Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5297/12.0TBMTS.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITOS
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 07/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / LEGITIMIDADE DAS PARTES.
Doutrina:
- Almeida Costa, Noções Elementares de Direito Civil, 4.ª ed. 179 ss..
- Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declarativo, Vol. II, 253/254
- Antunes Varela, Das Obrigações em geral, II, 6.ª ed., 287 (nota 1), 293, 295.
- Antunes Varela, J.Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição.
- Dias Marques, Noções Elementares de Direito Civil, 7.ª ed., 188.
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 2.ª edição, 79.
- Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2.º volume, 1994, 90.
- Menezes Leitão, Cessão de Créditos, 17/20; Direito das Obrigações, II, 11.ª ed.,14.
- Pestana de Vasconcelos, A Cessão de Créditos em Garantia e a Insolvência, 405; «Dos Contratos de Concessão Financeira [Factoring]», Studia Iuridica, 43, BFDUC, 1999, 314.
- Pires de Lima e A. Varela, “Código Civil” Anotado, I, 4.ª ed. 601.
- Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, II, 2.ª ed., 539.
- Vaz Serra, «Cessão de Créditos ou de Outros Direitos», B.M.J., 1955, 130.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 577.º, 578.º, N.º1, 583.º, 588.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 30.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 4 DE MAIO DE 2010, PROCESSO N.º 3117/08.0TVLSB.L1.S1; DE 27 DE MAIO DE 2004 – CJ – STJ ANO XII, TOMO 2, 75.
-DE 6 DE NOVEMBRO DE 2012, PROCESSO N.º 314/2002.S1.L1
-DE 5 DE FEVEREIRO DE 2013, PROCESSO N.º 684/10.1YXLSB.L1.S1.
-DE 2 DE JUNHO DE 2015-505/07.2TVLSB.L1.S1.
Sumário :

1) A cessão de créditos é uma forma de transmissão do direito de crédito, no todo ou parcialmente, que opera por acordo entre o credor e um terceiro.

2) Reveste a natureza de contrato causal (policausal ou polivalente) não constituindo a mesma entre nós uma forma de transmissão abstracta do crédito, antes delimitando a posição jurídica inicial do cedente a posição jurídica obtida pelo cessionário transmissivo.

3) O devedor não pode invocar, como defesa factos posteriores ao conhecimento da cessão, ficando também excluídas as excepções conectadas com o negócio causa da cessão, entre cedente e cessionário das quais resultou a transmissão do crédito.

4) Os efeitos da cessão de créditos entre as partes, (o cedente e o cessionário) estão sempre dependentes do tipo de negócio que lhe serve de base, mas, em relação ao devedor, a eficácia depende de um de dois factores, ou seja, a notificação e aceitação.

5) O devedor cedido pode impugnar, perante o adquirente do crédito, a sua existência e todas as excepções a que teria podido recorrer face ao cedente.

6) Configurada pelo Autor a relação jurídica, nomeadamente no que tocará posição que nela desempenham os respectivos sujeitos, não se põe a questão da legitimidade colocando-se apenas o problema de mérito.

7) Numa primeira fase de construção da legitimidade ela apresenta-se como uma concepção complexa - a legitimidade aparece-nos como abrangendo o conjunto de pressupostos subjectivos relativos às partes, e por vezes algumas condições da acção.

8) Da legitimidade processual – “ad processum” distingue-se a legitimidade “ad actum” esta consistente no complexo de pressupostos da titularidade, por um sujeito, que invoque, ou que lhe seja atribuído certo direito.

Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


A "AA ...", intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo civil experimental, contra "BB" e CC pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 105 119,50, acrescida de juros contados à taxa legal em vigor para as operações comerciais da data de citação até efectivo e integral pagamento.

Alegou em resumo, que, em 19/08/2011, a Ré, no âmbito da sua actividade de transporte rodoviário de mercadorias, contratou com "DD, L.da" o transporte de 4.323 pares de botas para homem, no valor total de €105 119,50; que a sociedade "EE" encomendara à "DD" vários pares de botas para homem nos tamanhos, cores e referências constantes da factura de fls. 13 e ss; que, de harmonia com as condições negociais estabelecidas entre a "DD" e a "EE", a venda em causa era "C.A.D.", isto é, a entrega do calçado ao destinatário seria efectuada contra efectivo pagamento da mercadoria, através de transferência bancária; que esta condição foi repetida e insistentemente comunicada à Ré, verbalmente e por escrito.

 A Ré não descarregou os 319 cartões na programada "Rhenus", transportando estes, e os restantes 102 para a Holanda, onde os entregou à "EE", em dia indeterminado posterior a 22 de Agosto de 2011 e sem prévia confirmação de pagamento por parte do expedidor; que os Réus agiram voluntária e intencionalmente contra as condições de venda e entrega estabelecidas e constantes das declarações "CMR", não cumprindo as obrigações emergentes do contrato de transporte a que se vincularam.

Com a sua conduta, os Réus causaram à "DD" um prejuízo no valor de € 105 119,50, equivalente ao preço do calçado entregue, acrescido de juros contados, à taxa legal em vigor para as operações comerciais, desde a data de citação até integral pagamento.

Em sede de legitimidade, justifica que, por meio de contrato com o teor de fls. 23 e ss., a sociedade "DD" lhe cedeu o crédito invocado na presente acção.

 Os Réus vieram contestar, excepcionando a ilegitimidade da Autora e a sua ilegitimidade para os termos da presente acção e contrapõem ter sido a sociedade "EE" quem contratou os serviços da Ré sociedade para efectuar o transporte dos autos, quem lhe deu todas as ordens e directrizes relativas a esse serviço de transporte e quem lhe pagou o respectivo serviço; que no dia 21/08/2011, a "EE" comunicou-lhes que a mercadoria deveria seguir toda para a Holanda e ser entregue nas suas instalações, o que levaram a efeito.

Concluem pedindo a sua absolvição do pedido.

No despacho saneador as partes foram julgadas legítimas.

Foi, posteriormente, proferida sentença com o seguinte dispositivo. “Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência: Condena-se a 1ª Ré “BB - ..., LDA” a pagar à Autora "AA, CRL" a quantia de € 105 119,50 (cento e cinco mil cento e dezanove Euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros   de mora, às sucessivas taxas de juros comerciais, vencidos desde a data de citação da Ré e até efectivo e integral pagamento e Absolve-se o 2° Réu CC do pedido contra si formulado.”

“BB, Lda.”, interpôs recurso, para a Relação do Porto.

“A AA CRL” apresentou contra-alegações.

A final, os Réus foram absolvidos da instância por ilegitimidade.

A matéria de facto assente é a seguinte:

1)    A Ré sociedade dedica-se ao transporte rodoviário de mercadorias.

2)    No âmbito da sua descrita actividade, em 19/08/2011, a Ré "BB, L.da" comprometeu-se perante a sociedade comercial denominada "DD, L.da", com sede e estabelecimento na ..., a efectuar o transporte de 4.323 pares de botas para homem.

3)    Parte desse calçado foi acondicionado em 319 cartões e, outra parte, foi-o em 102 cartões, somando as mercadorias contidas nos dois cartões o valor total de € 105 119,50.

4) A "DD, L.da" tinha acordado com a sociedade "EE", sedeada na Holanda, ..., que o preço do transporte seria suportado por esta.

5) A sociedade "EE", sugeriu à Autora que fosse a Ré "BB" a efectuar o transporte dos autos.

6)    A "EE" pagou à Ré sociedade o preço a acordado entre ambas para tal transporte.

7)    A sociedade "EE" encomendara à "DD Lda" 5.345 pares de botas para homem nos tamanhos, cores, e referências que constam da factura n.° 110048, de 18/08/2011, no valor de € 130.408,00, com o teor de fls. 15, que aqui se dá por reproduzido.

8)    Alguns dias antes, a dita "EE" solicitou à "DD" a entrega de, apenas, 4.323 pares de botas, emitindo esta, em 22/12/2011, a correspondente nota de crédito, no valor de € 25.288,50, que tomou o n.° ..., com o teor de fls. 16, que aqui se dá por reproduzido.

9)    0 carregamento, efectuado em 19/08/2011, abrangeu o indicado total de   4.323 pares de botas para homem, no valor conjunto de € 105.119,50 (€  130.408,00 - € 25.288,50), que ficaram ao cuidado da Ré a partir do referido dia.

10)  As indicadas sociedades "DD Lda" e "EE" combinaram entre si que 319 cartões seriam entregues à sociedade "FF, Lda", com domicílio na ..., que posteriormente se encarregaria de organizar o seu transporte com destino à Holanda, e que 102 cartões seriam entregues pela Ré directamente no domicílio da cliente da "EE", denominado "..., na Holanda.

11)  As indicadas sociedades "DD, Lda" e "EE" combinaram entre si que a venda era "C.A.D.", querendo com isto significar que, tanto a "FF" como o transportador, somente poderiam descarregar e proceder à entrega das mercadorias mediante confirmação prévia da "DD, Lda" nesse sentido, conferida após efectivo pagamento da mercadoria, no caso operado por meio de transferência bancária.

12)  Sem esta condição o carregamento e o transporte não teriam sido contratados e autorizados pela "DD, Lda".

13)  Esta condição foi comunicada pela "DD, Lda" à Ré sociedade e ao seu representante legal, verbalmente e por escrito.

14)  Chegado às instalações da "FF", na Maia, nesse mesmo dia 19/08/2012, o camião da Ré "BB" não pôde descarregar e entregar os 319 cartões porque as referidas instalações encontravam-se já encerradas para o fim-de semana.

15)  No domingo, dia 21/08/2011, a "EE" comunicou à Ré "BB" que a mercadoria que estava naquele camião deveria seguir toda para a Holanda e ser entregue nas suas instalações em “...”, incluindo a que se destinava inicialmente a ser entregue na "FF".

16)  No dia 22/08/2011, o representante da Ré informou a sócia gerente da "DD, Lda" de que não iria entregar os 319 cartões na "FF" e que procederia ao transporte dos 421 cartões para a Holanda.

17)  Para tanto invocou instruções, alegadamente por si recebidas da "EE", no sentido de transportar e entregar os 421 cartões na Holanda, sem passar pelo transitário "FF", a que daria cumprimento.

18)  Acrescentou o mencionado representante legal que a entrega das mercadorias seria feita absolutamente livre, que o mesmo é dizer, sem prévia confirmação do pagamento e autorização para tal.

19)  A "EE" informou a "DD", por escrito na manhã do dia 22/08/2011, da alteração do destino de parte da mercadoria que estava no camião da Ré “BB".

20)  0 representante legal da Ré colocou as mercadorias em trânsito e transportou todos os cartões para a Holanda, onde os e entregou à "EE" em dia indeterminado posterior a 22 de Agosto de 2011.

21)  Uma vez na posse das mercadorias, a "EE" não pagou o preço das mesmas, no montante de € 105.119,50, aplicando-as no desenvolvimento da sua actividade.

22)  A 1ª Ré e o seu representante agiram pela forma acima descrita com o propósito de prejudicar a "DD, Lda" e favorecer a "EE".

23)  A "DD, Lda" e a aqui Autora celebraram, 22/03/2012, um contrato que apelidaram de "Contrato de Cessão de Créditos", com o teor de fls. 23 e ss., que aqui se dá por reproduzido.

24)  Em 24/07/2012, o mandatário da aqui Autora endereçou à Ré sociedade uma carta com o teor de fls. 27 e 28, que aqui se dá por reproduzido, a qual foi recebida por esta.

A restante matéria de facto considerou-se como não provada, designadamente:

-      Que, cerca das 09:00 horas do dia 22/08/2011, o representante legal da Ré, Vasco da Encarnação Cruz, aqui segundo Réu, tivesse contactado a sócia-gerente/da "DD Lda", GG, informando-a de que as mercadorias - em seu poder há três dias - ficariam retidas até que a "EE" lhe pagasse alguns serviços prestados que se encontravam em dívida;

-  Que, neste mesmo dia 22/08/2011, a sócio-gerente da "DD Lda" tivesse avisado o legal representante da Ré que deveria proceder, imediatamente, à devolução das mercadorias ou facultar a sua recolha ao expedidor...;

-Que lhe tivesse apenas referido que iria contactara "EE";

-      Que a sociedade estrangeira "EE", sediada na Holanda, tivesse contactado a Ré "BB" para efectuar o transporte dos autos, incumbência que esta aceitou;

-      Que a representante da "DD, Lda" nunca tivesse comunicado à sociedade Ré qual o valor da mercadoria transportada e a cobrar da "EE".

A Autora pede revista alinhando as seguintes conclusões:

— O contrato de cessão de créditos dos autos envolve o direito de a A., cessionária, accionar a ré "BB" e reclamar desta última o pagamento do crédito cedido, independentemente de a mesma Eé não figurar, expressa ou nominalmente, como “debitor cessus”, ou da natureza indemnizatória da obrigação;

— Por um lado, o contrato consigna que a cessão implica a transferência a título definitivo para a 2º outorgante de todos e quaisquer direitos e obrigações emergentes dos créditos a que respeitam, e abrange as garantias associadas, as quais continuarão a assegurar o cumprimento desses créditos, em benefício da cessionária,

— Por outro lado, o art.° 582.°, do C. Civil, estipula que a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente;

— O contrato e a lei confirmam, assim, a possibilidade de a A. demandar a R., sendo que as "garantias" e "acessórios" referenciados naquele preceito legal devem ser entendidos no sentido amplo, incluindo toda e qualquer situação jurídica directamente relacionada com o crédito, como é o caso;

— Certo é, também, que a menção"13- EE .... com sede em ..., no montante de 105. 119. 50 € (P° 1374/11.3TAVFRV)” inscrita no Anexo 1, do contrato de cessão de créditos, engloba a alusão ao processo n.° 1374/11.3 TAVFR, nascido de uma queixa - crime movida pela cedente "DD" à BB e ao seu sócio, CC, com origem na entrega da mercadoria á "EE" á revelia da cláusula C.A.D., cujos termos correram pelo Tribunal de ...;

— A inclusão do processo na dita menção demonstra, além do mais (entrega da mercadoria contra as indicações do transportador), que a ré, Jetromer, estava, como está, iniludivelmente associada (como devedora) ao crédito cedido;

— Por isso, notificada da cessão, nos termos do artigo 583.°, n.º 1, do C.Civil, com explicitação da origem do crédito e dos motivos pelos quais era exigida a sua responsabilidade (doc. n.º 11, junto com a p.i.), a R., não ofereceu resposta, quando poderia e deveria fazê-lo se alguma coisa entendesse ter a opor;

— A cessão tornou-se, assim, eficaz, perante a ré, pelo que a notificação equivale à sua aceitação, sendo que a mesma ré, mantém para com o cessionário do crédito a obrigação de agir de boa - fé, em consonância com o consignado no n.º 2, do art.º 762.°, do C. Civil;

— Nessa conformidade, subsistindo a seu favor os demais meios de defesa oponíveis ao cedente (cfr. art.º 585.°. do C. Civil), não assiste à ré o direito de invocar a sua ilegitimidade que, em todo o caso, lhe falece;

— Ora, em concreto, a realização/materialização do direito de crédito cedido passa inevitavelmente pela acção interposta contra a Ré, “BB”, de harmonia com os fundamentos da acção vertidos no pedido formulado pela A., decorrentes do preceituado no art.º 21.° da Convenção CMR (D.L. n.º 46.235, de 18.03.65);

— O direito de a A. demandar a Ré, “BB”, é parte integrante do crédito cedido, acha-se exclusivamente conexionado com o mesmo e, mais do que um acessório, funciona como garantia ou meio para a sua realização;

— Em sentido contrário, a decisão recorrida invoca conceitos como o de terceiro ou o da natureza da obrigação (obrigação de indemnização decorrente do instituto da responsabilidade civil previsto nos artigos 483.° e segs. do C. Civil, com as especificidades da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias);

— Com o máximo respeito pelo meticuloso trabalho de ponderação e análise empregue pela(s) Ilustríssima(s) Desembargadora(s) no conhecimento do recurso deduzido pela Ré, aqui recorrida, tais conceitos não serão chamados à lide, porquanto não interferem com a legitimidade das partes, moldada pela cessão;

— Assentando, nos termos do art.° 30.°, do CP. Civil, em que a A., aqui recorrente, tem interesse directo em demandar, e que a Ré, aqui recorrida, tem interesse directo em contradizer, decidiu bem o Tribunal de 1.ª Instância ao julgar as partes legítimas.

Não foram oferecidas contra-alegações.

Colhidos os vistos cumpre conhecer.

A conhecer.
1- Cessão de créditos.
2- Legitimidade.
3- Conclusões.

*
1- Cessão de créditos

1-1- Importam algumas considerações sobre a figura da cessão de créditos antes de proceder à subsunção dos factos ao direito, em termos em lograr a decisão do recurso.
Acompanhamos o Prof. Antunes Varela, que refere tratar-se do “contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito (artigo 577.º)” – in “Das Obrigações em geral”, II, 6.ª ed. 293.
Refere ainda que “o termo cessão, tanto designa o acto (contrato) realizado entre cedente e cessionário, como o efeito fundamental da operação (a transmissão da titularidade do crédito)”, sendo que esta pode ser operada não só por via convencional, ou contrato de cessão, mas também por disposição de lei ou por decisão judicial (cf. o artigo 588.º CC).
Para o Prof. Menezes Cordeiro (apud “Direito das Obrigações”, 2.º volume, 1994, p. 90 os requisitos da cessão são “um acordo entre o credor e o devedor; consubstanciada num facto transmissivo (fonte da transmissão); a transmissibilidade do crédito”.
Mais detalhadamente, o Prof. Menezes Leitão nota serem “requisitos da cessão de créditos: a) um negócio jurídico a estabelecer a transmissão da totalidade ou de parte do crédito; b) a inexistência de impedimentos legais ou contratuais a essa transmissão; c) a não ligação do crédito, em virtude da própria natureza da prestação, à pessoa do credor.” (“Direito das Obrigações” II, 11.ª ed., p.14).
A cessão pode ter causas diversas razão porque o Prof. Antunes Varela a apode de contrato “policausal” ou “polivalente” (ob. cit., 295), louvando-se no n.º 1 do artigo 578.º CC (“Os requisitos e efeitos da cessão entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que lhe serve de base”).
Na exegese deste preceito, continua o Prof. Menezes Leitão (agora, apud “Cessão de Créditos”, 17/20) afirmando que este tipo é um efeito do negócio – base em que se integra sendo através do regime deste que se vai determinar a forma e o regime jurídico aplicável, já que o negócio constitui uma forma de transmissão abstracta do crédito.
Nesta linha, o Prof. Dias Marques (in “Noções Elementares de Direito Civil”, 7.ª ed., p. 188) ensina que a cessão de créditos “pode definir-se como a sucessão de um crédito por efeito de um negócio jurídico «inter vivos» (v.g. venda, doação, troca …) através do qual o credor transmite a um terceiro o seu direito”.
A cessão não pode afectar, em termos de prejudicar, a posição que o devedor tinha para com o cedente, ainda que se tratasse de obrigação com vencimento posterior à cessão, desde que a sua constituição seja anterior ao conhecimento desta, ou sua coeva. (cf. Prof. A. Varela, ob. cit. 287 e nota 1; Prof. Vaz Serra, “Cessão de Créditos ou de Outros Direitos”, BMJ, 1955, 130; e Prof. Ribeiro de Faria, “Direito das Obrigações”, II, 2.ª ed., 539).
Obviamente que ficam fora da defesa do devedor cedido as circunstâncias do negócio causa da cessão, outorgado entre cedente e cessionário, do qual resultou a transmissão do crédito e que apenas relevam entre estes (cf. Doutor Luis Pestana de Vasconcelos, in “Dos Contratos de Concessão Financeira [Factoring]”, apud “Studia Iuridica”, 43, BFDUC, 1999, 314).
O que está absolutamente vedado é piorar-se a situação do devedor que continua a poder dispor dos meios de defesa de que podia lançar mão.
Assim, e se, v.g., o devedor tiver um crédito (contra-crédito) sobre o cedente pode obter a compensação logo após a cessão ou, só mais tarde, quando o pagamento lhe for exigido pelo novo credor.
1-2- Há ainda, e sobretudo pelo que acabámos de expor, impor-se ser dado conhecimento da cessão ao devedor pois é do seu interesse saber, em cada momento, quem é o seu credor, pois que, como regra, aprestação feita a credor aparente não tem eficácia liberatória.
Como se julgou no Acórdão do STJ de 6 de Novembro de 2012 – 314/2002.S1.L1 – “que proteger a boa fé do devedor que confia na aparência de estabilidade subjectiva do contrato, frustrada pela omissão de informação do primitivo credor cedente. Se, nesse caso, cumpre perante este, cumpre perante quem crê ser ainda seu credor, não devendo, por isso, ser prejudicado (cfr. arts 707.º e 583.º - 2 C. Civil)”.
E, de seguida, cita o Doutor Pestana de Vasconcelos “A Cessão de Créditos em Garantia e a Insolvência”, 405 – “… a lei protege a confiança do devedor nessa aparência, impedindo que, até ao momento em que teve conhecimento seguro da alteração no lado activo da relação, essa modificação da titularidade do crédito lhe seja oposta.” (cf. também, os Acórdãos do STJ de 4 de Maio de 2010 – 3117/08.0TVLSB.L1.S1; de 27 de Maio de 2004 – CJ – STJ Ano XII, Tomo 2, 75).
1-3- O devedor não pode invocar, como defesa, factos posteriores ao conhecimento da cessão, ficando também excluídas as excepções conectadas com o negócio causa da cessão, entre cedente e cessionário, das quais resultou a transmissão do crédito. (cf. Prof.s Pires de Lima e A. Varela, “Código Civil Anotado”, I, 4.ª ed. 601).
A lei impede assim que a modificação da obrigação quanto ao credor prejudique “a posteriori” os meios de defesa de que o devedor podia ter lançado mão, sempre considerando este como um terceiro em relação ao contrato de cessão e, por isso, não poder ver a sua situação agravada pela transferência do direito de crédito.
Do que fica exposto e da matéria de facto atrás elencada, conclui-se ter havido um contrato de cessão de créditos, nos termos dos artigos 577.º, 583.º e 585.º do Código Civil (cf., e, por todos, o Prof. Almeida Costa – “Noções Elementares de Direito Civil”, 4.ª ed. 179 ss).
2- Legitimidade.

2-1- O aresto recorrido absolveu os Réus da instância por entender perfilar-se a excepção de ilegitimidade.
E, nuclearmente, assim justifica o julgado:
“Se atentarmos bem o que se diz é que a DD cedeu à autora os créditos que detinha sobre a EE e, efectivamente, do contrato cessão e referido anexo o que consta é, e tão só, o crédito da DD sobre EE., no montante de € 105.119,50.
É o crédito correspondente à venda dos sapatos pela DD, cedente, à EE.
Trata-se do crédito que a DD detém sobre a EE
E, nesta linha de raciocínio, tudo estaria certo, em termos de legitimidade, se a autora demandasse a EE, figurando ela, Autora, agora como credora por via do contrato de cessão de créditos que operou a transferência da relação obrigacional pelo lado activo.
Só que não é isso que se passa visto que a autora não vem demandar a EE mas antes a transportadora BB e o representante legal desta, CC.
E, frisa-se, não consta do contrato de cessão qualquer crédito da DD contra estes.
Portanto, não constando o referido crédito do objecto da cessão, não pode a cessionária vir invocá-lo.
O equívoco reside na circunstância de, como se viu, a Autora vir alegar que os aqui RR., BB e o representante legal desta, CC agiram em violação das condições de entrega contratualmente estabelecidas e constantes, além do mais, das declarações CMR, entregando a mercadoria sem o recebimento do preço, o referido montante de € 105.119,50, o qual a EE não veio a pagar. Mas essa é outra controvérsia.” (…)
“No caso prefigura-se, em relação aos RR, que a obrigação invocada é uma obrigação de indemnização decorrente do instituto da responsabilidade civil previsto nos artigos 483° e ss. do C.Civil. Será uma responsabilidade civil contratual com as especificidades da CONVENÇÃO RELATIVA AO CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA (CMR), nomeadamente, o artigo 21° que dispõe que "Se a mercadoria for entregue ao destinatário sem cobrança do reembolso que deveria ter sido percebido pelo transportador em virtude das disposições do contrato de transporte, o transportador tem de indemnizar o expedidor até ao valor do reembolso, salvo se proceder contra o destinatário", o artigo 27° referente aos juros e o artigo 33° que respeita à prescrição.” (…)
“Estando em causa uma obrigação de indemnizar (emergente de responsabilidade civil), essa obrigação e respectivo direito de crédito não tem existência real sem que seja declarada a verificação do facto de que emerge esse crédito (a responsabilidade civil, (vide Ac.  desta   Relação  de  03-11-2010,  proc.   8607/08.1YYPRT-A.P1   in www.dgsi.pt).
Portanto, dependendo a responsabilidade civil (contratual ou extracontratual) de diversos requisitos que têm de ser judicialmente verificados (independentemente da presunção de culpa, em sede contratual, a que alude o artigo 799.°, n.° 1, do C.Civ.), com consequente arbitramento do montante indemnizatório adequado que ao caso couber, salvo casos de acordo entre as partes (lesante/devedor e lesado/credor), só por via de decisão judicial se poderá determinar se o crédito indemnizatório existe e a que montante ascende.” (…)
“Isto posto, conclui-se que o contrato de cessão de créditos em que a autora estriba a sua legitimidade para a presente acção não abrange qualquer crédito de que os RR sejam devedores à cedente.
A Autora vem demandar não um devedor da cedente pelo crédito objecto da cessão, o qual seria a EE, mas terceiros contra quem a cedente reclama um direito de indemnizatório, direito este que, para que a autora o pudesse invocar, teria:
1º - de estar judicialmente reconhecido;
2° e de ter sido objecto do contrato da cessão de créditos em que figura como cessionária.
Temos de concluir que  não  existe  entre  autora   e RR  uma  relação material controvertida e, consequentemente, um interesse directo da autora em agir e um interesse directo dos RR em contradizer- artigo 30° do CPC.
Vale dizer que se verifica a excepção dilatória da ilegitimidade das partes, nos temos do disposto nos artigos 576° n°s 1 e 2 e 577.° al. e) do CPC, o que implica a absolvição dos RR da instância.”

Tal interesse em agir (que a doutrina alemã denomina de necessidade de tutela jurídica) consiste essencialmente, como ensinam os Prof.s Antunes Varela, J.Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2.ª edição) "na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer a acção", o que significa, dito de outra forma, que "o autor tem interesse processual quando a situação de carência em que se encontra, necessita de intervenção dos tribunais".
Também, ensina o Prof. Manuel de Andrade, ser “o interesse em utilizar a arma judiciária - em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judicial o bem que a ordem jurídica lhe reconhece (cf. Noções Elementares de Processo Civil, 2.ª edição, p. 79).
Definido, assim, o interesse processual em agir, logo se vê que não se confunde com o pressuposto processual legitimidade.
É certo que na letra da lei, o conceito de legitimidade passa pelo "interesse directo em demandar" (art.° 30.º do CPC), ou, pelo menos, por um interesse indirecto, nos casos de legitimação resultante do direito substantivo, mas, em qualquer caso, este interesse não se confunde com o interesse em agir, “visto que pode ter-se o direito de acção, por se ser o titular da relação material, ou por a lei especialmente permitir a intervenção processual a quem não é o titular daquela relação, e, todavia, perante as circunstâncias concretas do caso não existir qualquer necessidade de recorrer ao tribunal para definir, reconhecer ou fazer valer o direito (não há litígio, ninguém contesta o direito, não existem razões suficientemente ponderosas para justificar a intervenção do tribunal…)”
Não havendo, pois, necessidade da demanda, não estando a parte carecida de intervenção do tribunal, pode ter legitimidade processual para discutir a questão, mas falta-lhe o interesse processual (isto é, o interesse em agir), e, sendo este um pressuposto processual, com autonomia, ainda que inominado, está vedado ao juiz o conhecimento do mérito (cf. Prof. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declarativo, Vol. II, pp. 253/254) … e  cf. Acórdão do STJ de 5 de Fevereiro de 2013 – 684/10.1YXLSB.L1.S1.
2-2- Com o merecido respeito não se acompanha a argumentação explanada, no Acórdão posto em crise.
A legitimidade processual tal como decorre do art.30° do Código do Processo Civil afere-se pela configuração que o Autor faz da acção na sua petição inicial.
Diz o art.30° n°3 do CPC que "na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para efeito de legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor".
A legitimidade é um conceito de relação traduzindo a conexão entre o demandante e o objecto do processo.
Numa primeira fase da sua construção a legitimidade apresenta-se como uma concepção complexa - abrangendo o conjunto de pressupostos subjectivos relativos às partes, e por vezes algumas condições da acção. 
Não enveredando pela explanação das teses já demasiado exauridas (que opuseram o Prof. Barbosa de Magalhães ao Prof. José Alberto dos Reis) temos como assente que a legitimidade processual, como os demais pressupostos processuais, é de averiguar em face da relação jurídica controvertida, tal como a desenha o autor.
Da legitimidade processual distingue-se a legitimidade “ad actum”, que consiste no complexo que representa os pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que invoque ou que lhe seja atribuído.
A lei, a doutrina e a linguagem corrente falam em legitimidade para designar essas condições subjectivas da titularidade do direito.
A falta delas dará lugar, na mesma terminologia, a uma ilegitimidade.
Esta, porém, é uma figura diferente da legitimidade “ad processum”.
A legitimidade posta em crise no Acórdão recorrido, é-o em sentido material atinente ao mérito da causa.

2-3- Aqui chegados, e atendendo à exegese feita quanto à cessão de créditos e à legitimidade, podemos concluir que a questão que se coloca e parece ser a perspectiva acolhida no aresto recorrido, é a da legitimidade substantiva.
Porém não foi isso que afirmou em remate o acórdão da Relação, qualificando a legitimidade como processual e tirando daí a absolvição da instancia do R.
Nesta fase processual e ,havendo até um caso julgado formal quanto à legitimidade adjectiva – apreciada em termos concretos e não meramente tabelares- ,não poderia a Relação reapreciar essa legitimidade, nem este STJ pode qualificar de outro modo a legitimidade, dizendo-a material, sem violação da proibição da “reformatio in pejus” (cf Acordão do STJ de 2 de Junho de 2015-505/07.2TVLSB.L1.S1).
Impõe-se, por isso, na procedência parcial do recurso, revogar o Acordão recorrido, devendo a Relação, sendo caso, apreciar a legitimidade material, e as demais questões suscitadas na Apelação e que foram consideradas prejudicadas, bem como aquelas que possa conhecer oficiosamente.

3- Conclusões

Pode, então, concluir-se que:
a) A cessão de créditos é uma forma de transmissão do direito de crédito, no todo ou parcialmente, que opera por acordo entre o credor e um terceiro.
b) Reveste a natureza de contrato causal (policausal ou polivalente) não constituindo a mesma entre nós uma forma de transmissão abstracta do crédito, antes delimitando a posição jurídica inicial do cedente a posição jurídica obtida pelo cessionário transmissivo.
c) O devedor não pode invocar, como defesa factos posteriores ao conhecimento da cessão, ficando também excluídas as excepções conectadas com o negócio causa da cessão, entre cedente e cessionário das quais resultou a transmissão do crédito.
d) Os efeitos da cessão de créditos entre as partes, (o cedente e o cessionário) estão sempre dependentes do tipo de negócio que lhe serve de base, mas, em relação ao devedor, a eficácia depende de um de dois factores, ou seja, a notificação e aceitação.
e) O devedor cedido pode impugnar, perante o adquirente do crédito, a sua existência e todas as excepções a que teria podido recorrer face ao cedente.      
f) Configurada pelo Autor a relação jurídica, nomeadamente no que tocará posição que nela desempenham os respectivos sujeitos, não se põe a questão da legitimidade colocando-se apenas o problema de mérito.
g) Numa primeira fase de construção da legitimidade ela apresenta-se como uma concepção complexa - a legitimidade aparece-nos como abrangendo o conjunto de pressupostos subjectivos relativos às partes, e por vezes algumas condições da acção. 
h) Da legitimidade processual – “ad processum” distingue-se a legitimidade “ad actum” esta consistente no complexo de pressupostos da titularidade, por um sujeito, que invoque, ou que lhe seja atribuído certo direito.

Nos termos expostos acordam conceder parcialmente a revista, revogando o Acordão recorrido e reenviando os autos à Relação para que aprecie, sendo caso disso, a legitimidade substantiva e as demais questões suscitadas  no recurso de apelação e que foram consideradas prejudicadas pela  decisão proferida, bem como aquelas de que possa conhecer oficiosamente.
Custas a final.

Sebastião Póvoas


Paulo de Sá


Garcia Calejo