, bem assim, o direito de servidão de aqueduto, melhor descrito na petição, constituído, pelo menos, por usucapião e onerando os prédios de todos os RR., nos termos descritos;

b) A condenação dos 1.ºs RR. a reporem a situação anterior às obras de construção da vinha que realizaram no local, por forma a assegurar o completo e irrestrito trânsito da água pelo seu prédio, repondo a mina e a canalização no estado anterior, esta em toda a extensão que for necessária até ao prédio dos AA., isto é, também pelos prédios dos demais réus.

Para tanto alegam, em síntese, que são donos e possuidores de uma água de nascente, que nasce na parte norte do terreno dos 1.ºs RR. e que, depois de duas caixas de visita, segue por um tubo pelos terrenos dos 2.ºs, 3.ºs e 4.ºs RR. até ao prédio dos AA., onde é recolhida num tanque e aí aproveitada para fins habitacionais e agrícolas. Esta servidão de rego e aqueduto existe há mais de cem anos, desde o tempo dos avós do A., e este consentiu que o pai do 1.º R. passasse a utilizar ½ da água, recolhida na segunda caixa de visita, até um tanque existente na propriedade dos 1.ºs RR..

Acrescentaram que o 1.º R., há cerca de dez anos, pediu autorização aos AA. para fazer obras na mina, para construção de uma vinha, obrigando-se a repor a circulação de água, mas tal não aconteceu, jamais ficando a sair qualquer quantidade de água a partir da mina existente.

Após reuniões constataram que existia água abundante na mina, mas que não prosseguia por o dito R. ter tapado a zona da base da mina com um murete que ficou a impedir em definitivo o acesso da água ao tubo, sendo necessárias obras de reposição num montante de € 31.760,00, acrescidos de IVA à taxa legal, que o 1. R. se recusou a suportar.

Os AA. requereram, além do mais, a inspecção ao local.

Os 1.ºs RR. contestaram dizendo que, quando muito, aceitam que os AA. beneficiam de uma servidão de metade da água admitindo que o avô do 1.º R. permitiu tal utilização, contudo tal servidão extinguiu-se há mais de 40 anos por não uso, pois desde 1960 - altura em que se construiu a estrada a norte - que tal nascente secou. Assim era quando, em 1986, os AA. adquiriram a ... pelo que nunca tiveram qualquer interesse de inspecção, limpeza ou reposição. Aquando da construção das casas dos 2.ºs a 4.ºs RR. foram destruídas as condutas que eventualmente atravessassem as suas propriedades. Impugnam a responsabilidade de tais factos às alegadas obras realizadas que se resumiram à colocação de uma argola e tampa na segunda caixa.

Os 2.ºs RR. contestaram impugnando nos mesmos termos dos 1.ºs RR.. Referiram que, como não beneficiavam de qualquer água, construíram um poço. Acrescentaram que, em 2002, quando começaram a construção da habitação no seu prédio, os tubos antigos já não existiam, estando podres e degradados pelo que autorizaram o A. a colocar novos tubos que ainda lá estão sem qualquer ligação.

Os 3.ºs e 4.ºs RR. não contestaram.

Os AA. apresentaram resposta negando a extinção da servidão de aqueduto por não uso.

Foi proferido despacho saneador, fixado o valor da acção, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova, bem como foram admitidos os requerimentos probatórios sendo que, nesta sede, foi proferido, além do mais, o seguinte despacho: «A inspeção ao local será determinada se for necessária para a descoberta da verdade.».

Procedeu-se a perícia cujo relatório foi junto,

Na audiência de julgamento foi pelos AA. requerido que se procedesse às diligências de prospecção recomendadas pelo perito, o que veio a ser indeferido.

Desta decisão foi interposto recurso em separado (Apenso A) tendo o Tribunal da Relação de Guimarães julgado o mesmo improcedente por acórdão de 23 de Setembro de 2021. Foi interposto recurso para o Supremo Tribunal, que, por acórdão de 9 de Dezembro de 2021, negou a revista.

Finda a audiência de julgamento foi proferida, em 19 de Julho de 2021, sentença, cuja parte decisória, na parte que interessa, reproduzimos:

«Face ao exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência:

- condeno os 1º Réus CC e DD a reconhecerem o direito de propriedade dos Autores AA e BB sobre ½ da água que nasce no limite norte do prédio daqueles referido supra em 2) dos factos provados e que segue, no sentido norte-sul, até uma caixa onde é dividida.

- condeno os Réus a reconhecerem que o prédio dos Autores identificado supra em 1) dos factos provados beneficia de servidão de aqueduto que onera, sucessivamente os prédios dos Réus, descritos supra nos factos 2) a 5), relativamente à água que deriva da mina existente no prédio dos 1º Réus para o prédio dos Autores.

Absolvo os Réus do restante peticionado.».

Inconformados, interpuseram os AA. recurso de apelação, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 10 de Fevereiro de 2022, foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente,

- Indeferem a requerida inspecção local;

- Julgam a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condenam réus a reconhecerem que o prédio dos autores identificado no ponto 1 dos factos provados beneficia de servidão de aqueduto - em relação à água que nasce no limite norte do prédio dos 1º réus identificado no ponto 2 dos factos provados, água essa que segue no sentido norte-sul, pelo prédio destes (onde passa por duas caixas), segue pelos prédios dos 2º e 3º réus identificados nos pontos 3 a 5 dos factos provados, e que depois entra no referido prédio do autor -, servidão essa que onera sucessivamente os prédios identificados nos pontos 2 a 5 dos factos provados; e absolvem os 1º réus quanto ao restante peticionado.».


2. Vêm os AA. interpor recurso de revista, por via normal, com fundamento na previsão do art. 671.º, n.º 1 do CPC, e, em qualquer caso, em ofensa de caso julgado (art. 629.º, n.º 1, alínea a), do CPC); e, subsidiariamente, por via excepcional.

Formularam as seguintes conclusões:

«1ª Os autores, ora recorrentes, propuseram a presente ação contra os primeiros réus, como proprietários de um prédio no qual é represada uma água, que sustentaram pertencer-lhes na totalidade, em propriedade, e no qual esses réus procederam à construção de uma vinha que inutilizou os encanamentos e a mina onde essa água existe, e contra os demais réus, pedindo a condenação de todos os réus a reconhecerem o seu direito de propriedade sobre esses prédios e sobre a água, bem como a servidão de aqueduto necessária para o aproveitamento daquela água, e a condenação, nesta parte somente dos primeiros réus, a reporem o seu prédio no estado anterior às obras de construção daquela vinha, por forma a ser de novo assegurado o uso completo e irrestrito da água e o trânsito da mesma pelos prédios dos réus até ao prédio dos autores, onde desde há mais de 100 anos a água é recolhida num tanque, e a partir daí é utilizada pelos próprios autores e, por força de uma servidão, por vizinhos, que da água também ficaram privados.

2ª Em 1ª instância, o tribunal julgou a ação parcialmente procedente, e em consequência condenou:

a) os primeiros réus a reconhecerem o direito de propriedade dos autores “sobre ½ da água que nasce no limite norte do prédio daqueles (…)”;

b) todos os réus a reconhecerem que o prédio dos autores “beneficia de servidão de aqueduto que onera sucessivamente o prédio dos réus (…) relativamente à água que deriva da mina existente no prédio dos primeiros réus para o prédio dos autores”.

3ª Os autores – e apenas eles – interpuseram recurso da sentença:

a) imputando-lhe a comissão de duas nulidades (uma por, tendo a julgadora lavrado um despacho onde decidiu que oportunamente resolveria se faria ou não inspeção do local, jamais se ter pronunciado; outra, porque, tendo a julgadora ordenado um arbitramento, que o perito declarou não poder realizar, por carecer de atos prévios, o tribunal nada ter decidido inicialmente, e, após instado, ter decidido que esses atos prévios só se realizariam se todas as partes estivessem de acordo, ao que elas não anuíram, ficando o arbitramento por fazer;

b) impugnando a matéria de facto, porque dela devia constar que estava já provado que eram necessárias todas as diligências apontadas pelo perito, bem como que antes da construção da vinha, existia água em abundância;

c) sustentando que o tribunal deveria, oficiosamente, que mais não fosse, e uma vez que a peritagem fora por si ordenada, com indicação dos pertinentes quesitos, determinar a realização de todos os atos prévios à peritagem, e desta mesma;

d) imputando-lhe erro de aplicação da lei, porque se provou que os autores eram donos de toda a água e não apenas de metade dela.

4ª O acórdão recorrido:

a) reconheceu a existência de uma daquelas nulidades (a falta de pronúncia sobre a inspeção do local e, passando a julgá-la nos termos do artigo 665.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, decidiu que a inspeção era de indeferir, porque era impossível a observação direta da nascente) indeferiu a outra (por entender que a omissão de pronúncia sobre as condições pedidas pelo perito para fazer o arbitramento “de modo algum obviamente se enquadram nas pretensões processuais formuladas pelas partes nos pedidos, causa de pedir ou exceções” (sic);

b) alterou, em parte, a matéria de facto, consignando no facto 14 que “os autores em 2018 chamaram um técnico que considerou que para assegurar o restabelecimento da condução da água para o prédio dos autores é necessário verificar o estado da mina e dos encanamentos, designadamente é necessário: a) abrir uma entrada para a mina durante as obras; b) proceder à instalação de um tubo novo até à mina; c) destruir o murete referido; d) limpar o excesso de terra e de areia do interior da mina, ao longo de, pelo menos, 100 metros; e) reconstruir, se necessário, as partes da galeria da mina onde cresceu vegetação; f) abrir valas para ocupação de tubos atravessando todas as propriedades dos réus numa extensão de cerca de 350 metros até ao tanque dos autores; g) colocar e assentar o tubo de caimento a jusante por forma a facilitar o correr da água e reduzir os riscos de posteriores estrangulamentos; h) construir caixas de visita ao longo do percurso”.

c) alterou a qualificação do direito dos autores sobre a água, revogando, sem qualquer pedido, a decisão da 1ª instância que decidira que esse direito era de propriedade, e passando a considerá-lo de simples servidão;

d) julgou não extinta pelo não uso a servidão que julgou reconhecida, repetindo, assim, uma decisão que fora decidida pacificamente em primeira instância, porque a sentença julgara que a servidão não estava extinta e nenhuma das partes dela recorreu.

5ª Desse acórdão os autores interpuseram o presente recurso de revista-regra, sustentando o seguinte:

a) embora em recurso autónomo tivesse sido decidido que o tribunal não tinha que se pronunciar senão a requerimento dos autores e em termos de reclamação, sobre as diligências prévias pedidas pelo perito, e essa decisão tivesse transitado em julgado, após a produção da prova, e após o acrescentamento à matéria de facto do facto 14 supra transcrito, o tribunal tinha estrita obrigação, imposta pelo disposto no artigo 388.º do Código Civil e pelo artigo 485.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, de determinar oficiosamente a realização da perícia, mesmo que nenhuma reclamação contra ela tivesse sido formulada;

b) Na verdade, a jurisprudência tem decidido que “enquadrando-se o objeto da perícia no âmbito da matéria em discussão da causa quanto à factualidade ainda não assente, relevante para o exame e decisão da causa, só pode a mesma ser indeferida se for impertinente ou dilatória” (cfr. acórdão da Relação do Porto de 21 de março de 2007, proc. 0635835,dgsi.net), e o artigo 485.º nº 4 do Código do Processo Civil refere que o juiz pode “determinar oficiosamente a prestação dos esclarecimentos ou aditamentos previstos” sem prejuízo de, como perito dos peritos, poder apreciar livremente a força probatória do arbitramento, sem que, porém possa apreciá-la arbitrária ou discricionariamente (cfr. os acórdãos da Relação de Évora de 18 de maio de 1989, BMJ 387,680 e de 6 de julho de 1993, BMJ 429,910).

c) as duas nulidades apontadas à sentença foram incorretamente decididas, quer no que respeita à que foi verificada, em julgamento póstumo, nos termos do artigo 665.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, mas indeferida, porque, pelo contrário a inspeção mostrava-se muito relevante para a julgadora se inteirar acerca do mérito da pretensão de serem criadas condições para o arbitramento, quer no que respeita à que não foi reconhecida, porque a justificação apresentada é verdadeiramente incompreensível, como aferirá quem ler o que acima se transcreve;

d) o acórdão recorrido errou duplamente ao alterar a decisão da 1ª instância quanto ao direito que os autores têm sobre a água, quer porque não podia deixar de os considerar proprietários da água, porque essa questão já estava decidida em 1ª instância e não foi objeto de recurso, quer porque não podia sequer sustentar que os primeiros réus eram donos de ½ da água (sem dizer quem era dono da outra metade), porque não foram alegados factos que justifiquem essa propriedade dos primeiros réus, nem por aquisição derivada nem por usucapião, quer porque se encontra registado sobre o prédio dos autores, como se demonstrou documentalmente, uma servidão de águas em benefício de terceiros, e não é possível constituir uma servidão sobre outra servidão, mas apenas uma servidão sobre um direito de propriedade;

e) do mesmo modo, o acórdão recorrido não podia pronunciar-se, como se pronunciou, mesmo que fosse, como foi, para manter a decisão recorrida, sobre a extinção da servidão, porque já em 1ª instância fora decidido, com trânsito em julgado porque nenhuma das partes recorreu dessa parcela da decisão, que a servidão não estava extinta.

6ª No requerimento probatório incorporado na petição inicial, os autores pediram a realização de prova por arbitramento com o objetivo de “comprovar o estado atual do sistema (…) as causas da inexistência da água (…) bem como para definir as medidas – e o seu custo – que em concreto se tornam necessárias para que a água dos autores volte a aceder aos seus prédios”, tendo a Exma. julgadora, no despacho saneador, sem se pronunciar sobre esse pedido dos autores, determinado a realização de uma perícia para a qual formulou quesitos (“qual o estado atual da mina e encanamentos; qual a causa da (in)existência da água no prédio dos autores; quais as obras realizadas no prédio dos réus que pudessem ter impedido a passagem da água e, na afirmativa, quais as medidas necessárias – e o seu custo – para que a água dos autores volte a aceder aos seus prédios”).

7ª O próprio tribunal, por iniciativa sua, sem se pronunciar sobre o requerimento, formulou quesitos, aos quais o perito designado não pôde responder, pelas razões que sucintamente referiu, e se transcrevem:

a) quanto ao “estado atual da mina e encanamentos”: “não foi possível aceder ao interior da mina por ausência de condições de segurança no poço de inspeção (2) e porque a mesma não é acessível a partir da caixa de visita (3)”

b) quanto à “possível causa de inexistência de água no prédio dos autores”, depois de referir em abstrato as causas possíveis, não pôde concluir por falta de acesso ao poço e mina, declarando que, a seu ver, necessário se tornava “que em primeiro lugar se faça uma inspeção neste troço de servidão, por uma equipa de prospeção habilitada a executar este tipo de trabalhos, com indicação dos avanços em termos de comprimento alcançado e registo vídeo em continuo”

c) quanto às “obras realizadas no prédio dos réus que pudessem ter impedido a passagem da água e, na afirmativa, quais as medidas necessárias e o seu custo, para que a água dos autores volte a aceder aos seus prédios”, o perito disse não poder responder senão depois de conhecer o resultado da solicitada prospeção.

8ª Apesar de esse conjunto de diligências ser solicitado ao juiz do processo, certo é que até à audiência de julgamento, nenhuma decisão mereceu, pelo que (cfr. a ata de audiência de julgamento de 14 de Maio de 2021), no início do julgamento, os autores pediram que o tribunal se pronunciasse sobre a diligência de prospeção recomendada pelo perito no relatório em causa, “após o que a Mm.a Juíza proferiu despacho remetendo para momento posterior à audição das testemunhas a decisão sobre a necessidade de tal diligência”.

9ª No entanto, após produção de parte da prova, com prestação de depoimentos de parte e das testemunhas dos autores, foi interrompida a audiência e designado o dia 2 de Julho de 2021 para continuação, com prestação de depoimentos das testemunhas indicadas pelos réus, mas surpreendentemente apareceu na ata um despacho a revogar aquele, do seguinte teor: “Atendendo ao requerimento agora apresentado e à prova produzida, entendo que a diligência, a realizar-se, deverá ser com o acordo de todas as partes, concedendo 5 (cinco) dias para se pronunciarem sobre o requerimento de prova representado pelos autores no início da presente audiência”.

10ª Os réus, assim convidados, responderam que não davam o seu assentimento à realização de nova ou complementar inspeção ou perícia, e os autores, notificados desse requerimento, para si surpreendente, pois tudo levava a crer que anuíssem ao complemento do arbitramento, ao qual não haviam declarado opor-se, fizeram um requerimento lembrando que o senhor perito afirmara no seu relatório que “não foi de todo possível por questões de segurança aceder ao fundo (…) para observação do estado da mina, quer para o lado da nascente (1) quer para o lado da caixa de visita (3)” e que, em consequência, recomendara que “se faça uma inspeção neste troço de servidão, por uma equipa de prospeção habilitada” para lhe permitir “futuramente” responder aos quesitos, lembrando ainda que já estava decidido que a decisão sobre essa matéria só seria tomada “em momento posterior à audição das testemunhas”, ou seja, após a conclusão dos depoimentos das testemunhas ainda não ouvidas.

11ª Foi então produzido o despacho de que se recorreu autonomamente, que viria a ser confirmado pela Relação e pelo Supremo, ou seja, com trânsito em julgado, no qual se consignou que “Como se referiu em sede de audiência, qualquer apuramento extra em sede de perícia, teria de ser acordado pelas partes, atendendo a que a perícia não tinha sido oportunamente objeto de qualquer reclamação e que a questão central da causa se coloca com a intervenção dos 1ºs réus na alteração da estrutura com a colocação do murete na mina”, pelo que “não existindo acordo das partes, nem entendendo oficiosamente o tribunal necessário o apuramento do estado daquele segmento – quer para o apuramento do direito à água, à servidão e à verificação do facto ilícito do 1º réu” pelo que foi indeferido o “requerido complemento da perícia”.

12ª O tribunal havia determinado a submissão a arbitramento, com formulação de vários quesitos, que entendeu necessário deverem ser respondidos, que exigiam vistoria da água, da mina e de encanamentos, tendo o perito declinado responder sem a realização prévia de trabalhos de campo que sugeriu, pelo que era de esperar que, não obstante essa decisão, pelo menos a sentença havia de se pronunciar sobre a necessidade desses trabalhos, com vista a completar a prova, em vez do que, apreciando apenas aspetos formais, decidiu que as diligências que o perito julgava necessárias só podiam ter lugar por acordo das partes – decisão, aliás, sem qualquer suporte legal, tão pouco invocado – o que só seria compreensível se o tribunal já estivesse esclarecido sobre a matéria mesmo sem essas diligências.

13ª Ao contrário do decidido no acórdão recorrido, numa ação como esta, designadamente atentas as reticências do perito, a inspeção do local era muito relevante, e devia ter sido deferida, o que importa reverter, decidindo e efetuando a inspeção requerida (art. 615.º nº 1 al. d) CPC), com a consequência de ser determinada a nulidade de todos os atos posteriores à sentença.

14ª No que respeita à matéria de facto, haviam sustentado os recorrentes, em cumprimento do disposto no art. 640.º nº 1 al. c) CPC, que devia ter sido dado por provado:

a) a descrição completa das diligências a que se refere por remissão o facto 14, uma vez que estas descrevem em pormenor as obras a realizar, independentemente de o seu custo ser esse ou outro, o que veio a ser atendido pelo acórdão recorrido;

b) mas também os seguintes dois factos, resultantes da discussão da causa e de documentos:

“15 A mina sempre teve água até à construção da vinha pelos primeiros réus”

“16 Os primeiros réus, ao procederem à construção da mina, instalaram na caixa de visita argolas circulares de betão compactas, que não deixam passar a água, e dois tubos com passador, um a nível superior, destinado à condução da água para o prédio dos autores, e outro a nível mais baixo, situado ao fundo da caixa, destinado à condução da água que serve o prédio dos primeiros réus”.

15ª Na verdade, os autores sustentaram a prova desses factos no que na própria sentença se escreveu, em relação ao depoimento de um filho dos primeiros réus, nas declarações confessórias de dois depoimentos de parte, transcritos nas suas alegações e também nos depoimentos das duas testemunhas, igualmente transcritos nessas alegações, bem como no relatório pericial, para o que:

a) transcreveram o afirmado na sentença, segundo o qual “o filho dos primeiros réus desceu à mina em 1986 e no verão pouca água corria” e confessou que “entre 1996/98 fizeram a vinha e onde estava um poço a céu aberto colocaram anilhas e tampa”;

b) transcreveram o teor do depoimento de parte do primeiro réu, de natureza confessória igualmente, que referiu (conforme consta da ata de gravação do julgamento, através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal, ficheiro ...53-2870583.wma - de 00:00:01 a 00:28:06, não se referindo aqui os depoimentos das testemunhas, não porque não fossem relevantes, mas porque o acórdão recorrido não considerou, vá lá saber-se porquê, que fossem credíveis, e essa decisão não é passível de reversão pelo STJ);

c) transcreveram o que consta do relatório do arbitramento, embora incompleto, a que se procedeu (designadamente no que respeita à obra efetuada pelos primeiros réus e à necessária oclusão que dela resulta para a passagem da água, quer por o tubo dos autores ter sido colocado num plano mais alto em relação ao dos primeiros réus, quer por o poço de visita onde a água devia cair ter sido anilhado até ao cimo, o que impede a entrada da água).

16ª Desse conjunto de meios de prova resulta inequivocamente provado, por referência aos elementos probatórios acabados de citar, que para além da discriminação que se sugere relativamente ao facto 14, de acordo com o depoimento prestado pelo seu próprio autor, impõe-se dar por provada também a matéria atrás indicada na conclusão 14ª, em parte por ela resultar de confissão do primeiro réu, e, por fim, dos factos constatados pela peritagem e que foram indevidamente ignorados.

17ª Embora o STJ julgue, em princípio, apenas da matéria de direito, tem competência para, nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do Código do Processo Civil, julgar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, sempre que, como no caso sucede, ocorrer ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, como no caso sucede, podendo fazê-lo por uma de duas vias: ou anulando diretamente a matéria de facto, ou, exercendo aquilo a que se vem chamando uma “discreta censura” ordenar a baixa dos autos à 2ª instância para aí serem de novo julgados nos pontos de facto viciados, o que se requer.

18ª No que respeita à matéria de direito, os autores contestaram a possibilidade de ter sido reconhecida aos primeiros réus a propriedade de metade da água reivindicada, porque as instâncias não podiam ter assim decidido, já que esses réus não invocaram qualquer forma de aquisição derivada (contrato, sucessão, acessão, usufruto, arrendamento, ou outra) quer porque nem sequer invocaram a aquisição por usucapião (que, de resto, seria impossível, uma vez que eles dizem que a água já não existe há cerca de 60 anos e por isso não podiam invocar atos de posse pelo menos por 15 ou 20 anos) do mesmo modo que tendo os autores direito de propriedade sobre a água (que não é, de facto, confundível com qualquer direito de servidão), não faz qualquer sentido dizer-se que a situação deve ser disciplinada pelo disposto nos artigos 1568.º nº 1 e 1567.º nº 1 CC, que respeitam a situações decorrentes de direitos de servidão, no caso só configuráveis em relação à servidão de aqueduto correspondente ao direito de transportar a água pelos prédios vizinhos.

19ª Pelo contrário, os autores sustentaram que, no caso concreto e para esse efeito é irrelevante discernir se o direito dos autores à água é de propriedade ou de servidão, ou se têm ou não uma servidão de aqueduto, porque o que importa estabelecer é se os primeiros réus, com a construção da sua vinha, causaram ou não danos ressarcíveis aos autores, quer em relação à água (propriedade) quer em relação ao transporte dela (aqueduto), e para isso apenas importava avaliar a repercussão dos factos naturalísticos e evidentes, a subsumir ao conceito de causalidade adequada: os autores tinham uma água, serviam-se dela, os primeiros réus fizeram obras na mina e alteraram o sistema que previamente existia, com a consequência de a água desaparecer dos tubos e canos.

20ª Ora, o artigo 563.º CC prescreve que a obrigação de indemnizar existe em relação aos danos que provavelmente o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão, o que tem sido interpretado pela jurisprudência como significando que esta norma adere à doutrina da causalidade adequada para a qual um facto é causa de um dano desde que no plano naturalístico seja condição sem a qual o dano não se teria verificado, em obediência também à doutrina daquilo a que se tem chamado a causa virtual, (cfr. os acórdãos do STJ de 02.03.1995, BMJ 445,445 e de 03.02.1999, Col. Jurisp. STJ 1999, I, pág. 73), sendo certo que a jurisprudência também tem entendido que “o facto será causa adequada do dano, sempre que este constitua uma consequência normal ou típica daquele” (cfr. acórdão do STJ 29.01.2002, JSTJ 00042358/ITIJ/net), o que parece indiscutível suceder, mesmo que se entenda que a perícia não deve, ou não precisa de ser concluída.».

Terminam pedindo a revogação do acórdão recorrido:

a) «julgando-se nulos todos os atos praticados a partir da produção da sentença e esta mesma, e determinando-se a baixa dos autos à 1ª instância, a fim de aí ser completado o arbitramento, começando pela realização dos elementos complementares de prova recomendados pelo perito, como condição de resposta aos quesitos que o próprio tribunal formulou, seguindo-se nova vistoria do local pelo perito, para completar o arbitramento e responder aos quesitos a que ainda não pôde responder;

b) quando assim se não entenda, deve

c) determinar-se a baixa dos autos à primeira instância para, em novo julgamento, se proceder à correção da matéria de facto nos termos preconizados e, em consequência, produzindo-se novo julgamento de direito;

d) quando nem isso se entenda,

e) julgar-se, desde já, a ação provada e procedente, nos precisos termos pedidos na petição inicial,

f) pagando os primeiros réus as custas do processo por lhe terem dado causa».

Não foram apresentadas contra-alegações.


3. Relativamente à admissibilidade da revista por via normal, importa apurar da verificação de dupla conforme entre as decisões das instâncias.

A sentença da 1.ª instância:

- Condenou os 1.ºs RR. a reconhecerem o direito de propriedade dos AA. sobre ½ da água em causa;

- Condenou todos os RR. a reconhecerem que o prédio dos AA. beneficia de servidão de aqueduto que onera, sucessivamente, os prédios dos RR.;

- Absolveu os RR. do restante peticionado.

Tendo os AA. apelado, o acórdão da Relação, declarando julgar o recurso parcialmente procedente e afirmando ser errónea a qualificação dos AA. como proprietários de ½ da água em causa:

- Indeferiu a requerida inspecção ao local;

- Manteve a condenação de todos os RR. a reconhecerem que o prédio dos AA. beneficia de servidão de aqueduto;

- Absolveu os 1.ºs RR. do restante peticionado.

Importa distinguir entre a decisão de indeferimento da inspecção ao local, que é uma decisão preliminar em matéria de diligências probatórias, e o demais.

A primeira decisão, atenta a natureza interlocutória da mesma (cfr. art. 671.º, n.º 1, do CPC), assim como a não invocação de qualquer das situações especiais previstas no n.º 2 deste mesmo art. 671.º, não admite recurso de revista.

Quanto ao mais, verifica-se que a 1.ª instância reconheceu aos AA. o direito de propriedade sobre 50% da água da nascente em causa, assim como reconheceu beneficiar o prédio dos AA. de servidão de aqueduto que onera os prédios dos RR., e absolveu estes do demais peticionado; enquanto a Relação, considerando serem aqueles direitos (direito de propriedade sobre a água e servidão de aqueduto) incompatíveis entre si, alterou a decisão, reconhecendo apenas a existência do segundo direito.

Estando em causa objectos processuais – apurar da existência de direito de propriedade dos AA. sobre as águas da nascente e averiguar se que o prédio dos AA. beneficia de servidão de aqueduto – que, nas circunstâncias dos autos, se apresentam como indissociáveis, dúvidas não subsistem de que a alteração da decisão condenatória pela Relação afasta a verificação de dupla conforme enquanto obstáculo à admissibilidade do recurso.

 Conclui-se, assim, que, excepto no que se refere à decisão de indeferimento da inspecção ao local, o presente recurso é admissível ao abrigo do regime do n.º 1 do art. 671.º do CPC.


4. Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção do acórdão da Relação):

1. Encontram-se registados a favor dos autores os seguintes prédios, sitos na freguesia ... deste concelho ...:

a) ..., situada no Lugar ..., da freguesia ..., deste concelho ..., constituída por casa de r/c e andar, terreno de horta, ..., terreno de lavradio, ... no ..., terrenos de mato, a confrontar de Norte com a Rua ..., ..., e KK, de Sul e Poente com LL, e de Nascente com outros prédios dos autores, inscrita na matriz urbana sobre os artigos ...21..., ...68... e ...04º e na rústica sobre os artigos ...2º e ...66º, que correspondem na antiga matriz aos artigos ...21º urbano e ...66º rústico, e descritos na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o nº 25/19..., por os terem adquirido por compra, levada ao registo predial em 11 de agosto de 1986.

b) Prédio misto, situado no mesmo lugar e freguesia, constituído por casa de cave e r/c, dependência e logradouro, com terreno de cultura arvense, vinha e eucaliptal, a confrontar de Norte e Poente com a ..., já referida, de Sul com LL e de Nascente com caminho de servidão e KK, inscrito na matriz sob os artigos ...04º urbano e ...2º rústico, descritos na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o n.º 381/20....

c) Prédio urbano, de r/c, dependência e quintal, a confrontar de Norte com caminho público e a ..., dos autores, de Nascente com caminho de servidão, de Sul com II, de Poente com a ..., sita no mesmo lugar e freguesia, inscrita na matriz urbana sob o artigo ...68º e descrita atualmente na Conservatória do Registo Predial sob o número 326/20....

2. Os primeiros réus CC e mulher DD são donos e possuidores de um prédio misto, que se desenvolve dos dois lados da Rua ..., sito no mesmo lugar, que se compõe de casa de r/c e em parte ... Andar, dependência e logradouro, tendo um armazém no r/c destinado a atividades económicas, um logradouro no exterior, e do lado oposto da Rua, os campos da Casa e da ..., a ... e da ..., a confrontar de Nascente com a ..., de ... com a ... e do Norte com o ..., situada no Lugar ..., da freguesia ..., deste concelho inscrito na matriz urbana sob os artigos ...82... e ...80º e na rústica sob o artigo 60º e descrita na Conservatória do Registo Predial atualmente sob o número 220/19..., por aquisição através de partilha a 1982/03/29.

3. Os segundos réus EE e mulher FF são donos e possuidores de um prédio urbano situado ainda no mesmo Lugar, no ... ou ..., da freguesia ..., deste concelho, composto de casa de cave, r/c e logradouro, a confrontar de Norte com MM, de Sul com caminho público, de Nascente com NN, e de poente com GG, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...83º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 329/20..., por aquisição registada em 2002.

4. Os réus GG e mulher HH, por sua vez, são donos e possuidores de um prédio urbano sito no mesmo lugar e freguesia, composto de casa, de cave, r/c e logradouro a confrontar de Norte com MM e a ..., já citada, de Sul com caminho público, de Nascente com NN e de Poente com GG, inscrito na matriz urbana sob o artigo ...45º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 180/19..., por aquisição registada em 2000.

5. Os quartos réus II e mulher JJ são donos e possuidores de um prédio urbano, sito também no mesmo Lugar ... ou

Lugar ..., Rua ..., ..., na freguesia ..., já referida, composto de r/c e ... Andar, frações autónomas ... e ..., anexo e logradouro, inscrito na matriz urbana sob o artigo ...07º e descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o número 389/20..., por aquisição registada em 2003.

6. No identificado prédio dos 1º réus, mais a norte, próximo da zona da estrada municipal que liga ... a ..., actualmente denominada Rua ..., existe uma mina subterrânea com uma nascente de água, que segue, no sentido norte-sul, primeiro no subsolo do prédio dos 1º réus, onde dispõe de duas caixas de visita e limpeza implantadas no solo.

7. Na segunda das referidas caixas de visita, há mais de 90 anos, os avós de autores e 1º Réus dividiram a água, seguindo, por um lado, encanada para um tanque que se situa na zona nascente da propriedade dos primeiros réus e, por outro, seguindo encanada, até próximo do limite sul do prédio desses 1º réus, em tubo de ferro de ¾ de polegada,

8. Seguindo para sul, entrando no prédio referido dos 2º réus, e depois entra no prédio pertencente aos 3º réus, seguindo, sempre para sul, e após cruza transversalmente a Rua ..., para o prédio pertencente aos 4º réus, de onde entra no prédio dos autores, onde era recolhida num tanque e aí aproveitada para fins habitacionais e agrícolas, designadamente nos identificados prédios dos autores.

9. Estes elementos, a referida mina e, após ela, o tubo condutor da água que põe em comunicação os terrenos mais a norte e em ponto mais alto, até à casa de habitação dos autores, situada a de 350 metros mais para sul, existiam há mais de 90 anos.

10. Os autores e antepossuidores dos prédios há mais de 90 anos usufruíam da água, na convicção de estarem a exercer um direito próprio, à vista de toda a gente, e sem oposição de ninguém.

11. Esta nascente foi dando cada vez menos água, tendo sido substituída por furos e poços de captação de água abertos nas propriedades, não havendo limpeza regular há mais de 40 anos.

12. Por volta de 1996, os 1ºs réus disseram ao autor que iam fazer obras na mina, uma vez que pretendiam proceder no local à construção de uma vinha, alterando o sistema de forma a tapar o poço, que aceitou, tendo sido mais enterrados pelos autores os tubos que seguiam para a sua propriedade.

13. Em 2002, quando os 2ºs réus começaram a construção do seu prédio, os autores solicitaram a autorização para colocação de novo tubo, tendo sido os antigos destruídos por estarem degradados e podres, ficando os novos sem qualquer ligação nessa altura.

14. Os autores, em 2018, chamaram um técnico que considerou que, para assegurar o restabelecimento da condução da água para o prédio dos autores, é necessário verificar o estado da mina e dos encanamentos, designadamente é necessário:

a) abrir uma entrada para a mina durante as obras;

b) proceder à instalação de um tubo novo até à mina;

c) destruir o murete referido;

d) limpar o excesso de terra, vegetação e areia do interior da mina, ao longo de pelo menos 100 metros;

e) reconstruir, se necessário as partes das galerias da mina onde cresceu vegetação;

f) abrir valas para colocação de tubos atravessado todas as propriedades dos réus numa extensão de cerca de 350 metros até ao tanque dos autores;

g) colocar e assentar o tubo com caimento a jusante, por forma a facilitar o correr da água e reduzir os riscos de posteriores estrangulamentos;

h) construir caixas de visita ao longo do percurso.

Não se provaram quaisquer outros factos não transcritos ou com estes em contradição, designadamente que:

15. A mina sempre teve água abundante até à realização das obras pelos 1ºs réus;

16. Que a nascente tem água abundante;

17. Que o 1º réu marido, ao fazer as obras, tapou a zona da base da mina com um murete há cerca de 10 anos, que ficou a impedir em definitivo o acesso da água ao tubo que segue para os autores;

18. Que já não existe água desde 1960, tendo secado de vez a nascente, por altura da construção da nova estrada.


5. Tendo presente o decidido supra, no ponto 3. do presente acórdão, o recurso tem como objecto as seguintes questões:

- Erro da decisão sobre a não realização das diligências complementares à prova pericial;

- Erro na apreciação da impugnação da matéria de facto;

- Da propriedade das águas e da existência de reformatio in pejus;

- Da ofensa do caso julgado ao conhecer da existência de servidão de aqueduto;

- De qualquer forma, condenação dos 1.ºs RR. nos termos peticionados (isto é, «a reporem a situação anterior às obras de construção da vinha que realizaram no local, por forma a assegurar o completo e irrestrito trânsito da água pelo seu prédio, repondo a mina e a canalização no estado anterior, esta em toda a extensão que for necessária até ao prédio dos AA., isto é, também pelos prédios dos demais réus»).


6. Relativamente ao erro da decisão sobre a não realização das diligências complementares à prova pericial, alegam os Recorrente o seguinte: «embora em recurso autónomo tivesse sido decidido que o tribunal não tinha que se pronunciar senão a requerimento dos autores e em termos de reclamação, sobre as diligências prévias pedidas pelo perito, e essa decisão tivesse transitado em julgado, após a produção da prova, e após o acrescentamento à matéria de facto do facto 14 supra transcrito, o tribunal tinha estrita obrigação, imposta pelo disposto no artigo 388.º do Código Civil e pelo artigo 485.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, de determinar oficiosamente a realização da perícia, mesmo que nenhuma reclamação contra ela tivesse sido formulada».

Vejamos.

Os AA. recorreram do despacho do Juiz da 1.ª instância, proferido em 26.05.2021, com o seguinte teor:

«Como se referiu em sede de audiência qualquer apuramento extra em sede de perícia, teria de ser acordado pelas partes, atendendo que a perícia não tinha sido oportunamente objeto de qualquer reclamação e que a questão central da causa se coloca com a intervenção dos 1.ºs Réus na alteração da estrutura, com a colocação do murete na mina.

Assim, não existindo acordo das partes, nem entendendo oficiosamente o Tribunal necessário o apuramento do estado daquele segmento – quer para o apuramento do direito à água, à servidão e à verificação do facto ilícito imputado ao 1.º Réu – indefiro o requerido complemento da perícia.».

Este despacho que foi objecto de recurso em separado, foi mantido por acórdão da Relação de Guimarães, datado de 23.09.2021, e confirmado por acórdão deste Supremo Tribunal de 09.12.2021, transitado em julgado.

Como se afirmou, vêm agora os Recorrentes invocar que, embora em recurso autónomo tivesse sido decidido que o tribunal não tinha que se pronunciar senão a requerimento dos AA. e em termos de reclamação sobre as diligências prévias pedidas pelo perito, e essa decisão tivesse transitado em julgado, após a reapreciação da prova, e após o aditamento à matéria de facto do facto 14. supra transcrito, o tribunal (no caso, o Tribunal da Relação) tinha obrigação, imposta pelo disposto no artigo 388.º do Código Civil e pelo artigo 485.º, n.º 4, do CPC de determinar oficiosamente a realização da perícia.

Cumpre dizer, desde já, que o despacho em referência já transitou e formou caso julgado sobre o complemento/renovação da perícia.

Ora, a alteração operada no acórdão recorrido relativamente ao facto 14. foi, apenas e tão-só, a de fazer constar do facto provado o teor do documento para o qual o facto 14. remetia. Ou seja, não ocorreu qualquer alteração efectiva ao teor do facto provado 14., que permitisse qualquer apreciação para além da que é imposta pelo respeito pelo caso julgado formal que se produziu através do trânsito em julgado do despacho que indeferiu o complemento da perícia.

Sempre se dirá que, ainda que assim não fosse – isto é, ainda que, porventura, a alteração do teor do facto 14. tivesse sido de conteúdo e não apenas de forma – sempre a decisão das instâncias seria de manter, uma vez que a não sindicabilidade pelo Supremo Tribunal de Justiça da decisão sobre a matéria de facto (cfr. arts. 640.º, n.º 4, 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC) abrange também a decisão sobre os meios de prova produzidos/a produzir, salvo nas hipóteses excepcionais previstas na parte final do dito n.º 3 do art. 674.º (ofensa de disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova), hipóteses que aqui não se verificam.

Improcede, pois, nesta parte, a pretensão dos Recorrentes.


7. Relativamente à questão do invocado erro na apreciação da impugnação da matéria de facto, alegam os Recorrentes que, em cumprimento do disposto no art. 640.º, n.º 1, alínea c), do CPC, em sede de apelação requereram que se desse como provado, com base na confissão do 1.º R. e no relatório pericial, que transcreveram nessas alegações, os seguintes factos:

“15 A mina sempre teve água até à construção da vinha pelos primeiros réus.”

“16 Os primeiros réus, ao procederem à construção da mina, instalaram na caixa de visita argolas circulares de betão compactas, que não deixam passar a água, e dois tubos com passador, um a nível superior, destinado à condução da água para o prédio dos autores, e outro a nível mais baixo, situado ao fundo da caixa, destinado à condução da água que serve o prédio dos primeiros réus”.

Como se afirmou já anteriormente, por força do disposto nos arts. 640.º, n.º 4, 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC, o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode apreciar e alterar a decisão relativa à matéria de facto nas situações em que haja ofensa de uma disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova.

No caso dos autos, ao apreciar a impugnação da matéria de facto pelos apelantes, o acórdão recorrido entendeu manter os factos dados como não provados e não aditar à factualidade provada os factos indicados pelos AA., com base na seguinte motivação:

«O depoimento da testemunha dos autores OO é irrelevante na medida que o seu pouco conhecimento se reporta ao ano de 2018 (e não ao momento de construção da vinha pelo 1º réu no ano de 1996) e conforme referiu, e resulta do documento por si subscrito e junto como doc. nº 21 com a p.i., este é uma mera estimativa uma vez que não teve acesso à nascente, nem à mina.

Não mereceu credibilidade o depoimento da testemunha dos autores PP uma vez que, primeiro afirmou que tinha saído do local em causa há cerca de 6 anos e que nesse momento ainda havia água no tanque existente na propriedade do autor, e depois que só aí há uns 10 anos é que o 1º réu impediu o acesso à água….

As referências que a testemunha dos autores AA fez à existência da água no referido tanto reportam-se a cerca de 55 anos atrás e as da testemunha dos réus QQ há cerca de 40 anos.

Das declarações do 1º réu e da testemunha RR, filho daquele, resulta que, aquando da construção da vinha, por volta de 1996, ainda havia um pouco de água na mina no inverno, daí que o primeiro tenha conversado com o autor (também com vista a que este suportasse parte das despesas), tenha substituído e enterrado tubos para a eventualidade de passar a haver água com abundância e feito um poço de argolas de cimento onde a água seria dividida e colocado um tubo desde este poço até à extrema da propriedade com os 2º réus. A este propósito é o próprio autor, numas declarações que divergem do referido na petição (!), que refere expressamente que depois da construção da vinha a água voltou a correr.

As declarações do 4º réu não mereceram credibilidade uma vez que foi peremptório em afirmar que até 2003 iam buscar água à propriedade do autor, mas das declarações da testemunha SS, pai da 2ª ré, que merecem credibilidade, resulta que, quando esta iniciou a construção da sua moradia (2001/2002), apareceram bocados de tubo de ferro, mas sem vestígios de água, pelo que o referido pelo primeiro não poderia ter acontecido. Acresce que esta testemunha referiu que, nessa altura, o autor pediu àquela a colocação de um tubo para “tentar reverter a água”.

Assim, do conjunto da prova produzida resulta que antigamente havia água em abundância que vinha pelos prédios dos réus até ao tanque existente na propriedade que agora é dos autores; que na data da construção da vinha apenas havia na mina alguma pouca água no inverno, daí a colocação de tubagem e construção do caixa de visita; essa pouca água manteve-se depois disto; e que, pelo menos por volta do ano de 2002, altura do início da construção da moradia da 2ª ré, tal conduta de água estava, além do mais, interrompida no prédio desta.

Por outro lado, não se provou qualquer conduta da parte dos 1º réus que tivesse impedido a passagem da água antes desta data na caixa de visita/ “segundo poço”, quer através da tapagem da zona da base da mina com um murete, quer com a instalação nessa caixa de argolas circulares de betão compactas que não deixam passar a água.

Da perícia resulta com clareza que, no primeiro poço existente na propriedade dos 1º réus, não havia água; que a água estagnada existente no segundo poço seria produto da acumulação da água da chuva e que a tubagem aí existente não debitava qualquer caudal.».

Reitera-se que a apreciação da prova testemunhal, dos depoimentos e declarações de parte, bem como da prova documental e pericial, se encontra sujeita ao princípio da livre apreciação da prova, pelo que tal apreciação não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista. Cfr., neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 13.10.2020 (proc. n.º 12521/14.3T8LSB.L1.S1), de 23.02.2021 (proc. n.º 1206/06.4TVPRT.P2.S1), de 02.06.2021 (proc. n.º 1281/12.2TBMCN.P2.S1) e de 06.07.2021 (proc. n.º 20954/15.1T8LSB.L1.S1), todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Importa ainda considerar a alegação dos Recorrentes segundo a qual existe confissão do 1.º R. que não foi atendida.

Devidamente compulsados os autos, em concreto as actas de audiência de julgamento, com datas de 14.05.2021 e 02.07.2021, verifica-se que, apesar de o 1.º R. ter sido ouvido em depoimento de parte, não resultou em assentada qualquer parte desse seu depoimento. Ora, de acordo com o previsto no art. 358.º, n.º 1, do Código Civil, e no art. 463.º, n.º 1, do CPC, é pressuposto formal da força probatória plena da confissão a conversão em assentada na acta de audiência judicial do teor de declaração confessória da parte. Cfr. neste sentido, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 11.07.2019 (proc. n.º 639/13.4TBOAZ.P1.S2) e de 13.04.2021 (proc. n.º 2029/18.3T8LRA.C1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.

Desta forma, não estando vertida em acta qualquer declaração confessória do 1.º R., o seu depoimento de parte encontra-se sujeito à livre apreciação da prova e, como tal não, é susceptível de sindicância pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Improcede, também nesta parte, a pretensão dos Recorrentes.


8. Quanto à questão da decisão sobre a propriedade das águas e da existência de reformatio in pejus, importa, antes de mais, referir que apenas os AA. recorreram em sede de apelação, tendo, em termos de matéria de direito, restringido o recurso à questão da sua alegada propriedade exclusiva das águas e à condenação dos 1.ºs RR. a reporem a situação anterior às obras de construção da vinha que realizaram no local.

Não obstante a delimitação objectiva do recurso de apelação operada pelos AA. (cfr. art. 635.º, n.ºs 2 e 4, do CPC), o acórdão recorrido, quanto a esta parte, entendeu que, «quanto à qualificação do direito dos autores à água, da matéria de facto dada como provada não resulta, de modo algum, que o seu direito seja de propriedade exclusiva ou mesmo de compropriedade, mas antes de servidão».

A proibição da reformatio in pejus encontra-se consagrada no n.º 5 do referido art. 635.º do CPC:

«Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo.».

Deste modo, tendo os AA. recorrido do segmento decisório respeitante à propriedade das águas, que condenou os 1.ºs RR. a reconhecerem os AA. enquanto proprietários de ½ da água, pugnando para que a Relação entendesse que as águas são sua propriedade exclusiva, e não tendo os 1.ºs RR. apelado da sentença nem contra-alegado, dúvidas não subsistem de que a Relação estava impedida de, como fez, modificar a decisão em termos mais desfavoráveis aos apelantes.

Temos pois que, nesta parte, o presente recurso dos AA. deve proceder, revogando-se o acórdão recorrido naquilo que incindiu sobre a propriedade das águas e sendo reposta a sentença de 1.ª instância que condenou «os 1.os Réus CC e DD a reconhecerem o direito de propriedade dos Autores AA e BB sobre ½ da água que nasce no limite norte do prédio daqueles referido supra em 2) dos factos provados e que segue, no sentido norte-sul, até uma caixa onde é dividida.».


9. Quanto à questão da invocada ofensa do caso julgado ao ter o acórdão recorrido apreciado a questão da extinção da servidão de aqueduto pelo não uso.

Vejamos.

No recurso de apelação, os AA. não colocaram em causa a existência da servidão de aqueduto nos termos definidos pela 1.ª instância, tendo antes impugnado a decisão de compropriedade das águas, pugnando pela sua propriedade exclusiva, e, bem assim, pela condenação dos 1.ºs RR. a reporem a situação anterior às obras que levaram a cabo (cfr. ponto 10 das conclusões do recurso de apelação).

Como referido no ponto anterior do presente acórdão, a delimitação objectiva do recurso e a não impugnação da decisão relativa a determinada questão, como no caso ocorreu, implica, nos termos do n.º 5 do art. 635.º do CPC, que, nessa parte, se tenha verificado caso julgado formal e que o tribunal ad quem fique impedido de se pronunciar sobre essa matéria, ainda que o faça de modo idêntico à 1.ª instância. Cfr., neste sentido, entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 22.02.2017 (proc. n.º 811/10.9TBBJA.E1.S1), in www.dgsi.pt, e de 23.04.2020 (proc. n.º 1776/16.9T8EVR.E1.S1), in www.jurispridencia.csm.org.pt.

Contudo, no caso concreto, mostra-se inteiramente inconsequente a pronúncia sobre tal questão pelo acórdão recorrido, razão pela qual se conclui ser desnecessário revogar ou alterar, nesta parte, o decidido no mesmo acórdão.


10. Por último, importa apreciar a questão da pretendida condenação dos 1.ºs RR. nos termos peticionados (isto é, «a reporem a situação anterior às obras de construção da vinha que realizaram no local, por forma a assegurar o completo e irrestrito trânsito da água pelo seu prédio, repondo a mina e a canalização no estado anterior, esta em toda a extensão que for necessária até ao prédio dos AA., isto é, também pelos prédios dos demais réus»).

Tendo improcedido as pretensões dos Recorrentes relativas à decisão da matéria de facto e aos meios de prova produzidos, e tendo sido dado como não provado que «A mina sempre teve água abundante até à realização das obras pelos 1ºs réus», «Que a nascente tem água abundante» e «Que o 1º réu marido, ao fazer as obras, tapou a zona da base da mina com um murete há cerca de 10 anos, que ficou a impedir em definitivo o acesso da água ao tubo que segue para os autores», não merece censura a decisão do acórdão recorrido de manter a decisão de improcedência do pedido de condenação dos 1.ºs RR. a reporem a situação anterior às obras por estes realizadas na sua vinha.


11. Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, decidindo-se:

a) Revogar o acórdão recorrido na parte que incindiu sobre a propriedade das águas, sendo repristinada a sentença de 1.ª instância que condenou «os 1.os Réus CC e DD a reconhecerem o direito de propriedade dos Autores AA e BB sobre ½ da água que nasce no limite norte do prédio daqueles referido supra em 2) dos factos provados e que segue, no sentido norte-sul, até uma caixa onde é dividida»;

b) No mais, manter a decisão do acórdão recorrido.

Custas da acção na proporção de 3/6 para os autores, 2/6 para todos os réus e 1/6 para os 1.ºs réus.

Custas da apelação e da revista na proporção de 2/3 para os autores e 1/3 para os 1.ºs réus.


Lisboa, 23 de Junho de 2022


Maria da Graça Trigo (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira