Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7268/18.4T8LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: ABUSO DE DIREITO
SUPRESSIO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
LIVRANÇA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
BOA -FÉ
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
PACTO DE PREENCHIMENTO
ÓNUS DA PROVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
VENCIMENTO DA DÍVIDA
GARANTIA BANCÁRIA
Data do Acordão: 04/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O abuso de direito, na modalilidade de suppressio, tutela a confiança do beneficiário, perante a inacção do titular do direito, devendo, para ser relevante, verificar-se um não exercício prolongado, uma situação de confiança, uma justificação para essa confiança, um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não-exercente.

II. O mero decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é suscetível de criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende.

III. Não abusa do direito a credora que instaura uma execução com base em livranças, assinadas pela subscritora e pelo avalista, que lhe foram entregues aquando da celebração de contratos de garantia bancária e que preencheu de acordo com esses contratos, apondo-lhes data de vencimento cerca de 8 anos após poder exigir o cumprimento da obrigação subjacente aos devedores.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:



I. Relatório


AA deduziu os presentes embargos de executado contra a Caixa Geral de Depósitos, S.A., para oposição à execução que esta moveu a si e a outros, com base em duas livranças, subscritas pela primeira executada Creatix e avalizadas pelos demais executados, a que foram apostas as datas de vencimento de 14/7/2017 e as quantias de 111.647,19 € e 74.753,88 €.

Para tanto, alegou, em resumo, no que aqui interessa, que configura abuso de direito da exequente a data de vencimento que esta apôs naquelas livranças, uma vez que ele as assinou em branco, deu a conhecer à exequente em 2002/2003 que cedera as suas participações sociais na sociedade subscritora (Creatix) e esta incumprira as suas obrigações para com a exequente já em 2008, sem que, entretanto, tenha sido comunicado ao embargante qualquer incumprimento.

A exequente contestou, pugnando pela inexistência de abuso de direito e concluindo pela improcedência dos embargos.

Dispensada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador tabelar, foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas de prova, sem reclamações.           

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, onde se decidiu julgar a oposição improcedente, determinando o prosseguimento da execução.

Inconformado, o embargante interpôs recurso de apelação que o Tribunal da Relação …. julgou improcedente, por unanimidade e com idêntica fundamentação, mantendo a sentença recorrida.

Ainda irresignado, o embargante interpôs recurso de revista excepcional, recolocando a questão do abuso de direito por parte da exequente, que a respectiva Formação admitiu por acórdão de 23/3/2021, ao abrigo do disposto no invocado art.º 672.º, n.º 1, al. a) do CPC.

No âmbito da revista, o embargante apresentou a respectiva alegação com as seguintes conclusões:

“a) Entende o Recorrente que o próprio Douto Acórdão recorrido, e no referido em 1 b) supra, dá razão ao Recorrente ao que acresce o documento junto aos autos pelo Recorrente relativo ao primeiro Tema eleito no saneamento dos autos e que era documento da Central de Responsabilidade de Crédito do Banco de Portugal e do qual se retira que, segundo informação da própria Recorrida, o incumprimento de verificou em 16/10/2009.

b) Não é possível dissociar, da forma algo ligeira como o Douto Acórdão recorrido o faz, o incumprimento da exigibilidade da obrigação, mais a mais quando se reconhece que a exigibilidade estava dependente do incumprimento.

c) E que o vencimento estaria dependente da fixação pela Recorrida da respectiva data uma vez verificado o incumprimento, ou seja, é o próprio Douto Acórdão sob escrutínio que entrelaça e faz uma associação entre todos aqueles períodos,

d) Mas que depois conclui que não houve abuso de direito por parte da Recorrida ao apor na livrança uma data de vencimento como sendo 14/07/2017 quando ela própria havia reportado ao Banco de Portugal o incumprimento como tendo ocorrido em 2009.

e) Como é por demais sabido o incumprimento ocorre quando a prestação não é cumprida pontualmente ou é-o defeituosamente.

f) Ora é pacífico nos autos que o incumprimento remontava a Setembro/Outubro de 2009 e reportando-se o incumprimento a tal momento será notório que o vencimento da obrigação se deu contemporaneamente a tal época do calendário gregoriano.

g) Em abono deste entendimento cumpre trazer à liça a cláusula 12.3.1.a) do pacto de preenchimento e da qual ressalta que a data de vencimento será fixada pela CGD em caso de incumprimento dos devedores.

h) Sendo certo que a dita cláusula não estabelece uma baliza temporal para a consideração do vencimento menos verdade também não é que o vencimento, e de acordo com o texto da cláusula, se encontra intimamente ligado ao momento do incumprimento.

i) É isto que se retira dos princípios gerais de interpretação constantes do Código Civil e ainda dando suporte a este entendimento tem-se o artigo 777º, nº 1 do Código Civil pois que de acordo com tal preceito legal o cumprimento pode ser exigido a todo o tempo salvo estipulação em contrário e no presente caso existia no pacto de preenchimento estipulação em contrário no sentido de que a exigibilidade/vencimento da obrigação se verificaria aquando do incumprimento.

j) Só esta interpretação do pacto do preenchimento, e em consonância com os interesses do declaratário, pode ser considerada como se vergando em sinal de respeito pelos artigos 236º, 237º e 238º do Código Civil.

k) Pelo que, e dito isto, afigura-se aos olhos do Recorrente que a aposição na livrança de uma data de vencimento que não tem qualquer correspondência com a data do incumprimento, antes distando largos anos do mesmo e como reconhecido pela própria Recorrida no documento que se encontra junto aos autos, se traduz num clamoroso abuso de direito que o nosso ordenamento não tolera.

l) É que ainda que ao falar-se na aposição de uma data de vencimento na livrança se esteja não perante um direito subjectivo da Recorrida mas perante uma faculdade sua que importe alguma margem de liberdade ainda assim tal exercício sempre terá de passar no crivo do instituto de abuso de direito.

m) Atentas as complexidades que se levantam quer quanto ao assumir das responsabilidades cambiárias enquanto avalista, quer quanto a quando se deve considerar vencida a obrigação cambiária, quer quando se deve considerar verificado o incumprimento por parte de quem se obrigou a título principal e a sua relação com a data de vencimento a apôr na livrança, quer quanto à necessidade de protecção do avalista fave a uma margem de discricionariedade muito lata que seja conferida em tais matérias para o portador do título, afigura-se, aos olhos do Recorrente, enquadrável este fundamento na alínea a) do nº 1 do artigo 672º do CPC.

n) Isto uma vez que tais situações são transponíveis para um vasto número de situações não se confinando a sua importância ao caso concreto.

o) O que legitima a revista excepcional.

p) A isto acresce que a pretensão recursória do Recorrente se situa no domínio da matéria de Direito não subtraída à apreciação do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

q) Pelo que, por tudo quanto vem de se alegar, deve ser revogado do Douto Acórdão recorrido que assim não o entendeu, pois que violou o mesmo os artigos 342º, 351º e 612º, nº 1 do Código Civil.

Nestes termos e nos melhores de Direito deverá o presente recurso merecer provimento e, em consequência, ser revogado o Douto Acórdão recorrido mais se determinando a extinção da execução face ao ora Recorrente, tudo o mais com as consequências legais.”


A recorrida contra-alegou pugnando pela confirmação do acórdão impugnado.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.

A questão que cumpre agora conhecer, tendo em consideração as conclusões acabadas de transcrever e o douto acórdão da Formação que admitiu o recurso de revista excepcional, o qual delimita os poderes cognitivos desta conferência julgadora[3], consiste em saber se configura abuso de direito da exequente a aposição da data de vencimento nas livranças que deu à execução anos após o vencimento da obrigação da relação subjacente.


II. Fundamentação

1. De facto

No acórdão recorrido, reproduzindo os da sentença, foram considerados provados os seguintes factos:

«1) A exequente é portadora de uma livrança, com o n.º …94, subscrita por Creatix – Publicidade, Grafismo e Marketing, Lda, Lda.”, e avalizada, entre outros, pelo ora embargante, junta a fls. 13 dos autos de execução, que se dá por integralmente reproduzida.

2) tal livrança encontra-se preenchida da seguinte forma:

Local e data de emissão: …, 2001-10-10;

Importância: 22.383.253$00 (€ 111.647,19);

Vencimento: 2017-07-14;

Valor: “contrato de emissão de garantia bancária n.º ...…93”.

 3) A exequente é portadora de uma outra livrança, com o n.º ……30, subscrita por Creatix – Publicidade, Grafismo e Marketing, Lda, Lda.”, e avalizada, entre outros, pelo ora embargante, junta a fls. 12 dos autos de execução, que se dá por integralmente reproduzida.

4) tal livrança encontra-se preenchida da seguinte forma:

 Local e data de emissão:  …, 2001-12-03;

Importância: € 74.753,88;

Vencimento: 2017-07-14;

Valor: “contrato de emissão de garantia bancária n.º …..….93”.

5) Tais livranças foram emitidas, em branco, no âmbito dos “contratos de emissão de garantia bancária” n.º …….082…. e …..582…., copiados a fls. 21-vº a 26, que se reproduzem.

6) Nos termos do “contrato de emissão de garantia bancária” n.º …082.…., de 10/10/2001, constava como beneficiário da garantia o Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e ao Investimento (IAPMEI) e a responsabilidade até Esc. 12.695.0000$00, equivalente a € 63.322,40 (cfr. o documento de fls. 21-v.º).

7) Nos termos do “contrato de emissão de garantia bancária” n.º …582….., de 03/12/2001, constava como beneficiário da garantia o Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e ao Investimento (IAPMEI) e a responsabilidade até Esc. 12.695.0000$00, equivalente a € 63.322,40 (cfr. o documento de fls. 24-v.º).

8) A exequente honrou as garantias bancárias acima descritas em 16/10/2009 e 22/09/2009, respectivamente.

9) Não tendo recebido o reembolso por parte da garantida, a exequente preencheu as livranças e deu-as à execução.

 10) Nos termos da cláusula 12.2 e 12.3 dos “contratos de emissão de garantia bancária” acima mencionados em 6) e 7), respetivamente, «para titulação de todas as responsabilidades decorrentes da operação, o 1.º Contratante e os avalistas atrás identificados para o efeito entregam à Caixa uma livrança em branco subscrita pelo primeiro e avalizada pelos segundos e autorizam desde já a Caixa a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria Caixa, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:

 «a) A data de vencimento será fixada pela Caixa em caso de incumprimento pelos devedores (…);

  «b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes da presente operação, nomeadamente o valor do crédito da Caixa que resultar dos pagamentos que a mesma vier a fazer ao beneficiário em execução da garantia ou do aval bancário, as comissões, os juros moratórios, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança (…)».

11) Constam das cláusulas 8, 9 e 10 dos mesmos contratos o montante das comissões e taxas de juros aplicáveis às operações, as quais se reproduzem.

12) Por cartas registadas com aviso de receção de 01/03/2018, copiadas a fls. 29-v.º e 30, a exequente comunicou ao embargante o preenchimento das livranças, com a data de vencimento de 14/07/2017.

13) Os avisos de receção das referidas cartas foram assinados em 06/03/2018.

14) Por escritura de 21/01/2004, o embargante cedeu a sua quota no capital social da C.... (cf. documento de fls. 38 a 44, que se reproduz).»

2. De direito

É sabido, e já o afirmámos noutras ocasiões, nomeadamente no acórdão de 3 de Novembro de 2020, processo n.º 1429/14.2T8CHV-A.G1.S1[4], que aqui reproduzimos na parte relevante, que o actual Código Civil delimitou o conceito de abuso de direito no art.º 334.º dispondo que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.           

«Esta figura ocorre quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça.

Tal como se depreende do seu teor, aquele normativo acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com «animus nocendi» do direito da contraparte, bastando que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos[5].

O excesso deve, no entanto, ser manifesto, claro, patente, indiscutível, embora sem ser necessário que tenha havido a consciência de se excederem tais limites.

A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e lealmente segundo uma consciência razoável.

Mas para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento e tem de haver boa fé da parte que confiou, isto é, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico[6].

Uma das modalidades do abuso de direito é, como se sabe, o “venire contra factum proprium”, a qual se manifesta pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.

Segundo Menezes Cordeiro[7], “O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.”

E ensina, lapidarmente, o mesmo Professor, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:

“(...) 1.º Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);

2.º Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;

3.º Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4.º Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”[8]

A proibição do venire contra factum proprium “ancora na ideia de protecção da confiança e da exigência de correcta actuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi que não conhece desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; que a actuação do contraente se pautará sempre por regras éticas de decência e respeito pelos direitos da contraparte.

Havendo violação objectiva desse modelo de actuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito exercido ou exercendo, se pretendem actuar mas que, objectivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado, para fins que a ética negocial reprova, porque incompatíveis com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito, colidindo com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural”[9].

Por sua vez, a suppressio agrupa uma das modalidades típicas do vasto instituto do abuso de direito, sendo actualmente utilizada “para designar a posição do direito subjectivo – ou, mais latamente, a de qualquer situação jurídica – que, não tendo sido exercida, em determinadas circunstâncias e por um certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa fé”.[10]

Ultrapassadas as teses negativistas e da renúncia, a suppressio acabou por ser reconduzida à boa fé, surgindo três teorias:

- a da exceptio doli;

- a do venire contra factum proprium; e

- a da remissão directa para a boa fé.

Aproximando a suppressio ao venire contra factum proprium, constata-se haver diferenças, pois o factum proprium é, por definição, uma actuação positiva, enquanto a suppressio pressupõe uma omissão. Esta é, no fundo, “uma forma de tutela da confiança do beneficiário, perante a inacção do titular do direito”, sendo que ela “não pode ser, apenas, uma questão de decurso do tempo, sob pena de atingir, sem vantagens, a natureza plena da caducidade e da prescrição[11].

Segundo o Prof. Menezes Cordeiro, com o qual concordamos, para que a confiança de um beneficiário possa ser protegida ao abrigo deste instituto é necessário:

“- um não exercício prolongado;

- uma situação de confiança;

- uma justificação para essa confiança;

- um investimento de confiança;

- a imputação da confiança ao não-exercente.

O não-exercício prolongado estará na base quer da situação de confiança, quer da justificação para ela. Ele deverá, para ser relevante, reunir elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não mais será exercida. O investimento de confiança traduzirá o facto de, mercê da confiança criada, o beneficiário não dever ser desamparado, sob pena de sofrer danos dificilmente reparáveis ou compensáveis. Finalmente: tudo isso será imputável ao não-exercente, no sentido de ser social e eticamente explicável pela sua inacção. Não se exige culpa: apenas uma imputação razoavelmente objectiva”[12].

No mesmo sentido, com algumas variantes, tem decidido este Supremo Tribunal, como se pode ver, nos acórdãos de 11/12/2013, processo n.º 629/10.0TTBRG.P2.S1 e de 19/10/2017, processo n.º1468/11.5TBALQ-B.L1.S1, ambos em www.dgsi.pt, entendendo-se no primeiro que, para a caracterização daquela figura, não basta “o mero não-exercício e o decurso do tempo, impondo-se a verificação de outros elementos circunstanciais que melhor alicercem a justificada/legítima situação de confiança da contraparte” e, no segundo, que “O simples decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é suscetível de, sem mais, criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende.”»

Dito isto, voltemos ao caso dos autos.

Aqui, na medida em que o abuso de direito vem, essencialmente, fundado no decurso do tempo entre o vencimento da obrigação da relação subjacente, alegadamente ocorrido em 16/10/2009, e a aposição como data de vencimento nas livranças exequendas a data de 14/7/2017, afigura-se-nos ser invocada a modalidade da suppressio, que pressupõe, precisamente, uma omissão.

No entanto, não se verificam os elementos circunstanciais, acima referenciados, para que possa ocorrer esta modalidade do abuso de direito.

Nada permite concluir que a exequente tivesse criado no embargante uma expectativa, sólida e fundada, de que teria renunciado ao direito cambiário titulado pelas livranças dadas à execução e que constituem os títulos executivos.

Como tal, não pode ter colocado o embargante numa situação de confiança, desenvolvendo nele uma crença legítima de que aquelas livranças não seriam executadas.

Ao invés, a exequente enviou-lhe duas cartas, em 6/3/2018, que o embargante recebeu no dia 6 seguinte, a informá-lo do preenchimento das letras, com a data de vencimento de 14/7/2017.

Não consta dos factos provados (e só estes podemos ter aqui em consideração) a data de vencimento da obrigação da(s) relação(ões) subjacente(s) – contratos de emissão de garantia bancária. Deles resulta apenas, quanto a esta matéria, que a exequente honrou as garantias bancárias descritas, em 16/10/2009 e 22/9/2009, respectivamente, (cfr. factualidade provada sob o n.º 8) e que, não tendo recebido o reembolso, a exequente preencheu as livranças e deu-as à execução (cfr. n.º 9).

Resulta, ainda, da factualidade provada sob o n.º 10 que as partes acordaram sobre a forma e oportunidade de preenchimento das livranças entregues em branco, aquando da celebração dos contratos de emissão de garantia bancária, autorizando a Caixa a preencher as livranças “quando tal se mostre necessário, a juízo da própria Caixa”, tendo em conta, nomeadamente, que “a data de vencimento será fixada pela Caixa em caso de incumprimento pelos devedores” [cfr. cláusulas 12.2 e 12.3, al. a)][13].

Segundo esta cláusula, competia à Caixa/exequente fixar a data de vencimento, em caso de incumprimento pelos devedores, sem necessidade de interpelação.

Nela, não foi fixada qualquer data de vencimento da obrigação. Apenas se estipulou que a fixação da data de vencimento dependia do incumprimento pelos devedores. Fez-se, assim, depender a fixação do prazo da prestação pela credora do incumprimento pela sociedade devedora (Creatix), o que equivale a dizer que as partes estipularam sobre o prazo da prestação, dando-lhe uma feição suspensiva e determinando o momento a partir do qual o seu cumprimento era exigível, embora fazendo-o depender de um acontecimento futuro e incerto (cfr. art.º 270.º do Código Civil).

Assim, não se pode afirmar que se trata de obrigações puras contempladas no art.º 777.º, n.º 1, do Código Civil, ou seja, aquelas para as quais não foi fixado um termo de vencimento ou exigibilidade, ficando dependente, para se considerarem vencidas e exigíveis, do acto da interpelação do devedor pelo credor.

Mas daqui não decorre a exigência dessa interpelação, em face do que foi estipulado, pois as partes acordaram que o preenchimento das livranças ficaria “a juízo da própria Caixa”, desde que verificado o incumprimento dos devedores.

É certo que o incumprimento ocorreu, como todos aceitam, embora em data que os factos provados não revelam, e que não se mostra provado que a Caixa tivesse fixado a data do vencimento das obrigações. Mostra-se provado apenas que apôs a data de 14/7/2017 como vencimento das livranças e que honrou as garantias bancárias em 22/9/2009 e 16/10/2009, tendo, em consequência, na falta de reembolso, preenchido as livranças que deu à execução.

Admitindo que o incumprimento ocorreu por altura do pagamento das garantias por parte da Caixa e não obstante entre essas datas e a data que apôs nas livranças terem decorrido quase oito anos, afigura-se-nos que ela não abusa do direito ao preenchê-las nesses termos e ao dá-las à execução, exercendo os direitos que lhes conferem esses títulos executivos.

Com efeito, nem esse período de tempo pode ser considerado um não exercício prolongado do direito, nem ele é susceptível de gerar no embargante uma situação de confiança. Muito menos esta pode ser considerada legítima.

O não-exercício durante esse período não permite a uma pessoa normal, colocada na posição do embargante, desenvolver a crença legítima de que a responsabilidade decorrente da prestação do aval não mais era exercida. Consequentemente, não pode afirmar-se que o embargante tenha sido investido numa situação de confiança em termos de merecer protecção e assim evitar o sofrimento de danos dificilmente reparáveis ou compensáveis.

Sobre uma cláusula do mesmo teor e a propósito do preenchimento abusivo das livranças ali em causa, no acórdão do STJ de 4/7/2019, processo n.º 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1[14], escreveu-se:

«Tendo a exequente embargada ficado autorizada a, de acordo com o seu próprio juízo, preencher a data de vencimento das livranças em função do incumprimento das obrigações pela devedora “ou para efeitos de realização do respectivo crédito”, não é possível concluir-se que aquela exequente – ao apor nas livranças a data de …, mais de três anos ulterior em relação à declaração de insolvência da devedora, e alguns meses anterior à acção executiva – incorreu em preenchimento abusivo. Por outras palavras, a ampla margem de discricionariedade concedida à portadora das livranças nos respectivos pactos de preenchimento não permite considerar-se verificado o invocado preenchimento abusivo.

Acresce que, mesmo que os termos acordados não atribuíssem à exequente tal margem de discricionariedade, atento o regime normativo da prescrição, sempre seria discutível se o simples decurso do tempo sem exigência do cumprimento das obrigações bastaria para configurar uma situação de abuso do direito.»

E acrescenta em sentido negativo o acórdão deste Supremo Tribunal de 19/10/2017, processo n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1, já acima citado.

Afigura-se-nos, assim, que o mero decurso do tempo entre o vencimento da obrigação subjacente e a data aposta como data de vencimento na obrigação cartular não configura o pretenso abuso de direito.

As livranças dadas à execução foram entregues em branco, apenas com as assinaturas da subscritora e dos avalistas, acompanhadas dos aludidos contratos, assinados por estes, onde, além do mais, consta um pacto de preenchimento, autorizando a exequente a preenchê-las, fixando o vencimento e os montantes, logo que alguma obrigação deixasse de ser cumprida.

Dado que as referidas livranças foram dadas à execução pela sua beneficiária, depois de ter completado o seu preenchimento, e tendo o avalista/embargante intervindo no pacto de preenchimento, o que permite situá-lo no domínio das relações imediatas, pode este, não obstante a sua responsabilidade ser autónoma, discutir questões relacionadas com o pacto de preenchimento e a eventual verificação da excepção do preenchimento abusivo, como tem admitido a jurisprudência deste Tribunal, de forma pacífica e reiterada[15], sendo que sempre lhe competia alegar e provar, oportunamente, os factos integradores de tal excepção peremptória[16] (cfr. art.ºs  576.º, n.º 3 do CPC e 342.º, n.º 2 do C. Civil).

À exequente basta a não demonstração pelo demandado de que o pacto de preenchimento foi incumprido, que o título ainda não se encontra em circulação, valendo-lhe, no mais, os critérios de incorporação, literalidade, autonomia e abstracção.

No presente caso, o embargante não provou que o pacto de preenchimento foi incumprido. Ao invés, provou-se que o preenchimento das livranças foi efectuado em conformidade com o que haviam acordado nos contratos que estiveram subjacentes à sua emissão.

Não tendo o embargante provado, como lhe competia, que a exequente incumpriu o mesmo pacto de preenchimento, valem todos os elementos inscritos nas livranças, atentas as características de que goza, enquanto título de crédito cambiário, ou seja, da incorporação, literalidade, autonomia e abstracção.

Pelas razões que se deixaram expostas, afigura-se-nos que não se verificam os pressupostos da aplicação da figura do abuso de direito, porquanto não se vislumbra qualquer das supra mencionadas situações excepcionais ou de limite.

A exequente, ao instaurar a execução com base nas livranças avalizadas pelo executado/embargante, preenchida em conformidade com o acordado entre ela, a subscritora e o próprio avalista, não pretende alcançar um fim contrário à lei, mas obter um resultado que a lei lhe confere.

E o exercício desse direito não constitui, de forma alguma, uma ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, muito menos clamorosa.

Daí que não possa beneficiar do invocado abuso de direito.

 Destarte, sem mais considerações, deve ser mantido o acórdão recorrido.


Sumário:

1. O abuso de direito, na modalilidade de suppressio, tutela a confiança do beneficiário, perante a inacção do titular do direito, devendo, para ser relevante, verificar-se um não exercício prolongado, uma situação de confiança, uma justificação para essa confiança, um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não-exercente.

2. O mero decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é suscetível de criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende.

3. Não abusa do direito a credora que instaura uma execução com base em livranças, assinadas pela subscritora e pelo avalista, que lhe foram entregues aquando da celebração de contratos de garantia bancária e que preencheu de acordo com esses contratos, apondo-lhes data de vencimento cerca de 8 anos após poder exigir o cumprimento da obrigação subjacente aos devedores.


III. Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em negar a revista.


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Custas da revista pelo recorrente (art.º 527.º, n.º 1 e 2, do CPC).


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Lisboa, 20 de Abril de 2021

Nos termos do art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de Maio, para os efeitos do disposto no art.º 153.º, n.º 1, do CPC, atesto que o presente acórdão foi aprovado com voto de conformidade dos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos que compõem este colectivo e que não podem assinar.


Fernando Augusto Samões (Relator que assina digitalmente)

Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

António José Moura de Magalhães (2.º Adjunto)

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[1] Do Tribunal Judicial da Comarca …. – Juízo de Execução …. – Juiz ….
[2] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães
[3] Como é jurisprudência sedimentada deste STJ - cfr o Acórdão de 11 de Abril de 2019, proferido no processo n.º 622/08.1TVPRT.P2.S1, acessível em www.dgsi.pt, e os arestos nele citados, bem como os nossos de 19/6/2019, processo n.º 2100/11.2T2AGD-A.P2.S2 e de 9/3/2021, processo n.º 2899/18.5T8ALM.L1.S1, entre outros.
[4] Acessível em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 296, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, pág. 536.
[6] Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171.
[7] In “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745, citado no acórdão do STJ de 15/1/2013, processo n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[8] In “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964. Cfr., ainda, do mesmo autor, o Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, 2.ª reimpressão, Almedina, pág. 292, onde menciona as mesmas quatro proposições para a concretização da confiança.
[9] Citado acórdão do STJ, de 15/1/2013.
[10] Menezes Cordeiro, Tratado, pág. 313.
[11] Idem, pág. 323, onde também é citado um acórdão da Relação do Porto, de 20/4/2003, ali qualificado de “excelente”, relatado pelo agora Conselheiro Pinto de Almeida.
[12] Idem, pág. 324.
[13] Realce nosso.
[14] Acessível em www.dgsi.pt.
[15] Cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ de 23/4/09 - P.º 08B3905, de 13/12/07 - P.º 07A4014, de 28/2/08 - P.º 07B4702, de 4/3/08 – P.º 07A4251, de 17/4/08 - P.º 08A727, de 9/9/08 – P.º 08A1999, de 4/11/08 - Revista n.º 2946/08-1.ª secção, de 16/6/09 - Revista n.º 3943/08, 6.ª secção e de 18/6/09 - Revista nº 2761/06.4TBLLE-A.S1, de 23/9/2010, proferido no processo n.º 4688-B/2000.L1.S1 e de 22/10/2013 no processo n.º 4720/10.3T2AGD-A.C1, acessíveis em www.dgsi.pt.
[16] Cfr. Acs. do STJ de 3/11/09 - P.º 12/05.8TBMTR.A.S1, de 23/4/09 - P.º 08B3905, de 24/1/08 - P.º 07B3433, de 4/4/02 - P.º 02B503 e de 27/1/98, CJ - STJ -, ano VI, tomo I, pág. 40, bem como o Acórdão Uniformizador de 14/5/96, DR n.º 159, de 11/7/96, 2.ª série, embora tirado a propósito do cheque emitido com data em branco e, ainda, os acórdãos do STJ de 31/3/2009 proferido no processo n.º 08B3815, de 11/2/2010, proferido no processo n.º 1213-A/2001.L1.S1 e de 13/4/2011, proferido no processo n.°2093/04.2TBSTS-A.L1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.