Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3/19.1YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO DO CONTENCIOSO
Relator: HELENA ISABEL MONIZ
Descritores: PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
LEGITIMIDADE
LEGITIMIDADE ACTIVA
LEGITIMIDADE ATIVA
INTERESSE EM AGIR
ADVOGADO
PARTICIPAÇÃO
QUEIXA
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
INFRAÇÃO DISCIPLINAR
JUIZ
RECLAMAÇÃO
DELIBERAÇÃO DO PLENÁRIO DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
INTERESSE PÚBLICO
ACTO ADMINISTRATIVO
ATO ADMINISTRATIVO
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE CONTENCIOSO
Decisão: REJEITADO A IMPUGNAÇÃO, POR ILEGÍTIMIDADE
Área Temática:
DIREITO ADMINISTRATIVO – ACÇÃO ADMINISTRATIVA / DISPOSIÇÕES PARTICULARES / LEGITIMIDADE / LEGITIMIDADE ACTIVA.
Doutrina:
- Ana Fernanda Neves, Legitimidade processual do participante de situação qualificável como infracção disciplinar, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 9, Maio/Junho de 1998, p. 37;
- Luiz S. Cabral de Moncada, Código do Procedimento Administrativo Anotado, 2.ª Edição, Quid Juris, 2017, p. 589;
- Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª ed. revista, 2010, p. 372;
- Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 3.ª ed., Almedina, 2017, p. 224 e 225.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO (CPTA): - ARTIGO 55.º, N.º 1, ALÍNEA A).
ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS (EMJ): - ARTIGO 164.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 20.º, N.º 4.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH): - ARTIGO 6.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 21-11-2012, PROCESSOS N.º 75/12.0YFLSB, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 10-04-2014, PROCESSOS N.º 128/13.7YFLSB, SASTJ, CONTENCIOSO, 2014, WWW.STJ.PT;
- DE 23-01-2018, PROCESSOS N.º 71/17.0YFLSB, SASTJ, CONTENCIOSO, 2018, WWW.STJ.PT.
Jurisprudência Internacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS (TEDH):


- DE 06-11-2018, (GRAND CHAMBRE), QUEIXA N.º 55391/13, N.º 57728/13 E N.º 74041/13 RAMOS NUNES DE CARVALHO E SÁ V. PORTUGAL.
Sumário :

I - De acordo quer com o art. 164.º. do EMJ, quer com o art. 55.º, n.º 1, al. a), do CPTA, só pode recorrer da deliberação do Plenário quem tiver interesse direto, pessoal e legítimo na anulação da deliberação.

II - O exercício da ação disciplinar sobre os juízes, levado a cabo pelo CSM, visa exclusivamente fins de interesse público, que se consubstanciam na exigência de um bom e regular funcionamento do sistema de justiça. Ou, dito de outro modo, o interesse e bem jurídico tutelado, através da previsão e tipificação das infrações disciplinares imputáveis aos Juízes, é o interesse público na boa administração da justiça, e não, de forma direta e individualizada, os interesses pessoais das partes e respetivos mandatários no pleito.

III - Encontra-se consolidada orientação da jurisprudência desta secção do STJ de que, no âmbito da ação disciplinar, o participante de certa infração alegadamente cometida por juiz do decurso do processo em que o participante exercia as funções de mandatário judicial, só por esse facto, não pode considerar-se titular do interesse direto, pessoal e legítimo na anulação da decisão que determinou o arquivamento da participação apresentada para fins disciplinares ao CSM.

IV - Cabe a cada cidadão comunicar todas as situações em que considere que aquele interesse público está a ser lesado ou colocado em perigo. A eventual lesão daquele interesse público constitui a lesão de um interesse de todos nós, não estando, no entanto, legitimado para nos representar qualquer cidadão que entenda que aquele interesse está a ser lesado. Assim, entende-se que, no prosseguimento da ação disciplinar e na reação a uma decisão de arquivamento daquela, apenas tem legitimidade o cidadão que encabece um interesse pessoal e direto na continuação daquele procedimento disciplinar, e não apenas aquele que alegue a existência de um interesse público na boa administração da justiça.

V - Inexiste uma subjetivação do interesse público no exercício da ação disciplinar, isto é, cada cidadão/participante, seja ele parte num processo judicial, seja mandatário judicial, não é detentor de um direito subjetivo público concreto e individualizado tendo como objeto o exercício da ação disciplinar; deste modo, importa casuisticamente apreciar se o Recorrente, face aos termos da sua queixa apresentada, possui interesse direto e pessoal na anulação do ato.

VI - O Recorrente não se conforma com dois despachos proferidos pela Mm. Juíza em dois processos judiciais distintos. Relativamente ao primeiro despacho, é o próprio Recorrente que assume que o mesmo contém expressões deselegantes, porém não constitui, por si só, matéria disciplinar. Não vislumbramos assim que utilidade o interessado pretende obter com a anulação do despacho impugnado, na medida em que o próprio assume, ainda que implicitamente, inexistir qualquer interesse ou direito digno de tutela. Relativamente ao segundo, entendemos que não é uma discordância na apreciação de uma matéria num processo judicial, plasmado num despacho (de indeferimento) da Mma. Juíza visada, despacho esse suscetível de recurso e de ser revisto por um Tribunal Superior, que permite ao Recorrente arrogar-se titular de um direito subjetivo público concreto e individualizado de «boa administração da justiça». Não se considera por isso que o Recorrente é titular de um interesse direto e pessoal em nome do qual se move no processo (para a anulação do ato).

VII - O fim visado com a censura disciplinar não é ressarcir eventuais danos do participante ocorridos em processo(s) judicial(is) em curso. A eventual punição disciplinar do Mmo. Juiz reflete-se diretamente na esfera jurídica do mesmo e apenas neste. De maneira alguma a punição disciplinar de uma conduta de um Juiz, pode ser considerada ressarcitória na esfera jurídica do Recorrente.

VIII - A decisão de não instauração do processo disciplinar à Mma Juíza visada não causa qualquer prejuízo direto ou imediato na esfera jurídica do recorrente. Ou, dito de outro modo, por via da procedência do presente recurso, o Recorrente não obtém qualquer utilidade ou vantagem que se repercuta diretamente na sua esfera jurídica. Pois, com a procedência do presente recurso, não obtém qualquer reparação dos direitos alegadamente violados pela conduta da Mma. Juíza denunciada. Sendo que apenas estamos perante um interesse pessoal e direto se se retirar da anulação diretamente uma qualquer utilidade ou vantagens dignas de tutela, o que no caso não sucede.

IX - O Recorrente tem o direito a ver sindicado por um Tribunal o conteúdo dos despachos exarados nos dois processos pela Exma. Juíza visada, e efetivamente esses despachos é que o afetam direta e imediatamente na sua esfera jurídica (ou na esfera jurídica daquele que representa, enquanto mandatário judicial). Assim sendo, o direito a um processo equitativo previsto no art. 6.º, n.º 1, da CEDH e art. 20.º, n.º 4, da CRP, revela-se na possibilidade de uma das partes num litígio poder sindicar junto de um Tribunal Superior (independente e imparcial) um despacho desfavorável, proferido por um Juiz, que afete direta e imediatamente a sua esfera jurídica. Sendo que o recorrente utilizou esse meio ao dispor, tendo recorrido dos despachos proferidos.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:


I

Relatório


1. AA, advogado, veio interpor recurso contencioso da deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, de 4 de dezembro de 2018, que decidiu “por unanimidade não tomar conhecimento da reclamação apresentada pelo Exmo. Senhor Dr. AA, por falta de legitimidade do reclamante, sendo certo também que o despacho sob censura não justifica qualquer anulação ou modificação oficiosa”.

Defende, em suma, para o efeito que ação disciplinar dos Juízes não é apenas da titularidade do CSM, mas um direito de qualquer cidadão do povo, porque os juízes exercem o poder judicial em nome do povo.

Mais defende que o direito ao juiz isento e probo é um direito fundamental que a Constituição confere (art. 20.º, n.º 4) e uma infração dolosa do EMJ impõe a reparação pelo ato ilícito, podendo e devendo ser considerada ressarcitória a decisão disciplinar sobre o juiz claudicante.

Por último, defende que o dolo da Juíza participada é manifesto, tanto pela escrita do despacho em que se referiu ao recorrente como ignorante da lei e do procedimento, como pela exatidão de quaisquer argumentos de uma reclamação que veio a indeferir de tabela e contra os dados de facto processuais.

2. Cumprido o disposto no art. 174.º, n.º 1, EMJ, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) apresentou resposta onde, em súmula, sustentou que o recorrente carece de legitimidade para apresentar o presente recurso, porque “não assiste ao participante disciplinar nenhum concreto e individualizado direito subjetivo de, por via graciosa ou contenciosa, levar ao exercício de ação disciplinar”. Entende que em matéria disciplinar o direito dos cidadãos em geral – e também dos Advogados constituídos – esgota-se na faculdade de participar ao CSM factos ou decisões suscetíveis de constituir infração disciplinar. Entende ainda que no exercício das suas competências em matéria disciplinar, o CSM não prossegue a defesa de qualquer interesse pessoal e individual, mas sim a defesa do interesse publico da sã administração da Justiça.

E concluiu no sentido da rejeição liminar do recurso interposto por falta de legitimidade do recorrente.

3. Notificado nos termos do art. 176.º, do EMJ, o recorrente não apresentou alegações.

4. O Conselho Superior da Magistratura apresentou alegações em que, no essencial, reafirmou os argumentos anteriormente expostos na resposta.

5. O Ministério Público juntou alegações considerando: “certo é não ser o Autor titular de qualquer interesse directo, pessoal e legítimo na anulação do acto administrativo que impugna. Acresce não invocar o Recorrente qualquer vício suscetível de determinar a anulação, que peticiona, da deliberação impugnada, ante se limitando a tecer considerações sobre a conduta processual que entende ter sido a da Mma. Juiz, contra a qual participou disciplinarmente”, e concluindo que “carece o Recorrente de legitimidade para o presente Recurso que, como tal, deverá ser rejeitado”.

6. Notificado o parecer do Ministério Público, o recorrido nada disse. O recorrente veio responder considerando que, na linha do decidido pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) no caso “Ramos Nunes de Carvalho e Sá v. Portugal”, e em cumprimento do disposto no art. 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), uma “decisão disciplinar judicial de ordem e conformidade burocrático-administrativa tem de ser revista por um órgão jurisdicional, em ordem à protecção e defesa dos direitos humanos”. Considera ainda que, pese embora a doutrina do TEDH tenha sido desenvolvida em ordem à proteção da defesa, o mesmo se deve aplicar ao ofendido, relativamente a uma decisão burocrático-administrativa de arquivamento. Considera ainda que o entendimento de que não tem legitimidade para reclamar da deliberação do Conselho Superior da Magistratura constitui uma interpretação inconstitucional do disposto no art. 164.º, n.º 1, do EMJ.

Após os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II

Fundamentação


A. Valorada a documentação junta aos autos, consideram-se demonstrados os seguintes factos relevantes para a decisão:

1. O Exmo. Advogado Dr. AA veio, por requerimento de ..., dirigido ao Venerando Juiz Conselheiro Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM), “apresentar queixa disciplinar contra a Ex.ma Senhora Dra. BB, Mma. Juíza de Direito, provida no Tribunal Judicial da Comarca de ..., …” pelos seguintes factos:

“1 – No Proc. ..., enquanto R., o signatário solicitou a repetição da colheita de autógrafo do A., em face do relatório inconclusivo do LPC, e que referia precisamente não poder pronunciar-se sobre se a assinatura suspeita era ou não do próprio, porque “a análise comparativa da escrita da assinatura questionada... foi extremamente limitada... pelo traço irregular, trémulo e hesitante dos autógrafos”.

2 - A Mma. Juíza, em face do requerimento, despachou: “o requerimento em apreço demonstra a falta de conhecimento quer da lei quer do procedimento que foi efetivamente adotado na recolha de autógrafos: nem um, nem outro, porém, lhe aproveitam – a lei é conhecida do senhor advogado que subscreve o requerimento – essa é uma das razões porque se exige como obrigatória a constituição de advogado – o auto de recolha de autógrafos consta dos autos e foi presidido por juiz, neste caso a signatária; não pode, pois, o senhor advogado afirmar, sob pena de litigância de má-fé, que os autógrafos foram recolhidos na secretaria, porque o não foram; e das duas uma, ou suscitava a falsidade do auto de recolha de autógrafos – o que não fez – ou terá de se abster de tecer tais declarações, sob pena de se ter que enquadrar legal e devidamente as mesmas: a recolha de autógrafos respeitou de forma integral a lei; não há mais nada a determinar nesta matéria” (sublinhado do Exmo. Exponente).

3 – Demonstrou a Mma. Juíza, desde logo, uma posição de acrimónia na fórmula inicial do despacho, quando imputa ao signatário ignorância da lei.

4 – Parece que a Mma. Juíza ficou alterada com a circunstância de o signatário ter dito no requerimento que a recolha de autógrafos em questão fora realizada na secretaria por leigos.

5 – Acrescentou o signatário, aliás, que esses leigos, como escreveu, não tinham qualquer dever técnico de melhor desempenho do que aquele que tiveram, no entanto insuficiente para o bom resultado do exame grafológico.

6 – E quando referiu a secretaria não quis, nem do requerimento se pode retirar, que a colheita de autógrafos não tenha sido presidida por juiz: aconteceu, como é natural, fora do gabinete, como ato processual de secretaria, presidido pelo juiz no caso de assim o entender, mas até pode nem sequer estar presente, simplesmente ordená-lo, não havendo qualquer ilegalidade se for praticado apenas por oficiais de justiça.

7 – Em todo o caso, a circunstância deste despacho da Mma. Juíza, embora deselegante, não constituiria por si só matéria disciplinar.

8 – Acontece que a mesma Mma. Juíza, no proc. ..., em que o signatário patrocina o A., soldado da … vítima de violentíssimo atropelamento, quando estava no exercício de funções, cujas lesões contraídas o levaram à reforma por invalidez, despachou o indeferimento de uma reclamação apresentada contra o relatório do IML, escamoteando-a de tal maneira que se lhe refere como não apresentada.

9 – Ora, a reclamação em causa foi remetida ao tribunal poucas horas depois de o A. ter sido notificado do relatório pericial, onde o Exmo. Perito referiu expressamente não haver lugar a respostas aos quesitos por não lhe terem sido apresentados, quando, na verdade, logo o foram no final da petição inicial.

10 – Assim, a circunstância de a Mma. Juíza ignorar acintosamente quaisquer das duas circunstâncias – formulação na petição inicial dos quesitos e reclamação por não lhe ter sido dada resposta – ínsita no pedido que o A. apresentou ao tribunal de serem remetidos ao Exmo. Perito Médico, para lhes responder (precisamente os quesitos de que disse não ter tido conhecimento) configura, no entender do signatário, uma infração disciplinar.

11 – Com efeito, este despacho de indeferimento, de sobranceiro desprezo, que não tem base de facto, só pode justificar-se, na fórmula negativa que elegeu, como prolongamento da acrimónia inicial do primeiro despacho, aqui trazido à colação.

12 – É assim, no correlato de um com outro dos despachos, que toma materialidade a má prática judicial da Mma. Juíza. E cometida, afinal, em ordem ao desmerecimento do signatário, colaborador da justiça e que deve, não só segundo a lei, mas segundo a deontologia judiciária, merecer a consideração e respeito devidos.

Espera, pois, o signatário que Vossa Excelecência ordene a instauração do procedimento disciplinar que compete, para correcção, após a defesa, da Mma. Juiza participada, e em termos de recobro da confiança nos Tribunais, abalada, sempre, por comportamentos esquivos, do jaez dos que ficaram aqui descritos.”

2. O Recorrente juntou diversos documentos e o Exmo. Vogal do CSM determinou a notificação da Exma. Juíza visada para prestar esclarecimentos, assim o entendendo.

3. Nos esclarecimentos prestados, a Exma. Juíza juntou vários documentos relativos aos autos e descreveu a tramitação processual relativa aos Processos n.º ....... e ......., tendo a final concluído que : “(…) a signatária apenas se recorda de ter trabalhado com o Sr. Advogado em questão nos dois processos referenciados, tendo sempre estabelecido um relacionamento cordato e respeitoso com o mesmo, como é seu hábito em relação a todos, sejam colegas magistrados, advogados, partes ou testemunhas, sem qualquer exceção”.

4. O Exmo. Vogal do CSM em ...proferiu o seguinte despacho:

“Cumpre apreciar e decidir:

O Conselho Superior da Magistratura é o órgão de gestão e disciplina da magistratura judicial (artigo 136.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais ­ Lei n.º 21/85,de 30 ,de julho), sendo que os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à Lei (artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa).

Por isso, o Conselho Superior da Magistratura não assume a função de Julgador, quer na vertente de apreciação da matéria de facto ou de aplicador do direito e não cabe na sua esfera de competências a alteração, confirmação ou revogação das decisões tomadas pelos tribunais, em razão dos princípios da separação de poderes e da Independência Judicial.

O Conselho Superior da Magistratura não avalia o mérito substancial das decisões, as irregularidades e nulidades processuais e demais temas de discordância (valoração da prova, omissão de pronúncia, fundamentação de direito entre outros), pois estas segundo os princípios constitucionais e regras processuais apenas podem ser analisadas pelos Tribunais Superiores, em sede de recurso. O Conselho Superior da Magistratura não pode sindicar o Juízo emitido por qualquer tribunal num caso concreto, sob pena de violação do princípio constitucional da separação de poderes e independência dos tribunais.

As decisões não são passíveis de responsabilização disciplinar, pois estão no âmbito jurisdicional, protegidas assim pela figura da independência dos tribunais e da não responsabilização dos julgadores. Esta é a regra, mas toda a regra tem exceções, sendo ela a do dolo ou de erro grosseiro na decisão proferida. Estamos perante erro grosseiro quando o juiz decida contra lei expressa e inequívoca, quando erre de forma ostensiva, flagrante.

Salvo o devido respeito pela posição expressa e sentimento de indignação do Muito Ilustre Advogado, em todas as premissas suscitadas, a Exma. Juíza agiu na sua atividade jurisdicional, decidindo como entendeu ser a melhor interpretação da Lei, com a fundamentação que entendeu se aplicar ao caso concreto. Ambas as decisões em causa mostram-se fundamentadas, com apelo à legislação em vigor, com o cunho da sua interpretação legislativa. Não se vislumbra que tenha agido contra lei expressa, sendo que as decisões estão fundamentadas, independentemente do seu acerto ou desacerto. Existindo discordância sobre as decisões e os seus fundamentos, o lugar próprio para atacar as mesmas é em sede de recurso.

No caso, não temos indícios da existência de erro grosseiro nas decisões proferidas, pois estas estão alicerçadas na Lei, independentemente da sua interpretação ser a mais conforme ou não à Lei, jurisprudência ou interesse de uma das partes.

Se as decisões não são mais acertadas ou corretas, mesmo do ponto de vista material, este Conselho Superior da Magistratura não pode ajuizar ou sindicar, sob pena de violação do princípio da independência.

Por fim, quanto às expressões usadas no despacho [no processo] n.º ..., são o cunho pessoal da fundamentação da Exma. Juíza, o seu estilo, as quais objetivamente não extravasam o dever de respeito e urbanidade devido. As referências feitas são no sentido de fundamentar a sua decisão, de reforçar a inviabilidade da pretensão do Mui Ilustre Exponente. Ao estarmos perante fundamentação, entramos no âmbito jurisdicional, pelo que não se justifica qualquer intervenção do Conselho Superior da magistratura.

Feito este trajeto, embora se respeite a insatisfação do Mui Ilustre Advogado Exponente, entendemos não existir qualquer matéria que justifique a intervenção do Conselho Superior da Magistratura”.

5. O despacho descrito em 4. foi remetido ao Senhor Vice-Presidente do CSM que, por despacho de …. decidiu “Concordo, procedendo-se e arquivando-se nos termos propostos”.

6. Inconformado com o despacho do Senhor Vice-Presidente do CSM, o Exmo. Queixoso apresentou Reclamação para o Plenário do CSM, concluindo:

“Por conseguinte parece dever instaurado o processo disciplinar, antes de mais, para que a Mma. Juíza de forma transparente e pública porque é que nas circunstâncias ditas apontou o queixoso como ignorante da lei e do rito processual por que foram colhidos os autógrafos (insuficientes, segundo os peritos) ou correlativamente pôs de lado, soberana, o aperfeiçoamento das conclusões periciais (tabelares perante a lei) em face dos elementos em falta, enunciados pelo perito médico-legal, mas que tinham sido avançados a seu tempo e melhor oportunidade pelo advogado”.

7. No Plenário do CSM, de …, foi deliberado por unanimidade «não tomar conhecimento da reclamação apresentada pelo Exmo. Senhor Dr. AA, por falta de legitimidade do reclamante, e que o despacho sob censura não justifica qualquer anulação ou modificação oficiosa», apresentando a deliberação a seguinte fundamentação de direito:

“O Exmo. Reclamante insurge-se contra o despacho do Exmo. Conselheiro Vice-Presidente do CSM que, concordando com a proposta formulada pelo Exmo. Vogal, determinou o arquivamento da Queixa apresentada, porquanto com eles não concordando (proposta e despacho de arquivamento) pretende a sua reapreciação. 

A tal propósito e nesse enquadramento, importa, antes do mais aferir da legitimidade do Exmo. Queixoso.

O Estatuto dos Magistrados Judicias “aplica-se a todos os magistrados judiciais, qualquer que seja a situação em que se encontrem” e “igualmente, com as necessárias adaptações, aos substitutos dos magistrados judiciais quendo em exercício de funções (artigo 1.º, n.ºs 2 e 3) e prevê que “das decisões do Presidente, do Vice-Presidente ou dos Vogais do Conselho Superior da Magistratura reclama-se para o Plenário do Conselho” (artigo 166), sendo certo que “pode reclamar ou recorrer quem tiver interesse direto, pessoal e legítimo na anulação da deliberação ou da decisão (artigo 164, n.º 1).

Por sua vez, nos termos do artigo 186, n.º 1, alínea a) do Código do Procedimento Administrativo (CPA), têm legitimidade para reclamar ou recorrer “os titulares de direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos que se considerem lesados pela prática ou omissão do ato administrativo”.

Como tem entendido repetidamente o Supremo Tribunal de Justiça, o particular, o cidadão queixoso, não tem interesse direto e legítimo nem é lesado quando está em causa e apenas está em causa o exercício da ação disciplinar contra um qualquer Magistrado Judicial[1]. E se tal entendimento tem valido em sede contenciosa – pois é nessa sede que intervém o Supremo – não pode sustentar-se que em sede graciosa (cf. os artigos 164 do EMJ e 186 do CPA) se configure conceção diferente da legitimidade[2].

Decorre do exposto que o Exmo. Reclamante, pretendendo e insistindo na instauração de um processo disciplinar à Exma. Juíza visada, carece de legitimidade para reclamar do despacho que aqui censura.

E não se diga que o seu eventual direito advém do disposto no artigo 165.º do EMJ ou da redação do artigo 184.º do CPA: um e outro pressupõe, prévia e necessariamente, a legitimidade do discordante.

Igualmente não se diga que, com este entendimento, ocorre como que uma desproteção do cidadão queixoso, que apenas em um grau vê apreciada a sua queixa ou que, deste modo, o principal órgão do CSM não chega a pronunciar-se sobre a questão suscitada pelo cidadão.

Voltamos sempre à questão da legitimidade ou da falta de interesse tutelado: a disciplina dos juízes não se enquadra na participação dos particulares nem é interesse (nomeadamente interesse difuso) que caiba na sua intervenção, uma vez feita e apreciada a participação. Por outro lado, a configuração específica do CSM não altera, por si só, e nem nada o justifica ou legalmente o prevê, a condição indispensável da legitimidade.

No caso presente, acrescente-se, a participação foi apreciada pelo Exmo. Conselheiro Vice-Presidente. Arquivado o procedimento que, como é evidente, apenas reveste natureza de imputação disciplinar, nada mais se justifica, pois nada mais a lei consente.

Não desconhecemos que, nos termos do CPA, o próprio órgão – leia-se aqui, o CSM – pode conhecer oficiosamente nulidades e pode re/apreciar o ato administrativo questionado.

Ora, neste último enquadramento, não tendo o Exmo. Reclamante apresentado qualquer prova nova ou diversa da que aduziu anteriormente ao despacho sob censura, e mostrando-se o mesmo fundamentado (na proposta que o antecede) e proferido por entidade competente, nada vemos que oficiosamente possa/deva ser anulado ou modificado, antes deve manter-se o ato administrativo aqui reclamado.”

            8. O despacho proferido no Processo n.º ......., de ..., referido no art. 1.º do ponto 2) foi objeto de recurso para o Tribunal da Relação.

            9. O despacho proferido no Processo n.º ......., de ..., referido no art. 1.º do ponto 8) foi objeto de recurso para o Tribunal da Relação.

B. Apreciando:

Antes do mais, importa apreciar se o Recorrente tem legitimidade ativa para recorrer da deliberação do CSM que não tomou conhecimento da reclamação apresentada por entender que o Reclamante não tinha legitimidade para reclamar do despacho do Senhor Vice-Presidente que decidiu arquivar o processo administrativo, por as condutas participadas não possuírem relevância disciplinar.

Quanto a tal matéria, é crucial chamar à colação o art.164.º, do EMJ, segundo o qual “1 - Pode reclamar ou recorrer quem tiver interesse directo, pessoal e legítimo na anulação da deliberação ou da decisão. 2 - Não pode recorrer quem tiver aceitado, expressa ou tacitamente, a deliberação ou a decisão. 3 - São citadas as pessoas a quem a procedência da reclamação ou do recurso possa directamente prejudicar.”

Também o art. 55.º, do Código do Processo nos Tribunais Administrativos[3], ex vi art. 178.º, do EMJ, possui uma norma paralela que sob a epígrafe “legitimidade activa” dispõe que:

1- Tem legitimidade para impugnar um ato administrativo: a) Quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos; b) O Ministério Público; c) Entidades públicas e privadas, quanto aos direitos e interesses que lhes cumpra defender; d) Órgãos administrativos, relativamente a atos praticados por outros órgãos da mesma pessoa coletiva pública que alegadamente comprometam as condições do exercício de competências legalmente conferidas aos primeiros para a prossecução de interesses pelos quais esses órgãos sejam diretamente responsáveis; e) Presidentes de órgãos colegiais, em relação a atos praticados pelo respetivo órgão, bem como outras autoridades, em defesa da legalidade administrativa, nos casos previstos na lei; f) Pessoas e entidades mencionadas no n.º 2 do artigo 9.º.”

Assim, de acordo quer com o art. 164.º. do EMJ, quer com o art. 55.º, n.º 1, al. a), do CPTA, só pode recorrer da deliberação do Plenário quem tiver interesse direto, pessoal e legítimo na anulação da deliberação.

Cumpre referir que, pese embora o art. 55.º, n.º 1, al. a), do CPTA, não identifique expressamente o interesse legítimo como condição para recorrer, o mesmo tem que estar verificado e subjacente ao interesse direto e pessoal em anular a deliberação e, nessa medida, não tem autonomia.  Neste sentido, Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha afirmam:

 “De notar que a al. a) do n.º 1 não faz agora referência ao interesse legítimo como condição de legitimidade, o que pode justificar-se por ter sido considerado desnecessário. Entendia-se que o interesse era legítimo se a utilidade proveniente do provimento do recurso não fosse reprovada pelo direito. Era ainda nessa linha que se posicionava o Projecto de Código de Processo Administrativo Gracioso (2.ª versão), quando definia como interesse legítimo, para efeito da intervenção no procedimento administrativo, o interesse que seja susceptível de tutela pela ordem jurídica (art. 58.º, n.º 3). Poderá assim considerar-se que o interesse legítimo, segundo a tradição tradicional, não tem autonomia”[4].

Assim sendo, tem legitimidade para interpor recurso da deliberação do CSM quem for titular de interesse direto, pessoal (e legítimo) na anulação do ato.

O que é um interesse direto e pessoal na anulação do ato?

Os termos «interesse directo e pessoal» são conceitos abstratos, pelo que se impõe a sua densificação. Nessa densificação dos conceitos apresenta-se de especial relevância os contributos da doutrina.

Conforme afirma Mário Aroso de Almeida, “a utilização da fórmula “interesse directo e pessoal”, em contraposição à lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos, que é apresentada como um exemplo e, assim, como uma das suas formas de concretização possível, aponta no sentido de que a legitimidade individual para impugnar actos administrativos não tem de basear-se na ofensa de um direito ou interesse legalmente protegido, mas se basta com a circunstância de o acto estar a provocar, no momento em que é impugnado, consequências desfavoráveis na esfera jurídica do autor, de modo que anulação ou a declaração de nulidade desse acto lhe traz pessoalmente a ele, uma vantagem directa (ou imediata)[5]. E entende que o “carácter pessoal do interesse trata de exigir que a utilidade que o interessado pretende obter com a anulação ou a declaração de nulidade do acto impugnado seja uma utilidade pessoal, que ele reivindique para si próprio, de modo a poder afirmar-se que o impugnante é considerado parte legítima porque alega ser, ele próprio, o titular do interesse em nome do qual se move no processo. Já o carácter «directo» do interesse tem que ver com a questão de saber se existe um interesse actual e efectivo em pedir a anulação ou a declaração de nulidade do acto que é impugnado. Admitindo que o impugnante é efectivamente o titular do interesse, trata-se de saber se o impugnante se encontra numa situação efectiva de lesão que justifique a utilização do meio impugnatório. Neste sentido, o Supremo Tribunal Administrativo tem sufragado o entendimento de que o interesse directo deve ser apreciado, por referência ao conteúdo da petição inicial, em função das vantagens que o impugnante alega poderem advir-lhe da anulação, do acto, sendo que «os efeitos decorrentes da anulação devem repercutir-se, de forma direta e imediata, na esfera jurídica do impugnante», Tem, assim, legitimidade para impugnar quem «espera obter da anulação do acto impugnado um certo beneficio e se encontra em condições de o poder receber», sendo o interesse directo desde que «de repercussão imediata na esfera do interessado». o interesse directo contrapõe-se, assim, a um interesse meramente longínquo, eventual ou hipotético, que não se dirija a uma utilidade que possa advir directamente da anulação do acto impugnado“[6].

Para a ponderação de saber se o recorrente tem interesse direto, pessoal e legítimo na anulação do ato, importa analisar as funções dos Juízes e do CSM.

Pese embora o EMJ, quanto à matéria da responsabilidade disciplinar dos Juízes, remeta no seu art. 131.º subsidiariamente para o regime da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, a responsabilidade disciplinar dos juízes é especial e obedece a critérios diferentes dada a natureza das funções desempenhadas.

Primeiramente não se pode esquecer que

-  de acordo com o art. 202.º, da CRP e com o art. 3.º, n. º 1, do EMJ, “1. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo

- de acordo com o art. 203.º, da CRP, e com o art. 4.º, do EMJ “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei

- e ainda de acordo com o art. 216.º, da CRP, e os arts. 5.º e 6.º, do EMJ “1. Os juízes são inamovíveis, não podendo ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei. 2. Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei”.

Acresce que, segundo os arts. 81.º e 82.º, do EMJ “os magistrados judiciais são disciplinarmente responsáveis” e “constituem infracção disciplinar os factos ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais e os actos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções”.

E nos termos do art. 217.º, da CRP, e do art. 149.º, al. a), do EMJ “1. A nomeação, a colocação, a transferência e a promoção dos juízes dos tribunais judiciais e o exercício da ação disciplinar competem ao Conselho Superior da Magistratura, nos termos da lei.”

Cabe assim ao CSM, enquanto órgão superior de gestão e disciplina dos Juízes (art. 136.º do EMJ), exercer a ação disciplinar respeitantes a magistrados judiciais, ciente que os juízes administram a justiça em nome do povo e são independentes, ou seja, julgam apenas segundo a CRP e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores.

Nestes temos, concluímos que o exercício da ação disciplinar sobre os juízes, levado a cabo pelo CSM, visa exclusivamente fins de interesse público, que se consubstanciam na exigência de um bom e regular funcionamento do sistema de justiça. Ou, dito de outro modo, o interesse e bem jurídico tutelado, através da previsão e tipificação das infrações disciplinares imputáveis aos Juízes, é o interesse público na boa administração da justiça, e não, de forma direta e individualizada, os interesses pessoais das partes e respetivos mandatários no pleito.

Conforme decidiu o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (Grand Chambre), de 6 de novembro de 2018, na queixa n.º 55391/13, 57728/13 e 74041/13 Ramos Nunes de Carvalho e Sá v. Portugal[7], “O CSM exerce os seus poderes discricionários, como órgão especificamente criado para interpretar e aplicar as regras que regem a conduta disciplinar dos Juízes, ao CSM incumbe a função de contribuir para o bom funcionamento do sistema de justiça[8].

Assim, tomamos como nossa a jurisprudência assumida no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 21.11.2012 (no Proc n.º 75/12.0YFLSB[9]):

o que releva decisivamente para a problemática da definição da legitimidade é a correcta identificação do interesse ou bem jurídico tutelado através da previsão e tipificação das infracções disciplinares: o interesse público na boa administração da justiça, de que é interprete privilegiado o orgão constitucional a que está cometida a gestão da magistratura judicial, e não, de forma directa e individualizada, os interesses pessoais das partes e respectivos mandatários no pleito cuja tramitação originou a participação do CSM”.

Conforme naquele aresto foi assumido, encontra-se consolidada orientação da jurisprudência desta secção do STJ de que, no âmbito da ação disciplinar, o participante de certa infração alegadamente cometida por juiz do decurso do processo em que o participante exercia as funções de mandatário judicial, só por esse facto, não pode considerar-se titular do interesse direto, pessoal e legítimo na anulação da decisão que determinou o arquivamento da participação apresentada para fins disciplinares ao CSM. Para além da jurisprudência citada naquele aresto de 2012, posteriormente, o Supremo Tribunal de Justiça nesta Secção de Contencioso, em situações idênticas, decidiu, de forma unânime e consolidada, nos seguintes termos:

- Acórdão de 23.01.2018, proferido no Proc. n.º 71/17.0YFLSB[10]: “A deliberação do CSM que considerou não haver lugar à instauração de processo disciplinar contra determinado magistrado, proferida na sequência de denúncia apresentada por advogado, constitui ato administrativo (atenta a noção de acto administrativo constante do art. 120.º do CPA), carecendo, no entanto, o denunciante de legitimidade por não lhe reconhecer a lei direito à instauração de processo disciplinar contra magistrado (art. 55.º, n.º 1, al. a) do CPTA)”;

- Acórdão de 10.04.2014, proferido no Processo n.º 128/13.7YFLSB[11]:  “I - A legitimidade para recorrer das deliberações do CSM em processo disciplinar afere-se tendo em vista a repercussão imediata das mesmas, a projecção na esfera jurídica do recorrente e pela tutela do interesse subjacente pela ordem jurídica (art. 164.º, n.º 1, do EMJ). II - O processo disciplinar visa essencialmente salvaguardar os interesses subjacentes à boa administração da justiça e apenas reflexamente os interesses particulares por ele protegidos. III - Não identificando o recorrente qualquer direito de que seja legitimamente titular e que haja sido, directa e pessoalmente, preterido pela decisão recorrida de arquivamento do processo disciplinar e limitando-se aquele, em sede de recurso jurisdicional, a invocar a violação, num processo em que nem sequer figura como arguido, de princípios processuais penais e do direito ao bom nome, não é de lhe reconhecer legitimidade para recorrer”;

- Acórdão de 06.07.2011, proferido no Proc. n.º 29/11.3YFLSB[12]: “I - A recorrente, advogada, pretende impugnar a deliberação do CSM que «decidiu arquivar o processo…» originado com base na queixa que a mesma havia feito da magistrada judicial A. II - Importa saber se a pretendida anulação do acto, fundado na alegada violação de normas fundamentais de qualquer processo administrativo ou judicial (falta de fundamentação de decisão judicial e violação do princípio do contraditório, na expressão da recorrente), consubstancia um interesse directo, pessoal e legítimo de que aquela possa considerar-se titular – cf. art. 51.º, n.º 1, al. a), do CPTA, e 164.º, n.º 1, do EMJ. III - O acto administrativo impugnado contém-se no âmbito das competências gestionárias do CSM e funda-se, directa e imediatamente, em razões de interesse público; concretamente, o exercício da acção disciplinar, visando fins de interesse público, não tutela directamente os interesses pessoais dos participantes, pelo que a recorrente é parte ilegítima – cf. Ac. de 14-01-2009, Proc. n.º 3529/08.”;

- Acórdão de 10.12.2009, proferido no Proc. n.º 324/09.1YFLSB[13]: “I - O art. 164.º do EMJ, que estabelece os princípios gerais em matéria de reclamações e recursos das deliberações e decisões do CSM, ao determinar, no seu n.º 1, que “pode reclamar ou recorrer quem tiver interesse directo, pessoal e legítimo na anulação da deliberação ou da decisão”, responde à garantia constitucional concedida aos administrados de utilização do recurso contencioso com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma, que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos – art. 268.º, n.º 4, da CRP. II - O legislador ordinário é livre, porém, para limitar o direito de impugnação dos actos administrativos, o que deve significar que o direito de impugnar o arquivamento de inquérito ou do procedimento disciplinar possa ser atribuído apenas a quem seja titular de um direito subjectivo ou de um interesse legítimo susceptível de ser lesado pelo acto de arquivamento. III - Tem sido entendimento firmado nesta Secção do Contencioso que a titularidade do poder jurídico de participação disciplinar previsto no art. 46.º, n.ºs 1 e 2, do EDFA, e atribuído aos cidadãos em geral e aos funcionários e agentes administrativos em particular, não lhes confere legitimidade para interpor recurso contencioso de anulação do acto que determina o arquivamento ou a não instauração de qualquer procedimento disciplinar – cf., também, Ac. do Pleno da 1.ª Secção do STA, de 15-01-1997. IV - Reconhecendo-se que o fim essencial do processo disciplinar é a defesa do interesse público, torna-se mais profunda a exigência de que o acto sujeito a anulação afecte directa e imediatamente direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos do participante, não sendo suficiente um hipotético interesse mediato, indirecto e reflexo do autor da participação, o que leva a uma apreciação casuística da legitimidade activa para a impugnação contenciosa.”;

- Acórdão de 27.10.2009, proferido no Proc. n.º 498/09.1YFLSB[14]: “I - A legitimidade para impugnação, mediante reclamação ou recurso, dos actos do CSM, deliberações e decisões, é atribuída pela lei reguladora da matéria a “quem tiver interesse directo, pessoal e legítimo na anulação da deliberação ou da decisão” (art. 164.º, n.º 1, do EMJ). II - Deverá ser reconhecido, ao participante em processo disciplinar, o direito de impugnar a decisão de arquivamento, se for titular de um direito subjectivo ou de um interesse legítimo susceptível de lesão pelo acto. III - Os participantes não são titulares de um interesse directo, pessoal e legítimo na impugnação jurisdicional do acto administrativo que lhes negou o direito de reclamar contra a procedência da actuação disciplinar que, mediante participação sua, foi dirigida contra um juiz de direito por factos relativos ao conteúdo de dois despachos proferidos em processos judiciais, no exercício das respectivas funções. IV - Há falta de legitimidade do participante para recorrer da deliberação do CSM que ponha termo a processo disciplinar da sua competência.”

- Acórdão de 14.01.2009, proferido no Proc. n.º 3529/08[15]: “I - O CSM tem competência reservada e exclusiva em matéria susceptível de assumir natureza disciplinar e que envolve magistrados judiciais (arts. 136.° e 149.°, al. a), do EMJ). II - Das decisões do CSM pode reclamar ou recorrer quem tiver interesse directo, pessoal e legítimo na anulação da deliberação ou da decisão (art. 164.°, n.° 1, do EMJ). III - O interesse diz-se "directo" quando o benefício resultante da anulação do acto recorrido tiver repercussão imediata no interessado, assim se excluindo da legitimidade processual aqueles que da anulação do acto recorrido vierem a retirar apenas um benefício mediato, eventual, ou meramente possível. IV - O interesse diz-se "pessoal" quando a repercussão da anulação do acto recorrido se projecta na própria esfera jurídica do interessado. V - Finalmente, o interesse considera-se "legítimo" quando é protegido pela ordem jurídica como interesse do recorrente. VI - O exercício da acção disciplinar obedece a um princípio de oportunidade, que corresponde à chamada discricionariedade de acção, ou seja, a liberdade da administração desencadear, ou não, uma determinada actuação. VII - Por isso, o referido exercício visa, exclusivamente, fins de interesse público, não tutelando, directamente, os interesses pessoais dos participantes, pelo que ao poder de participar não corresponde, do lado passivo, outro dever que não seja o de receber a participação e sobre ela decidir se instaura ou não procedimento disciplinar. VIII - Nesta conformidade, um participante de alegadas infracções disciplinar cometidas por Juízes não tem legitimidade para accionar recurso impugnatório da deliberação do CSM que mandou arquivar os autos de inquérito instaurados na sequência da participação daquele”.

De tudo o exposto, verifica-se que o órgão legalmente competente para assegurar o interesse público na boa administração da justiça, e consequentemente competente para o exercício da ação disciplinar, é o CSM. Cabe a cada cidadão comunicar todas as situações em que considere que aquele interesse público está a ser lesado ou colocado em perigo.  A eventual lesão daquele interesse público constitui a lesão de um interesse de todos nós, não estando, no entanto, legitimado para nos representar qualquer cidadão que entenda que aquele interesse está a ser lesado. Pelo que se entende que, no prosseguimento da ação disciplinar e na reação a uma decisão de arquivamento daquela, apenas tem legitimidade o cidadão que encabece um interesse pessoal e direto na continuação daquele procedimento disciplinar, e não apenas aquele que alegue a existência de um interesse público na boa administração da justiça.

Deste modo, considera-se não ter razão o recorrente quando alega, na sua petição recursória, que “a acção disciplinar judicial não é apenas da titularidade do Conselho, mas do direito de qualquer um do povo”.

Não sufragamos o entendimento do Recorrente.

Na verdade, conforme tem sido assumido na Jurisprudência[16] e na Doutrina[17] inexiste uma subjetivação do interesse público no exercício da ação disciplinar, isto é, cada cidadão/participante, seja ele parte num processo judicial, seja mandatário judicial, não é detentor de um direito subjetivo público concreto e individualizado tendo como objeto o exercício da ação disciplinar.          E isto mesmo tem sido considerado pelo Supremo Tribunal Administrativo. No acórdão de 07.06.2006 (no Proc. n.º 1089/05) decidiu:

o interesse relevante é o que, aferido pelos termos peticionados, se reporta a um bem jurídico diferenciado, apropriável pelo sujeito e para o qual ele retira, do provimento do recurso, uma vantagem ou utilidade imediata digna de tutela judicial inerente ao aproveitamento desse bem. III - O participante disciplinar não é detentor de um direito subjectivo público concreto e individualizado tendo como objecto o exercício da acção disciplinar[18]. IV - Por não retirar qualquer vantagem ou utilidade imediata da anulação do acto, a sociedade participante lesada não tem legitimidade para recorrer contenciosamente do arquivamento do processo disciplinar instaurado por denúncia sua”.

É que o “interesse público não é o somatório dos interesses individuais; tratam-se de interesses de natureza diferente. (…) Cada esfera ou nível de interesses deve ter os seus próprios (conaturais e adequados) agentes e instrumentos de defesa. Os instrumentos jurídicos devem ser factores de ordenação. Para defender o interesse público foram pensadas a acção pública (O MP tem entre as suas incumbências a defesa da legalidade democrática, representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar) e a acção popular [19].          

Tendo em conta que “o interesse público no bom e correcto funcionamento das instituições é um interesse de todos os cidadãos e dos que humanamente lhe dão corpo e funcionalmente estão ao ser serviço, despido de característica da pessoalidade, de subjectivação individual[20]”, importa casuisticamente apreciar se o Recorrente, face aos termos da sua queixa apresentada, possui interesse direto e pessoal na anulação do ato (que procedeu ao arquivamento da participação apresentada contra a Mma. Juíza).

No caso em apreço, o Recorrente não se conforma com dois despachos proferidos pela Mm. Juíza em dois processos judiciais distintos, a saber no proc.n.º ....... e no proc. n.º ........

Quanto ao primeiro processo, o Recorrente, na queixa apresentada ao CSM (em …), assume que os termos utilizados pela Mma. Juíza no processo (.......), a saber: “o requerimento em apreço demonstra a falta de conhecimento quer da lei quer do procedimento” são deselegantes, mas não constituem, por si só, matéria disciplinar.

Quanto ao segundo processo, o Recorrente não se conforma com o indeferimento da sua Reclamação quanto ao relatório pericial e considera que a Mma Juíza visada “não tinha base de facto” para decidir como decidiu.

Assim, relativamente ao primeiro despacho, é o próprio Recorrente que assume que o mesmo contém expressões deselegantes, porém não constitui, por si só, matéria disciplinar. Não vislumbramos assim que utilidade o interessado pretende obter com a anulação do despacho impugnado, na medida em que o próprio assume, ainda que implicitamente, inexistir qualquer interesse ou direito digno de tutela.

Relativamente ao segundo despacho, também não vislumbramos em que medida existe um interesse pessoal e direto do próprio recorrente na anulação do ato.

O CSM, no exercício das suas competências disciplinares, não prossegue a defesa de qualquer interesse pessoal e individual, mas sim a defesa do interesse público da boa e sã administração da justiça. E entendemos que não é uma discordância na apreciação de uma matéria num processo judicial, plasmado num despacho (de indeferimento) da Mma. Juíza visada, despacho esse suscetível de recurso e de ser revisto por um Tribunal Superior, que permite ao Recorrente arrogar-se titular de um direito subjetivo público concreto e individualizado de «boa administração da justiça». Não se considera por isso, que o Recorrente é titular de um interesse direto e pessoal em nome do qual se move no processo (para a anulação do ato).

Inclusive, a Mma. Juíza visada na participação referiu que apenas se recorda de ter trabalhado com o Sr. Advogado (Participante) em questão nos dois processos referenciados, pelo que não vemos em que medida se pode assumir que nos pontuais comportamentos denunciados pelo recorrente, nos exatos moldes em que participou, o mesmo tenha alegado um direito subjetivo público concreto e individualizado, visando a defesa da «boa e sã administração da justiça» e nessa perspetiva ter um interesse direto e pessoal na anulação do ato.

Quando as partes não se conformam com o conteúdo de um despacho proferido, seja por entenderem que o mesmo padece de erro na apreciação da matéria de facto, seja erro na apreciação da matéria de direito, recorrem do mesmo para o Tribunal Superior. O que foi feito pelo Recorrente, na medida em que recorreu daqueles dois despachos.

Se as partes entendem que existe uma conduta dolosa por banda do Juiz do processo, evidenciadora de falta de isenção e imparcialidade do Juiz nos despachos que profere, podem requerer o pedido de suspeição de Juiz, nos termos do art. 120.º, do CPC.

O exercício da ação disciplinar visa a defesa do interesse público na “boa e sã administração da justiça” e não a salvaguarda dos interesses pessoais e pontuais das partes e respetivos mandatários, como se verifica no caso em apreço.

Conforme bem se decidiu no Acórdão do STJ, de 10.12.2009, proferido no Proc n.º 324/09.1YFLSB,  “Reconhecendo-se que o fim essencial do processo disciplinar é a defesa do interesse público, torna-se mais profunda a exigência de que o acto sujeito a anulação afecte directa e imediatamente direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos do participante, não sendo suficiente um hipotético interesse mediato, indirecto e reflexo do autor da participação, o que leva a uma apreciação casuística da legitimidade activa para a impugnação contenciosa”.

Deve ainda considerar-se que não tem razão o Recorrente quando invoca que que “uma infracção dolosa do EMJ impõe a reparação pelo acto ilícito, podendo e devendo ser considerada ressarcitória a decisão disciplinar sobre o juiz claudicante”.

O fim visado com a censura disciplinar não é ressarcir eventuais danos do participante ocorridos em processo(s) judicial(is) em curso. A eventual punição disciplinar do Mmo. Juiz reflete-se diretamente na esfera jurídica do mesmo e apenas neste. De maneira alguma a punição disciplinar de uma conduta de um Juiz, pode ser considerada ressarcitória na esfera jurídica do Recorrente.

Tal como já antes se decidiu no Supremo Tribunal de Justiça (ac. de 23.01.2018, no no Proc n.º 71/17.0YFLSB) “O eventual direito indemnizatório pela reparação de eventuais danos ocasionados pelo Juiz no âmbito das suas funções jurisdicionais, não se confunde nem depende do exercício da acção disciplinar. Acresce que nos termos do art. 14.º do Regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e ademais entidades públicas, anexo à lei n.º 67/2007, de 31-12, carece o recorrente do direito de accionar civilmente a Sra. Juíza pelos eventuais actos por esta pretensamente cometidos na condução da acção referida. O eventual direito indemnizatório terá sempre que ser exercido contra o Estado, cabendo a este o direito de regresso quando o magistrado tenha agido com dolo ou culpa grave.”

Ao contrário do defendido pelo recorrente, a deliberação que decidiu a não instauração do pretendido procedimento disciplinar por considerar que os atos praticados não revestem tal natureza, é insuscetível de causar prejuízo ao participante, dado que os seus efeitos não se projetam diretamente na esfera jurídica daquele, até porque a hipotética e visada sanção disciplinar nunca terá repercussão nos processos acima referidos[21].

 Efetivamente, a decisão de não instauração do processo disciplinar à Mma Juíza visada não causa qualquer prejuízo direto ou imediato na esfera jurídica do recorrente.

Ou, dito de outro modo, por via da procedência do presente recurso, o Recorrente não obtém qualquer utilidade ou vantagem que se repercuta diretamente na sua esfera jurídica. Pois, com a procedência do presente recurso, não obtém qualquer reparação dos direitos alegadamente violados pela conduta da Mma. Juíza denunciada. Sendo que apenas estamos perante um interesse pessoal e direto se se retirar da anulação diretamente uma qualquer utilidade ou vantagens dignas de tutela[22], o que no caso não sucede.

E, não vemos em que medida o art. 6.º, n.º 1, da CEDH – direito a um processo equitativo[23] – é violado com este entendimento, ou em que medida este entendimento viola qualquer direito do participante.

A possibilidade de denúncia de uma infração disciplinar pela generalidade dos cidadãos funda-se em razões de interesse público, que nada têm a ver com o facto de essa infração constituir ou não uma lesão de interesses, diretos e pessoais do participante, juridicamente tutelados.

Se entendêssemos que todo o participante tinha o direito de impugnar os atos administrativos, independentemente da existência de um interesse direto e pessoal na anulação do mesmo, então far-se-ia letra morta do instituto da legitimidade para impugnar o ato.

Ao contrário do defendido pelo Recorrente, o próprio TEDH, no acórdão de 06.11.2018, supracitado, defende que “O controle de uma decisão que impõe uma sanção disciplinar difere do controle de uma decisão administrativa que não comporta tal elemento punitivo”.

Não é comparável a necessidade de tutela jurisdicional efetiva de um cidadão (seja juiz ou não) que é destinatário de uma decisão que lhe impõe uma sanção disciplinar à necessidade de tutela de um cidadão que não se conforma com um despacho de arquivamento relativamente a uma denúncia/queixa disciplinar contra um Juiz.

A que acresce que a participação/queixa (disciplinar) em apreço nestes autos consubstancia-se no facto do Recorrente/Participante discordar de dois despachos proferidos em processos judiciais por uma Juíza, sendo que num dos despachos o participante considerou que, por si só, não tinha relevância disciplinar (e nessa medida é inócuo) e o outro despacho entendeu que a Exma. Juíza participada “não tinha base factual” para o decidir daquela forma, tendo recorrido de ambos os despachos. Insurge-se o recorrente relativamente a decisões pontuais da Mma Juíza, não concordando com o ali decidido, inseridas no âmbito de uma tramitação processual regular.

Assim, ao contrário do que o recorrente defende, o Recorrente tem o direito a ver sindicado por um Tribunal o conteúdo dos despachos exarados nos dois processos pela Exma. Juíza visada, e efetivamente esses despachos é que o afetam direta e imediatamente na sua esfera jurídica (ou na esfera jurídica daquele que representa, enquanto mandatário judicial).

Assim sendo, o direito a um processo equitativo previsto no art. 6.º, n.º 1, da CEDH e art. 20.º, n.º 4[24], da CRP, revela-se na possibilidade de uma das partes num litígio poder sindicar junto de um Tribunal Superior (independente e imparcial) um despacho desfavorável, proferido por um Juiz, que afete direta e imediatamente a sua esfera jurídica. Sendo que o recorrente utilizou esse meio ao dispor, tendo recorrido dos despachos proferidos.

Para além do direito a recorrer diretamente dos despachos proferidos no processo, o participante tem à sua disposição, caso entenda verificados os respetivos pressupostos, a via da responsabilidade civil extracontratual por factos cometidos no exercício da função judicial.

E diga-se que o direito de ver uma decisão a ser reapreciada por um Tribunal não é um direito absoluto e ilimitado. Atente-se que, mesmo em sede penal, onde estão em causa bens jurídicos essenciais (e intervenção de ultima ratio), a denúncia de um crime não tem associação necessária ao manifesto interesse do denunciante no prosseguimento criminal e na sanção do crime. O ato de arquivamento de processo de inquérito não pode ser impugnado por todos: conforme prevê o art. 277.º, n.º 3, do CPP o despacho de arquivamento é comunicado ao denunciante apenas com a faculdade de se constituir assistente; a abertura de instrução no caso do Ministério Público não ter deduzido acusação requer a qualidade de assistente (art. 287.º, n.º 1, al. b) do CPP), bem como o recurso (art. 401.º, n.º 1, al. b) do CPP). E apenas podem constituir-se assistentes as pessoas indicadas no art. 68.º, do CPP, aquelas nas “releva um interesse directo e pessoal na situação sub judice (da qual se faz depender, portanto, a legitimidade para a prática de certos actos no processo penal). [25]

Por tudo o que atrás se expôs, não se vislumbra nestes autos a violação do direito a um processo equitativo a que se alude no art. 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e/ou no art. 20.º, n.º 4, da CRP.

Face aos contornos dos factos participados, não vislumbramos em que medida se pode considerar que o Recorrente é titular do interesse direto, pessoal e legítimo (a que alude o art. 164.º, n.º 1 do EMJ) na anulação da decisão que determinou o arquivamento da participação apresentada para fins disciplinares ao CSM.

Nestes termos e pelos fundamentos apontados, rejeita-se liminarmente a presente impugnação, por falta de legitimidade do Recorrente.

Porque vencido, as custas ficam a cargo do Recorrente (art. 527.º, n.º 1, do CPC).

Sendo o valor da presente ação o de € 30.000,01 (cf. art. 34.º, n.º 2, do CPTA), a taxa de justiça é de 6 unidades de conta (cf. tabela I - A, anexa ao Regulamento das Custas Judiciais e art. 7.º, n.º 1, deste diploma).


III

Conclusão


Pelo exposto, acordam os juízes, que constituem a secção de contencioso deste Supremo Tribunal de Justiça, em rejeitar, por ilegitimidade do Recorrente, a presente impugnação.

                        Supremo Tribunal de Justiça, 10 de dezembro de 2019

Os Juízes Conselheiros,

Helena Moniz (Relatora)

Graça Amaral

Oliveira Abreu

Pedro de Lima Gonçalves

Maria da Graça Trigo

Manuel Augusto de Matos

Chambel Mourisco

_________________________
[1] A título de exemplo, Ac. de 21.11.2012, relator Conselheiro Lopes do Rego. 
[2] Como refere Luiz S. Cabral de Moncada (Código do Procedimento Administrativo Anotado, 2.ª Edição, Quid Juris, 2017, pág. 589), “Vale aqui o critério da lesividade tal como para efeitos contenciosos mais uma vez colocando a tutela graciosa a par da contenciosa” (sublinhado nosso).
[3] Aprovado pelo Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02-10, doravante designado por CPTA.
[4] Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª ed. revista, 2010, p. 372.
[5] Manual de Processo Administrativo, 3.ª ed., Almedina, 2017, p. 224.
[6] Idem, p. 225.
[7] Acessível em http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-187507
[8] Sublinhado nosso.
[9]Acessível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/76b332e17fa6140280257af000446ed3?OpenDocument.
[10] Sumário acessível em www.stj.pt/Jurisprudencia/Contencioso/Sumário do Contencioso - Ano de 2018.
[11] Sumário acessível em www.stj.pt/Jurisprudencia/Contencioso/Sumário do Contencioso - Ano de 2014.
[12] Sumário acessível em www.stj.pt/Jurisprudencia/Contencioso/Sumário do Contencioso - Ano de 1980 a 2011.
[13] Sumário acessível em www.stj.pt/Jurisprudencia/Contencioso/Sumário do Contencioso - Ano de 1980 a 2011.
[14] Sumário acessível em www.stj.pt/Jurisprudencia/Contencioso/Sumário do Contencioso - Ano de 1980 a 2011.
[15] Sumário acessível em www.stj.pt/Jurisprudencia/Contencioso/Sumário do Contencioso - Ano de 1980 a 2011.
[16] Veja-se nesse sentido, entre outros, Acórdão do Pleno da 1.ª secção do STA de 15-01-1997, relatado por Dimas de Lacerda, citado em Cadernos de Justiça Administrativa n.º 9, Maio/Junho1998, pág. 25 e segs. Como Acórdão do STJ de 10-12-2009, proferido no Proc n.º 324/09.1YFLSB.
[17] Ana Fernanda Neves in artigo “Legitimidade processual do participante de situação qualificável como infracção disciplinar”, publicado nos Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 9, Maio/Junho de 1998, pág.37.
[18] Negrito nosso.
[19] Ana Fernanda Neves, ob. cit., p. 37.
[20] Sic Acórdão do STA (pleno da 1.ª secção) de 15-01-1997 e Ana Fernanda Neves na ob. cit., pág.38.
[21] Veja.se no mesmo sentido, o Acórdão do STJ de 23-01-2018, proferido no Proc n.º 71/17.0YFLSB.
[22] Acórdão do STJ de 27.05.2010, proferido no Proc n.º 499/09.0YFLSB.S1: “I - A recorrente participou disciplinarmente de juiz de direito, imputando-lhe o facto de, nas sessões de audiência, se dirigir aos intervenientes no processo, no qual era testemunha, em altos berros e batendo com os punhos na mesa, com violação das regras de cortesia, respeito e urbanidade, e de, relativamente a ela, sugerir que, apesar de ser …, não sabia calcular …, afirmando a este propósito que a mãe do participado, também ela …., com tal ficaria envergonhada. Como o Conselho Permanente do CSM arquivou o expediente por não se vislumbrar a existência de indícios de infracção disciplinar, a participante reclamou desta deliberação para o Plenário do CSM, que decidiu rejeitar por ilegitimidade a reclamação, decisão de que recorre, agora contenciosamente. II - O art. 164.º, n.º 3, do EMJ, ao dispor que “pode reclamar ou recorrer quem tiver interesse directo, pessoal e legítimo na anulação da deliberação ou da decisão” delimita o conceito de “interessado” subjacente à norma do art. 20.º, n.º 1, da CRP (cf. Ac. do TC n.º 258/88, acerca da norma do art. 46.º, n.º 1, do Regulamento do STA, de idêntico teor). III - Para que o recorrente goze de legitimidade torna-se necessário que seja titular do interesse na anulação do acto impugnado e sê-lo-á aquele que, com verosimilhança aferida pelos termos peticionados, invoque a titularidade dum direito subjectivo ou de um interesse legalmente protegido que tenha sido lesado pela prática do acto, devendo retirar da anulação pretendida uma qualquer utilidade ou vantagem dignas de tutela. IV - A recorrente carece de legitimidade activa quando, por via da procedência do recurso contencioso, não obtém reparação alguma dos seus direitos eventualmente violados pela conduta do magistrado denunciado, não alcançando, com a pretendida anulação do acto, vantagem ou benefício que necessariamente se repercuta na sua esfera jurídica. V - Por outro lado, não integra o seu património jurídico enquanto cidadã o direito à defesa do interesse público do prestígio e dignidade da instituição judiciária, através da via disciplinar. A este respeito, afirmou-se no Ac. do STA de 15-01-1997, que o poder de denúncia de factos disciplinares “apenas tem por efeito suscitar à autoridade detentora da acção disciplinar a necessidade de apreciar a dignidade disciplinar dos factos, em juízo de oportunidade, não lhe impondo qualquer dever de determinar a instauração de processo disciplinar, de inquérito ou de averiguações ou de exercer a acção disciplinar correspondente”. VI - No caso, o Pleno do CSM, embora subsidiariamente, referiu que as intervenções do magistrado se inscreveram nos seus poderes-deveres de controlo do processo e de direcção dos actos processuais e mesmo que as expressões utilizadas pudessem ser menos adequadas, tal estaria justificado pelo grau de litigiosidade induzido pelas partes. E, vigorando neste âmbito o princípio da discricionariedade administrativa, pode o órgão com competência disciplinar não fazer perseguição a factos disciplinarmente ilícitos.” - Sumário acessível em www.stj.pt/Jurisprudencia/Contencioso/Sumário do Contencioso - Ano de 1980 a 2011.
[23] Artigo 6° CEDH - Direito a um processo equitativo “1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça”.
[24] Art. 20.º, n.º 4, da CRP “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.
[25] Ana Fernanda Neves, ob. cit. supra “Legitimidade processual do participante de situação qualificável como infracção disciplinar”, publicado nos Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 9, Maio/Junho de 1998, p.37.