Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | MOREIRA ALVES | ||
Descritores: | CAMINHO PÚBLICO USO IMEMORIAL PESSOA PÚBLICA ATRAVESSADOURO ASSENTO INTERPRETAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 01/21/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | REENVIADO PARA A RELAÇÃO | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / COISAS - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE. DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / INSTÂNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / AUDIÊNCIA PRELIMINAR. | ||
Doutrina: | - Antunes Varela e Pires de Lima, “Código Civil”, anotado. - Henrique Mesquita, RLJ 135, 64. - Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo - 9ª ed., pp. 920 e ss., 656/957/958. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 202.º, 1383.º. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 265.º, N.º3, 266.º, N.º2, 508.º, NºS 1, 3, 4 E 5. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 10/11/1993, COL. J./S.T.J. 1993- I- 135 E SEG.. -DE 15/06/2000, BMJ, 498 - 226 E SEG.. -DE 13/01/2004, PROC. 3433/03 – 6.º. * ASSENTO DESTE S.T.J. DE 19/04/1989. | ||
Sumário : | I - Quanto à caracterização de um caminho como público, desde há muito se dividiu a jurisprudência: a) para uns, seria sempre necessário demonstrar que o caminho foi construído ou apropriado por uma pessoa colectiva de direito público; b) para outros, bastaria provar-se o uso directo e imediato pelo público em geral, desde que imemorial; c) finalmente, para uma terceira corrente, seria de aceitar o critério da construção ou apropriação do caminho pela entidade pública, mas o uso imemorial (directo e imediato) pelo público em geral constituiria uma presunção (ilidível) da dominialidade, prescindindo-se, nestes casos, da prova directa da construção ou apropriação pela entidade pública. II - No sentido de pôr termo à referida divergência jurisprudencial, o Assento do STJ, de 19-04-1989, hoje com valor de jurisprudência uniformizada, firmou a seguinte jurisprudência: “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”. III - Não pode interpretar-se aquele Assento no sentido de excluir a dominialidade de um caminho que, tendo sido construído ou legitimamente apropriado, em data recente por pessoa colectiva de direito público, foi por ela afectado ao uso público, servindo o interesse colectivo que lhe é inerente. Nestes casos, desde que se prove que o caminho foi construído ou foi legitimamente apropriado por uma autarquia, que exerce sobre ele jurisdição, administrando-o, melhorando-o e conservando-o, não pode duvidar-se que se trata de um caminho público pertencente àquela entidade pública. IV - A suficiência do uso imemorial a que se refere o Assento, de modo algum exclui outras vias de aquisição da dominialidade, como acontecerá quando a lei directamente integra determinada coisa na categoria do domínio público, ou quando uma pessoa de direito público, depois de a construir, produzir ou dela se apropriar, a afecta à utilidade pública. V - Noutra perspectiva, o Assento deverá ser restritivamente interpretado de modo a evitar atribuir a qualificação de caminho público a simples atravessadouros. O atravessadouro não deixa de ser um caminho, embora alternativo e destinado a encurtar distâncias (atalho), ligando, normalmente, caminhos públicos através de prédio(s) particular(es), cujo leito faz parte integrante do prédio atravessado. VI - O uso directo e imediato do público em geral, quando imemorial, bastará para caracterizar um caminho como público, mas é ainda necessário acrescentar que esse uso público deve reflectir a sua afectação à utilidade pública, ou seja, à satisfação de interesses colectivos de significativo grau ou relevância. | ||
Decisão Texto Integral: |
Relatório * No Tribunal Judicial da Comarca da Feira, AA e esposa, BB, intentaram contra a presente acção declarativa com processo ordinário (acção popular), alegando em resumo: * Em consequência, na procedência da acção, pedem os A.A.: I – que se declare que são donos e legítimos possuidores do prédio que identificam no ponto 1º da P.I.; II – que se declare que o outrora caminho de consortes, depois de transformado em estrada, é uma via pública; III – que se condene a Ré a reconhecer a pública dominialidade da referida via, com o nome de Travessa da C..., a qual se inicia junto ao entroncamento com a rua da C... e termina junto à entrada da casa da Ré, concretamente junto a um espigueiro aí existente, tendo em toda a sua extensão uma largura de sensivelmente 7 metros; IV – que se condene a Ré a retirar o portão que colocou na Travessa da…, deixando a via livre e totalmente desimpedida de obstáculos, bens ou outra qualquer coisa, permitindo a livre circulação de pessoas e bens e mormente o acesso dos A.A. ao seu prédio confinante com a via pública. * Citada a Ré contestou, invocando a ineptidão da petição inicial e a excepção de caso julgado. Impugnou ainda, a factualidade alegada pelos A.A., designadamente, quanto à dominialidade da Travessa da …, alegando a respeito, e no essencial que aqui interessa considerar: * Conclui, portanto, pela improcedência da acção. * Os A.A. replicaram. * Nos termos da Lei 83/95 de 31/8, foram citadas para a acção a Freguesia de ... e Município de Santa Maria da Feira, bem como os habitantes da ... (estes editalmente). Não houve, porém, qualquer contestação, tendo o Município da Santa Maria da Feira, declarado nos termos do Artº 15º da Lei 83/95, que não pretende intervir nestes autos a título principal nem neles ser representado pelos A.A.. * Foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual foi decidida e julgada improcedente a ineptidão da petição inicial e a excepção do caso julgado, após o que foi proferida sentença onde se julgou a acção improcedente, por não provada, e em consequência absolveu-se CC do pedido formulado por AA e BB. Dessa decisão pode ler-se: " (...) Nos termos do disposto no art.ºs 14º da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto "nos processos de acção popular, o autor representa por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão previsto no artigo seguinte, com as consequências constantes da presente lei". Refere Carlos Adérito Teixeira, Acção Popular, Novo Paradigma, in http:www.diramb.gov.pt/data/basedoc/TXT "que se estabelece na LAP uma ampla legitimidade ao reconhecer-se o direito de acção popular a qualquer cidadão, a associações e fundações defensoras dos interesses em causa, independentemente de terem interesse directo na demanda, e ainda a autarquias locais relativamente a interesses cujos titulares residam na área de circunscrição daquelas, sendo de registar o facto de se ver consagrada uma tríplice legitimidade: individual, do cidadão; colectiva, a cargo das associações e fundações; e institucional, na esfera das autarquias e, de modo restrito, do Mº Pº ". O artº 84º n.° 1, al. d), da Constituição da República Portuguesa, que se refere ao domínio público, determina que as estradas pertencem ao domínio público. Os bens deste tipo estão fora do comércio, não podendo, por isso, ser objecto de negócios jurídicos, que afectem a sua natureza de bens dominiais, podendo ser concessionado o seu uso ou a sua exploração, sendo insusceptível de posse privada (cfr. artº 202º, nº 2, do Código Civil). A qualificação de um caminho ou de um terreno como públicos, com a consequente declaração dessa dominialidade, terá de fundamentar-se na verificação conjugada de dois pressupostos: no seu uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais e na sua propriedade, por parte de entidade de direito público, com afectação à utilidade pública, resultante de acto administrativo ou de prática consentida pela Administração. A dominialidade pública dos caminhos foi abordada pelo Assento do STJ de 19/04/1989 (BMJ 386-121), entendendo serem "públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público, logo pertencendo ao domínio público, as faixas de terreno adaptadas para fazer a ligação entre dois lugares ou povoados, quaisquer que eles sejam, que desde tempos imemoriais se encontrem abertas ao uso directo e imediato do público e cumprindo, nessa medida, a função pública determinante da dominialização das vias de comunicação terrestre". Conforme refere o Ac. STJ de 27/04/2006, in www.dgsi.pt "o assento consagrou uma das três teses que vinham sendo sustentadas para a definição de caminhos públicos. Uma entendia que, estando em vigor o art° 380º do Cód. Administrativo, se tornava necessário para se definir um caminho como público que o mesmo tivesse sido produzido ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva de direito público; outra bastava-se, para tanto, com o facto de o caminho estar no uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais; outra, intermédia, fazia a mesma exigência, mas defendia que, provado o uso imemorial pelo público, o caminho assumia a natureza pública, por ser de presumir que houve apropriação lícita por parte das entidades de direito público, dado ser impossível uma prova directa, sendo essa presunção ilidível por prova em contrário" e "acrescenta que foi esta posição intermédia a adoptada no Assento (cfr. ainda parecer de Freitas do Amaral e João Caupers, in CJ XIV, 1,10 ss), A expressão tempo imemorial significa "o tempo passado que já não consente a memória humana directa dos factos, ou seja, quando os vivos já não conseguem lembrá-los pelo recurso à sua própria memória ou ao relato da sua verificação pelos seus sucessores" (vide Ac. RP de 31/05/2007, in www.dgsi.pt). No caso dos autos, os Autores alegaram a existência de um determinado caminho público, e bem assim que o mesmo permite o acesso ao público em geral à povoação de C... e outra e dos próprios proprietários dos prédios que o ladeiam às suas propriedades, sendo os Autores um destes, que a Ré obstruíu esse caminho espetando espigões em ferro no chão da estrada e colocou um portão fechado com aloquete em toda a largura da via, impedindo a passagem de qualquer veículo. Conforme resulta da matéria factual constante nos art.ºs 26º e ss da petição inicial resulta que a utilização pelo público em geral desse caminho remonta ao ano de 1984, data a partir da qual a Junta de freguesia de ... alargou o caminho em causa, transformando-o numa via mais larga e com melhores acessos para a circulação, o que se deveu à cedência dos proprietários dos prédios confinantes de terreno para esse alargamento, e bem assim foram efectuados melhoramentos na iluminação pública, tendo sido deliberado pela competente Assembleia denominar a via como Travessa de C.... Ora, a utilização pelo público em geral do caminho em causa, de acordo com a alegação dos Autores, só se faz há cerca de 27 anos (desde 1984), pelo que inexistindo no articulado petição inicial outros elementos que permitam concluir por uma utilização anterior tão longínqua no tempo que escapa à percepção da memória humana, falece o referido requisito da imemorialidade (vide Ac. STJ de 18/05/2006, in www.dgsi.pt). Donde, não se encontrando preenchidos os requisitos exigidos pelo mencionado Assento, hoje com carácter uniformizador de jurisprudência "estar, desde tempos imemoriais, no uso directo e imediato do público", “o destino desta acção deverá ser a sua improcedência (...)".
* Inconformados recorreram os A.A., mas sem êxito, visto que a Relação (após diversas vicissitudes que ao caso não interessa) julgou improcedente a apelação, e, com idêntica fundamentação, confirmou integralmente o saneador- sentença recorrido. * Novamente inconformados voltaram a recorrer os A.A., agora pretendendo revista excepcional ao abrigo do disposto no Artº 721º-A do C.P.C. * Remetidos os autos à formação de juízes a que se refere o nº 3 do Artº 721º-A, foi a revista admitida a título excepcional. * * * *
Conclusões * A terminar as suas alegações, formularam os recorrentes as seguintes conclusões:
* * * * Os Factos * Apesar de não ter sido produzida prova, a Relação teve por provados (por documentos e confissão das partes) os factos seguintes: * (…) 1. Na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira encontra-se descrito sob o n.° … e inscrito em nome dos autores um imóvel rústico, terra de cultura, denominado "…", sito em C... a confrontar do Norte com DD, do Sul com caminho, do Nascente com EE e do Poente com FF, inscrito na respectiva matriz sob o art.° … da Freguesia de ..., Santa Maria da Feira; - cfr. docs.de fls. 24 a 27; 2. Tal prédio veio à posse dos autores por lhes ter sido doado pelos pais da autora, por doação celebrada por escritura pública de 16 de Novembro de 2004; 3. Os autores por si e pelos antepossuidores há mais de 20 e 30 anos que fruem e usam tal prédio, com todas as suas pertenças, arando-o, semeando-o, cultivando-o, podando as videiras, plantando árvores, colhendo os frutos nele produzidos, tirando dele todas as suas utilidades, pagando os impostos, fazendo obras de conservação e benfeitorizando-o...; 4. ...diante de toda a gente, à luz do dia e sem oposição de quem quer que fosse e na convicção de não ofenderem direitos de outrem; 5. Por todos sempre foram tidos como seus exclusivos donos e senhores, nomeadamente pelos vizinhos; 6. A ré é dona de dois prédios contíguos ao dos autores referido em 1., sendo um prédio urbano composto por uma complexa casa de lavoura com edifício destinado a habitação, com logradouro, currais de animais, anexos, canastro, inscrito na matriz urbana sob o art.º … e o outro um prédio rústico destinado a cultura, ambos sitos no lugar de C..., Freguesia de ..., Santa Maria da Feira; 7. O prédio dos autores tem acesso à via pública pelo lado da sua confrontação a sul; 8. Tal acesso era um caminho antigo em terra, entre propriedades ou de consortes, que iniciando-se no lugar de C... até atingir o prédio hoje dos autores, era estreito, dando para passar um carro de bois, ou seja, tinha cerca de 2 metros de largura; 9. Tal caminho de carro de bois foi aberto à custa de terreno dos antecessores dos autores, aquando da construção de uma casa que fica no início da actual Travessa de C..., no lado direito para quem vem no sentido C... -Travessa de C..., sentido Poente/Nascente; 10. E desde esses tempos remotos sempre foi fruído pelos antepossuidores do prédio dos autores e depois pelos autores; 11. Diante de toda a gente e à luz do dia; 12.Cortando a vegetação que nele crescia e alisando o solo para a passagem dos carros de bois, os tractores e outros veículos; 13. Em qualquer dia e mês do ano e sempre que lhes aprouvesse; 14.Sempre agindo os autores e antepossuidores do seu prédio como legítimos donos do referido caminho; 15. Desde sempre, todos os títulos referentes ao prédio identificado em 1° descrevem o, mesmo a confrontar pelo sul com caminho; 16. Caminho esse afecto ao fim específico de servir os referidos prédios; 17. No ano de 1984 a Junta de Freguesia de ..., quis alargar e beneficiar tal caminho transformando-o, pelo menos, numa via mais larga, e para tanto solicitou aos donos dos prédios confinantes a cedência de terreno para o efeito; 18. O pai da autora, anterior dono do prédio identificado em 1.°, e à data seu dono, cedeu, para alargamento e feitura da estrada, cerca de 1,5 m de largura em toda a extensão da sua confinância sul com o referido caminho que tem cerca de 14,10 m; 19. A ré cedeu também cerca de 2,00 m do lado oposto defronte à confinância do prédio dos autores; 20. Tendo os donos de prédios que ficam do lado esquerdo para quem vem no sentido Poente para Nascente, e antes de se chegar ao prédio dos autores, contribuído também para esse alargamento da via, cedendo cerca de 1,5 m de terreno em toda a extensão da respectiva confinância com o caminho; 21. A Autarquia, face a tais cedências, nesse ano de 1984, realizou obras de alargamento do caminho, para o que lá colocou máquinas por sua conta e procedeu ao desaterro e aterro do caminho, alargando-o à custa dos terrenos cedidos, numa extensão com cerca de 300 m de extensão desde a estrada principal, para cerca de 7 metros, reduzidos a 6 metros, na parte final depois de passar o portão de entrada no prédio dos autores, desembocando num largo junto à entrada da casa da ré, junto a um Espigueiro ali existente; 22. O antepossuidor do prédio dos autores, após essas obras, tapou o seu prédio em relação ao caminho, com um muro em blocos de cimento, colocando um portão na entrada para o seu prédio na extremidade da confinância sul com o caminho; 23. Tal caminho, em terra batida foi asfaltado em 1989. 24. Foi dotado de ramal de energia e iluminação pública, tendo sido novamente asfaltado pela Autarquia em 1999; 25. Foi entretanto deliberado pela respectiva Assembleia incluí-lo na toponímia da freguesia, como Travessa de C...; 26. E desde que foi asfaltada, sempre foi limpa pelos cantoneiros da Junta de Freguesia que executavam a limpeza em toda a Travessa de C...; 27. No dia 11 de Abril de 2005, a ré espetou espigões em ferro no chão do referido caminho (Travessa de C...), imediatamente antes de a mesma atingir a confrontação com o prédio dos autores, para quem vem no sentido Poente/Nascente; 28. E colocou um portão, fechado com aloquete, em toda a largura da via; 29. Impedindo por aí a passagem de qualquer veículo, impedindo os autores de por ali acederem ao seu prédio com qualquer viatura ou meio de transporte de bens”. * * * * Fundamentação * Como se vê das conclusões, a única questão aqui em causa é a de saber se a aludida Travessa da C..., atenta a matéria de facto alegada pelas A.A. na sua petição inicial pode ser caracterizada como um caminho ou via pública. * O saneador- sentença, como se vê do que vem descrito no antecede relatório, seguiu a doutrina fixada pelo Assento deste S.T.J. de 19/04/1989 (hoje com valor de jurisprudência uniformizada), segundo o qual, “São públicos os caminhos que desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”. Partindo desta concepção, considerou o Senhor Juiz que, conforme alegação dos A.A., a utilização da Travessa de C... pelo público em geral, só ocorre há cerca de 27 anos (desde 1984), “pelo que, inexistindo no articulado petição inicial outros elementos que permitam concluir por uma utilização anterior tão longínqua no tempo, que escapa à percepção da memória humana, falece o requisito da imemoralidade”, daí a improcedência da acção sem necessidade de maiores considerações. * “…ocorre fundamento de declaração da dominialidade de um determinado caminho, ou seja, estamos perante um caminho público depois de se alegar e provar que desde o mais remoto tempo da sua afectação, este se integrou no domínio público. Ou seja, se resultar provado que esse caminho está adstrito ao uso directo e imediato pelo público, mediante satisfação de interesses colectivos relevantes, e se tal uso se verifica desde tempos imemoriais.” “Ora, os apelantes apenas alegam que, pelo menos, desde 1984, ocasião em que a Junta de Freguesia alargou o outrora caminho fazendeiro, este passou a ser utilizado pelo público em geral, o que é insuficiente para caracterizar a aquisição para o domínio público do mesmo caminho…” * * * * * É contra esta interpretação que se insurgem os recorrentes. Segundo alegam, o acórdão recorrido restringiu a aquisição da dominialidade da via em causa, ao uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais, esquecendo que a dominialidade de uma via de comunicação terrestre pode, também, ser adquirida por uma autarquia quando se prove ter sido por ela construída ou produzida, ou quando legitimamente dela se apropriou, afectando-a ao trânsito do público em geral, conservando-a em condições de utilização sob a sua administração. * Foi esta última forma de aquisição da dominialidade que foi alegada pelos recorrentes, daí que deva proceder a acção ou, se se entender não estarem adquiridos todos os factos relevantes, deva ordenar-se o prosseguimento dos autos até julgamento. * * * * Vejamos. * Quanto à caracterização de um caminho como público, desde há muito se dividiu a jurisprudência. Segundo uns, seria sempre necessário demonstrar que o caminho foi construído ou apropriado por uma pessoa colectiva de direito público, fundamentando tal opinião no disposto no Artº 380º do C.C. de 1867, segundo o qual “são públicas as coisas naturais ou artificiais, apropriadas ou produzidas pelo Estado e corporações públicas e mantidas debaixo da sua administração, das quais é lícito a todos, individualmente ou colectivamente utilizar-se”, preceito que se manteria em vigor, uma vez que o actual C.C., no seu Artº 202º não define o que deva entender-se por coisa pública. * Para outros, bastaria provar-se o uso directo e imediato pelo público em geral, desde que imemorial. * Finalmente, para uma terceira corrente, seria de aceitar o critério da construção ou apropriação do caminho pela entidade pública, mas o uso imemorial (directo e imediato) pelo público em geral constituiria presunção (ilidível) da dominialidade, prescindindo-se, assim, nestes casos, da prova directa da construção ou apropriação pela corporação pública. * É, de resto, neste último sentido que se pronunciou o Prof. Marcello Caetano, o qual, embora entendesse ser indispensável para o reconhecimento da dominialidade de um caminho a prova de que foi produzido ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva de direito público, por ela passando a ser administrado, admitia, todavia, que o uso público directo e imediato, quando imemorial, constitui presunção dessa dominialidade, ilidível por prova em contrário, (confr. Manual de Direito Administrativo - 9ª ed., págs. 923/924). * No sentido de pôr cobro à referida divergência jurisprudencial, surgiu, entretanto, o Assento deste S.T.J. de 19/04/89, que, considerando revogado o Artº 380º do C.C. de 1867 e que, determinadas vias de comunicação terrestre, como as estradas municipais e os caminhos públicos, não fazem parte do domínio público do Estado (D.L. 477/80 de 15/10 – Artº 4, e)), entendem que, “quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente”. Daí que, diz-se na fundamentação: “É suficiente para que uma coisa seja pública, o seu uso directo e imediato pelo público, não sendo necessário a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito público. Assim um caminho é público desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da pessoa que o construiu e prova a sua manutenção”. * E optou-se por essa orientação porquanto, segundo o Assento, ser a que melhor se adapta à realidade da vida “visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo administração e conservação dos caminhos e assim se obstar à apropriação de coisas públicas por particulares, com a sobreposição do interesse público por interesses privados”. * Na sequência desta fundamentação firmou-se o seguinte Assento, hoje com simples valor de jurisprudência uniformizada: “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”. * * * * Ora, interpretando o mencionado Assento, tendo em conta a sua fundamentação, não será difícil (ou pelo menos será perfeitamente legítimo) entender que optou pela terceira orientação doutrinal acima explicitada, tanto que foi elemento essencial da decisão, a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de provar quem construiu, adquiriu ou mesmo administra e conserva o caminho, daí que o uso directo e imediato do público, desde que imemorial, seja “suficiente” para lhe atribuir a qualidade de coisa pública. Isto é, aquele uso imemorial faz presumir a dominialidade do caminho, assim se salvaguardando a prevalência de interesse público sobre o interesse privado. * O que não pode é interpretar-se o Assento no sentido de excluir a dominialidade de um caminho que, tendo sido construído ou legitimamente apropriado, em data recente (portanto estando ausente o requisito da imemorialidade) por pessoa colectiva de direito público (por ex. pelo Município ou Junta de Freguesia), foi por ela afectado ao uso público, servindo o interesse colectivo que lhe é inerente. Nestes casos, desde que se prove que o caminho foi construído ou foi legitimamente apropriado por uma autarquia, que exerce sobre ele, jurisdição, administrando-o, melhorando-o e conservando-o, não pode duvidar-se que se trata de um caminho público pertencente aquela entidade pública, ou seja, que estamos em presença de um bem dominial possuído pela autarquia, como tal insusceptível de apropriação particular, inalienável e imprescritível, independentemente da sua afectação ao uso directo e imediato do público nada ter de imemorial. * Como ensina Marcello Caetano (obra citada – pág. 920 e seg.) a respeito da aquisição do carácter dominial, existem bens que nascem “da actividade da Administração e por vontade dela ingressam no domínio público; ou são adquiridos por uma pessoa colectiva de direito público e só depois tornadas dominiais”. * A atribuição de carácter dominial depende de vários requisitos, designadamente (e é o que nos interessa), da afectação da coisa à utilidade pública, traduzida esta na aptidão da coisa para satisfazer necessidades colectivas. Tal afectação “pode resultar de um acto administrativo (decreto ou ordem que determina a abertura, utilização ou inauguração) ou traduzir-se num mero facto (a inauguração) ou mesmo numa prática consentida pela Administração em termos de manifestar a intenção de consagração ao uso público. Quer dizer que não há afectação, propriamente dita, mesmo táctica, senão onde se exerça a jurisdição administrativa e portanto se possa provar o destino ao uso público com o consentimento do Poder”. Portanto, “A afectação é o acto ou prática que consagra a coisa à produção efectiva de utilidade pública”. * Vê-se, assim, que não pode interpretar-se o Assento de 1989, no sentido de que apenas consente, como única via para caracterizar um caminho como público, o seu uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais, como parece ter sido o entendimento das instâncias. Não pode ser assim, nem tal resulta do aresto. A suficiência de uso imemorial a que se refere o Assento, de modo algum exclui outras vias de aquisição da dominialidade, como acontecerá quando a lei directamente integra determinada coisa na categoria do domínio público, ou quando uma pessoa colectiva de direito público, depois de a construir, produzir ou dela se apropriar, a afecta à utilidade pública. * O uso directo e imediato pelo público é apenas um índice que evidência a publicidade da coisa, no caso, do caminho, e quando imemorial, faz presumir (presunção ilidível) a sua dominialidade, e por isso, a sua pertença a uma pessoa de direito público, uma vez que não se concebe sequer, a dominialidade em relação a coisas pertencentes a particulares. * Note-se que o que acaba de dizer-se, em nada contraria a doutrina do acórdão (Assento), desde que devidamente interpretada. * * * * Mas, noutra perspectiva, convém notar que o aludido Assento deverá ser restritivamente interpretado de modo a evitar atribuir-se a qualificação de caminho público a simples atravessadouros, como aconteceria com a sua aplicação em termos estritamente literais (confr. voto de vencido do Consº Baltazar Coelho). * Na verdade o atravessadouro não deixa de ser um caminho, embora alternativo e destinado a encurtar distâncias (atalho), ligando, normalmente, caminhos públicos através de prédio(s) particular(es), cujo leito faz parte integrante do prédio atravessado. Constitui, assim, uma serventia pública, usada por uma pluralidade de pessoas, sem discriminação, de modo que, quando haja posse imemorial, teria ou poderia ser qualificado como caminho público, numa interpretação literal do Assento, o que, além de confundir realidades distintas, violaria o Artº 1383º do C.C. que aboliu os atravessadouros por mais antigos que sejam. * Não há, de facto, que confundir atravessadouro, tal como acima ficou definido, como caminho público. É que, na caracterização do caminho público pesam interesses colectivos de particular relevância bem superiores aos que definem os atravessadouros, como a ligação entre povoações ou lugares, além de que, também os seus leitos são públicos. O uso comum do caminho público destina-se à satisfação da utilidade pública e não é apenas a uma soma de utilidades individuais de vizinhos como acontece com os atravessadouros. * * * * Resumindo, dir-se-á que o uso directo e imediato do público em geral, quando imemorial, bastará para caracterizar um caminho como público, mas é ainda necessário acrescentar que esse uso público deve refletir a sua afectação à utilidade pública, ou seja, à satisfação de interesses colectivos de significativo grau ou relevância. * Por outro lado a qualificação de um caminho como público, pode, igualmente resultar do facto de ele ter sido construído ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva de direito público, que o afectou à satisfação do interesse colectivo nos termos acima expostos, independentemente de essa afectação ser ou não imemorial. * A respeito da matéria tratada, confronto entre muitos outros: - Ac. do S.T.J. de 10/11/93 – Col. J./S.T.J. 1993- I- 135 e seg. - Ac. do S.T.J. de 15/06/2000 – BMJ. 498 - 226 e seg. - Ac. do S.T.J. de 13/01/2004 – Proc. 3433/03 - 6º - RLJ 135/64 (Prof. Henrique Mesquita) - C.C. anotado – A. Varela e P. Lima - Caminhos Públicos e Atravessadouros de GG. * * * * Revertendo ao caso concreto, facilmente se conclui que as decisões das instâncias, ao interpretarem literalmente o Assento de 1989, exigindo absolutamente que o uso directo e imediato pelo público em geral se tenha prolongado desde tempos imemoriais, sem o que não pode caracterizar-se um caminho como público, não podem subsistir. * É que, como se deixou explanado, para além do requisito de uso imemorial, nas condições referidas, o caminho pode, também ser caracterizado como público desde que tenha sido construído ou produzido pela pessoa colectiva de direito público (no caso, pela Câmara Municipal ou Junta de Freguesia), ou tenha por ele sido apropriado legitimamente, conservado e administrado e afectado à satisfação do interesse colectivo que lhe é inerente, independentemente de essa afectação ser imemorial ou recente. * Ora, é esta, exatamente, a causa do pedir, o fundamento em que os A.A. alicerçam os seus pedidos, designadamente o reconhecimento da dominialidade da via ou caminho aqui em causa. * Em traços gerais, como se vê da matéria de facto alegada na P.I. e resumidamente descrita no antecedente relatório, a versão das A.A. passa pela apropriação do antigo caminho de consortes pela Junta de Freguesia de ..., o que se consolidou com o consenso dos proprietários confinantes, que cederam parcelas dos seus prédios para a autarquia alargar, como alargou, o caminho, que posteriormente asfaltou (por duas vezes), melhorou e conservou, ao longo de mais de 20 anos, integrando-o na toponímia local e cartografia municipal, com a denominação de Travessa da C..., por onde passam livremente quaisquer pessoas para aceder da povoação de C... a outra, bem como quaisquer veículos automóveis. * Alegou, pois, matéria de facto que, a ter-se por integralmente provada, apontaria para a aquisição da dominialidade do caminho ou via em causa, independentemente do requisito da imemoralidade. * Todavia, não é possível valorar, desde já, tal factualidade, porquanto a Ré a impugnou e em parte, motivadamente, alegando em síntese que, apesar de a autarquia ter, de facto, pretendido transformar o antigo caminho de consortes numa nova via ligando os lugares de C... e F.., possibilitando assim uma saída não só para que os moradores pudessem circular entre os referidos lugares, como um acesso mais rápido entre ambos, e não obstante ter conseguido a anuência dos proprietários confinantes para a cedência do necessário terreno para a construção da nova via, não conseguiu, no entanto, o consentimento dos antepossuidores do prédio ora dos A.A., que sempre se negaram a permitir a abertura no seu prédio, necessária à pretendida ligação dos dois lugares. Por isso a Junta de Freguesia comunicou aos moradores que desistia do projecto, autorizando-os a repor os seus prédios no estado inicial, reocupando as parcelas de terreno que naquele pressuposto haviam disponibilizado à autarquia. Terá sido, então, na sequência da mencionada desistência e autorização da autarquia, que a Ré colocou o portão aqui em questão, no limite inicial do seu prédio… (confr. entre o mais, artigos 9, 10, 14, 15, 19, 20, 21, 22, 23, 24 e 25 da contestação). * Os A.A., porém, impugnaram a versão da Ré, como se vê, nomeadamente, do que alegam nos pontos 23, 24, 25, 26, 27 e 28 da tréplica. * Ora, a provar-se a versão da Ré, mesmo a entender-se que se teria já verificado a aquisição da dominialidade da Travessa da C..., terá de encarar-se a hipótese do desaparecimento da utilidade pública a que a autarquia pretendeu afectar a dita via. Dito por outras palavras, a eventual desistência da autarquia em estabelecer a ligação entre os dois aludidos lugares ou povoações (C... / F...), utilizando para o efeito o antigo caminho particular (ou atravessadouro), e a consequente reversão das parcelas de terreno cedidas pelos proprietários confinantes, terá feito perder o carácter dominial do troço do caminho existente (a dita Travessa), que no pressuposto daquela ligação, a autarquia terá alargado e beneficiado, visto que ele terá deixado de servir o interesse colectivo, deixando de ter utilidade pública. Isto é, verificar-se-ia a desafectação por acto expresso da administração ou, pelo menos, estar-se-ia perante uma desafectação tácita, deixando, em qualquer caso, o dito caminho ou via, de servir o seu fim de utilidade pública. (Confr. Marcello Caetano – obra cit., pág. 956/957/ 958). * * * * Verifica-se, assim, que os autos não contêm ainda a factualidade necessária a um seguro conhecimento do mérito. * Devem, pois, os autos prosseguir com a selecção dos factos assentes e com a organização da base instrutória, seguindo-se os demais termos ulteriores, sem prejuízo, se tal se entender necessário, de um melhor esclarecimento da factualidade alegada em ordem a um melhor enquadramento das versões em confronto, em conformidade com o disposto nos Art.ºs 265º nº 3, 266º nº 2 e 508º nº 1, 3, 4 e 5 do C.P.C. * * * * Decisão: * * Custas pela parte vencida a final. * Lisboa, 21 de Janeiro de 2014 Moreira Alves (Relator) Alves Velho Paulo Sá |