Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
743/2001.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
CUMPRIMENTO
RECUSA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
PERDA DO INTERESSE DO CREDOR
ÓNUS DA PROVA
RESOLUÇÃO DE NEGÓCIO
SINAL
Data do Acordão: 04/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - RECURSOS
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 406.º, 442.º, 804.º, 805.º, 808.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 678.º, N.ºS2 E 3, 721.º, N.º1, 722.º, N.º 1, 754.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 5/07/2005, PROCESSO N.º 1881/05;
-DE 11/10/2005, CJSTJ, ANO XIII, TOMO III, 70;
-DE 22/01/08, PROCESSO N.º 724/05, EM WWW.DGSI.PT;
-DE 12/01/2010, EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A recusa inequívoca do cumprimento configura uma hipótese de incumprimento definitivo que dispensa a interpelação admonitória e a prova pelo credor da insubsistência do seu interesse no cumprimento.
II - Tal recusa, como flui dos termos da carta de fls. 197/198, legitimou os réus a declarar a resolução do contrato e a fazerem seu, agora nos termos da primeira parte do n.º 2 do art. 442.º do CC, o montante do sinal recebido.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

Nesta acção declarativa de condenação com processo ordinário, que a AA, SA, propôs contra BB e mulher CC, pede a autora que (i) seja confirmada e declarada a resolução do contrato promessa celebrado entre as partes, em 21/08/2000 e que (ii) sejam os réus condenados a pagar-lhe a quantia de 60.000.000$00, correspondente ao dobro do sinal prestado pela autora, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento.

Fundamentando a sua pretensão, alega, em síntese, que autora e réus celebraram um contrato-promessa de compra e venda, em que a primeira prometeu comprar e os segundos prometeram vender os prédios e demais bens identificados na petição inicial, tendo a autora entregue aos réus, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 30.000.000$00. Entretanto, os réus incumpriram o referido contrato, tendo vendido a terceiros os bens objecto do contrato.

Os réus contestaram, alegando, em síntese, que as partes acordaram em que as escrituras de compra e venda deveriam ser outorgadas em simultâneo e impreterivelmente até 15/10/2000, o que se traduziu na fixação de um prazo absolutamente fixo, sendo que a autora começou por pretender condicionar a referida outorga à obtenção de financiamento, o que os réus não aceitavam, tendo no entanto concordado que as escrituras fossem outorgadas até 31/12/2000, desde que a autora procedesse a um reforço do sinal até 7/11/2000, o que a mesma não fez, tendo, nessa data, remetido aos réus uma carta em que, a certa altura, diz que estavam livres para, a partir de então, negociarem com terceiros.

Concluem pela improcedência da acção e pedem a condenação da autora como litigante de má-fé.

A autora replicou, tendo-se os réus oposto, com o fundamento de que se não tinham defendido por excepção.

Esse articulado veio a ser admitido preliminarmente ao despacho saneador, decisão de que os réus agravaram.

Saneado, instruído e julgado o processo, foi proferida sentença que absolveu a autora do pedido de condenação como litigante de má-fé e, na parcial procedência da acção, condenou os réus a devolverem à autora a quantia de 150.000 euros, correspondente aos 30.000.000$00 que dela haviam recebido a título de sinal.

Desta decisão apelaram a autora e os réus, o que arrastou a subida do agravo, vindo a ser proferido o acórdão de fls. 865/872 que, conhecendo, em primeiro lugar, do agravo, julgou o recurso procedente, ordenando o desentranhamento da réplica e anulando, consequentemente, todo o processado bem como todos os actos que se seguiram ao despacho que admitiu o referido articulado, ordenando, ainda, que, na elaboração da condensação, se tivessem, apenas, em conta os factos articulados na petição inicial e na contestação, seguindo-se os demais termos até final.

Do referido acórdão veio a ser interposto recurso que, embora recebido, veio a ser considerado inadmissível no Supremo Tribunal de Justiça.

Cumprindo-se o decidido no acórdão da Relação, foi convocada a audiência preliminar, tendo a autora oferecido o articulado de fls. 1046/1049 concretizando a matéria de facto, alegada nos artigos 9º e 10 da petição inicial, ao que os réus se opuseram, ao mesmo tempo que, por sua vez, ofereceram o articulado de fls. 1051/1066, concluindo dever proferir-se, desde logo, saneador-sentença, tendo a autora respondido, no sentido de que esta pretensão devia ser julgada improcedente, o que foi objecto de contra-reposta por parte dos réus.

Tentada e frustrada a conciliação das partes, foi apreciado o articulado de fls. 1046/1049, concluindo-se pela sua inadmissibilidade, o que motivou a interposição de recurso de agravo por parte da autora.

Seguiu-se a prolação do saneador e, considerando não poder conhecer-se, desde logo, do mérito da causa, a selecção da matéria de facto assente e controvertida com a organização, quanto a esta última, da base instrutória, de que reclamaram ambas as partes, tendo, porém, sido desatendidas.

Instruído o processo, teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida a sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo os réus do pedido. Outrossim foi julgado improcedente o pedido de condenação da autora, como litigante de má-fé.

Inconformada com esta decisão, apelou a autora para a Relação, tendo este recurso arrastado consigo o de agravo.

Foi, então, proferido o douto acórdão de 29/11/2011, que julgou improcedente o recurso de agravo e improcedente também a apelação, confirmando a sentença.

De novo inconformada, a autora recorre para o Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formula as seguintes conclusões[1]:

1ª - A audiência preliminar, no caso concreto, foi convocada pela Sr.ª Juiz de Direito com os fins previstos no artigo 508º - A n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil.

3ª - Se o Tribunal da Relação de Évora decidiu que a contestação dos réus nestes autos não tinha matéria de excepção e a autora não podia replicar, tal está definitivamente decidido e tudo o que se passou após a contestação foi anulado, ou seja, é como se nunca tivesse acontecido.

4ª - Ora assim sendo, em face do alegado pela autora, ora recorrente, na sua petição inicial, é necessário concretizar matéria de facto que aí foi alegada, nomeadamente nos artigos 8° e 9°. Na verdade, desses artigos consta a seguinte matéria:

“8º - Os réus tinham conhecimento, desde o início das negociações, que a autora iria recorrer a um financiamento bancário para poder comprar os bens do contrato-promessa.

9º - Por razões alheias à vontade da autora, surgiram dificuldades na obtenção do financiamento bancário, indispensável à outorga das escrituras prometidas, dificuldades a que os réus não foram totalmente alheios, e que vieram a inviabilizar, efectivamente, o referido financiamento”.

5ª - Ao convocar a audiência preliminar, não se pode vedar a complementação da matéria de facto alegada.

A alegação feita pela autora necessita de ser concretizada ou complementada. Assim:

1º - Os réus sabiam desde o início que a autora iria recorrer a um financiamento bancário para poder comprar os bens do contrato-promessa no montante de 250.000.000$00 (duzentos e cinquenta milhões de escudos);

2º - Uma vez que os réus não quiseram declarar o valor real das compras e vendas 300.000.000$00 (trezentos milhões de escudos);

3º - E por causa disso;

4º - A autora não conseguiu obter o financiamento bancário indispensável à outorga das escrituras prometidas, uma vez que precisava de um valor de financiamento superior ao montante que os réus estavam dispostos a declarar nas escrituras;

5º - Sendo que o que inviabilizou o respectivo financiamento foi o facto de os réus não quererem declarar o valor real das vendas.

7ª - A causa de pedir desta acção não será alterada se for admitido o articulado a aperfeiçoar a petição inicial que a autora atravessou nos presentes autos na audiência preliminar. A causa de pedir na presente acção é: com a actuação e conduta que os réus adoptaram, estes impossibilitaram que a autora cumprisse o contrato-promessa que celebrou com os réus, ao mesmo tempo que estes incumpriram o contrato-promessa celebrado com a autora.

8ª - Ao admitir-se que os factos alegados no artigo 8° e 9° da petição inicial necessitam de ser concretizados, não é nem será por causa de existir uma decisão de um Tribunal Superior a não admitir a réplica que a autora poderá se impedida de concretizar a matéria factual alegada deficientemente nos artigos 8° e 9° da sua petição inicial, bem como essa concretização dos artigos 8° e 9° não pode ser entendida como sendo uma alteração da causa de pedir.

A autora não altera a causa de pedir com a concretização que pretendia fazer até porque todos os factos que por si foram alegados na petição inicial não são extravasados, desde que melhor concretizados. E isto independentemente do preço das compras e vendas que os réus acabam por reconhecer ser de 300.000.000$00, quando transcrevem uma carta que foi endereçada ao réu pelo legal representante da autora.

9ª - Sentenciou-se que, perante a declaração da autora, (onde, em síntese, se julga que se atribui à autora que esta queria concretizar o negócio mas que essa declaração não deixa dúvidas quanto ao não cumprimento do negócio, nos exactos termos prometidos, tendo a autora sugerido aos réus a venda de bens a terceiros, caso surgisse a oportunidade de venda), esta teria emitido uma declaração onde a mora se teria convertido em incumprimento definitivo.

10ª - O escrito que foi julgado como uma declaração de incumprimento do contrato contém uma declaração onde a autora diz não ter capacidade de obter o dinheiro que necessita, na banca, para poder pagar o preço, atenta a divergência dos valores existentes, ou seja, o valor declarado e o valor real das compras e vendas prometidas. É só isso que se diz e nada mais.

13ª - A declaração à contraparte que o devedor não tenciona cumprir o contrato, para que signifique o anúncio de um verdadeiro incumprimento, é necessário que seja ilícita ou que a impossibilidade não esteja conexionada com eventos que nos remetam para a zona da repartição do risco contratual e que é delimitada em geral pelos artigos 795º e 796º do Código Civil. No mínimo impunha-se que fosse averiguada a diferença de preços pois se no contrato-promessa junto com a petição inicial se estabelece um valor de 162.540.000$00 para as compras e vendas prometidas como é que no documento que os réus juntam e que foi apelidado de declaração antecipada de não cumprimento está um valor de 300.000.000$00? O abuso de direito é conhecido oficiosamente e não foi.

16ª - A declaração da autora diz que não pode pagar no prazo contratado mas diz que paga tudo e que quer cumprir com o contrato.

Não é uma manifestação intencional, pessoal e unilateral, suficientemente clara, unívoca e séria de modo a que provoque nos credores ou réus a certeza de que a autora não iria cumprir o contrato.

19ª - Não pode interpretar-se a declaração que se atribui à autora como sendo uma declaração inequívoca que não vai cumprir o contrato. Nessa declaração dá-se conta das dificuldades em obter o financiamento bancário.

20ª - Da matéria de facto dada por provada, não resulta que a autora tivesse, expressa, clara e inequivocamente, declarado o propósito (e a vontade) de não cumprir. Incorreu, sim, em mora. Mas tal não basta para caracterizar a acenada “repudiation”.

21ª - Os réus deviam ter lançado mão da faculdade de fixação de um prazo razoável de cumprimento, podendo até marcar a escritura para determinada data e, no acto dessa fixação, determinar a cominação da resolução (automática) do contrato (interpelação cominatória).

22ª - Não é demais repisar que a declaração junta pelos réus com a sua contestação sob o nº 2 é não é mais do que uma declaração onde o administrador da autora comunica ao réu marido a sua intenção de cumprir o contrato, ao mesmo tempo que informa e dá conta das suas dificuldades na obtenção do financiamento para poder pagar o preço dos bens, dizendo que, “se tiver alguém que concretize o negócio consigo, o amigo não se prenda pois não tem de o fazer”. Esta não é uma declaração a sugerir ao réu para fazer o contrato que foi prometido fazer com a autora, com terceiros.

23ª - Esta não é uma declaração inequívoca que a autora não iria cumprir o contrato. Perante o texto do contrato promessa, onde consta expressamente o preço dos preços dos bens prometidos e o montante que se declara na proposta de compra, qualquer pessoa percebe que a referência às dificuldades na obtenção do crédito se traduz na diferença entre o valor declarado e o valor efectivo de venda.

24ª - Independentemente de estar ou não condicionada a realização do contrato prometido à obtenção do financiamento bancário, a verdade é que nunca se deve esquecer e deve considerar-se, em homenagem ao princípio do pontual cumprimento dos contratos, nos termos do disposto no artigo 406° do Código Civil e à confiança que os contraentes depositam no cumprimento das prestações recíprocas, que constitui fundamento para a resolução do contrato a violação grave do princípio da boa-fé, que abrange os deveres acessórios de conduta. A regra da boa-fé, enquanto arquétipo de conduta leal, justa, que impõe eticamente o dever de respeitar os interesses do outro outorgante não se compadece com a tese de que a autora concordou e deveria saber que não podia obter um financiamento superior ao valor a declarar nas compras e vendas que necessitava para adquirir os prédios. Se a autora concordou com tal ao contratar, quando se viu impossibilitada de obter o financiamento por causa desse obstáculo, deveria a outra parte atender às dificuldades do montante a declarar que no mínimo beneficiava ambos os contraentes e que, no fundo, dada a intransigência acabou por prejudicar somente a autora.

25ª - A declaração constante do documento junto pelos réus com a sua contestação a dar conta das dificuldades na obtenção do crédito que necessitava para obter o dinheiro indispensável para a realização da escritura prometida não é uma declaração de que não vai cumprir o contrato. É antes uma declaração a informar que naquele quadro e enquanto o preço a declarar não fosse o preço real, a autora não conseguia obter o capital que necessitava.

26ª - Um documento tem de ser analisado na sua íntegra. O legal representante da autora a título particular dá conta ao réu marido das dificuldades na obtenção do empréstimo bancário. Nunca diz que não quer cumprir o contrato. Só diz que precisa de ultrapassar as dificuldades do banco, ou caso isso não seja possível - atento o facto de estar nas mãos dos réus, pois só eles poderiam estar de acordo com a alteração do preço a declarar nas escrituras prometidas - poderia, mantendo o preço a declarar nas escrituras pagar em prazo mais dilatado. Que não corresponde a uma declaração de incumprimento, é um facto.

27ª - Não sendo a declaração que se atribui à autora uma declaração sua e muito menos uma declaração de não cumprimento do contrato, o contrato-promessa não foi resolvido pelos réus, que o incumpriram, portanto, vendendo os bens a terceiros. E como tal têm de ser condenados a devolver o sinal em dobro à autora, nos termos do disposto no artigo 442° do Código Civil, artigo esse que foi violado no acórdão em crise.

28ª - Por outro lado, a fim de assegurar o pleno e efectivo patrocínio da autora, sempre se dirá que o prazo do contrato-promessa não é um prazo absolutamente fixo. E tanto assim é que o prazo que constava do contrato-promessa para a realização da escritura prometida era o do dia 15 de Outubro e a autora marcou a escritura para o dia 23. Essa escritura não se veio a fazer, pois o financiamento bancário que a autora necessitava não foi concedido, atenta a diferença de valores.

29ª - Nunca por nunca se poderá considerar que a aceitação da primeira marcação das escrituras para o dia 23 de Outubro de 2000 se traduz numa concessão de um prazo suplementar. Traduz-se, outrossim e quanto muito na relativização do prazo, sendo certo que a autora não deixará de clamar alto e bom som que o prazo não pode ser entendido como sendo absolutamente fixo. Não se trata de um prazo suplementar. “O direito de o contraente fazer seu o sinal recebido não se compadece com a situação de mora, exigindo-se o incumprimento definitivo do contrato-promessa”.

30ª - Os réus não fizeram a conversão da mora em incumprimento definitivo, conforme o disposto no artigo 808 ° do Código Civil, pelo que, não resolveram o contrato. Por outro lado, os réus venderam os bens que prometeram vender à autora, a terceiro. Por isso, foram eles quem incumpriu definitivamente o contrato-promessa, devendo, por isso, ser condenados a pagar à autora o sinal que receberam em dobro.

31ª - Sem prescindir, por mera hipótese académica que a cautela de patrocínio impõe, sempre se dirá que autora terá aceite as condições em que contratou com os réus. Assim, nos termos do disposto no artigo 795° do Código Civil, a autora terá sempre direito à devolução do sinal em singelo, pois se nem ela nem os réus terão andado de acordo com os princípios da boa-fé, os réus, ao venderem a terceiro os bens que prometeram vender à autora, tornaram impossível o cumprimento por parte da autora, sem que se possa dizer que a responsabilidade do incumprimento a esta é imputável e que foi a autora que voluntariamente se colocou numa posição de não poder cumprir em definitivo.

33ª - A autora reclamou do despacho saneador a fls. 1229 e 1230, sendo certo que tal reclamação não é necessária para que se recorra do despacho saneador.

Numa primeira fase deste processo, a autora replicou da contestação atravessada pelos réus aos presentes autos. Os réus defenderam que não havia lugar a réplica por a contestação não conter matéria de excepção, o que, se em primeira instância foi admitido, por acórdão do Tribunal da Relação de Évora veio a ser decidida a inexistência de defesa por excepção e não foi admitida a réplica, ordenando-se a anulação de todo o processado desde a contestação. A autora ainda tentou recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, mas o recurso por oposição de julgados, não foi admitido.

34ª - De entre as versões da matéria de facto controvertida, (a afirmação do facto e a sua negação ou a alegação de outra versão de sentido inverso), cabe ao juiz seleccionar aquela que, “de acordo com as regras da distribuição do ónus da prova, deva ser provada, para que a acção proceda ou para que o efeito jurídico pretendido pelo autor seja considerado impedido, modificado ou extinto”.

36ª - Devem ser inseridos na base instrutória os factos essenciais, isto é, aqueles que de acordo com as normas aplicáveis ao caso exerçam uma função constitutiva do direito invocado pelo autor ou, pelo contrário, tenham natureza impeditiva, modificativa ou extintiva do mesmo, de acordo com algumas das soluções plausíveis da questão de direito.

Concluindo-se que apensas devem ser condensados os factos essenciais, salvo tratando-se de factos instrumentais cujo ónus de alegação se verifique nos articulados e que tenham sido impugnados.

37ª - Os factos inseridos na Base Instrutória sob os artigos 12° a 22° contêm matéria que apesar de ser contrária à matéria alegada pela autora é matéria de excepção e não são factos instrumentais sequer.

Atento o acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido nestes autos, que decidiu inexistir matéria de excepção na contestação, não pode essa matéria ser levada à base instrutória apelidada de factos instrumentais. Só devem ser levados à base instrutória os factos vertidos nos artigos 1° a 12°, que são os factos constitutivos do direito que a autora se arroga.

38ª – Foram, assim, violados, os artigos 511°, 672°, 673° todos do Código de Processo Civil, ao elaborar o despacho saneador e ao indeferir a reclamação que a autora atravessou nos autos.

39ª - No acórdão do Tribunal da Relação agora em crise se decidiu que a matéria constante dos artigos 12° a 22° contém uma versão dos réus contrária às da autora, e, baseando nela, para mais um pedido de condenação desta por litigância de má-fé, justifica a sua inclusão na base instrutória. Ora e este pedido de condenação como litigante de má-fé não tinha de ter uma resposta? Qual o articulado?

Os réus contra – alegaram, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

2.

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1º - No dia 21 de Agosto de 2000, autora e réus celebraram um contrato-promessa de compra e venda com as assinaturas reconhecidas presencialmente no Cartório Notarial da Figueira da Foz, nos termos do qual a autora prometeu comprar e os réus prometeram vender, os seguintes bens:

a) - Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Campo Maior sob a ficha 0000000000, inscrito na matriz predial da freguesia de S. João Batista sob o artigo 3º da secção .....

b) - Prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Campo Maior sob a ficha nº 0000000000, inscrito na matriz da freguesia de S. João Baptista, a parte rústica sob o artigo 4º da secção H e a parte urbana sob os artigos 703º e 704º.

c) - As quotas, uma de cada um dos réus, no valor unitário de 12.500.000$00 (doze milhões e quinhentos mil escudos) na sociedade comercial denominada “R.........– I........... - A........., L.da”, de que eram, ao tempo, os únicos sócios e gerentes.

d) - Os créditos por suprimentos, no valor de 29.540.000$00 (vinte e nove milhões quinhentos e quarenta mil escudos), que o réu marido detinha sobre a sociedade identificada.

e) - Todos os equipamentos e utensílios relacionados na lista anexa ao contrato, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, bens esses que se encontravam, à data, afectos à actividade profissional do réu marido.

d) - O gado especificado na lista anexa ao contrato, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido – tudo conforme documento de fls. 11 e seguintes que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (alínea A).

2º - Autora e réus declararam no referido contrato o seu interesse num único negócio global, só interessando a todos que as compras e vendas fossem realizadas todas em conjunto, como se existisse apenas um único objecto prometido vender, não tendo nenhuma das partes interesse num negócio parcial - vide a cláusula terceira do contrato (alínea B).

3º - O preço global declarado das referidas compras e vendas era de 162.540.000$00 (cento e sessenta e dois milhões quinhentos e quarenta mil escudos), respeitando:

a) - 70.000.000$00 (setenta milhões de escudos) aos prédios identificados em 1, alíneas a) e b), sendo 10.000.000$00 (dez milhões de escudos) e 60.000.000$00 (sessenta milhões de escudos), respectivamente, para um e para outro.

b) - 20.000.000$00 (vinte milhões de escudos), respeitantes aos utensílios e equipamentos referidos na alínea e) do nº 1.

c) - 18.000.000$00 (dezoito milhões de escudos), respeitantes ao gado referido na alínea f) do n.º 1.

d) - 12.500.000$00 (doze milhões e quinhentos mil escudos) para cada uma das quotas supra identificadas.

e) - 29.500.000$00 (vinte e nove milhões e quinhentos mil escudos) para os créditos supra identificados (alínea C).

4º - Na data da assinatura do contrato-promessa - 21 de Agosto de 2000 - a autora pagou aos réus e estes receberam a quantia de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos) a título de sinal e princípio de pagamento (alínea D).

5º - Nos termos da cláusula 5ª, foi estipulado que as escrituras públicas de compra e venda seriam outorgadas em simultâneo e impreterivelmente até 15 de Outubro de 2000, em Cartório Notarial de Portugal Continental, data e hora a indicar pelo representante da autora (alínea E).

6º - Nos termos da cláusula 11ª do contrato-promessa, foi acordado que a autora ficaria com o prazo até 30 de Setembro de 2000 para livremente desistir do negócio, perdendo apenas parte do sinal, de Esc. 4.500.000$00 (quatro milhões e quinhentos mil escudos), a título de indemnização (alínea F).

7º - Foi ainda estipulado que todas as comunicações a efectuar entre as partes deveriam sê-lo, no que aos réus tange, para o Dr. GG, com domicílio profissional na Avenida dos .........., nº ...., .....a......., 1700-165, Lisboa, fax nº 0000000, e no que à autora tange, para o Dr. DD, com domicílio profissional na Rua .........., nº....., 3080-071, na Figueira da Foz, fax nº 00000000(alínea G).

8º - Foi designada a realização das escrituras de compra e venda para o dia 23 de Outubro de 2000, no Cartório Notarial de Montemor-o-Velho (alínea H).

9º - A autora não logrou obter financiamento bancário para aquisição do imóvel (resposta aos quesitos 2º e 3º).

10º - No dia 19 de Outubro de 2000, a autora tomou conhecimento de que o financiamento bancário não seria concedido e deu conhecimento desse facto aos réus, no próprio dia, via fax, reiterando o seu interesse no negócio e informando os réus de que estava a desenvolver todos os esforços para obter o financiamento noutra instituição bancária (alínea I).

11º - Por comunicação escrita enviada à autora, constante de fls. 261, e cujo teor aqui se dá por reproduzido, os réus declararam que só excepcionalmente tinham aceite que as escrituras fossem outorgadas no dia 23 de Outubro de 2000 (resposta ao quesito 12º).

12º - Por comunicação datada de 27 de Outubro de 2000, o mandatário dos réus comunicou ao mandatário da autora:

“(…)

Na sequência da nossa reunião de hoje, venho pelo presente dizer-lhe o seguinte:

1 - Os meus clientes aceitam conceder à vossa cliente mais uma moratória para a outorga das escrituras: agora, até 31/12/2000, mas apenas desde que a vossa cliente (i) faça um reforço do sinal, no valor de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos), até 7/11/00, na conta da Nova Rede, com o NIB000000000000000000 e (ii) aceite reembolsar os meus clientes das despesas inerentes às plantações que terão de fazer, por se ter iniciado, entretanto, o ano agrícola (despesas que os meus clientes estimam em cerca de 2.000.000$00).

2 - Caso os vossos clientes venham a faltar à nova data, ou seja, caso a escritura não tenha lugar até 31/12/2000, os meus clientes darão por resolvido o contrato-promessa, fazendo suas as quantias entregues pelo vosso cliente: os 30.000.000$00 iniciais mais os 30.000.000$00 do reforço acima referido (…)”, tudo conforme documento de fls. 194/195 cujo teor, no demais, se dá por integralmente reproduzido (resposta aos quesitos 4º, 5º, 15º, 16º e 17º).

13º - A autora não concordou com as propostas referidas no ponto anterior (resposta ao quesito 6º).

14º - A autora não fez qualquer reforço do sinal até 7 de Novembro de 2000, nem depois (resposta ao quesito 8º).

15º - Os réus comunicaram à autora, através do seu mandatário, por fax enviado em 10 de Novembro de 2000, que, face ao comportamento da autora, consideravam o contrato resolvido, fazendo seu o sinal entregue por esta, de Esc. 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos) (alínea J).

16º - Por escrito não datado, enviado pelo administrador da autora ao réu, disse a primeira:

“(…)

A situação do nosso negócio está a ficar desagradável para todos nós, o que lamento profundamente.

Não lhe irei dizer, mais uma vez, de que, a todo o momento, teremos a situação desbloqueada, pois não temos no momento, e isso é que tem relevância.

Digo-lhe também, com toda a franqueza, que quero concretizar o negócio. Contudo, a razão não me assiste ao pedir-lhe para irmos adiando a escritura como até aqui.

Neste contexto, (…) lhe digo que, se por acaso tiver alguém que rapidamente concretize o negócio consigo, o meu amigo não se prenda, pois não tem que o fazer”, tudo conforme documento de fls. 152/153 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (resposta aos quesitos 19º e 20º).

17º - Naquele mesmo escrito, o administrador da autora fez uma nova proposta aos réus, conforme “Anexo”, que lhes foi igualmente enviado, mediante o qual o pagamento do preço seria concretizado por tranches, sendo a última, no valor de Esc. 100.000.000$00, realizada em 31 de Janeiro de 2004, tudo conforme documento de fls. 152/154, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (resposta ao quesito 21º).

18º - Proposta que os réus não aceitaram.

19º - Por escrito de 13 de Novembro de 2000, a autora pediu aos réus “(…) a devolução da quantia entregue a título de sinal – 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos)”, conforme documento de fls. 268/269, que no demais se dá por integralmente reproduzido (resposta ao quesito 8º).

20º - Mediante escritura pública outorgada no 20º Cartório Notarial de Lisboa, no dia 7 de Novembro de 2001, o réu BB vendeu a EE os imóveis objecto do contrato- promessa, conforme documentos n.os 2 e 3, juntos com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (alínea K).

21º - E o réu vendeu ainda ao identificado EE as quotas e os restantes objectos daquele contrato - conforme o documento nº 4, junto com a petição inicial (alínea L).

22º - A autora tomou conhecimento dos negócios referenciados em 20º) e 21º) em momento temporal não concretamente determinado (resposta ao quesito 9º).

3.

O acórdão proferido pela Relação de Évora, em 29/09/2011, nos presentes autos, decidiu:

a) - Negar provimento ao agravo interposto do despacho proferido pelo Tribunal de 1ª Instância, em 25/06/2008, que julgou improcedente o requerimento da autora de fls. 1046/1049, pelo qual esta, em sede de audiência preliminar, veio requerer a concretização/complemento da matéria de facto alegada na sua petição inicial, nomeadamente nos artigos 8º e 9º da mesma peça processual.

b) – Na improcedência da apelação, confirmar a sentença de 5/07/2010 que, por sua vez, havia julgado a acção improcedente e, em consequência, havia absolvido os réus do pedido da autora.

A coberto do recurso de revista, a autora impugna esse acórdão, por alegada violação:

1) - De lei substantiva (conclusões 9ª a 31ª);

2) - De lei do processo:

2.1. - Quer quanto à decisão do agravo interposto pela autora sobre o despacho da 1ª instância, de 25/06/2008 (conclusões 1ª a 8ª);

2.2. - Quer quanto à decisão da impugnação do despacho que indeferiu a reclamação da matéria de facto apresentada pela autora (conclusões 32ª a 39ª).

Relativamente à questão substantiva, pretende a autora, com este recurso, a revogação do acórdão recorrido que confirmou a sentença e, bem assim, que, em substituição desta última, seja a presente acção julgada procedente, sendo declarada a resolução do contrato-promessa celebrado entre autora e réus por incumprimento definitivo e culposo destes e, consequentemente, sejam os réus condenados ao pagamento da quantia correspondente ao dobro do sinal prestado.

4.

De acordo com o disposto nos artigos 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, estando apenas este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

Deste modo, as questões que importa apreciar são as seguintes:

1ª – Se o recurso quanto às questões consubstanciadas nas conclusões 1ª a 8ª e 32ª a 39ª é inadmissível.

2ª – Se houve ou não incumprimento contratual por parte da autora e, em caso afirmativo, quais as consequências a retirar.

4.1.

Em sede de audiência preliminar, a autora veio requerer a concretização da matéria de facto alegada na sua petição inicial, nomeadamente nos artigos 8º e 9º da mesma peça processual.

O requerimento foi indeferido pelo Tribunal da 1ª Instância, tendo esta decisão sido confirmada pela Relação, na improcedência do recurso de agravo que entretanto havia interposto.

A autora impugnou, também, ao abrigo aliás do disposto no artigo 511º, nº 3 do Código de Processo Civil, o despacho proferido sobre a reclamação que deduzira à base instrutória e com a qual pretendia que da mesma fossem arredados os quesitos 12º a 22º, extraídos da contestação da ré, na medida em que, tendo a Relação decidido que inexiste defesa por excepção nestes autos, “faz com que os factos que têm de ser levados à base instrutória são somente os que a autora alegou.

A Relação julgou também improcedente esta pretensão da autora.

Inconformada, pretende a autora que o Supremo Tribunal de Justiça conheça destas decisões da Relação, revogando-as, de tal modo que, em consequência, possa a recorrente concretizar/complementar a matéria de facto alegada na sua petição inicial, nomeadamente nos artigos 8º e 9º da mesma peça processual e que da base instrutória sejam arredados os quesitos 12º a 22º, extraídos da contestação da ré.

Vejamos:

Cabe recurso de revista do acórdão da Relação que decida do mérito da causa, quer esse acórdão seja proferido sobre recurso de apelação quer sobre recurso de agravo (vide artigo 721º, n.º 1 do CPC, na redacção introduzida pela RPC 95/96, com a redacção do artigo 1º do DL 375-A/99, de 20 de Setembro).

Sendo o recurso de revista o próprio, pode o recorrente alegar, além da violação da lei substantiva, a violação de lei do processo, quando desta for admissível o recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 754º, de modo a interpor do mesmo acórdão um único recurso (artigo 722º, n.º 1 CPC, redacção aplicável).

Ora, nos termos desta disposição, (artigo 754º, n.º 2 CPC), é insusceptível de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça, o acórdão da Relação proferido sobre decisão interlocutória da 1ª instância, fora dos casos referidos nos n. os 2 e 3 do artigo 678º. Contudo, mesmo nessa situação, é admissível o recurso se estiver em oposição com outro proferido, no domínio da mesma legislação, pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, a menos que aquele acórdão seja conforme a jurisprudência já uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

In casu, as aludidas decisões que foram objecto de apreciação pela Relação reportam-se a alegados erros de procedimento, que se teriam verificado em decisões proferidas no decurso da instância e que não conduziram à sua extinção. Trata-se, pois, de decisões interlocutórias.

Perante a confirmação dessas decisões pela Relação, a autora, no que respeita às conclusões 1ª a 8ª, recorre por pretensa violação de lei de processo pelo Tribunal da Relação, ao decidir o agravo interposto pela autora sobre o despacho de 1ª instância de 25/06/2008 e, no que respeita às conclusões 32ª a 39ª, recorre também por pretensa violação de lei de processo pelo Tribunal da Relação de Évora, ao julgar improcedente a impugnação do despacho que indeferiu a reclamação da matéria de facto apresentada pela autora.

Atendendo ao que se deixou exposto, não estão verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso sobre violação de lei do processo previstos na 2ª parte do n.º 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do n.º 1 do artigo 722º daquele Código.

Donde, o presente recurso não é admissível quanto ao teor das conclusões 1ª a 8ª e 32ª a 39ª, pelo que, nesta parte, não pode ser admitido, nem consequentemente, conhecido.

4.2.

Defende a recorrente, na parte que ora interessa (conclusões 9ª a 30ª), a revogação do acórdão recorrido, já que, ao contrário do decidido, quem incumpriu definitivamente o contrato-promessa foram os réus, pois, por um lado, não fizeram a conversão da mora em incumprimento definitivo, conforme o disposto no artigo 808º do Código Civil, pelo que não resolveram o contrato e, por outro lado, venderam a terceiro os bens que prometeram vender à autora, tornando impossível a prestação.

Alicerça esta conclusão nas seguintes premissas:

a) – O documento de fls. 152/153 não contém uma declaração de não cumprimento do contrato, pois tal declaração não é inequívoca, no sentido de que o não vai cumprir.

b) - O prazo constante do contrato-promessa para a outorga das escrituras não era um prazo absolutamente fixo, pelo que, para haver incumprimento definitivo, tal prazo teria de ser transformado pela via da fixação cominatória.

c) - Independentemente da realização do contrato-prometido estar ou não condicionada à obtenção do financiamento, foram violados os princípios do pontual cumprimento dos contratos (artigo 406.° do CC) e da boa-fé, pois o Tribunal a quo deveria ter tomado em consideração que os réus deveriam ter atendido às dificuldades da autora para obter o financiamento.

Vejamos:

No recurso de apelação, a autora impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto, perspectivando que, com a alteração desta, seria revogada a sentença.

Essa expectativa não se concretizou, porquanto o acórdão recorrido, mantendo integralmente a decisão sobre a matéria de facto, veio a confirmar a sentença recorrida. E fê-lo, servindo-se dos seguintes fundamentos:

a) - A douta sentença não considerou a data de 15 de Outubro de 2000 como |um prazo absolutamente fixo para efeitos de incumprimento definitivo do contrato-promessa, nem aí situou temporalmente o incumprimento por parte da autora.

b) - Não tendo as escrituras sido outorgadas até essa data, a autora entrou apenas em mora, por causa que lhe é imputável, na medida em que a escritura só não foi outorgada em virtude de não dispor das condições que lhe permitissem pagar o remanescente do preço.

c) - Os factos provados revelam também que nenhuma das partes perdeu, por virtude da mora, o interesse na concretização do negócio, como bem revelam os subsequentes comportamentos, traduzidos em reuniões entre as partes, destinadas visivelmente à obtenção de soluções para os problemas verificados e, desde logo, na concessão feita pelos réus quanto à celebração das escrituras públicas, nomeadamente para o dia 23 de Outubro de 2000.

d) – A comunicação dos réus de 27/10/2000 não constitui interpelação admonitória, na medida em que a mesma pressupõe que o contrato possa ainda ser cumprido nos exactos termos em que foi celebrado, isto é, sem imposição unilateral de qualquer alteração no espectro de direitos e de obrigações dele emergentes.

e) - Contudo, em carta não datada, mas que, na realidade, se pode situar em data anterior a 10/11/2000, (porquanto anterior à da carta em que os réus lhe respondem, rejeitando a proposta nela contida), o representante da autora, depois de considerar que a situação do negócio entre ambos está a ficar desagradável, acrescenta que não irá dizer que a todo o momento teriam a situação desbloqueada, pois não tinham, que queria concretizar o negócio mas não lhe assistia razão para pedir para irem adiando a escritura e que, se por acaso os réus tivessem alguém que rapidamente concretizasse o negócio, se não prendessem pois não tinham que o fazer. Fez, no entanto, a proposta de pagamento do preço em tranches, sendo a última em Janeiro de 2004.

f) - Essa carta contém, pois, uma declaração séria, inequívoca, dirigida pelo representante da autora aos réus, no sentido de que, em qualquer caso, não vai cumprir o contrato celebrado entre ambos, nos exactos termos em que o foi, tanto que, como se salienta na sentença, apresentou uma nova proposta distinta da que constava do mesmo contrato quanto ao pagamento do preço.

g) – Ora a recusa inequívoca do cumprimento configura uma hipótese de incumprimento definitivo que dispensa a interpelação admonitória e a prova pelo credor da insubsistência do seu interesse no cumprimento, o que legitimou os réus a declarar a resolução do contrato, nos termos da carta de fls. 197/198 e a fazerem seu, agora nos termos da primeira parte do n.º 2 do artigo 442º do Código Civil, o montante do sinal recebido.

Não obstante, insiste a autora que o prazo para a outorga da escritura pública previsto no contrato-promessa (15/10/2000) não era absolutamente fixo e por isso teria que haver interpelação admonitória e, por outro lado, o conteúdo do documento de fls. 152/153 não constitui declaração clara e inequívoca de que não queria cumprir.

Atendo-nos aos factos provados e aos clarividentes fundamentos da sentença, que o acórdão recorrido acompanhou, parece-nos evidente que não assiste razão à recorrente.

Quanto ao prazo constante do contrato-promessa para a outorga das escrituras não ser alegadamente um prazo absolutamente fixo pelo que, para haver incumprimento definitivo, teria de ser transformado pela via da fixação cominatória, este argumento resulta ultrapassado, porquanto seja a sentença, seja o acórdão recorrido expressamente, consideram que o prazo constante do contrato-promessa não era absolutamente fixo.

Argumento esse que, em qualquer caso, em nada belisca ou invalida a posição do acórdão recorrido.

Senão vejamos:

O incumprimento do contrato-promessa, enquanto evento desencadeador da sua resolução e das consequências previstas no n.º 2 do artigo 442º, vem sendo equacionado na doutrina e com reflexo directo na jurisprudência com base em duas construções, que a sentença muito bem enunciou:

a) – Uma delas, assente na especificidade da figura do contrato-promessa, afirma que basta a situação de mora para que o promitente não faltoso possa reclamar a perda do sinal ou o seu pagamento em dobro;

b) – A outra, de cariz interpretativo, exige uma compatibilização entre o n.º 2 do artigo 442º e o n.º 1 do artigo 808º, ou seja, a necessidade de conversão da mora em incumprimento definitivo, como condição necessária para o acionamento do regime sancionatório do sinal: a sua perda ou exigência em dobro.

Esta tese que exige a necessidade de conversão da mora em incumprimento definitivo como condição de acionamento do regime contido naquele normativo legal tem merecido o acolhimento da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça[2].

De acordo com o n.º 1 do artigo 805º do Código Civil, “o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir”, pressupondo a mora um atraso ilícito no cumprimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 804º, constituindo o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.

O n.º 1 do artigo 808º prevê, no entanto, duas situações susceptíveis de converter a mora do devedor em incumprimento definitivo, a saber:

a) – A perda do interesse do credor na prestação em consequência da mora;

b) – A não realização da prestação no prazo que razoavelmente for fixado pelo credor.

Nestes termos, para além das situações em que se verifica um incumprimento naturalístico, por superveniência de um facto que acarrete a impossibilidade da obrigação, o incumprimento definitivo há-de resultar da conversão da mora em incumprimento nos termos previstos no artigo 808º do Código Civil.

Casos há, porém, em que se dispensa qualquer interpelação:

“É seguro ser, sem mais, de considerar que importa incumprimento definitivo todo o comportamento do devedor que inequivocamente revele que não quer (ou não pode) cumprir[3]”.

Assim, “constitui uma modalidade de inadimplemento a declaração feita por um dos promitentes de que não vai cumprir ou de que não o poderá fazer.

Sendo por isso que o incumprimento definitivo ocorre sempre que, independentemente de interpelação, o contraente manifesta, de forma clara e definitiva a sua intenção de não cumprir o contrato (ou de cessar o cumprimento quando se trate de contrato de execução continuada[4]”.

Também, neste mesmo sentido, decidiu o Ac. do STJ de 12/01/2010, acessível em www.dgsi.pt, considerando que “a última situação que dá origem à revogação do contrato traduz-se na recusa de cumprimento. Como tem vindo a entender o Supremo Tribunal de Justiça, essa causa tem de ser expressa por uma declaração absoluta e inequívoca de repudiar o contrato”, impondo-se que “o promitente emita uma declaração séria, categórica e que não deixe que subsistam quaisquer dúvidas sobre a sua vontade (e propósito) de não outorgar o contrato prometido”.

Ora, entendendo-se, como o Tribunal a quo entendeu, que o prazo constante do contrato-promessa para a outorga das escrituras (15/10/2000) não era um prazo absolutamente fixo, (desde logo porque os réus aceitaram a marcação das ditas escrituras, para o dia 23/10/2000, proposta pela autora), esta entrou necessariamente em mora no cumprimento, pelo menos, com a comunicação aos réus, em 19/10/2000, que afinal as escrituras não seriam também outorgadas em 23/10/200, nos termos do disposto no artigo 805° do Código Civil.

Donde, a partir, pelo menos, de 19/10/2000, a autora ter-se-ia de considerar em mora no incumprimento.

E, assim sendo, nenhuma censura merece o acórdão recorrido, ao considerar que essa mora foi convertida em incumprimento definitivo imputável à autora “com o escrito ou carta de fls. 152/153, por ser este uma declaração clara e inequívoca de que a autora não podia cumprir.

Com efeito, esse documento, que é uma carta ou escrito, não datado, foi enviado pelo administrador da autora ao réu e contém ainda um “Anexo” (fls. 154) com proposta de pagamento a prestações diferido até Dezembro de 2004, proposta que os réus não aceitaram.

Diz a referida carta:

“Caro amigo:

Escrevo-lhe atendendo ao facto de estar em Utrecht e somente estarei em Portugal meio-dia, pois terei que me ausentar novamente e então estou em definitivo a 18 do corrente mês.

A situação do nosso negócio está a ficar desagradável para todos nós, o que lamento profundamente.

Não lhe irei dizer, mais uma vez, de que, a todo o momento, teremos a situação desbloqueada, pois não temos no momento, e isso é que tem relevância.

Digo-lhe também, com toda a franqueza, que quero concretizar o negócio. Contudo, a razão não me assiste ao pedir-lhe para irmos adiando a escritura, como até aqui.

Neste contexto, e com muita pena minha, lhe digo que, se por acaso tiver alguém que rapidamente concretize o negócio consigo, o meu amigo não se prenda, pois não tem que o fazer.

Contudo, a proposta que lhe apresento em anexo, talvez seja uma saída rápida para, de vez, analisar tudo isto.

Como pode entender, ainda não desisti do negócio com a CGD, noutros parâmetros, pois apesar de tudo e atendendo ao facto de ser um cliente razoável, o estudo do financiamento está feito e se esteve aprovado até ao quarto grau de decisão, mais facilmente virá a estar até ao quinto grau, se se diminuir substancialmente o valor inicial do empréstimo.

É neste sentido que estamos a trabalhar.

Porém, peço-lhe que analise bem a minha proposta em anexo, pois verá que o tempo para liquidação total é curto e, além do mais, ficará com garantias a seu favor até à liquidação da última "tranche" o que lhe confere garantias acrescidas.

Acredite, muito sinceramente, que não esperava de todo chegar a este ponto, no entanto, acreditei nas pessoas e na sua palavra, o que se revelou muito triste, aliado certamente à minha pouca experiência em negócios bancários desta natureza.

Aceite, pois os meus cumprimentos, extensivos ao senhor seu pai.

Um abraço sincero

FF”.

Procurando interpretar esta declaração, ter-se-á em conta que a regra nos negócios jurídicos em geral é a de que a declaração negocial vale com um sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.

A excepção ocorre, nos casos em que não seja razoável imputar ao declarante aquele sentido declarativo ou em que o declaratário conheça a vontade real do declarante (artigo 236º, n. os 1, in fine, e 2 do Código Civil).

O sentido decisivo da declaração negocial é, pois, o que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, por alguém medianamente instruído e diligente e capaz de se esclarecer acerca das circunstâncias em que as declarações foram produzidas.

Face aos princípios expostos e tendo em conta o referido documento de fls. 152/153 e o anexo apenso, parece-nos inequívoco o seguinte:

a) - A autora reconheceu que, à data, não tinha condições para tão cedo cumprir aquilo a que se havia obrigado no contrato-promessa;

b) - A autora informou os réus que, em face da falta de condições em cumprir o acordado, os mesmos se encontravam desvinculados do contrato com ela outorgado, sugerindo a venda a terceiros, ao referir que “se, por acaso, tiver alguém que rapidamente concretize o negócio consigo, o meu amigo não se prenda, pois não tem que o fazer)”;

c) - A autora apresentou uma nova proposta para executar o negócio prometido que de compras e vendas a pronto pagamento passava para compras e vendas com pagamento do preço em mais cinco tranches, realizáveis durante mais de três anos:

30.000.000$00 - A liquidar na data da escritura;

40.000.000$00) – A liquidar em 31/01/2001;

50.000.000$00) – A liquidar em 31/01/2002;

50.000.000$00) – A liquidar em 31/01/2003;

100.000.000$00 – A liquidar em 31/01/2004.

A taxa de juro fixa a acordar.

Perante tal escrito, não podiam as instâncias deixar de considerar, como consideraram, que o mesmo constitui declaração inequívoca, perante o credor, de que a autora não cumprirá o contrato-promessa que havia outorgado com os réus.

É para o caso indiferente que a autora afirmasse que gostaria ainda de concretizar o negócio prometido, posto que das suas palavras é inequívoco que, nessa altura, não o podia fazer nos exactos termos em que se vinculara.

Por isso, a conclusão retirada no acórdão recorrido, quanto à conversão da mora em incumprimento definitivo, por parte da autora, com a subscrição daquele escrito, (necessariamente anterior a 10/11/2000 – data da resposta), e remessa aos réus é a correcta.

Considera, ainda, a recorrente que, independentemente da realização do contrato-prometido estar ou não condicionada à obtenção do financiamento, foram violados os princípios do pontual cumprimento dos contratos (artigo 406° do CC) e da boa-fé, pois o Tribunal a quo deveria ter tomado em consideração que os réus deveriam ter atendido às dificuldades da autora para obter o financiamento por causa da diferença entre o valor real da compra e o valor declarado.

Também aqui não assiste razão à recorrente.

Como consideram os recorridos, e com justeza o afirmam, a conclusão da autora pressupõe dar por provados factos que não foram provados nos autos, nomeadamente, (i) que a autora se viu impossibilitada de obter o financiamento por causa da diferença entre o valor real da compra e o valor declarado; (ii) que teriam sido os réus quem impusera à autora a referida diferença entre o valor real da compra e o valor declarado; (iii) que a autora, e só esta, teria ficado prejudicada pela não consecução do negócio prometido.

Por outro lado, se de alguma coisa serve o argumento da autora, será apenas em benefício dos réus que, de acordo com a matéria provada nos autos, não condicionaram o negócio prometido à obtenção pela autora de qualquer pretenso financiamento bancário para a aquisição dos bens em causa, pelo que não podem ser prejudicados por uma alegada situação a que não se vincularam.

Ao contrário do afirmado pela autora, a documentação constante dos autos e a matéria provada permitem concluir que os réus sempre agiram de boa-fé, aceitando inclusivamente ir além do acordado pelas duas partes no contrato-promessa quanto ao prazo para a escritura das compras e vendas prometidas no sentido de garantir a execução do contrato-prometido.

Ter-se-á, pois, de concluir, como concluiu o acórdão recorrido, no sentido do incumprimento definitivo do contrato-promessa imputável à autora.

Defende, finalmente, a recorrente que sempre teria direito à devolução do sinal prestado em singelo, porquanto “se nem ela nem os réus terão andado de acordo com os princípios da boa- fé”, os réus, ao venderem a terceiro os bens que prometeram vender à autora, tornaram impossível o cumprimento por parte desta, sem que se possa dizer que a responsabilidade do incumprimento a esta é imputável e que foi a autora que voluntariamente se colocou numa posição de não poder cumprir em definitivo.

Também aqui lhe não assiste razão.

Tendo ficado, por um lado, demonstrado o incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a autora e os réus por causa imputável à autora, seguramente antes de 10/11/2000 e, por outro lado, demonstrado que a venda dos bens em causa a terceiros por parte dos réus só ocorreu em 7/02/2001, a argumentação da recorrente, no sentido de que se teria verificado uma impossibilidade não culposa do contrato-promessa, não encontra qualquer suporte nos factos provados, como igualmente, a partir desses factos, nada permite concluir no sentido de que os réus terão agido contra os princípios da boa-fé.

Improcedem, assim, as conclusões da recorrente.

SUMÁRIO:

1 - A recusa inequívoca do cumprimento configura uma hipótese de incumprimento definitivo que dispensa a interpelação admonitória e a prova pelo credor da insubsistência do seu interesse no cumprimento.

2 – Tal recusa, como flui dos termos da carta de fls. 197/198, legitimou os réus a declarar a resolução do contrato e a fazerem seu, agora nos termos da primeira parte do n.º 2 do artigo 442º do Código Civil, o montante do sinal recebido.

DECISÃO:

Pelo exposto, negando a revista, confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 26 de Abril de 2012


Granja da Fonseca (Relator)
Silva Gonçalves
Ana Paula Boularot

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[1] Por não conterem factos ou fundamentos pelos quais a recorrente peça a revogação do acórdão recorrido, limitando-se, apenas, a interpretar a lei ou a reproduzir a doutrina, eliminam-se algumas das “conclusões” elencadas pela recorrente, mantendo-se, no entanto, a numeração das que foram consideradas pertinentes.
[2] Ac. do STJ de 22/01/08, www.dgsi.pt
Ac. do STJ, (Conselheiro Araújo de Barros), na Revista n.º 724.05, 7ª Secção Cível.
[3] Ac. do STJ de 5/07/2005, na Revista 1881.05, 6ª Secção Cível.
[4] Ac. do STJ de 11/10/2005, CJSTJ, Ano XIII, Tomo III, 70.