Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1251/18.7PULSB.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: RECURSO PENAL
HOMICÍDIO QUALIFICADO
FALSIDADE DE DEPOIMENTO OU DECLARAÇÃO
DUPLA CONFORME
REJEIÇÃO PARCIAL
ESCUTAS TELEFÓNICAS
DADOS DE LOCALIZAÇÃO
METADADOS
DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
NAMORO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
PROVA INDICIÁRIA
Data do Acordão: 02/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - A arguida foi condenada em 1.ª instância em crime de homicídio qualificado numa pena de 16 anos de prisão, e em crime de falsas declarações numa pena de prisão de 7 meses. Ambas as condenações foram confirmadas pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Nos termos dos arts. 432.º, n.º 2, al. b) e 400.º, n.º 1, al. e), ambos do Código de Processo Penal (CPP), não são recorríveis para este Supremo Tribunal de Justiça as decisões do Tribunal da Relação que condenem os arguidos em penas de prisão não superiores a 5 anos. Assim sendo, não é recorrível para este Supremo Tribunal de Justiça a parte do acórdão do Tribunal da Relação que manteve a condenação pelo crime de falsas declarações.

II - Na base dos dados recolhidos está o despacho prolatado a 28.01.2021 que permitiu a realização de interceções telefónicas ao abrigo do disposto nos arts. 187.º, e ss, do CPP; após este despacho, foi enviada, como refere expressamente a recorrente, pelo prestador de serviço de telecomunicações, uma lista dos cartões que foram associados ao equipamento com o IMEI obtido na sequência do despacho referido, lista esta respeitante a dados armazenados entre 31.07.2018 e 29.08.2019.

III - A localização obtida a partir das escutas telefónicas efetuadas, autorizadas por despacho do juiz, tiveram por base dispositivos legais distintos daqueles que são abrangidos pela decisão do Tribunal Constitucional, pelo que as vigilâncias efetuadas após os despachos que permitiram a realização das escutas telefónicas, o IMEI fornecido pelo prestador de serviços de telecomunicações em fevereiro de 2021 e a sua localização a 11.02.2021, resultou da aplicação das regras processuais penais que legitimam as escutas telefónicas, fora do âmbito da declaração de inconstitucionalidade.

IV - A inexatidão quanto ao início da relação de namoro, completada com a exatidão do facto provado quanto à coabitação do arguido e da vítima, permitem que se possa concluir da especial relação existente entre ambos aquando da prática do facto ilícito — entre julho e agosto de 2018 (facto provado 11) —, sendo esta especial relação o determinante para a qualificação do facto.

V - A prova indiciária pressupõe a prova de um indício, de um facto-base a partir do qual se retira o facto-consequência. E, a partir da jurisprudência deste Tribunal, terá de se verificar se, do texto da decisão recorrida, nomeadamente da fundamentação da matéria de facto provada, podemos concluir que de factos base diretamente provados decorrem com segurança os indícios necessários à imputação dos factos à arguida dos autos.

Decisão Texto Integral:


Proc. n. º 1251/18.7PULSB.L1.S1

5.ª secção

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1.1.  Nestes autos, por acórdão de 03.05.2002, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (Juízo Central Criminal ..., Juiz ...), a arguida AA foi condenada pela prática de um crime de homicídio qualificado, nos termos dos artigos 131 e 132, n.º 2, al. b), do Código Penal (CP), na pena de prisão de 16 (dezasseis) anos, e pela prática de um crime de falsas declarações, nos termos do artigo 348-A, n.º 1, do CP, na pena de prisão de 7 (sete) meses.

Em cúmulo jurídico, foi condenada na pena única de 16 anos e 3 meses de prisão.

1.2.1.  A arguida recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 27.09.2022, decidiu:

«alterar na matéria provada o facto nº 6 passando-o para a matéria não provada mas, dada a irrelevância de tal alteração, julga-se o recurso improcedente

1.2.2. O facto 6 tinha o seguinte teor: “A arguida imputava ao falecido a doença e morte do animal.

2. A arguida interpõe agora recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

«A- A arguida foi condenada pela prática, como autora, na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido no art. 131º e 132º, n.º2, al. b) do C. Penal na pena de dezasseis anos de prisão efetiva e de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art.º 348.º-A, n.º1, do C. Penal, na pena de sete meses de prisão.

B- Fixando-se a pena única em dezasseis anos e três meses de prisão, nos termos dos art. 30º e 77º do C. Penal.

C- A arguida recorreu desta decisão, tendo sido decido pelos Venerandos Desembargadores “alterar na matéria provada o facto n.º 6 passando-o para a matéria não provada mas, dada a irrelevância de tal alteração, julga-se o recurso improcedente.”

D- Porém, a arguida não se pode conformar com o decidido.

E- Assim, a arguida alegou a nulidade do processo/nulidade do acórdão, por utilização de métodos proibidos de prova, no caso a utilização de metadados.

F- Porém, os Venerandos Desembargadores não atenderam ao peticionado pela recorrente, apesar de reconhecerem a sua utilização, por entenderem que, apesar da utilização de metadados, caso os meios de prova e provas decorrentes dos mesmos fossem removidas, não seria suficiente para alterar o sentido da prova e a formação da convicção do Tribunal.

G- Porém, não pode a recorrente concordar com este entendimento, por violação clara do direito, e do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022.

H- Isto porque, a arguida apenas foi localizada com recurso a tais dados, cuja conservação pelos fornecedores de comunicações e subsequente transmissão às autoridades é ilícita, atenta a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das disposições que o previam.

I- Mais, os seguintes meios de prova/prova, constantes da fundamentação da sentença, porque obtidos de forma ilícita, são nulos e por isso deverão ser excluídos: Fls. 666-681 (informação da MEO/Altice relativa aos quinze números de telemóvel associados ao IMEI ...94 entre 31.07.2018 e 29.08.2019), Fls. 689 (auto de vigilância datado de 11.02.2021 onde se procedeu ao seguimento da arguida entre a zona da ... na ... e a Praceta ..., também na ...), Fls. 715-717 (auto de apreensão e DVD com imagens de videovigilância recolhidas em autocarro onde se fez transportar a arguida), Fls. 799- 800 (informação da NOS relativo aos números associados ao IMEI terminado em ...40), Autos de diligência de fls. 689 e 707 (vigilância efectuada em 11.02.2021 na Praceta ..., ... (vigilância efectuada no dia 18.02.2021 com abordagem a BB e à arguida que se apresentou como CC), 723-724 ( auto de diligência datado de 19.02.2021) relativo à Praceta ... (auto de diligência relativa à morada do Largo ..., ... (auto de diligencia datada de 13.04.2021 relativa à Praceta ..., residência da testemunha BB onde foram encontrados vários pertences da arguida, incluindo objectos pertença de animal doméstico, incluindo as cinzas do mesmo), Autos de transcrição de intercepção telefónica de fls. 693 (sessão 270 com data de 14.02.2021), fls. 729 (sessão 353 com data de 19.02.2021), fls. 863-876 (auto de transcrição de conversações ou comunicações das sessões 270 e 737), Auto de visionamento de imagens de videovigilância de fls.718-722 relativas ao autocarro onde se fez transportar a arguida; Auto de busca e apreensão de fls.886-887 datado de 13.04.2021 da residência sita no Largo ..., onde foram apreendidos à arguida dois telemóveis e um tablet; Exame aos telemóveis e tablet apreendidos de fls.945-949 e respectiva perícia de fls. 17229 e ss. e 1758 e ss.

J- Também deverão ser considerados nulos os depoimentos das testemunhas DD e BB, uma vez que apenas foram obtidos na sequência das diligências ilícitas e nulas, nem como, fls. 684 (informação da NOS, relativa ao Imei associado ao n.º de telefone da arguida), de 3 de Fevereiro de 2021.

K- Porquanto, conforme acima se disse, na sequência da decisão do Tribunal Constitucional, a prova obtida com recurso a tais dados conservados e/ou transmitidos pelas operadoras às autoridades, são nulas, por obtidas por meio de intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular, artigo 126.º do CPP, e artigos 18.º. 26.º, 32 e 35.º, todos da Constituição.

L- E, nos termos do artigo 122.º do CPP, “As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.”

M- Razão pela qual, para além dos actos e diligências que acima se indicaram e cuja nulidade se alegou, também todas as diligências posteriores e, dependentes e/ou decorrentes de todos estes actos ilícitos, são também eles ilícitos e nulos, nomeadamente, as buscas e apreensões, a detenção da arguida e o 1.º interrogatório de arguido detido, os depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas DD e BB e pelos Inspetores da Polícia Judiciária, EE, FF, GG e HH, por versaram sobre tais diligências ilícitas e sobre tais provas nulas, devendo por isso ser excluídos.

N- E, mesmo as declarações prestadas pela arguida na audiência de julgamento estão contaminadas pelos actos nulos, uma vez que foi confrontada com os elementos recolhidos nos mesmos, pelo que deverão também ser consideradas inválidas.

O- Razão pela qual, se peticiona a repetição da audiência de julgamento.

P- Sendo que, e mesmo que tal repetição não ocorra, a verdade é que o acórdão proferido é nulo, por considerar e assentar em provas nulas.

Q- Alegou também a arguida no recurso apresentado, que foi condenada pelo crime de homicídio, sem qualquer prova, uma vez que não existe qualquer prova direta, tendo o Tribunal apenas valorado prova circunstancial e indiciária, para formar a sua convicção.

R- Porém, o Tribunal da Relação, no acórdão proferido, manteve o raciocínio, ou seja, dando factos provados sem provas, apenas com presunções.

S- Assim, entende a recorrente que os Venerandos Desembargadores erraram, ao manterem a decisão do Tribunal de 1.ª Instância relativos aos factos vertidos nos pontos 1, 7, 10, 11, 12, 13, 14 na parte que refere “Ficando incontactável telefonicamente” e “abandonou no interior de um armazém (…)”, 15, 18 na parte que refere “(…) foi a arguida localizada com um visual diferente (designadamente com alteração da cor e corte de cabelo)”, 20 na parte que refere “e indicou um número de telemóvel que já não utilizava (...37), pois, nesta data, utilizava o cartão telefónico com o n.º ...38 (…)”, 23, 37, 38, 39 e 41 da matéria dada como provada.

T- Existindo um erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

U- Tendo o Tribunal dado os mesmos como provados apenas com base em presunções, sem qualquer suporte fáctico.

V- Aliás, no que respeita ao ponto 1, os Venerandos Juízes Desembargadores, à semelhança da posição assumida com os metadados, até referem que a arguida pode ter razão, mas, por entenderem que a matéria é irrelevante não alteram.

W- A questão essencial prende-se com a falta de móbil do crime, e afastado que está o móbil por a recorrente culpar o falecido pela doença e morte do animal de estimação, resta-nos o aproveitamento económico.

X- O Tribunal da Relação menteve o ponto 7, dando como provado que “Após a morte do canídeo, e tendo conhecimento do montante monetário de que o falecido dispunha, a arguida decidiu pôr termo à sua vida.”

Y- O Tribunal da Relação refutou a argumentação da recorrente, por entender que o imóvel tinha um valor patrimonial de 137.680,00 € e não de um milhão de euros, que se a arguida o pretendesse vender a filha do falecido ficaria a saber, que o mesmo estava arrendado e por isso os arrendatários teriam direito de preferência na aquisição.

Z- Concluindo por isso que a mais valia económica não seria nunca imediata.

AA- Porém, não conseguimos compreender esta linha de pensamento dos Venerandos Desembargadores, nem com ela concordar.

BB- Como podem concluir que faz mais sentido, é mais lógico, se enquadra melhor nas regras de experiência comum, alguém matar outra pessoa para levantar dinheiro durante meses e ficar escondida, do que simplesmente terminar a relação e vender o imóvel que lhe foi doado.

CC-  Aliás, desde que o imóvel foi doado à arguida, as rendas passam a ser devidas a esta, pelo que, passaria a ter uma satisfação económica imediata, sem precisar matar o companheiro.

DD- Não existe assim móbil do crime.

EE- Os Venerandos Desembargadores não fizeram uma apreciação profunda, conforme se lhes impunha, atendendo à gravidade do crime e condenação da recorrente, optando por manter a condenação da arguida com base em presunções das presunções.

FF- Para além de não existir móbil do crime, também não existem certezas de quando e como este ocorreu, nem tão pouco se ocorreu.

GG- E, da análise dos autos chegasse efetivamente a uma conclusão, e não é a de que foi a arguida a administrar amitriptilina em dose letal ao falecido, mas sim que a investigação das circunstâncias do óbito foi nula.

HH- Aliás, nem sequer se sabe se a morte foi causada pela ingestão simultânea de muitos comprimidos, de apenas um ou dois, ou simplesmente pelo uso continuado do medicamento e a dificuldade de absorção do mesmo pelo organismo, conforme resulta do Parecer junto pela defesa.

II- Importando salientar que o perito do INML, Dr. II, após ter sido questionado sobre se concordava com o Parecer do Dr. JJ ou se tinha algo a dizer, declarou: “O Parecer está bem elaborado. Nada que eu discordasse.” Declarações prestadas na audiência, no dia 22 de Fevereiro de 2022, conforme 5.ª acta “depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 11 horas e 11 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 15 minutos.”

JJ- Resulta assim claro que não existem provas, directas ou indiretas, de que a arguida tenha matado o companheiro, não existem sequer certezas de que este tenha sido assassinado.

KK- Tal como não existem provas dos demais pontos impugnados.

LL- Os Venerandos Desembargadores, e o Coletivo, não compreenderam a atitude da arguida ao não procurar a filha do companheiro, ao não usar/vender o carro ou o imóvel, ao dar nomes falsos a pessoas que ia conhecendo e a viver de casa em casa.

MM- Consideraram que esta atitude só poderia ser de alguém culpado, de alguém que andava fugido, por, segundo o seu entendimento, tal fugir à normalidade e aos seus juízos e regras de experiência comum.

NN- Porém, não valoraram o facto de a filha do falecido não saber da relação que este tinha com a arguida e que o falecido não queria que a filha soubesse da relação para não se meter na sua vida.

OO- Tal como não valoraram o facto de a arguida amar o companheiro, de não ter família em Portugal e de sofrer de Depressão Crónica Recorrente, conforme consta do relatório pericial elaborado pelo INML (pág. 14 do acórdão).

PP- Doença essa que já acompanha a arguida há muito tempo e para a qual era medicada, conforme resulta também das declarações do Médico KK, e que lhe doença provoca tristeza, perda de interesse pela vida, dificuldade em tomar decisões, baixa autoestima, entre outros sentimentos.

QQ- Sendo o comportamento da arguida após a morte do companheiro é perfeitamente compreensível face à doença de que a padecia.

RR- E, os Venerandos Desembargadores e o Coletivo, erraram ao não valorar este fator determinante.

SS- Por tudo o que acima se deixou exposto entendemos que os Venerandos Desembargadores erraram na apreciação do recurso da arguida no que respeita aos factos elencados, devendo em consequência alterar-se a matéria de facto conforme peticionado.

TT- Porquanto, para além de não existir prova direta dos mesmos, a prova indiciária existente não permite chegar à conclusão a que se chegou.

UU- Também, em face da ausência de elementos de prova diretos e da dúvida que se impunha na apreciação dos factos indiciários, conforme acima se explicou, os Venerandos Juízes Desembargadores, ao decidirem como fizeram, fizeram-no em clara violação do princípio in dúbio pro reo.

VV- E, tal como a apreciação da insuficiência da prova e o erro notório da apreciação da prova, esta matéria, é da competência desse mais Alto Tribunal, Colendos Conselheiros.

WW- Em consequência dos erros atinentes à apreciação da matéria de facto dada como provada, acima expostos, e com todo o respeito, erraram também os Venerandos Juízes Desembargadores na aplicação do direito.

XX- Porquanto, em função da alteração da matéria de facto, entendemos que não estão verificados os elementos do tipo do crime de homicídio qualificado, pelo qual a arguida foi condenada. Impondo-se a absolvição da mesma.

YY- Não decidindo assim, errou o Tribunal na aplicação do direito, violando o disposto nos art. 131º e 132º n.ºs 1 e 2, alínea b) do C. Penal.

ZZ- Tal como erraram na medida concreta da pena, que sempre seria desproporcional e excessiva.

AAA- Assim, relativamente ao crime de homicídio, que é punido com pena de prisão entre doze e vinte e cinco anos, consideramos que deveria ter sido fixada próximo do mínimo legal e, no que respeita ao crime de falsas declarações, em pena de multa.

BBB- Atendendo ao facto de arguida ser primária, de as necessidades de prevenção especial serem diminutas e até tendo em conta a doença de que padece, que seguramente afetaram a sua capacidade volitiva.

CCC- Não decidindo assim, errou o Tribunal na aplicação do direito, violando o disposto no art. 71 do C. Penal.

Termos em que, nos melhores de direito aplicáveis e, sempre com o mui douto suprimento de V/Exas., deve ser concedido provimento ao presente Recurso, reformando-se o acórdão recorrido nos termos peticionados.»

            3. Por despacho de 08.11.2022, foi admitido o recurso.

4. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, no uso da faculdade concedida pelo art. 416.º, n.º 1, do CPP, o Senhor Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça deu parecer considerando que o recurso deve ser julgado improcedente. Em súmula, considerou que era inadmissível o recurso quanto à parte da decisão que confirmou a condenação pelo crime de falsas declarações, por força do disposto no artigo 400, n.º 1, al. f), do Código de Processo Penal, tendo em conta que a arguida foi condenada em pena de prisão inferior a 8 anos. Afirma ainda a sua concordância com o acórdão recorrido considerando não existir nenhuma das nulidades alegadas pela recorrente. Conclui que “o acórdão recorrido, de resto na sequência da sentença de 1.a instância, fez uma correta apreciação da matéria de facto dada como provada, tendo sido bem aplicado o direito a essa factualidade, mostrando- se, ainda, suficientemente fundamentado.

E por fim afirma que: “Também se mostra adequada a dosimetria da pena aplicada, a qual, conforme o explanado no acórdão recorrido, se merece qualquer censura é pela sua benevolência.”

            6. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não houve a apresentação de qualquer resposta.

7. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

A. Matéria de facto

1.1. Matéria de facto dada como provada após a alteração introduzida pelo Tribunal da Relação de Lisboa:

«1.º Entre 2016 e 2017, LL (nascido a .../.../1940) e AA, também conhecida por AA, iniciaram uma relação de namoro.

2.º O casal coabitava na residência sita na Rua ..., ..., em ..., desde 01.03.2016 e até Julho de 2018.

3.º A arguida era arrendatária desta habitação e LL fiador do respectivo contrato de arrendamento celebrado.[[1]]

5.º A arguida foi proprietária de um canídeo que morreu, em Junho de 2018, tendo sido abatido por doença, no Hospital Veterinário ..., sito na Rua ..., ..., em ....

6.º A arguida imputava ao falecido a doença e morte do animal. [facto considerado não provado pelo Tribunal da Relação de Lisboa]

7.º Após a morte do canídeo, e tendo conhecimento do montante monetário de que o falecido dispunha, a arguida decidiu pôr termo à sua vida.

8.º No período compreendido entre 02.07.2018 e 21.07.2018 foram efectuadas 7 transferências a crédito, via Caixa Directa Online, da conta titulada pelo falecido e pela arguida – ...00- no valor total de €12.311,00 (doze mil trezentos e onze euros) para a conta n.º ...00 titulada unicamente pela arguida.

9.º Nos dias 16.02.2018, 14.06.2018 e 19.07.2018, foram prescritas à arguida cinco (5) receitas de amitriptilina (medicamento este sujeito a prescrição médica),

10.º medicamento que resolveu utilizar na concretização do plano de pôr termo à vida de LL, bem conhecendo a letalidade desta substância, quando aplicada em doses elevadas.

11.º Em data não concretamente determinada, mas sita entre 19 de Julho e 01 de Agosto de 2018, mediante forma não concretamente apurada, a arguida administrou a LL uma quantidade de amitriptilina que sabia ser adequada a provocar a sua morte.

12.º Como consequência directa e necessária da aludida conduta praticada pela arguida, LL sofreu uma intoxicação aguda por amitriptilina, que determinou a sua morte.

13.º Em data compreendida entre o óbito de LL e 01.08.2018, a arguida ausentou-se da residência onde habitava com o falecido, para local incerto,

14.º Ficando incontactável telefonicamente, deixando de movimentar as contas bancárias de que é titular, bem como de utilizar nas suas deslocações o seu veículo automóvel- de matrícula ..-RG-.., que conduziu e abandonou no interior de um armazém pertencente a MM, seu conhecido, nascido a .../.../1949, sito em ..., ....

15.º Entre 21.07.2018 e 29.09.2018 a arguida efectuou 57 (cinquenta e sete) levantamentos no montante máximo diário de €400,00 (quatrocentos euros) em caixas ATM em vários locais da cidade ..., no valor total de €11.350,00 (onze mil trezentos e cinquenta euros).

16.º No dia 01.08.2018, pelas 16h30, LL foi encontrado sem vida no interior da sua residência sita na referida Rua ..., ..., em ..., ...,

17.º Encontrando-se o seu cadáver em avançado estado de putrefacção. 18.º Após a morte de LL mediante diligências efectuadas pela P.J., foi a arguida localizada com um visual diferente (designadamente com alteração da cor e corte de cabelo).

19.º No dia 18.02.2021, pelas 17h25, a arguida encontrava-se na ..., …, ..., habitação de BB (nascido a .../.../1937).

20.º Nessa ocasião, tendo-lhe sido solicitada a sua identidade, a mesma identificou-se como sendo CC, nascida a .../.../1971, com residência na Rua ..., em ..., factos estes não correspondentes à verdade, o que era do seu conhecimento, e indicou um número de telemóvel que já não utilizava (...37), pois, nesta data, utilizava o cartão telefónico com o n.º ...38.

21.º No dia 19.02.2021, a arguida transportou diversos objectos pessoais da residência onde pernoitava, sita na ..., …, ..., (habitação de BB),

22.º Para a habitação sita no Largo ..., na ..., em ..., residência de DD (nascido a .../.../1950).

23.º E deixou de utilizar o cartão telefónico com o n.º...38.

24.º A arguida conheceu BB em 2017, num evento (baile) que decorreu na C..., em ....

25.º Nessa ocasião, a arguida identificou-se como CC.

26.º A arguida pernoitou alguns meses na habitação de BB, tendo, conforme já referido, abandonado a residência, no dia 18.02.2021.

27.º Nessa ocasião, a arguida solicitou a BB que ali guardasse dois sacos de plástico e duas malas de viagem que continham objectos pessoais seus (designadamente sapatos, peças de vestuário feminino, e um saco em tecido de cor bege que continha uma pequena caixa em madeira com um saco com cinzas e um cartão com os dizeres “BOLINHA Funerária animal”, uma escova própria para escovar animais e uma trela).

28.º No IMEI utilizado pela arguida - ...40 – entre 31.07.2018 e 29.08.2019, foram introduzidos 15 cartões telefónicos diferentes, um deles no dia anterior a ser encontrado o cadáver da vítima (31.07.2018).

29.º No dia 13 de Abril de 2021, pelas 09h00, Inspectores da P.J. dirigiram-se ao Largo ..., na ..., em ..., a fim de darem cumprimento ao mandado de busca emitido.

30.º No interior desta habitação encontrava-se a arguida.

31.º Questionada sobre sua identidade, a arguida afirmou perante os Inspectores da P.J. chamar-se “NN”, não estando na posse de qualquer documento que permitisse comprovar os dados de identificação por si fornecidos,

32.º afirmando não possuir meio nem conhecer pessoa da sua confiança que lhe fizesse chegar tal documento.

33.º Mais afirmou, perante os Inspectores, que não residia naquela habitação (pese embora tivessem sido encontradas roupas femininas no seu interior), referindo não ter residência fixa, pernoitando em diversas habitações de pessoas conhecidas a quem prestava serviços domésticos.

34.º De seguida, os Inspectores conduziram a arguida à sede da P.J., sita na Rua ..., em ..., para procederem à sua identificação.

35.º Ali chegada, foi questionada, de novo, acerca da sua identidade.

36.º Como a arguida não forneceu a sua identificação, foi necessário recorrer a técnica de identificação lofoscópica pelo Laboratório de Polícia Científica, efectuando-se comparação das suas impressões digitais com as impressões digitais do dedo indicador das mãos direita e esquerda existentes da base de dados do IRN, referentes ao Cartão do Cidadão titulado por AA, sendo as mesmas coincidentes.

37.º A arguida administrou a amitriptilina no organismo/corpo do falecido, sabendo que a mesma era susceptível de lhe tirar a vida, com o que se conformou,

38.º Tendo decidido pôr termo à vida de LL, aproveitando para obter proveito económico.

39.º A arguida sabia que mantinha com o falecido uma relação análoga à dos cônjuges, de coabitação, estando, por isso ciente que a sua conduta era especialmente censurável.

40.ºA arguida actuou de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, concretizado, de fornecer elementos de identificação que sabia não corresponderem à realidade aos Inspectores da P.J., que a interpelaram a esse respeito e a conduziram à Sede deste OPC, estando ciente da sua qualidade de autoridades policiais e que se encontravam em pleno exercício de funções, não obstante saber que se encontrava legalmente obrigada a fornecer a sua real identidade.

41.º A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.

42.º Do certificado de registo criminal da arguida não constam anteriores condenações.

43.º Do relatório social, relativamente às condições pessoais e sociais da arguida, consta que:

”AA atualmente com 62 anos de idade, é natural de ..., município do ..., município brasileiro e capital do ....

A arguida é a segunda de uma fratria de cinco filhos, procedentes de um casal de modestos recursos socioeconómicos. Os progenitores eram os principais pilares do sustento família, pai exercia a atividade de comerciante por conta própria, no minimercado e sua mãe também trabalha em parceria, nesse sector, tendo estes vivenciado um percurso de algumas dificuldades, sem prejuízo da formação de base em termos escolares dos filhos. Desse modo, sempre proporcionando e induzindo à integração dos mesmos no contexto académico, privilegiando a sua progressão, inclusive no ensino superior, como foi o caso da própria AA.

Segundo a arguida o seu percurso de vida decorreu numa ambiência familiar aparentemente aprazível e funcional, inserido num meio urbano desenvolvido.

O seu processo educativo decorreu em consonância com as normas sociais, havendo o registo de memória que o espírito de família se caracterizava pela cooperação e interajuda, sendo a coesão entre os membros que a compunham o núcleo familiar uma das características no seu relacionamento. A irmã mais velha apoiava nas tarefas diárias da família e também tinha à sua responsabilidade o acompanhamento dos irmãos menores, inclusive da própria arguida.

O irmão e único do género masculino, quarto da fratria estudava e simultaneamente apoiava os pais na atividade comercial, em período extracurricular. Há a referência a este irmão como uma pessoa determinante no processo de crescimento de AA, até mesmo quando se casou aos 19 anos de idade, que conforme aludiu não deixou de manter o contacto consigo.

A referência da arguida aos pais e de todo o processo educativo que lhe foi transmitido foi reportado como tendo sido sustentado em modelos decursivos de um padrão normativo e socialmente aceite, designadamente assente no padrão de religião católica.

A nível escolar a arguida concluiu o quarto ano do ensino básico por volta dos 10 anos de idade continuando a sua trajetória escolar no 2º e 3º ciclos, por isso, no ensino vestibular até aos 17 anos de idade. Nessa altura, defrontou-se com a dificuldade em conseguir integrar o curso de medicina, ainda que esse tivesse sido a sua primeira opção. Assim sendo e, quando já contava 18 anos de idade, prosseguiu os estudos no Centro de Estudos Superiores do ....

Em torno dos 19/20 anos de idade, após ter concluído o curso superior de direito, AA iniciou a sua vida ativa no exercício da atividade de advocacia, tendo como patrono o Dr. OO, figura pública de significativa projeção, na altura Vereador do município ..., ... e também como funcionário na Fundação ...), no Gabinete da Governadoria do ..., e na secretaria de Estado de ....

Nessa altura, a arguida paralelamente à sua permanência no estágio de advocacia, dava consultas, sendo que trabalhava em todo o tipo de áreas do direito, nomeadamente cível, criminal e do trabalho, nesta situação exerceu as funções de advogada, durante cerca de 3 para 4 anos. Ao fim dos quais, estabeleceu-se no seu próprio escritório.

Segundo a arguida nos reportou, do ponto de vista sócio afetivo e emocional, parece-nos importante salientar que, celebrou matrimónio aos 24 anos de idade, em 1983, com colega de profissão, por isso advogado.

A arguida referiu que a dinâmica conjugal familiar até à idade de 27-28 anos de idade, foi sinalizada por constrições, limitações, da vida pessoal, que por sua vez, teve repercussões, na instabilidade emocional-afetiva para consigo mesma. Nesse período, destacou a maneira de ser do cônjuge [[2]] muito controladora e condicionante à sua socialização e desempenho profissional.

Ainda e de acordo com a sua descrição devido à dinâmica de interação conjugal disfuncional, o seu casamento ter-se-á mantido apenas por cerca de 3- 4 anos, ao fim dos quais e, conforme aludido pela mesma o decorrente de crises conjugais, entre diversos fatores, da postura controladora e até mesmo de violência por parte do cônjuge [[3]], a relação culminou na separação. A arguida ainda referiu que houve uma tentativa de conciliação por parte do cônjuge [[4]], não obstante essa tentativa não chegou a bom termo e deu-se mesmo a separação.

AA disse ainda, que sofreu um aborto espontâneo, sendo que não voltou a tentar engravidar, assim como não se lhe apresentava como um objetivo de vida, em virtude de ser mais importante a sua autonomia e estabilidade da carreira profissional.

Segundo a arguida referiu, dos 27 aos 28 anos, prosseguiu a trabalhar como advogada, trabalhava em escritório e não tanto em Tribunais, uma vez, que neste subsistema tinha alguma dificuldade em exercer a atividade profissional, alegadamente pelo seu temperamento de algum modo tímido e pouco à vontade em expor a matéria processual. Privilegiava o trabalho em pesquisa, consultas e até mesmo no trabalho administrativo.

Na altura e segundo, a arguida reportou também foi nesses anos, 1986-87, entre os 27¬28 anos de idade, deu-se a separação e retomou a casa de seus pais. A decisão de se separar não era bem vista por sua mãe, que desaprovava o divórcio. Não obstante, numa fase posterior ao processo de separação, sua mãe e, sua família acabaram por aceitar e dar-lhe o apoio necessário à sua estabilidade.

Com a perspetiva de viajar e conhecer Portugal AA referiu que na década de noventa, mais precisamente entre 1991- 1992, por isso, entre os 32-33 anos de idade, viajou para Portugal, alegadamente para conhecer a capital de Portugal. Nesse período, reportou que também tinha uma amiga, a quem podia recorrer, designadamente em termos da sua inserção habitacional.

Essa amiga residia em residencial estudantil feminina na localidade Campo ..., correntemente designado por Campo ..., freguesia .... Todavia ao cabo de cerca de 2 meses, AA retomou a cidade ..., alegadamente pela vigência do seu titulo de residência se cingir a esse período.

De acordo com a informação prestada pela arguida, nesse período da sua vida, contava mais de trinta anos de idade, em contexto da atividade profissional e, na sequência de um processo jurídico-penal, no âmbito de direito cível, designadamente na definição da tutela pela guarda de descendentes, deparou-se com situação inusitada e especialmente complexa.

A referida ocorrência revelou-se marcadamente traumática, na sequência de episódio de ameaça velada, que segundo sua descrição assumiu um carácter deliberado e persecutório dirigido a sua pessoa.

Nessas condições, AA disse que começou um processo de condicionamento e até evitando a exercer a sua atividade profissional. Segundo a arguida aludiu, também com a corroboração dos progenitores, esteve um bom período sem exercer advocacia.

Conforme informação disponibilizada pela própria AA, de novo decidiu viajar para Portugal, rondava os 34-35 anos de idade, por isso, nos anos de 1993- 1994. Uma vez no país de acolhimento exerceu atividade laboral no sector imobiliário. A sua inserção residencial e habitacional, conforme reportou habitualmente não passava, não se fixava para além dos 3 meses, procurava dividir o espaço habitacional, com outra pessoa, por forma a melhor conseguir proceder à gestão das suas despesas correntes.

Ainda em termos emocionais-afetivos conforme descrição da arguida, teve um segundo

relacionamento, com indivíduo profissional da área de carpintaria, carpinteiro de limpos. Do que a arguida referiu a relação marital perdurou cerca de 13 anos, dos 40 aos 54 anos de idade. Ainda reportado pela arguida no decurso da sua convivialidade, o relacionamento atingiu contornos de elevada desestabilização, designadamente pelo comportamento irresponsável e violento do companheiro.

As despesas correntes do agregado familiar eram praticamente respondidas pela arguida. A adensar esta dificuldade, os maus-tratos que companheiro lhe infligia também caracterizaram o relacionamento ao ponto de se agravar e vir a culminar na separação. Conforme AA nos referiu a relação com PP foi pautada pela violência doméstica, facto que aludiu como sempre tendo existido, mas, que se foi agravando quando permaneceu a residir nos ..., no ano de 2005, por isso, por volta dos 46 anos de idade. Segundo descrição da arguida, de 2005 até 2010, dos 46 aos 51 anos de idade, começou a trabalhar na sua área, nomeadamente em processos vulgo oficiosas. Além desta situação, de relacionamento violento, a arguida também faz menção ao falecimento de sua mãe, em anos anteriores, como se constituindo um acontecimento teve repercussões na vida familiar, de modo que se verificaram alterações nos padrões de relacionamento e regras do funcionamento familiar. É neste contexto que a arguida situa sua interrupção no exercício da atividade profissional (“suspensão na ordem dos advogados”) e a deslocação para atividades laborais em áreas da restauração.

De acordo com a informação prestada pela arguida, a sua vida afetiva prosseguiu mais tarde, numa terceira relação, contava 53 anos de idade, quando conheceu LL, (vítima no presente processo), em contexto de trabalho. Ainda de acordo com a informação prestada por AA, quando travou conhecimento com LL, inicialmente ainda vivia com o individuo do segundo relacionamento marital, por isso, Sr. PP.

AA disse que passou de um relacionamento conflituoso e violento, para uma relação feliz e autónoma. De acordo com sua descrição LL era uma pessoa calma, tranquila. Em muito a ajudou a superar as dificuldades no exercício da atividade profissional, em particular da sua timidez em trabalhar no âmbito dos processos jurídico-penais para parecer jurídico.

A arguida referiu que nessa altura, após os 53 anos de idade, ter conhecido LL no Tribunal Judicial da Comarca ..., da ilha ..., nos ..., iniciaram relacionamento afetivo, tendo coabitado em regime de união de facto, com a perspetiva de vir a celebrar matrimónio.

Não obstante, o seu propósito sofreu revés, que segundo reportou, aquando da sua deslocação para o continente em 2016, contava 57 anos de idade, e as dificuldades que então se lhe deparavam. Viajou para ..., com vista a se adquirir imóvel, não obstante de toda a documentação necessária e a definição estatutária das pessoas a assumirem o arrendamento e financiamento no âmbito do processo de aquisição de casa própria, atrasaram e até condicionaram à concretização do mesmo objetivo.

Entre 2017 e 2018, entre os 58 e 59 anos de idade, de acordo com as referências da arguida, a intenção de realizar os planos de vida conjugal, com LL, assim como de aquisição de casa própria que aparentemente se configuravam exequíveis, sofreram um condicionamento. Essa situação, segundo a arguida, entre diversos fatores, devia-se à dificuldade na definição do seu estatuto civil de divorciada (dificuldades na aquisição da documentação necessária, retida nos serviços administrativos do Brasil), transferência do processo profissional, cédula profissional, para poder ingressar na ordem dos advogados.

À data dos factos, AA encontrava-se numa situação de marcada fragilidade pessoal e social, vivendo em casa de pessoa amiga, Sr. DD numa casa térrea, na freguesia ..., morada dos autos, com o seu apoio, designadamente da inserção habitacional.

Anteriormente a esta situação habitacional, ainda residiu na Praceta .... De acordo com o que a arguida reportou residia alternadamente entre esta freguesia da cidade ..., e no concelho ..., na localidade de .... A sua inserção habitacional, conforme o que a arguida aludiu tinha em conta o apoio de pessoas amigas, com as quais travou conhecimento, quando frequentava a C..., nomeadamente o Sr. DD e o Sr. MM.

AA encetou um relacionamento amoroso, com LL (vítima no presente processo) por volta dos 57 -58 anos de idade, tendo o relacionamento perdurado até meados de 2018, tinha a mesma 59 anos de idade. A sua coabitação inicialmente ocorreu nos ..., uma vez que o referido companheiro e a própria se encontravam a residir no arquipélago, por motivos profissionais. Tanto a arguida como LL exerciam a atividade de advocacia.

Mais tarde, com vista a se constituírem enquanto casal, por via da celebração do matrimónio, a arguida referiu que viajaram para o continente, de modo a se organizarem do ponto de vista profissional e habitacional. A própria arguida disse que em 2016, com o objetivo de prepararem a aquisição de imóvel, viajou para o Continente e através da prospeção no mercado imobiliário, procurou casa. Aparentemente a situação ganhava contornos de se poder viabilizar, porém não chegou a concretizar-se.

Segundo a irmã, a arguida conseguiu com este relacionamento, com LL alcançar um bom relacionamento, que lhe proporcionou momentos de realização pessoal, sempre bastante atencioso e muito respeitador. Tendo nessa altura, da convivência entre o casal, trabalhado em parceria mas de modo próprio garantia o seu sustento.

AA encontra-se detida, desde 14.04.2021. Relativamente ao comportamento prisional são referidas duas infrações disciplinares em 19-11-2121 e 23-11-2121, cujos processos estão a decorrer.

Referiu também que beneficia do acompanhamento pela psicóloga e psiquiatra dos serviços clínicos do E. P. .... Nessa conformidade, foi-lhe prescrita medicação.

Neste subsistema sua irmã, QQ completou, referindo que AA é uma pessoa com o nascimento prematuro, historial de violência doméstica e síndrome pós falecimento por parte da progenitora. Estes fatores, na opinião da irmã, têm vindo a alcançar uma significativa e agudizada sintomatologia.

Do que nos foi possível aferir do contato estabelecido com a sua irmã (59 anos), caracteriza-se por ser um relacionamento próximo e respeitoso com a arguida, assim como com a sobrinha (32 anos), atualmente a residirem em ....

AA equaciona o futuro em torno da família, mantendo o contacto com a irmã e sobrinha e ainda o Sr. DD, que se têm mantido disponíveis para apoiar.

A arguida não se revê na acusação. Mostra-se receosa acerca das consequências do desenrolar do presente processo. Neste mesmo sentido, expressa dificuldade, em abordar em abstrato as condutas e as circunstâncias do presente processo, aparentemente consegue expressar consciência do desvalor desse tipo de comportamento, bem como os eventuais danos causados na vítima.

De acordo com os dados apurados, o processo de socialização de AA decorreu num agregado de média condição socioeconómico, fruto da atividade laboral do pai em parceria com sua mãe, como empresário por conta própria na exploração de minimercado, na cidade ....

Segundo a descrição da arguida o seu crescimento decorreu num ambiente familiar estruturado, num meio social diferenciado, sendo a dimensão afetivo-emocional aparentemente valorizada.

A arguida veicula desde o seu nascimento, criança prematura, a adolescência e inicio do estado adulto, uma imagem de pessoa frágil, obediente, de algum modo a um ambiente familiar sustentado em modelos decursivos de um padrão normativo e socialmente aceite, designadamente assente no padrão de religião católica. Os pais centravam o seu foco na manutenção e estabilidade da vida financeira de modo a garantir a satisfação das necessidades básicas e muito em particular assegurar a estabilidade na trajetória académica. Sendo essa a premissa de base no desenvolvimento educativo da arguida.

O percurso escolar de AA é regular e investido, evidenciando motivação e franco empenho.

Depois de concluir o ensino secundário e prosseguido no ensino superior, no curso de direito que veio a concluir aos 24 anos de idade, iniciou a vida ativa em escritório de advocacia.

A arguida no decurso do seu trajeto pessoal, profissional e familiar revela competências. Todavia o carácter ascendente do seu percurso profissional, o seu desejo de responder pronta e imediatamente às dificuldades apresentadas, nem sempre se mostraram eficazes.

Apesar do seu nível de especialização, sua motivação, o nível de satisfação da atividade, de vida e de diferenciação, não deixou de registar alguns períodos de interrupção da sua atividade profissional.

Procurou projetar o futuro, mas, de modo pouco autodeterminado, aparente e mais tarde efetivamente com o suporte, em parceria com os companheiros com se relacionou.

Quando a arguida traçou e definiu o seu percurso relacional afetivo aos 24, e dos 46 aos mais de 50 anos viu-se abraços, com pessoas de índole agressiva- violenta e também pouca séria, até mesmo calculista e irresponsável, que além de não assumirem o seu papel enquanto companheiros ainda se descomprometiam e desvinculavam das suas responsabilidades.

O relacionamento com LL inicialmente estruturado, desde os 53 em diante, e mais tarde dos 57-58 anos, com perspetivas de se constituir enquanto casal ter-se-á alterado após as dificuldades e ingerências no decurso da sua vinda para o Continente, assinalando a arguida um progressivo e complexo modo de vida.

No Estabelecimento Prisional ..., a reclusa é acompanhada pelos serviços clínicos do estabelecimento prisional. Ao nível afetivo e social tem mantido contactos com a família, que lhe propicia alguma estabilidade emocional. Tendo dificuldade em se rever em algumas das circunstâncias que deram origem ao processo judicial, AA denota sintomatologia depressiva. Especialmente neste campo, convirá salientar a postura essencialmente carente da arguida, bem assim como a sua fraca capacidade de pensamento consequencial e de resolução de problemas, aspetos determinantes nas suas características individuais.

AA aponta projetos delineados em torno da atividade terciária, na sequência da sua experiência anterior, pretendendo o apoio e suporte de sua irmã e sobrinha.

Face à sua situação de prisão e às circunstâncias que deram origem à mesma, AA parece preocupada atenta gravidade da situação, receando eventuais consequências da mesma, nomeadamente em termos pessoais e familiares.”

44º  Do relatório pericial elaborado pelo INML em relação à arguida consta que:

“Do exame indirecto e directo, resulta que a examinanda padece, à data do exame do presente exame pericial, de Depressão Crónica Recorrente, episódio atual moderado, a que corresponde o código F33.1 da International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems 10th Revision (ICD-10).

Mais se apura que o episódio depressivo actual será reactivo, de acordo com a Exmª Médica Assistente no EP ..., a várias vicissitudes relacionadas com a detenção da examinanda e o processo judicial em que é arguida.

Não se apura, nem nos factos que se encontram descritos no Despacho de Acusação, nem nas observações constantes no processo clínico do EP ... nem em sede de exame directo, evidência de sintomatologia que, à data dos factos, interferisse com o juízo da realidade em termos concretos.

Igualmente, não se apura nem nos factos que se encontram descritos no Despacho de Acusação, nem nas observações constantes no processo clínico do EP ... nem em sede de exame directo, à data dos factos, evidência de sintomatologia que pudesse comprometer a volição.

Por outras palavras, não existe, salvo melhor opinião, nem do relato dos factos plasmado no despacho de acusação, nem da entrevista clínica com a examinanda, evidência de psicopatologia que, per se, à data dos factos, interferisse na capacidade de a mesma avaliar o lícito / ilícito, o certo / errado, o bem / mal nem de se determinar de acordo com essa avaliação.

Do exame directo resulta, igualmente que a examinanda tem, igualmente salvo melhor opinião, à data do presente exame pericial, capacidade de avaliar o lícito / ilícito, o querer /poder, o certo / errado, bem como de se determinar de acordo com essa avaliação.

Pelo que, salvo melhor opinião, a examinanda não apresenta pressupostos médico-legais de inimputabilidade para os efeitos dos nºs 1 e 2 do artº 20º do Código Penal.”»

1.2. Matéria de facto dada como não provada após a alteração introduzida pelo Tribunal da Relação de Lisboa:

«- 4.º A relação era pautada por um clima de conflitualidade, sendo frequentes as discussões entre o casal;

- 6º A conflitualidade entre o casal agravou-se com a morte do canídeo.»

1.3. Fundamentação para a alteração da matéria de facto ­ dar como não provado o facto 6 — pelo Tribunal da Relação de Lisboa:

«Concluíu o Coletivo no ponto 6 que a arguida imputava ao falecido a doença e morte do animal (canídeo).

Diz a recorrente que a única testemunha que se referiu à relação entre a morte do animal de estimação e o estado da arguida foi a testemunha MM mas que, porém, e conforme resulta da fundamentação do acórdão, na pág. 32, este declarou que “(...) Pensa que a causa de tal transtorno era a morte da cadelinha, supunha que tinha sido o marido mas sem concretizar. (...)  e que quando a única testemunha que fala sobre o assunto diz a esse propósito que “pensa”, “supunha”, “sem concretizar” é assim, em seu entender notória a ausência de qualquer prova e, por isso, defende que tal facto deverá ser eliminado da matéria de facto provada passando a constar da não provada.

O facto em si aparenta ser inócuo para a questão  de facto essencial do recurso (razão pela qual teria matado o companheiro) já que não lhe vem apontado como razão do crime eventual desfeita contra aquele relacionada com a morte do seu cão de estimação.

Mas de facto aquela testemunha é a única assinalada que se referiu a esse aspecto mas fê-lo de modo impreciso e opinativo e que consideramos manifestamente insuficiente  para se dar aquele facto nº 6 como provado. Sendo embora irrelevante para a decisão do recurso, consideramos que não deve ser dado como assente, passando a ser tido como não provado.».

B. Matéria de direito

1. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente aquando da interposição do recurso, nos termos do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo do conhecimento oficioso de nulidades (nos termos do art. 379.º, n.º 2, do CPP, e quando seja admissível o recurso; caso este não seja admissível, devem ser arguidas no tribunal que proferiu a sentença nos termos gerais do art. 120.º, n.º 1, do CPP, e o prazo geral do art. 105.º, n.º 1, do CPP) e dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP (também aqui apenas no caso de o recurso da decisão ser admissível).

Tendo em conta as conclusões apresentadas, verificamos que a arguida apresenta diversas questões:

- a ilegalidade da prova e consequente nulidade da decisão por ter utilizado metadados (“utilização de métodos proibidos de prova”) na base dos quais se obteve toda a prova, pelo que a decisão ter-se-á baseado, segundo a recorrente, em prova ilícita atenta a declaração de inconstitucionalidade do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022[5];

- erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada por, segundo a recorrente, erradamente terem mantido como factos provados os factos 1, 7, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18, e 20, e por erradamente considerarem que existiria móbil para a prática do crime, apesar de, segundo a arguida, não existir sequer conhecimento sobre a causa da morte; entende ainda que não existia prova direta dos factos, considerando que o tribunal se limitou a valorar prova indiciária; neste ponto terminou ainda considerando que o tribunal a quo errou “na apreciação do recurso da arguida no que respeita aos factos elencados, devendo em consequência alterar se a matéria de facto conforme peticionado”;

-alega errada subsunção dos factos ao tipo legal de crime de homicídio qualificado, por isso se impondo, no seu entendimento, a sua absolvição;

- a manter-se a qualificação jurídica, entende que a pena devia ter sido fixada, para o crime de homicídio qualificado, próximo do mínimo legal; quanto ao crime de falsas declarações, a arguida devia ser punida em pena de multa.

2. Comecemos por analisar o problema da recorribilidade (ou não) da decisão.

2.1. A arguida foi condenada em 1.ª instância em crime de homicídio qualificado numa pena de 16 anos de prisão, e em crime de falsas declarações numa pena de prisão de 7 meses. Ambas as condenações foram confirmadas pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Nos termos dos arts. 432.º, n.º 2, al. b) e 400.º, n.º 1, al. e), ambos do Código de Processo Penal (CPP), não são recorríveis para este Supremo Tribunal de Justiça as decisões do Tribunal da Relação que condenem os arguidos em penas de prisão não superiores a 5 anos. Assim sendo, não é recorrível para este Supremo Tribunal de Justiça a parte do acórdão do Tribunal da Relação que manteve a condenação pelo crime de falsas declarações.

Nesta medida, e sabendo que, na parte em que o acórdão recorrido decidiu sobre o crime de homicídio qualificado, não se subsume a nenhum dos casos previstos no art. 400.º, n.º 1, do CPP, que determina a irrecorribilidade de uma decisão, é apenas recorrível para este Supremo Tribunal de Justiça a condenação relativa ao crime referido, sendo que mesmo quanto a este, por força do disposto no art. 434.º, n.º 1, al. c), do CPP, este Supremo Tribunal de Justiça apenas pode conhecer de direito e dos erros-vício e das nulidades não sanadas previstas no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP.

Assim sendo, rejeita-se o recurso interposto pela arguida na parte respeitante ao crime de falsas declarações, por forçado disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b) e no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP.

2.2. A arguida vem ainda recorrer da decisão na parte em que entende que a condenação se baseou em prova proibida por alegadamente terem sido utilizados metadados.

Tal alegação foi também apresentada no recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que concluiu que

«(...) tendo em conta o caso concreto, à luz da aludida compreensão do alcance da problemática constitucional dos metadados, podemos concluir com elevada segurança que o recurso ao telefone da arguida foi decorrente de indicação pela testemunha que lhe guardara a viatura e esta ser detectada por via de uma contraordenação estradal, tendo as escutas subsequentes servido apenas para  mais rápida localização do paradeiro e não como meio de prova em si para a determinação da responsabilidade da arguida na morte da vítima.  Cremos que, se não fosse tal uso, poderia quando muito  ser mais dificilmente detectada ou localizada mas não impeditivo de tal por outros meios. De todo o modo, a arguida prestou declarações diversas, apesar de ter sido localizada pela forma indicada,  podendo não o ter feito e isso foi afinal  importante para se alcançar a convicção, muito bem explicada, da sua falta de credibilidade. Não vemos pois que, mesmo que se fizesse do AC TC sobre a inconstitucionalidade do uso de metadados uma aplicação, ainda que parcial, ao caso, não seria de todo minimamente decisivo para poder alterar o sentido da prova tida como fundamental para a formação  da convicção  a quo.» (ac. recorrido, p. 59-60)

Ora, sabendo que o Tribunal da Relação decidiu sobre tal matéria e constituindo um fragmento da decisão que não se integra no objeto do processo (factualidade provada, qualificação jurídica dos factos praticados, e cominação da respetiva sanção criminal), nos termos dos arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. c), ambos do CPP, a decisão é irrecorrível.

Considerando, todavia, na linha do defendido pelo Tribunal Constitucional (acórdão n.º 686/2004 e 44/2005, ambos em www.tribunalconstitucional.pt), que a problemática foi analisada pela primeira vez pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ainda assim a recorrente não tem razão.

Do acórdão recorrido resulta expressamente que o número de telefone da arguida foi obtido por uma das testemunhas o ter fornecido à equipa de investigação — “auto de diligência de deslocação até à residência da testemunha MM onde foi localizada a viatura ..-RG-.., estacionada na garagem, encontrando-se as chaves em poder do depositário, que informou ainda o contacto telefónico da arguida – ...38” (p. 19 do ac. recorrido aquando da transcrição da fundamentação da matéria de facto constante do ac. de 1.ª instância); o que aliás é assumido pela recorrente que expressamente, na motivação do recurso interposto, refere: “foi na sequência da diligência de deslocação até à residência da testemunha MM onde foi localizada a viatura ..-RG-.., estacionada na garagem, que foi por este informado o contacto telefónico da arguida – ...38, aos inspetores da PJ. E, foi no seguimento, que o Ex.mo Juiz, a 28/01/2021, fls 624, autorizou a intercepção telefónica ao número da arguida e respectivos imeis associados.” (motivação do recurso interposto, p. 4).

Ou seja, na base dos dados recolhidos está o despacho prolatado a 28.01.2021 que permitiu a realização de interceções telefónicas ao abrigo do disposto nos arts.  187.º, e ss, do CPP nos seguintes termos:

«Assim, por estarem reunidos os pressupostos legais – artº 187, no1, al. b):

1. Autorizo a interceção telefónica ao número indicado a fls. 967 e respetivos imeis associados; (artº 269, nº1, al. e) do CPP).

Esta interceção fica a cargo do OPC encarregue da investigação. Prazo: 30 dias.

Solicite às operadoras o envio ao OPC:

- Da identificação dos Imeis intercetados;

- Da faturação detalhada – chamadas efetuadas e recebidas – do(s) número(s) acima identificado(s), desde esta data e durante os próximos 30 dias, o registo de trace back e a localização celular (artºs 187, 269, nº1, al. e) do CPP), sendo tal envio com caráter semanal.»

Este período inicial foi depois alargado por despacho de 02.03.2021 nos seguintes termos:

«Por se manterem os pressupostos legais e de facto, e considerando os elementos probatórios já recolhidos, autorizo a prorrogação/reinício, para a realização das interceções telefónicas ao número de telefone e IMEIS - identificados no requerimento que antecede, com registo de trace back, faturação detalhada e localização celular – cfr. art. 187o no 1, als. a) e b), 188o, 189o e 269o no 1, al. e), todos do C.P.P.

Prazo: até 03 abril.»

É certo que, após este despacho, foi enviada, como refere expressamente a recorrente, pelo prestador de serviço de telecomunicações, uma lista dos cartões que foram associados ao equipamento com o IMEI obtido na sequência do despacho supra referido, lista esta respeitante a dados armazenados entre 31.07.2018 e 29.08.2019 (cf. p. 20 do ac. recorrido onde se referem estes elementos como constituindo prova que o tribunal tomou em consideração; cf. fls. 66 onde se verifica que a informação foi fornecida a 08.02.2021, ou seja, após o primeiro dos despachos referidos supra).

Todavia, não resulta minimamente da fundamentação da matéria de facto que tais dados constituíssem a base da condenação da arguida. Na base da factualidade provada está a prova que se fez das relações existentes entre a arguida e a vítima (resultante de prova testemunhal), as sucessivas mudanças de visual da arguida, o facto de ter assumido diversas identidades sem que tivesse apresentado documento de identificação, o facto de ter saído da casa arrendada sem que desse disso conhecimento ao senhorio, o facto de não terem sido encontrados vestígios na garrafa e copo que estava ao lado da vítima, o facto de não ter havido arrombamento da porta de entrada do apartamento onde foi encontrada a vítima, o facto de não ter utilizado a sua viatura automóvel, os diversos levantamentos bancários que efetuou a partir de 21.07.2018. E mesmo a informação que se obteve quanto ao facto de a arguida não ter contactado a vítima após a saída de casa resultou do exame aos telemóveis e tablet da vítima — “Exame aos telemóveis e tablet apreendidos de fls.945-949 e respectiva perícia de fls. 17229 e ss. e 1758 e ss. de onde resulta que a partir das 15h27m de 21.07.2018 não mais são lidas as mensagens recebidas no telemóvel pertença de LL, sendo que a ultima mensagem de voz data de 23.07.2018 e a ultima mensagem escrita (não lida) data de 24.07.2018, pese embora já antes há múltiplas chamadas não atendidas e mensagem escrita que refere dificuldades em comunicar com o falecido e solicita que se entre em contacto como interlocutor, devendo ainda salientar-se a existência de uma mensagem relembrando a marcação de exames para o dia 24.07.2018 pelas 17h00 na clinica A... em ...” (fundamentação da matéria de facto, p. 21 do ac. recorrido; esta informação foi completada com a  informação resultante das perícias realizadas ao tablet  e telemóveis da arguida, mas para o que a arguida deu consentimento, permitindo o acesso a “registos de chamadas e de mensagens, dados de imagem, áudio e vídeo, mail e redes sociais” — cf. termo de consentimento a fls. 906).

Em parte alguma da fundamentação se verifica que, por exemplo, foi a partir de dados de localização dos números associados, entre 31.07.2018 e 29.08.2019, aos IMEI que se concluiu que a arguida estava no local do crime no período em que presumivelmente a vítima foi morta; tivesse sido recolhida essa informação e relevado para a decisão, não teria o tribunal considerado que as conclusões que tirou resultaram de “factos circunstanciais” — “Reunidos os vários factos instrumentais apurados, pode firmar-se consistentemente a convicção de que a arguida planeou efectivamente a morte do falecido LL, procedendo a várias diligências nos dias antecedentes, quer a aquisição de medicamentos, quer a realização de operações bancárias. Efectivamente, a prova indirecta que resultou da prova produzida em julgamento foi bastante para convencer o Tribunal, para dar corpo à versão da acusação, no sentido da responsabilização da arguida na morte ocorrida, alcançando-se uma certeza judiciária suficiente para justificar a responsabilização criminal da mesma.” (fundamentação da matéria de facto, p. 37-38 do ac. recorrido). E tal como afirmou o Tribunal da Relação de Lisboa “o recurso ao telefone da arguida foi decorrente de indicação pela testemunha que lhe guardara a viatura e esta ser detectada por via de uma contraordenação estradal, tendo as escutas subsequentes servido apenas para  mais rápida localização do paradeiro e não como meio de prova em si para a determinação da responsabilidade da arguida na morte da vítima.“ (p. 59-60 do ac. recorrido; cf. também auto de diligência de 11.01.2021, a fls. 600 e ss, onde se verifica que com vista a obter elementos sobre o paradeiro da arguida, verificaram a existência de uma viatura registada em nome da arguida, e do registo constava uma contraordenação (praticada a 22.10.2018), onde era indicado como arguido a testemunha que veio a fornecer às autoridades o número de telemóvel da arguida — cf. em particular fls. 605). Ora, a localização obtida a partir das escutas telefónicas efetuadas, autorizadas por despacho do juiz, tiveram por base dispositivos legais distintos daqueles que são abrangidos pela decisão do Tribunal Constitucional, pelo que as vigilâncias efetuadas após os despachos que permitiram a realização das escutas telefónicas, o IMEI fornecido pelo prestador de serviços de telecomunicações em fevereiro de 2021 e a sua localização a 11.02.2021, resultou da aplicação das regras processuais penais que legitimam as escutas telefónicas, fora do âmbito da declaração de inconstitucionalidade.

2.3.  Sendo admissível o recurso da parte da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa relativa ao crime de homicídio — pelo qual a arguida vem condenada numa pena de 16 anos de prisão — e à aplicação da pena única de 16 anos e 3 meses resultante do concurso de crimes, o conhecimento deste Supremo Tribunal está delimitado pelo objeto de recurso apresentado pela arguida. Assim sendo serão conhecidas as seguintes questões:

 - erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada por, segundo a recorrente, erradamente terem mantido como factos provados os factos 1, 7, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18, e 20, e por erradamente considerarem que existiria móbil para a prática do crime, apesar de, segundo a arguida, não existir sequer conhecimento sobre a causa da morte; entende ainda não existir prova direta dos factos, considerando que o tribunal se limitou a valorar prova indiciária; neste ponto terminou ainda considerando que o tribunal a quo errou “na apreciação do recurso da arguida no que respeita aos factos elencados, devendo em consequência alterar se a matéria de facto conforme peticionado”;

-alega errada subsunção dos factos ao tipo legal de crime de homicídio qualificado, por isso se impondo, no seu entendimento, a sua absolvição;

- a manter-se a qualificação jurídica, entende que a pena devia ter sido fixada, para o crime de homicídio qualificado, próximo do mínimo legal.

Vejamos.

3. A arguida, para além de alegar a existência de erros-vício — erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada — entende que não existe prova direta sobre os factos, considerando que o Tribunal se limitou a valorar prova indiciária.

Analisemos o alegado, mas sem que se deixe de salientar que não se pode, como pretende a arguida, alterar a matéria de facto — a arguida alegou que o tribunal a quo errou “na apreciação do recurso da arguida no que respeita aos factos elencados, devendo em consequência alterar se a matéria de facto conforme peticionado” — uma vez que o Supremo Tribunal de Justiça tem os seus poderes de cognição limitados a matéria de direito, e mesmo que venha a concluir pela existência de um dos erros-vício (o que apenas poderá analisar a partir do texto da decisão recorrida) deverá reenviar os autos ao Tribunal a quo para suprir o erro.

Assim sendo, e tendo em conta que grande parte da fundamentação da matéria de facto resulta da valoração de factos base diretamente provados e dos quais se retiram os factos consequência, vejamos se alguns dos vícios elencados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente, erro notório na apreciação da prova, se verifica a partir do texto da decisão recorrida, isto é, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa. Ou seja, apenas nos cabe apreciar oficiosamente aqueles vícios, e não apreciar matéria de facto que ficou estabilizada com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e relativamente à qual já não é admissível recurso. Eventuais lacunas já não poderão ser colmatadas a não ser que haja alguma omissão de pronúncia sobre a qual aquele tribunal devesse ter sentenciado, ou quando tenha decidido com base em provas proibidas — o que de todo não é o caso.

Antes de prosseguirmos, há que distinguir uma avaliação em sede de recurso da decisão recorrida sobre um erro de julgamento (para o que o Supremo Tribunal de Justiça não tem poderes de cognição), e uma avaliação da decisão recorrida para verificação da existência (ou não) dos vícios consagrados no art. 410.º, n.º 2, do CPP — contrariamente à situação anterior em que o objeto de apreciação é a prova, aqui o objeto de apreciação é a decisão recorrida. Constitui jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que uma vez decidido o recurso pela Relação ficam esgotados os poderes de apreciação da matéria de facto, tornando‑se esta definitivamente adquirida, salvo se ocorrer algum dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, de que este Supremo Tribunal de Justiça deva conhecer oficiosamente.

Tem sido entendido que os vícios previstos nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º do CPP não podem constituir objeto do recurso de revista a interpor para o Supremo Tribunal de Justiça, e que este tribunal deles somente conhece ex oficio, quando constatar que a decisão recorrida, devido aos vícios que denota ao nível da matéria de facto, inviabiliza a correta aplicação do direito ao caso sub judice[6].

Na linha deste entendimento, não é admissível um recurso interposto de um acórdão proferido pelo Tribunal da Relação para este tribunal, na parte em que convoca a reapreciação da decisão proferida sobre matéria de facto, quer em termos amplos, quer por erro de julgamento (erro na apreciação da prova), ainda que decorra do disposto no art. 434.º, do CPP, uma salvaguarda relativamente aos vícios elencados no art. 410.º, n.º 2, do CPP.

Seguindo este entendimento, impõe-se apenas conhecer oficiosamente dos vícios do art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, casos em que o conhecimento destes vícios não constitui mais do que uma válvula de segurança a utilizar naquelas situações em que não seja possível tomar uma decisão (ou uma decisão correta e rigorosa) sobre a questão de direito, por a matéria de facto se revelar ostensivamente insuficiente, por se fundar em manifesto erro de apreciação ou, ainda, por assentar em premissas que se mostram contraditórias, e por fim quando se verifiquem nulidades que não se devam considerar sanadas.

Quanto ao vício previsto pela al. c) do n.º 2 do art. 410.º, do CPP, o mesmo verifica-se quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas segundo “o julgador com a especial formação e experiência de um juiz do Supremo Tribunal de Justiça”.[7]

O erro notório na apreciação da prova é um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, nomeadamente, através da leitura da matéria de facto e da fundamentação da matéria de facto, mas nem sempre detetável por um simples homem médio sem conhecimentos jurídicos. Na verdade, o erro pode não ser evidente aos olhos do leitor médio e, todavia, constituir um erro evidente para um jurista de modo que a manutenção da decisão com base naquele erro constitui uma decisão que fere o elementar sentido de justiça.

Este vício é verificado no processo a partir da análise interna da decisão, a partir do texto da decisão recorrida, nomeadamente da fundamentação da matéria de facto, recorrendo ao confronto dos termos da decisão com as regras da experiência comum. O objeto da apreciação é apenas a peça processual recorrida, não sendo lícito afirmar‑se a sua existência recorrendo a elementos que lhe sejam exteriores (designadamente depoimentos e declarações prestados, que não tenham no texto da decisão o mínimo de reflexo, quer durante o decurso do processo, em particular na fase de inquérito, quer na audiência de julgamento).

O erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a da recorrente.

Se a discordância do recorrente for apenas quanto à forma, isto é, como o tribunal valorou a prova e decidiu a matéria de facto, tal traduz-se em impugnação de matéria de facto apurada — que se integra em objeto de recurso sobre a matéria de facto — e que os recorrentes exercem no recurso interposto para a Relação, e por isso não podem vir repristinar, ainda que em crítica ao acórdão recorrido (o da Relação) por extravasar os poderes de cognição do STJ (art. 434.º, do CPP).

Vejamos, pois, se do texto da decisão recorrida, e apenas deste, em conjugação com as regras da experiência comum, se extrai algum erro notório da apreciação da prova.

A arguida entende existir erro notório na apreciação da prova relativamente aos factos provados 1, 7, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 18, 20, 23, 37, 38, 39 e 41 (foi exatamente esta a matéria de facto impugnada aquando do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa), pois entende que “tais factos não resultam de qualquer prova produzida”, baseando-se apenas em presunções para os dar como provados.

Apreciemos, então, a partir do texto da decisão recorrida.

Ora, do texto da decisão não se verifica a existência de qualquer erro quando se considerou provado que o início da relação de namoro entre a arguida e a vítima terá ocorrido entre 2016 e 2017 (facto provado 1; contrariamente ao que a recorrente alega, não resulta dos factos provados que a relação de namoro se tenha iniciado em 2015) e o facto provado 2 onde se dá como provada a coabitação desde março de 2016 até julho de 2018.  A inexatidão quanto ao início da relação de namoro, completada com a exatidão do facto provado quanto à coabitação do arguido e da vítima, permitem que se possa concluir da especial relação existente entre ambos aquando da prática do facto ilícito — entre julho e agosto de 2018 (facto provado 11) —, sendo esta especial relação o determinante para a qualificação do facto, pelo que bem se compreende a afirmação do Tribunal da Relação de Lisboa quanto à questão “da data de início de namoro parece-nos completamente despicienda e irrelevante para o destino do recurso pelo que não iremos aprodund[á-la]” (cf. p. 61 do ac. recorrido). Além disto, percebe‑se da fundamentação do acórdão recorrido que o facto provado 1 delimitou o início da relação de namoro entre 2016 e 2017 nos seguintes termos.

«Acresce ainda que resulta do teor do relatório social, não impugnado, transcrito na peça do Acórdão a fls 11 que referiu ter iniciado um relacionamento amoroso com a vítima quando teria 57 ou 58 anos. Considerando que nasceu em .../.../1959, tal teria contecido então por volta de 2016 ou mesmo 2017. Já no 1º interrogatório judicial disse que passou a viver com a vítima em 2014. Considerando esta inconsistência de informação exacta, à semelhança da incongruência de outras suas declarações acerca dos factos como bem assinalou o tribunal na motivação (foi o caso, por exemplo, da alusão a um tal “RR” com quem teria ido viver para a ... mas que depois referiu ser um personagem inventado , tendo dito depois que saíra de casa para passar ferias com a irmã ou mesmo no caso das contraditórias  explicações para os motivos das transferências para a sua conta em Julho de 2018 ) não admira que o tribunal  tenha fixado pelo menos o ano de 2016 como  o momento aproximado do início daquele tipo de relação.» (p- 61 do ac. recorrido).

Não se vislumbra, pois, qualquer erro notório na apreciação da prova.

No que diz respeito ao móbil do crime, verifica-se que foi dado como não provado que a arguida imputasse ao falecido a morte do canídeo de que era proprietária, mantendo-se, todavia, como facto provado o que terá sido determinante da prática do crime — a arguida ter descoberto o montante monetário de que a vítima dispunha (facto provado 7).

Não se depara, também aqui, a partir do texto da decisão recorrida, qualquer erro notório na apreciação da prova. Tal como expressamente refere o acórdão recorrido, a eventual venda do imóvel que havia sido doado à arguida não seria fácil, dado que o arrendatário poderia sempre usar do direito preferência na aquisição da casa.

Mas, da fundamentação da matéria de facto (constante do acórdão de 1.ª instância e transcrita no acórdão recorrido) resulta claramente que

«Reunidos os vários factos instrumentais apurados, pode firmar-se consistentemente a convicção de que a arguida planeou efectivamente a morte do falecido LL, procedendo a várias diligências nos dias antecedentes, quer a aquisição de medicamentos, quer a realização de operações bancárias. (...) Toda a entourage da actuação da arguida foge aos padrões de habitualidade e ao crivo da experiencia comum, ou seja, a dinâmica dos factos, evidencia que a arguida adquiriu os medicamentos cuja substancia activa foi causa da morte de LL, imediatamente antes de abandonar a residência comum e na mesma altura em que termina as transferências da conta comum e inicia os levantamentos em numerário da sua conta, ao mesmo tempo que o falecido passa a estar incontactável. Dúvidas também não restaram de que a arguida aproveitando o momento de intimidade com o falecido, - relembre-se como se encontravam desapertadas as calças envergadas pelo mesmo e o facto de ter sido encontrada uma lamela de Cialis na mesa junto ao cadáver -, levou o mesmo a consumir os comprimidos para a depressão em conjunto com o álcool, uma vez que a garrafa se encontrava vazia, sendo certo que as testemunhas próximas do falecido não tiveram dúvidas em afirmar que o mesmo habitualmente não consumia bebidas brancas, muito menos em excesso.

Não restam dúvidas que a arguida agiu de forma ardilosa e até premeditada, planeando toda a estratégia, relacionada com os movimentos bancários, sem que tenha se tenha apurado qualquer conduta da vitima, que pudesse justificar uma reacção da arguida. Também ao contrário daquilo que pretendeu fazer crer a arguida em sede de interrogatório, resultou apurada a sua conduta posterior, no sentido de passar despercebida e em paradeiro incerto, usando múltiplas identidades e números de telemóvel, o que apenas se explica por não só saber precisamente o fim do seu companheiro, como pelo facto de estar implicada em tal desfecho, - a chamada efectuada para a testemunha foi apenas uma forma de querer fazer crer que nada sabia sobre o desfecho trágico de LL, quando na verdade tudo preparou sabendo que o LL já se encontrava morto graças aos comprimidos por si ministrados, saindo de casa bem sabendo que ali não mais voltaria e que levava consigo tudo o que precisava e que queria ter junto de si, como os restos mortais do seu animal de estimação. Tanto assim, que nada fez no sentido de reaver os seus pertences que ainda se encontravam na casa comum, não explicando a necessidade de proceder subitamente ao levantamento do valor avultado, nem de não utilizar o veículo registado em seu nome, nem contactar a filha do falecido a fim de resolver a questão da renda da casa de ... que havia sido doada a si pelo falecido. O facto de os pagamentos com o cartão da conta de ambos terem terminado em data próxima àquela em que o falecido deixou de ser contactável, logo após a compra dos medicamentos pela arguida e precisamente após a realização dos exames clínicos no dia 24 de julho, data apontada pela arguida como tendo saído de casa, não deixam margem para dúvidas de que esta montou um ardil, por forma a fazer o falecido beber o conteúdo da garrafa com a amitriptilina diluída, enquanto o atraía para a prática sexual, levando-o também a tomar o comprimido de Cialis, o que conjugadamente produziu um cocktail explosivo, conduzindo à morte do LL, como bem pretendia a arguida.» (p. 37-39 do ac. recorrido)

 Também aqui não se evidencia qualquer erro-vício. É certo que apenas se obteve prova indireta.

Ora, a prova indiciária pressupõe a prova de um indício, de um facto-base a partir do qual se retira o facto-consequência. E, a partir da jurisprudência deste Tribunal, terá de se verificar se, do texto da decisão recorrida, nomeadamente da fundamentação da matéria de facto provada, podemos concluir que de factos base diretamente provados decorrem com segurança os indícios necessários à imputação dos factos à arguida dos autos. 

Analisando a fundamentação do acórdão recorrido, verificamos que a partir dos diversos elementos de prova resultaram vários factos-base explicitamente elencados pelo Tribunal; assim:

«Na verdade, o conjunto de prova produzida, permitiu ao Tribunal conhecer dos seguintes factos:

- a arguida desaparece antes do aparecimento do cadáver, sendo que em sede de primeiro interrogatório judicial declarou ter deixado a casa arrendada pelo casal no dia 16.07.2018, apesar de posteriormente no final da audiência de julgamento afirmou ter deixado a casa no dia 23 ou 24 de julho de 2018;

- desde julho de 2018 até à sua detenção, a arguida mudou sucessivamente de visual, nomeadamente de corte e cor de cabelo;

- no mesmo período de tempo a arguida mudou quinze vezes de número de telemóvel;

- durante o mesmo período de tempo a arguida assumiu diferentes identidades, nunca apresentando os seus documentos de identificação, nem dando qualquer explicação para a utilização de “pseudónimos”, como declarou em sede de audiência de julgamento;

- após a saída da casa arrendada pelo casal, a arguida não contactou o senhorio nem o falecido, nem recolheu os seus objectos que ainda se encontravam na casa, tendo deixado a casa comum com várias malas, onde transportou muitos dos seus bens pessoais e inclusivamente as cinzas do canídeo que havia morrido em junho de 2018 - a renda referente ao mês de agosto foi paga em julho de 2018, muito antes da data prevista para o pagamento;

- não foram encontrados vestígios de impressões digitais nem no copo nem na garrafa encontrados junto ao corpo, saliente-se, nem mesmo as impressões digitais do falecido, que teria bebido do copo, vazando bebida da garrafa, o que evidencia que tanto o copo como a garrafa foram limpos para apagar impressões digitais da arguida, porque foi esta quem terá servido e dado a beber o conteúdo da garrafa ao falecido LL;

- não foram encontrados sinais de arrombamento da porta de entrada do apartamento, encontrando-se a chave na fechadura do lado de dentro, ou seja não há qualquer razão para assumir a presença de estranhos na casa;

- o falecido encontrava-se com as calças desapertadas, de “braguilha aberta”, com os sapatos descalçados, embora perto do sofá, e na mesa encontrava-se uma lamela de Cialis, medicamento que deve ser tomado “ocasionalmente, quando o homem com disfunção pretende ter uma relação sexual satisfatória”, segundo fontes abertas na internet, sendo que a única relação amorosa conhecida ao falecido era com a arguida;

- apesar da causa da morte ter sido a ingestão em sobredosagem de amitriptilina, junto ao corpo, no cenário do crime, não foram encontrados vestígios de tal medicamento, pese embora ali se encontrasse uma lamela de Cialis, medicamento para a disfunção eréctil, revelando que imediatamente antes da morte o falecido teve ou pensava ter relações sexuais (recorde-se a braguilha aberta), tudo apontando que o mesmo tivesse tivesse ingerido a amitriptilina em sobredosagem, diluída e disfarçada com a bebida alcoólica, operação realizada pela arguida que facilmente pôde esmagar os comprimidos e misturá-los com a bebida alcoólica, sem necessidade de recurso a violência;

- apesar de possuir viatura automóvel, a arguida até à sua detenção, não utilizou este carro, que até aos dias de hoje permanece estacionado na garagem da testemunha MM, tendo ali deixado o veículo no Verão de 2019, alegadamente para não pagar as taxas de estacionamento;

- até ao dia 21 de julho de 2018 são efectuadas transferências da conta titulada por ambos para a conta titulada pela arguida; - no dia 21 de julho de 2018 a arguida inicia uma série de levantamentos da conta bancária por si titulada;

- os medicamentos detectados na autópsia realizada foram adquiridos no dia 19 de julho de 2018 pela arguida, sendo que não foram encontradas prescrições médicas relativas a tais medicamentos nem relativamente ao falecido nem relativamente à arguida;

- a partir do dia 21 de julho de 2018 deixam de ser lidas as mensagens enviadas para o telemóvel do falecido;

- da análise dos movimentos bancários das duas contas existentes na CGD verifica-se que à medida que o saldo da conta titulada pelo falecido e pela arguida diminui, aumenta o saldo da conta titulada pela arguida;

- a conta titulada pelo falecido e pela arguida deixa de ter pagamentos efectuados com o cartão bancário em terminais ATM a partir do dia 23 de julho de 2018;

- a ultima pessoa a falar telefonicamente com o falecido foi SS no dia 19 de julho de 2018;

- o falecido tinha uma viagem planeada de regresso aos ... no dia 31 de julho de 2018 para passar o período de férias de Verão com a sua filha, genro e netos, com bilhete de avião comprado;

- o falecido tinha agendados exames na clinica A... em ... para o dia 24 de julho de 2018, sendo que apresentava um penso no braço o que indica que chegou a realizar tais exames;

- pese embora tenha sido dado inicio ao um processo para celebração de casamento entre arguida e falecido em 2017, a sentença de reconhecimento de decisão estrangeira foi proferida apenas em 07.06.2018, data muita próxima da data de 10.06.2018, data da morte do animal de estimação da arguida, acontecimento que era transmitido pela arguida a terceiros como de grande perda e da responsabilidade do falecido.» (p. 35-37 do ac. recorrido).

É destes factos base que se retira o facto-consequência concordando que a arguida planeou a morte da vítima, procedendo a diversas diligências nos dias anteriores, e em particular, adquirindo os medicamentos que veio a utilizar e cuja substância ativa foi causa da morte da vítima (cf. fundamentação da matéria de facto provada transcrita supra e constante das p. 37-39 do ac. recorrido).

  Assim sendo, improcede o recurso interposto dada a inexistência erro-vicio, por não se vislumbrar qualquer erro notório na apreciação da prova e por não se poder concluir, de modo algum, que a matéria de facto dada como prova é insuficiente para a decisão tomada. Da matéria de facto provada consta de forma clara quer os elementos objetivos quer os elementos subjetivos do tipo legal de crime de homicídio qualificado pelo qual vem condenada, maxime dos factos provados                                                                                                                                                                   9, 10, 11, 12 e 13, 37, 38, 39, 40 e 41.

Por fim, resta afirmar que não resultam do acórdão recorrido quaisquer elementos que nos permitam considerar que houve alguma dúvida quanto à autoria dos factos, tanto mais que a recorrente pretende extrair esta dúvida da conclusão de que existiria erro na apreciação da prova e insuficiência da matéria de facto para a decisão; ora, tenho sido concluído o contrário, improcede esta alegação da recorrente.

 4. Sabendo que resulta dos factos provados (em particular dos referidos anteriormente) que a vítima morreu em consequência da conduta da arguida que administrou medicamentos que lhe causaram a morte, que decidiu a realização do facto tendo atuado dolosamente e sabendo que arguida e vítima mantinham uma relação análoga às dos cônjuges, com coabitação, não vemos como se possa afirmar uma errada subsunção dos factos.  Aliás, a recorrente alega a errada subsunção jurídica por considerar que os factos foram erradamente dados como provados; ou seja, faz depender da alegação anterior da existência de erros-vício a errada subsunção.
Senão vejamos:

A arguida alega que:

«Na esteira dos erros atinentes à apreciação da matéria de facto dada como provada, acima expostos, e com todo o respeito, erraram também os Venerandos Juízes Desembargadores na aplicação do direito.

Assim, os factos acima mencionados, que na nossa modesta opinião foram erradamente dados como provados tiveram inevitavelmente influência na aplicação do direito.

Isto porque, entendemos que não estão verificados os elementos do tipo do crime de homicídio qualificado, pelo qual a arguida foi condenada.

Impondo-se a absolvição da mesma.

Não decidindo assim, errou o Tribunal na aplicação do direito, violando o disposto nos art. 131º e 132º n.ºs 1 e 2, alínea b) do C. Penal.» (p. 32-33 da motivação de recurso apresentado).

Ora, constituindo a alegação da errada subsunção jurídica dependente da anterior alegação de que os factos foram erradamente dados como provados, e tendo este Supremo Tribunal concluído pela improcedência das anteriores alegações, improcede consequentemente esta parte do recurso.

5. Por fim, supletivamente, a recorrente recorre da pena aplicada, considerando que a pena do homicídio devia ter ficado próximo do limite mínimo da moldura penal dado a “arguida ser primária, de as necessidades de prevenção especial serem diminutas e até tendo em conta a doença de que padece, que seguramente afetaram a sua capacidade volitiva” (p. 33 da motivação) (sendo certo que quanto à pena aplicada ao crime de falsas declarações não se apreciará dada a irrecorribilidade do acórdão nesta parte, tal como referimos supra) (cf. conclusões ZZ, AA, BBB, CCC).

Comecemos por salientar que a recorrente, apesar de começar por concluir que a medida concreta da pena é desproporcional e excessiva, não mais alega qualquer fundamento quanto à pena única aplicada.

A arguida vem condenada numa pena de prisão de 16 anos pelo crime de homicídio e numa pena única de 16 anos e 3 meses de prisão, resultante do cúmulo jurídico da pena aplicada ao crime de homicídio com apena aplicada ao crime de falsas declarações de 7 meses de prisão.

A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências da prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º, do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela dos bens jurídicos em causa e às exigências sociais decorrentes das lesões ocorridas, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade humana do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever‑se-ão ter em conta todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o arguido, nomeadamente, os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenha tido em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração).

A partir dos factos provados, podemos concluir estarmos perante um caso em que a culpa do agente é intensa, e as exigências de prevenção geral e especial são elevadas.

Na apreciação da pena a aplicar, já não se poderá ter em conta a forma de execução do facto ou as especiais relações entre a arguida e a vítima, sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração, uma vez que foram elementos determinantes para a qualificação do homicídio. Porém, é relevante o comportamento posterior aos factos, em particular, ter ficado incontactável, ter deixado de realizar movimentos bancários ou utilizar o veículo, ter assumido diversas identidades (sem que aqui se esteja a valorar a sua falsidade), tudo elementos que demonstram uma certa tentativa de ocultação da sua pessoa. Mas é relevante a consciência do desvalor do seu comportamento, embora com “fraca capacidade de pensamento consequencial e de resolução de problemas”, e “receando eventuais consequências (...) em termos pessoais e familiares” da sua situação.                                                                                                                    

Em contexto prisional, já são referidas duas infrações disciplinares a denotar fortes exigências de prevenção especial. A que acrescem relevantes exigências de prevenção geral atento o crime praticado e o bem jurídico lesado, a exigir uma demonstração assertiva de que a norma, apesar de violada, continua a ordenar a comunidade; tanto mais que se impõe demonstrar à coletividade que não deixam de ser punidos os crimes praticados entre pessoas com uma relação análoga à dos cônjuges, ou seja, entre pessoas onde o respeito, entre e por cada um dos elementos da relação, deve imperar, e os crimes que protegem um bem jurídico fundamental e básico de qualquer ser humano — a vida; pelo que, as exigências de prevenção geral impõem‑se de forma premente e acrescida.

Torna-se elucidativa a fundamentação do acórdão recorrido:

«Acresce, ainda, referir que o acto foi planeado, intervieram circunstâncias qualificativas, a arguida não revelou o mínimo arrependimento do que fez.

Foi ainda de uma enorme ingratidão para a vítima, que sempre dela tratou bem e apoiou, revelando com isso, ao matá-lo, uma personalidade fria, calculista e de desprezo por aquele, em favor do seu móbil financeiro egoísta.

A dissimulação de identidade e falsidade de identificação foi perdurante e intensa.

Cremos até que seria exigível que as penas aplicadas tivessem sido fixadas em patamar um pouco mais elevado do que o foram, a um nível perto dos 20 anos para o crime de homicídio já que o dolo foi intenso, a culpa muito elevada e o grau de censura merecido apelava a uma maior intensividade da reacção institucional. Por isso, se houve desproporcionalidade foi-o por defeito e não por excesso.

Lembremos, ainda, o que se explicitou para o efeito no acórdão recorrido: (...)

“A assunção da arguida relativamente às falsas declarações quanto à sua identidade não constitui atenuante de relevo, tendo em conta a prova pré-constituída nos autos, e concretamente a presença de diversas testemunhas durante o fragmento situacional e a sua persistência em conferir um enquadramento à sua conduta mitigador da sua culpa, atribuindo os acontecimentos criminosos a questão de estado emocional, e mudando as versões da história ao sabor do vento.

Acresce ainda o facto de não ter ocorrido qualquer ato de inflexão decorrente de qualquer juízo de auto-censura realizado pela arguida.

No que concerne à sua personalidade trata-se de um indivíduo sem percurso profissional consolidado, não apresentando um projecto de vida estruturado e consistente, como resulta evidente do seu percurso errante nos dois anos subsequentes à prática do crime. Em benefício da arguida, importa considerar a ausência de registos criminais, o facto de estar integrada familiarmente, conforme confirmaram as testemunhas de defesa, seus familiares.

Sem em caso algum exceder a culpa, a pena concreta há-de situar-se na medida necessária para a arguida interiorizar a necessidade imperiosa de manter uma vida norteada pelas regras do direito e para garantir que não volte a cometer factos desta natureza. Transpondo as precedentes considerações para a dosimetria da pena concreta, e uma vez que o crime de homicídio, na forma qualificada é punido com pena de prisão entre doze e  vinte e cinco anos, considerando as circunstâncias que rodearam a prática do crime de  homicídio na forma consumada e os concretos actos de execução a montante e a jusante, já sobejamente esmiuçados supra, entende-se justa, adequada e proporcional a pena de  dezasseis anos de prisão efectiva. (...)

As penas, quando sejam necessárias, têm que ser, assim, adequadas e proporcionadas à protecção do bem jurídico violado.

Revertendo tais considerandos para o caso concreto dir-se-á que agrava o grau de ilicitude (e por isso as exigências de prevenção), a questão da necessidade de preparação anterior e posterior do plano criminoso, sendo que o dolo da arguida nos delitos cometidos foi intenso, denunciado por uma forte e persistente energia criminosa, traduzida na insensibilidade demonstrada, na ausência de confissão e arrependimento...no engano utilizado na relação conjugal e na a consequente dimensão do seu dever de respeito que acabou por violar de forma exuberante, pelo que « a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça».

Assim, na moldura de conjunto entre dezasseis anos e dezasseis anos e sete meses considera-se justa, adequada e proporcional a pena única de dezasseis anos e três meses de prisão.

(…)”

O tribunal a quo, como se vê com clareza, fez uma adequada interpretação dos critérios legais  de forma coerente, sem prejuízo de não ter deixado de transparecer  alguma brandura punitiva como se lê do excerto transcrito. Proibida, porém, no nosso ordenamento jurídico a reformatio in pejus  em sede criminal, só podemos então concluir pela manutenção da decisão e pela improcedência do recurso.» (p. 74-77 do ac. recorrido).                                                                                                                                                                                                                          

Neste contexto, a partir de uma moldura entre 12 e 25 anos, a pena de prisão de 16 anos para o crime de homicídio, não ultrapassando, de modo algum, o limite imposto pela culpa do agente, cumprindo as exigências de prevenção geral, e sendo adequada às exigências de prevenção especial, não é passível de censura.

Nos casos de concurso de crimes (e em obediência ao princípio constitucional da legalidade criminal, a pena única apenas pode ser aplicada caso estejam verificados os seus pressupostos de aplicação, isto é, caso estejamos perante uma situação de concurso efetivo de crimes), a determinação da pena única conjunta tem de obedecer (para além daqueles critérios gerais) aos critérios específicos determinados no art. 77.º, do CP. A partir dos critérios especificados é determinada a pena única conjunta, com base no princípio do cúmulo jurídico. Assim, após a determinação das penas parcelares que cabem a cada um dos crimes que integram o concurso, é construída a moldura do concurso, tendo como limite mínimo a pena parcelar mais alta atribuída aos crimes que integram o concurso, e o limite máximo a soma das penas, sem, todavia, exceder os 25 anos de pena de prisão (de harmonia com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).

A partir desta moldura, é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º, ambos do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1, do CP, "são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a partir dos factos praticados, deve proceder se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique”. Na avaliação da personalidade, ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade, sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever se á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade; exigências, porém, limitadas pelas imposições derivadas de finalidades de prevenção geral de integração (ou positiva).

São estes os critérios legais estabelecidos para a determinação da pena e, em particular, para a determinação da pena única conjunta.

Nos termos do art. 77.º, n.º 2, do CP, a pena única conjunta, a aplicar a um caso de concurso crimes, é determinada a partir de uma moldura que tem como limite mínimo “a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”, e como limite máximo “a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Pelo que as penas concretas aplicadas a cada crime constituem os elementos a partir das quais se determina aquela moldura.

Nestes termos, a moldura do concurso de crimes a partir da qual deve ser determinada a pena concreta a aplicar tem como limite mínimo a pena concreta aplicada mais elevada, e como limite máximo a soma das penas concretas aplicáveis, ou no máximo, 25 anos de prisão, de acordo com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP.

Assim sendo, a moldura da pena única oscila entre 16 anos de pena de prisão (a pena concreta mais alta) e os 16 anos e 7 meses de prisão. Tendo em conta esta moldura, a pena de 16 anos e 3 meses, mostra-se adequada à globalidade dos factos e à personalidade neles revelada, sem que se possa concluir, atenta a inexistência de quaisquer outros crimes, por uma personalidade com uma tendência criminosa. Sabendo que as exigências de prevenção geral e especial não se mostram particularmente acrescidas quando analisados os factos em conjunto, entendemos, todavia, que o acréscimo de 3 meses à pena do homicídio, o mínimo da pena que poderia ser aplicada à arguida, não se mostra excessivo, pelo que improcede também aqui o recurso interposto.


III
Conclusão
Nos termos expostos acordam, em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em julgar improcedente o recurso interposto pela arguida AA, mantendo a decisão recorrida.

Custas em 3 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 16 de fevereiro de 2023
Os Juízes Conselheiros,

Helena Moniz (Relatora)
António Gama
Orlando Gonçalves

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[1] Quer no acórdão de 1.ª instância, quer no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não consta o facto 4.
[2] Corrigiu-se o lapso — “conjugue”.
[3] Corrigiu-se o lapso.
[4] Corrigiu-se o lapso.
[5] Diário da República n.º 108/2022, Série I de 2022-06-03, páginas 18-81: “Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei; declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros”.
[6] Neste sentido, vide, entre muitos outros, o Acs. do STJ de 13-11-2014, Proc. n.º 249/11.0PECBR.C1.S1; de 07-05-2014, Proc. n.º 250/12.7JABRG.G1.S1; de 18-06-2014, Proc. n.º 659/06.5GACSC.L1.S1; de 02-10-2014, Proc. n.º 87/12.3SGLSB.L1.S1, todos acessíveis in www.dgsi.pt; bem como Acs. de 13-02-2014, Proc. n.º 160/13.0TCLSB.L1.S1; de 27-02-2014, Proc. n.º 1572/11.0JAPRT.P1.S2; de 10-04-2014, Proc. n.º 431/10.8GAPRD.P1.S1; de 14-05-2014, Proc. n.º 42/11.0JALRA.C1.S1; de 18-09-2014, Proc. n.º 1299/09.2PBLRA.C1.S1; de 25-09-2014, Proc. n.º 384/12.8TATVD.L1.S1, todos acessíveis in www.stj./jurisprudencia/sumários de acórdãos/Criminal - Ano de 2014.
[7] Sousa Brito, voto de vencido no ac. n.º 322/93, do Tribunal Constitucional, in www.tribunalconstitucional.pt.