Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A3169ver acórdão T REL
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LOPES PINTO
Descritores: TÍTULO AO PORTADOR
PRESCRIÇÃO
PRAZO
Nº do Documento: SJ200511080031691
Data do Acordão: 11/08/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 3850/05
Data: 05/05/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I - Fundamento específico da prescrição é a negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período legalmente estabelecido, a qual faz presumir ou a renúncia ao direito ou, pelo menos, torna aquele indigno de protecção jurídica, a inércia negligente.
II - Ninguém pode exercer um direito que não conhece ter, que não sabe que lhe assiste.Se o desconhece e o prazo se escoou não se pode verdadeiramente falar de inércia (há apenas decurso dum lapso de tempo) e, menos ainda, de negligência, sendo que pela prescrição se sanciona a inércia negligente do titular do direito.
III - Não pode dizer-se que haja negligência da parte do titular dum direito em exercitá-lo enquanto ele o não pode fazer valer por causas objectivas, isto é, inerentes à condição do mesmo direito e na hipótese de o direito já ser exercitável, só pode ser impedido por motivos excepcionais, que são as causas suspensivas da prescrição.
IV - As expressões «conhecimento do direito que lhe compete» (CC 482 e 498-1) e ‘poder o direito ser exercido’ (CC 306,1) traduzem o mesmo princípio que informa o instituto da prescrição, que aí se afasta do da caducidade.
V - Dispondo o art. 7 do dec-lei 172-B/86, de 30.06 que ‘por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem ... (nº1) e que ‘findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição’ (nº 2), a contagem do prazo prescricional só se inicia com o conhecimento da morte do titular (facto neutro) e de que ele era titular de certificados de aforro.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"A", B, C, D e E propuseram acção contra Instituto F a fim de o réu os reembolsar, porque únicos herdeiros - já habilitados - de A, do valor dos certificados de aforro subscritos por G, falecido em 88.03.11, pai das rés e casado em primeiras núpcias com esta, a qual, por sua vez, casou, em segundas núpcias, com o autor e falecida em 99.02.26, valor acrescido de juros de mora desde a citação; subsidiariamente, os reembolsar de metade desse valor, por ser a meação de A, acrescido de juros de mora desde a citação.
Contestando, o réu excepcionou a incompetência relativa do tribunal, atribuindo-a à comarca de Lisboa, e, reconhecendo dever o valor correspondente à meação (embora divergindo quanto ao valor unitário dos certificados de aforro), a prescrição quanto ao restante.
Após réplica e remetido o processo ao tribunal competente, receberam os autores o que o réu reconhecia dever, tendo o processo prosseguido pelo restante e ainda por € 288,88 reclamados pelos autores relativos a juros de mora caídos desde a propositura da acção até ao pagamento efectuado, valor a que acrescem juros de mora vencidos e vincendos.
Prosseguindo até final, por ter procedido a excepção da prescrição foi o réu absolvido do pedido por sentença que a Relação confirmou.
Inconformados de novo, pediram revista, concluindo, em suma e no essencial em suas alegações -
- porque a prescrição visa sancionar a indiferença manifestada pelo titular e estabilizar as relações jurídicas não estabelecidas não pode ser sancionado o titular desconhecedor de ter o direito,

- só começando a correr o prazo prescricional após o conhecimento e possibilidade do exercício do direito, o que directamente resulta do art. 306 e também por equiparação com o art. 498 CC;
- o disposto no dec-lei 172-B/86 estipula um prazo aplicável desde que verificada e, se assim não for, está-se perante a aplicação do regime geral da prescrição, nomeadamente quanto ao início da contagem do prazo,
- e, se assim não fosse, sempre o prazo se suspenderia por força da impossibilidade de fazer valer o direito, como resulta do art. 321 CC;
- provou-se que os autores só em 2.000 se aperceberam da existência dos certificados de aforro e que, encontrados, logo trataram de comunicar a sua existência e solicitar o seu reembolso;
- sobre o valor pago, em consequência de ordem do tribunal, pelo réu, correspondente à meação, acrescem juros de mora vencidos desde a interpelação decorrente da citação até esse momento, no montante de € 288,88, e vincendos;
- violados os preceitos indicados e ainda o disposto nos arts. 805 e 806 CC.
Contraalegando, o réu defendeu a confirmação do acórdão.
Colhidos os vistos.

Ao abrigo do disposto nos arts. 713-6 e 726 CPC remete-se para o acórdão recorrido a descrição da matéria de facto.

Decidindo: -

1.- Apenas duas as questões a resolver - prescrição (nas vertentes da lei aplicável e do início d contagem do prazo) e juros de mora sobre a quantia paga (a correspondente à meação de A).
Para decidir uma e outra, apenas importa o que consta do relatório.

2.- Aplicável o disposto no art. 7 do dec-lei 172-B/86, de 30.06 -
‘Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem ... (nº1); ‘findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição’ (nº 2).
Não ofereceu dúvidas quer às partes quer às instâncias, disporem estas normas sobre a prescrição e não sobre a caducidade, o que também se nos afigura correcto.
Defendem os autores que, por o art. 306 CC sobre a prescrição, instituto que sanciona a inércia negligente do titular do direito, a contagem do prazo se inicia com o conhecimento do direito que lhes assiste e não, como na caducidade, a partir do facto que lhe dá origem.
Argumentam ainda com uma interpretação integrada pelo disposto nos arts. 482 (para o instituto do enriquecimento sem causa) e 498 n. 1 CC (para a responsabilidade civil extra-contratual), e, subsidiariamente, no art. 321 n. 1 CC (porque, sem culpa sua, desconheciam a existência do direito que lhes assistia, estavam impedidos de o exercer, o que gera a suspensão da prescrição).
Para o réu, o legislador concebeu a regra relativa à prescrição (art. 7) como operando em termos objectivos, pelo que constitui um desvio ao regime geral da prescrição plasmado no art. 306 CC (cont. 13 e 14); assim, os direitos à, por via sucessória, emissão de novos certificados de aforro ou ao seu levantamento, prescreveram em 93.03.11 (cont. 12 e 27).
A sentença considerou que, face ao elemento literal (CC 9,1), é a morte do aforrista que marca o momento a partir do qual o prazo prescricional se conta, irrelevando o desconhecimento dos herdeiros quanto à existência dos certificados de aforro quer nesse momento quer até ao momento em que foram encontrados (fls. 104).
Por seu turno, a Relação, embora considerando aplicável o disposto no art. 306 n. 1 CC, alcançou a mesma solução por afastar a interpretação ‘integrada’ e por o conhecimento que releva para o art. 498 n. 1 CC ser o dos danos sofridos e indemnizáveis, devidos por conduta ilícita, o que não sucede com aquele art. 7 em que o momento relevante é o da morte do aforrista (fls. 139).

3.- Desde tempos bem recuados que a doutrina indica como fundamento específico da prescrição a negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período legalmente estabelecido, a qual faz presumir ou a renúncia ao direito ou, pelo menos, torna aquele indigno de protecção jurídica (vd., por todos, M. de Andrade in Teoria Geral da Rel. Jur. II/445-446), a inércia negligente.
Considerações de certeza ou segurança jurídica (estas, para a prescrição, assumem-se num plano secundário enquanto já para a caducidade a necessidade da certeza jurídica é fundamento específico (aut. e op. cits., 446 e 464) e razões relativas ao devedor (protecção para a dificuldade da prova e consolidação das situações de facto que perduraram no tempo e sobre as quais se criaram expectativas e se organizaram planos de vida) são também invocadas.
Como refere aquele autor, o instituto da prescrição não é justo, mas coonesta-se com razões de convivência ou oportunidade - as razões de justiça só o justificam como motivo de defesa do devedor e não como causa de extinção das obrigações.
O fundamento básico da prescrição centra-se, portanto, mais no próprio devedor que em valores de ordem geral.

4.- O citado art. 7 não afasta a aplicabilidade do regime geral da prescrição, antes para ele remete na parte final do seu nº 2. A especificidade da disposição reside no estabelecimento dum prazo curto da prescrição (note-se, porque o art. 3-1 do dec.lei 172-B/86 apenas admite a transmissibilidade por morte, não havia que considerar outro facto como início da contagem do prazo) e na indicação do destino a dar ao valor dos reembolsos que pelos titulares do direito não foram exercitados.
Aplicável, por expressa remessa, o regime geral da prescrição e, como tal, o disposto no art. 306 n. 1 CC.

5.- Entre a redacção do nº 1 do art. 306 e a dos arts. 482 e 498-1 CC relativamente ao momento inicial da contagem do prazo prescrição há diferença de linguagem. Importa saber se é a mesma solução que em todas se consagra ou se é significativa, se estas últimas constituem desvio ao regime geral - «... começa a correr quando o direito puder ser exercido ...» (art. 306 1); «... a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, ...» (art. 482); «... a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, ...» (art. 498-1).
Comum às 3 disposições que a prescrição só pode ter lugar quando o direito está em condições de o seu titular poder exercitá-lo.
Uma primeira leitura alerta para a diferença que consiste em colocar a tónica no direito apenas (prima facie, parece ser esta a leitura do nº1 do art. 306) ou em a colocar ainda no conhecimento do direito pelo titular do direito (resulta da literalidade dos arts. 482 e 498-1, sem prejuízo de o primeiro prescindir ainda do conhecimento do responsável). Observe-se ainda que o regime resultante destas duas últimas normas não foi estendido às outras prescrições de curto prazo nem a ratio destas implica que se deva, sem mais, generalizá-lo - estão submetidas ao regime geral embora com a especialidade relativa ao prazo e é esse que importa conhecer.
Daí que, como ensina aquele autor (a circunstância de o fazer em relação ao CCSeabra não altera o ensinamento face ao regime do CC66), que não possa ‘dizer-se que haja negligência da parte do titular dum direito em exercitá-lo enquanto ele o não pode fazer valer por causas objectivas, isto é, inerentes à condição do mesmo direito’ e que, ‘na hipótese de o direito já ser exercitável, só pode ser impedido por motivos excepcionais, que são as causas suspensivas da prescrição’ (p. 449).
A análise das outras duas disposições - arts. 482 e 498-1 CC - permite observar que só aparentemente se afastaram do consignado no art. 306-1 - no primeiro exige-se ainda o conhecimento do responsável, enquanto para o segundo se prescinde deste conhecimento bem como o da extensão integral dos danos.
As expressões «conhecimento do direito que lhe compete» (CC- 482 e 498-1) e ‘poder o direito ser exercido’ (CC- 306,1) traduzem o mesmo princípio que informa o instituto da prescrição, que aí se afasta do da caducidade. A exigência do conhecimento da existência e titularidade do direito satisfaz o pressuposto de o direito poder ser exigido (CC- 306,1) - independentemente de saber se este pode ficar ou não satisfeito por outros factos -, com o que, relativamente àquela exigência, o disposto nos arts. 482 e 498-1 CC está em consonância.
O facto que permite desencadear o instituto da prescrição é, em si, neutro.
Ninguém pode exercer um direito que não conhece ter, que não sabe que lhe assiste.
Se, desconhecendo-o, o prazo se escoou não se pode verdadeiramente falar de inércia (há apenas decurso de um lapso de tempo) e, menos ainda, de negligência, sendo que pela prescrição se sanciona a inércia negligente do titular do direito.
Por outras palavras e reportando-nos directamente à situação de facto colocada nesta acção - os direitos que o nº 1 reconhece (à emissão de novos certificados ou ao seu levantamento) eram exercitáveis desde a morte do subscritor dos certificados de aforro.
Logo à partida, pressupõe isto conhecerem os herdeiros a existência da subscrição de certificados de aforro pelo de cujus. Só assim, tomam conhecimento que, pela sua morte, ficam titulares daqueles direitos conferidos pelo art. 7-1 do dec-lei 172-B/86.
O facto «morte do subscritor» é, em si, neutro, nada lhes diz relativamente à existência da subscrição de certificados de aforro pelo de cujus. Mas, se conjugados e conhecidos, deixam de ser inócuos -facultam aos herdeiros o conhecimento de um direito e da sua titularidade, impossibilitando-os de, mais tarde, invocarem quer a ignorância da lei quer a sua má interpretação (CC- 6).
Segundo a prova, os autores exercitaram o seu direito ao levantamento dentro do prazo de 5 anos, exercitaram-no pouco após terem conhecido que eram titulares do mesmo.
Improcede a excepção da prescrição.

6.- Argumentaram os recorrentes com o disposto no art. 321-1 CC.
Embora o fundamento exposto no número anterior deste acórdão torne dispensável a pronúncia, convém referir algo, ainda que brevemente, evidenciando falhar àqueles qualquer razão.
As causas suspensivas são ou do curso da prescrição ou do termo desta e a sua matéria é excepcional.
As primeiras impedem ou o início ou o curso da prescrição.
O fundamento oposto pelos autores é o de o início da prescrição ter estado impedido pelo facto de ignorarem a existência da subscrição dos certificados de aforro (facto que provaram), pelo que, na sua óptica, o prazo só se iniciou no momento em que as encontraram.
Porque se trata de causa subjectiva, subsidiariamente, a subsumem ao disposto no art. 321-1 CC.
Todavia, essa norma dispõe que o impedimento ter de resultar de força maior.
Por outras palavras, necessário é que o facto que constitui a causa suspensiva possa ser caracterizado como impedimento e que, sendo-o, derive de força maior.
Nem como impedimento pode ser caracterizado nem de força maior deriva.
Ainda que do facto provado (desconhecimento até ...) se pudesse fazer uma leitura de modo a integrá-lo como impedimento (de exercer o direito), seria impedimento causado pelo subscritor dos certificados de aforro e não por qualquer causa que pudesse ser caracterizada como força maior.
Não estariam satisfeitos esses 2 elementos que constituem a causa suspensiva invocada - o impedimento (facto consequência) e a força maior (causa exigida como determinante daquele facto).

7.- O réu entregou aos autores, no decurso da acção, o valor correspondente à meação da A acrescido de juros de mora.
Reclamam os autores, tendo como insuficiente a indemnização moratória, a diferença a que se julgam com direito acrescida de juros de mora vincendos.
O pagamento e seu respectivo valor não derivaram de ordem judicial - contestando, o réu reconheceu o direito ao reembolso enquanto e na medida em que integrasse aquela meação.
O tribunal limitou-se a facilitar o pagamento sem se imiscuir na fixação do respectivo montante.
Nessa medida, o pagamento foi efectuado em consequência de pedido de resgate feito já após a propositura desta acção e não em consequência de condenação.
Aportado ao processo o conhecimento do pagamento, os autores não alegaram que do montante pago como indemnização moratória reclamaram ou feito reserva por não contabilizados até ao momento em que exercitaram reconhecido ex vi dos arts. 3-1 e 7-1, quer por o deverem ser não ao abrigo do art. 15 b) do dec-lei 172-B/86 quer por o termo final a considerar dever ser outro e posterior.
Se razão não lhes assistia já por o pagamento ser consequência de pedido de resgate, também a faleceria, a não dever prevalecer aquele, se dever configurar, então, ter havido transacção (CC- 1.248).

8.- Dissentiram as partes sobre o valor de cada certificado de aforro.
É necessário instruir o processo com esse facto, para conhecimento e fixação do qual falece competência ao Supremo Tribunal de Justiça.

Termos em que -
- por se julgar improcedente a excepção da prescrição se revoga o acórdão recorrido no tocante à mesma, pelo que procede a acção pelo valor a fixar de acordo com a prova e respectivos juros de mora
- e se ordena a remessa do processo à Relação para efeito do consignado no nº 8;
- se confirma o acórdão no restante.
Custas a final.

Lisboa, 8 de Novembro de 2005
Lopes Pinto,
Pinto Monteiro,
Lemos Triunfante.