Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3499/11.6TJVNF.G1.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: COLISÃO DE DIREITOS
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
DIREITO AO REPOUSO
EMPRESA INDUSTRIAL
INICIATIVA PRIVADA
DIREITO À QUALIDADE DE VIDA
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITOS FUNDAMENTAIS
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS RELEVANTES
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 10/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS / DIREITOS E DEVERES ECONÓMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2018, 5.ª Edição, p. 432 e 433;
- Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, p. 407 e 408;
- Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 268;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira , Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição, 2007, p. 454;
- Manuel A. Domingues Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1963, p. 180 e 181;
- Pessoa Jorge, Pressupostos de Responsabilidade Civil, p. 201.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 682.º, Nº 3;
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 18º, N.º 2, 25.º, 61.º. 62.º, 64.º, N.º 1 E 66 .º, N.º 1.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM, DE 04-11-1950, APROVADA PELA LEI N.º 65/78, DE 13-10: - ARTIGOS 2.º, N.º 1 E 8.º, N.º 1;
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM, DE 10-12-1948: - ARTIGOS 3.º, 24.º E 25.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 17-01-2002, PROCESSO N.º 4140/01;
- DE 02-07-2007, PROCESSO N.º 09B0511;
- DE 13-09-2007, PROCESSO N.º 07B2198;
- DE 15-05-2008, PROCESSO N.º 08B779;
- DE 08-04-2010, PROCESSO N.º 1715/03.7TBEPS.G1.S1;
- DE 19-10-2010, PROCESSO N.º 565/1999.L1.S1;
- DE 07-04-2011, PROCESSO N.º 419/06.3TCFUN.L1.S1;
- DE 17-04-2012, PROCESSO N.º 1529/04.7TBABF.E1.S1;
- DE 29-11-2012, PROCESSO N.º 1116/05.2TBEPS.G1.S1;
- DE 06-12-2012, PROCESSO N.º 247/1998.C2.S1;
- DE 30-05-2013, PROCESSO N.º 2209/08.0TBTVD.L1.S1;
- DE 02-12-2013, PROCESSO N.º 100/2000.L1.S1;
- DE 02-12-2013, PROCESSO N.º 110/2000.L1.S1;
- DE 21-01-2016, PROCESSO N.º 66/12, IN SUMÁRIOS, JANEIRO/2016, P. 39;
- DE 01-03-2016, PROCESSO N.º 1219/11.4TVLSB.L1.S1;
- DE 28-04-2016, PROCESSO N.º 1723/06, IN SUMÁRIOS, ABRIL/2016, P. 67;
- DE 29-11-2016, PROCESSO N.º 7613/09.3TBCSC.L1.S1;
- DE 29-06-2017, PROCESSO N.º 117/13.1TBMLG.G1.S1;
- DE 18-09-2018, PROCESSO N.º 4964/14.9T8SNT.L1.S3, TODOS IN WWW DGSI.PT/STJ.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- DE 23-12-2008, ACÓRDÃO N.º 632/2008, DE 23.12.2008, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT/TC.
Sumário :
I. Em caso de colisão de direitos, a chave para uma tomada de decisão por parte do juiz sobre qual dos direitos deve prevalecer e do modo como devem ser harmonizados os direitos em causa está no princípio da proporcionalidade, consagrado na parte final do nº 2 do art. 18º da Constituição da República Portuguesa, que, por via dos seus três subprincípios da adequação, da exigibilidade e da justa medida, fornece uma estrutura formal tripartida à ponderação, a fazer em concreto e casuisticamente, entre os fins prosseguidos pelas normas, os bens, interesses e valores em conflito, as medidas possíveis e os seus efeitos, por forma a estabelece uma relação equilibrada entre os direitos em confronto.

II. No confronto entre os direitos fundamentais de personalidade dos autores - direito à integridade física e moral, à proteção à saúde e a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado, consagrados nos arts. 25º, 64º, nº 1 e 66º, nº 1, todos da Constituição da República Portuguesa - e os direitos à livre iniciativa económica da ré e à propriedade privada, também garantidos nos arts 61º e 62º da Constituição da República Portuguesa, a busca do instrumento  que melhor promova o valor supremo da dignidade da pessoa humana não pode deixar de constituir um instituto norteador da solução do caso concreto.

III. Demonstrado que a atividade fabril da ré provoca vibrações e ruídos constantes, que rapidamente se transferem para a casa de habitação dos autores, fazendo-a vibrar de forma constante, particularmente a cozinha, e que o facto da ré laborar, ininterruptamente 24 horas por dia e 6 dias por semana, afeta o descanso dos autores, impedindo-os de dormir convenientemente, causando-lhes stress e desgaste psicológico acentuado e provocando-lhes transtornos de memória e cansaço, impõe-se dar prevalência ao direito dos autores ao repouso, ao sono e à tranquilidade, enquanto emanação dos direitos fundamentais de personalidade, sobre os interesses empresariais da ré.

IV. Neste contexto e sob pena de preclusão da efetividade da tutela dos direitos de personalidade dos autores, impõe-se, de igual modo, afirmar a essencialidade da proibição de laboração da ré no período que decorre entre as 22 horas e as 6 horas e ao domingo como forma adequada e proporcional de assegurar aos autores um descanso noturno de oito horas e um maior período de repouso e de tranquilidade no interior do seu domicílio ao domingo (dia de descanso semanal), e, desse modo, minimizar a afetação da saúde e integridade física e psicológica dos autores.

V. E se é certo que tal restrição não deixará de ter implicações de ordem económica para a ré, a verdade é que, na vida em sociedade, seria absolutamente intolerável que os interesses económicos da ré na exploração lucrativa da atividade industrial de tecelagem de fio fossem satisfeitos à custa do total esmagamento dos direitos básicos dos autores a gozar de um período de total tranquilidade, sossego e qualidade de vida no seu próprio domicílio ou da neutralização destes mesmos direitos em termos claramente desproporcionados.

VI. No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis, não obstando, por conseguinte, que se considere, como realidades suscetíveis de averiguação e demonstração, as ocorrências virtuais ou factos hipotéticos quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio.


VII. A intervenção do STJ em sede de ampliação da matéria de facto, nos termos do art. 682º, nº 3 do Código de Processo Civil, só é pertinente se houver sérios motivos para se concluir pela necessidade da sua ampliação, isto é, quando os factos em causa são verdadeiramente relevantes para a solução jurídica do litígio, o que não sucede no caso dos factos a provar em nada alterarem a concreta solução jurídica do litígio.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


I – Relatório


1. AA e BB, instauraram ação declarativa de condenação contra a sociedade, CC, Lda, pedindo:

a) A condenação da Ré a encerrar as suas instalações fabris, em virtude da construção do novo edifício ser ilegal e não possuir licença de construção;

b) Caso improceda este pedido, a condenação da Ré a não laborar nas ditas instalações, por os níveis de ruido e vibração provocados na sua casa serem superiores aos legalmente admissíveis;

c) Se assim não for entendido, que se condene a Ré a eliminar ou reduzir para valores legalmente admissíveis os níveis de ruido e vibração causados na sua habitação.

d) Em qualquer caso, pedem que a Ré seja condenada a pagar-lhes a quantia de 100 mil euros (atenta a ampliação do pedido admitida), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento.

Alegam, para tanto e em síntese, que são donos do prédio urbano que habitam há mais de 20 anos e que é contíguo ao prédio pertença da ré e onde a mesma desenvolve a sua atividade industrial no ramo têxtil e tecelagem de fio.

Inicialmente, as instalações fabris da Ré situavam-se a 50 metros de distância da morada dos autores, mas, depois, foram ampliadas, com a construção de pavilhão de 1.300 m2 de área, situado a 14 metros de distância da sua referida morada, no qual a Ré passou a exercer a sua atividade de forma continua e sem para isso estar licenciada.

Sucede que a potência, o número e a proximidade dos teares provocam na sua habitação um ruído e vibrações permanentes que os impedem de levar uma vida normal, designadamente, de ali dormir e descansar, o que lhes causa um enorme desgosto, irritação e nervosismo, afetando a sua saúde psicológica e física, assim como do seu agregado familiar.

O ruído e vibrações indicados provocaram, por outro lado, rachadelas na sala, quartos, cozinha e corredores da sua mencionada habitação.

Acresce ainda o facto do segundo edifício mandado construir pela Ré cortar parte da exposição solar de que beneficiava a sua casa.


2. A Ré contestou, alegando que, para além das suas construções e atividade estarem licenciadas, a sua laboração não provoca os alegados ruídos e vibrações.

Concluiu pela improcedência desta ação e pela sua absolvição do pedido.


3. Na sua resposta, os autores reafirmaram a sua posição inicial.


4. Proferido despacho saneador, foram selecionados os factos assentes e elaborada a base instrutória.


5. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a pretensão dos autores parcialmente procedente, por provada, e consequentemente, condenou a Ré a cessar a sua atividade no período noturno, que se situa entre as 22,00 horas e as 06,00 horas, bem como no dia de descanso semanal, o domingo, condenando-a ainda a indemnizar cada um dos autores em 10.000,00€, pelos danos não patrimoniais sofridos.

6. Inconformada com esta sentença, dela apelou a ré para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão proferido em 08.02.2018, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, confirmou a sentença recorrida.


7. Mais uma vez inconformada, a ré interpôs recurso de revista, por via excecional, para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:


« I. Vem o presente recurso interposto do, aliás douto, Acórdão da Relação de … que, negando provimento à Apelação da ora recorrente, veio confirmar a sentença recorrida.

II. Não obstante o condicionalismo legal que, nos termos do n.° 3 do artigo 671° do Código de Processo Civil, sobremaneira limita o alcance ao terceiro grau de jurisdição, demonstram-se, observados os pressupostos legais que regem, condicionam e justificam o acesso à presente instância recursiva, recorrendo-se às previsões que se consignam nas alíneas a), respeitante à relevância jurídica da questão a apreciar e b), respeitante à convocação de interesses de particular relevância social, ambas as alíneas do n.° 1 do artigo 672° do Código de Processo Civil, enquanto fundamentos da respetiva admissibilidade.

III. Enquanto justificação da relevância jurídica, por esta convocada, enunciam-se, com brevidade, as seguintes razões:

i. A Revista interposta pela recorrente, resulta de uma decisão judicativa, indevidamente confirmada pela veneranda Relação de …, e passível de colocar termo ao um litígio que veio opor, em rota de colisão, titulares de direitos fundamentais.

ii. Pugnando por uma decisão que enunciava a concordância prática dos referidos direitos colidentes, a verdade é que a referida decisão não veio obedecer sequer à fundamentação de direito com que a veio justificar e o propósito que veio de augurar, colocando em risco os mais elementos imperativos de Justiça.

iii. Contrariamente aos próprios fins enunciados, peca a referida decisão, indevidamente confirmada pela venerada Relação de …, por flagrante insuficiência de fundamentação, exigível pelo princípio constitucional de proporcionalidade com que a veio conformar.

iv. Interpretando e aplicando uma norma legal alegadamente sob tal égide, a decisão que ora se censura, porque infundamentada - desatendendo a matéria de facto que se reputaria imprescindível à respetiva conformação, alegada ab initio pela recorrente, e decidindo, até mesmo, sem sentido diametralmente oposto a esta última - colocará em causa a supressão de um direito fundamental.

v. Impondo-se, nos termos do artigo 682.° do Código de Processo Civil, por um imperativo de Justiça e a bem da decisão da causa, a remessa dos autos para a Relação e, se necessário, para o Tribunal de primeira instância, com vista ao apuramento, em audiência de julgamento, de toda a matéria de facto imprescindível à boa decisão da causa, segundo as várias soluções possíveis da questão de direito, anulando-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo em matéria de facto, sem prejuízo do já decidido, no demais, a fim de proceder à ampliação da matéria de facto, imprescindível à decisão conscienciosa, com devida obediência ao princípio da proporcionalidade, sem a qual não se reputará possível

IV. Por sua vez, enquanto justificação da relevância social, por esta convocada, serão de elencar, com igual brevidade, as seguintes razões:

i. A presente Revista convoca interesses "iminentes da comunidade", ultrapassando, os interesses em jogo, significativamente os limites do caso concreto[1].

ii. A questão que se coloca em causa, a seguinte: cumpre o desígnio do princípio constitucional da proporcionalidade e da proteção da confiança, uma decisão jurisdicional que apesar de propugnar, ao abrigo da aplicação do artigo 335°, n°s 1 e 2 do Código Civil, uma interpretação e aplicação da referida norma legal no sentido da prevalência, no estritamente necessário, dos direitos de personalidade[2] sobre o conteúdo essencial da liberdade de iniciativa económica[3], que veio pugnar por uma delimitação da matéria de facto que desconsiderou factos essenciais à boa decisão da causa, determinando uma solução que, além de distinta do pedido realizado pelos demandantes e, em momento algum, aceite ou veiculado por quaisquer dos litigantes em última análise, veio colocar em risco, ao contrário do que se propunha, um dos referidos direitos a salvaguardar, colocando, deste modo, em risco a subsistência de uma empresa?

iii. Sob o desígnio dos limites da conformação do direito à livre iniciativa económica, e a respetiva salvaguarda constitucional, enquanto instrumento do progresso coletivo, caberá referir, tendo por apreço o exemplo dos autos, consubstanciando-se, a recorrente, uma empresa com décadas de atividade, que se desenvolveu, ao longo dos anos, de forma tímida e sustentada, seria de evitar, até às últimas consequências, que esta fosse, desta forma colocada em causa - dado atentar-se contra o progresso coletivo que constitucionalmente se lhes arroga - se coloque em causa o sacrifício do direito à livre iniciativa privada, quando o propósito, conforme decorre da sentença e do acórdão que bem assim a confirmou, se reputava a salvaguarda do exato contrário.

iv. Não se adequando, por isso, a acórdão ora sob censura - que veio impor à ora recorrente a proibição de prosseguir a respetiva laboração durante o turno da noite, sacrificando assim, a respetiva subsistência em laboração contínua - ao fundamento que, em si mesmo, as recorridas instâncias se propunham salvaguardar, quando haveria outras opções, que vieram ser deliberadamente desatendidas apesar de oportunamente alegada a inviabilidade prática da opção que veio de vencer - que permitiriam evitá-lo sem, com isso, colocar em causa os interesses e direitos dos recorridos: isto é, competiria às instâncias recorridas ter interpretado e aplicado a norma legal convocada, designadamente o n.° 2 do artigo 335.° do Código Civil, sob a égide do princípio da proporcionalidade, devendo para o efeito, ter considerado, devidamente, a opção menos intrusiva.

V. A razão que reclama tal admissibilidade será, nesta senda, a seguinte: a indevida confirmação da decisão da primeira instância pela veneranda Relação de …, na medida em que veio desatender, numa situação que acusava imprescindibilidade, matéria de facto que urgia apreciar e dar resposta, indispensável, no entender da recorrente, à boa decisão da causa, que se consubstancia na própria sobrevivência económica desta.

VI. Factualidade que se viu, apesar de oportunamente suscitada nos autos, indevidamente julgada como conclusiva pelas instâncias recorridas e, mais perniciosamente ainda, interpretada a contrario, uma vez que desta não se deixaram de imiscuir, dela fazendo o verdadeiro cerne da decisão alcançada: a possibilidade (sempre contraposta pela recorrente) de a CC, Lda. persistir a sua atividade sem ser em regime de laboração contínua.

VII. Sem qualquer fundamento que legitimasse tal hipótese, assim a pressupuseram, não obstante a recorrente - muito antes de se colocar em causa uma qualquer decisão - ter denunciado exatamente o contrário, mais propriamente, aquando da contestação que veio apresentar à providência cautelar intentada pelos recorridos.

VIII. Razão pela qual se coloca, assim, eminentemente em causa, a justeza da solução alcançada, assente, essa sim, numa pressuposição, por demais denunciando a inobservância da aplicação correta do princípio constitucional da proporcionalidade, enquanto forma de justificação e legitimação daquela.

IX. Assim decidindo, vieram as instâncias, pois, colocar um ponto - que não se quererá final - ao litígio, possibilitando justamente o sacrifício daquilo que ansiavam e julgaram salvaguardar: a supressão do direito à liberdade e iniciativa económica da sociedade ora recorrente, dado que a respetiva atividade se tornará impossível, após décadas de continuado investimento, devido a uma pressuposição judicativa sem fundamento.

X. É entendimento da ora recorrente, pese embora o respeito que as instâncias percorridas muito lhe merecem, que a resposta concedida à questão sub judice, não deixa de evidenciar, como se disse, uma aplicação indevida do artigo 335° n° 2 do Código Civil, designadamente na concretização da resposta que veio oferecer à dialética idealizada entre os direitos de personalidade dos autores e o direito à iniciativa económica da ré, tendo por apreço o desígnio constitucional do princípio da proporcionalidade e, por objetivo, a respetiva harmonização.

XI. A ora recorrente não contesta, em termos abstratos, a aplicabilidade do artigo 335.°, n.° 2 do Código Civil ao caso dos autos.

XII. Tampouco se escusa em admitir o entendimento - à semelhança das instâncias recorridas - de que na solução a alcançar, deverá conceder-se, prevalência aos direitos de personalidade dos recorridos enquanto aplicação correta da concordância prática postulada no referido preceito legal;

XIII. Nem sequer deixará de recusar, por último, que a solução a determinar, enquanto salvaguarda e harmonização dos direitos, colidentes entre si, deva passar pela inteira supressão de um deles - como, aliás, sempre foi pretensão dos recorridos.

XIV. O seu inconformismo prende-se, por um lado, com a desconsideração de matéria de facto essencial à conformação da causa, apesar de alegada pela recorrente e, por outro, com a indevida aplicação da norma citada alegadamente sob a égide do princípio da proporcionalidade, iminentemente imbricado, como se sabe, à racionalidade da decisão.

XV. Embora admita que o silogismo, que lhe é ínsito, aparente conformidade, a verdade é que a decisão que se lhe reporta respeitante, confirmada pela veneranda Relação de …, peca por ausência de verdadeira fundamentação, sobretudo tendo em apreço o apelo que, a esse título, se realiza a bem da sua própria validação.

XVI. Por um imperativo de justiça e a bem da "boa decisão da causa", tendo por apreço a aplicabilidade do princípio da proporcionalidade, cumpre voltar a atender à incorreta delimitação da matéria de facto, indevidamente permitida nos presentes autos, dada a evidência de ter sido descurada factualidade que se reportava determinante àquela.

XVII. Em jeito de uma breve recapitulação do decidido, convirá referir que, à semelhança do que vem sendo hábito junto dos nossos Tribunais superiores, a veneranda Relação de … veio entender, no acórdão ora sob censura - e bem, leia-se - com devida alusão ao artigo 18.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa, que "em caso de conflito de direitos desiguais, deve, por regra, dar-se prevalência àquele que, nas circunstâncias concretas, seja superior, mas as restrições impostas devem limitar-se ao necessário para a salvaguarda dos outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos."[4]

XVIII. Sumariamente, acrescentando evidenciar-se "um critério da concordância prática e de harmonização de direitos para a resolução dos conflitos, pois o sacrifício e compressão do direito inferior apenas deverá ocorrer se e na medida adequada e proporcional à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante."

XIX. Sendo que, nessa ponderação, "para além da máxima otimização e do menor sacrifício dos valores em confronto, também não pode olvidar-se que, em caso de colisão entre direitos fundamentais, a busca do instrumento que melhor promova o valor supremo da dignidade da pessoa humana não pode deixar de constituir, ainda, um instituto norteador da solução do caso concreto".

XX. Não se escusando, no entanto, de concluir - sendo de realçar o teor particularmente conclusivo da citada afirmação - da seguinte forma: "a restrição imposta pode ter implicações de ordem económica para a Ré. Mas, como já assinalámos, essas implicações estão subordinadas a outros valores e interesses que a ordem jurídica tem por mais relevantes. Aquelas implicações, assim, devem ser assumidas como custos de contexto, que à Ré compete racionalizar, gerir e otimizar".

XXI. Bem se depreende, do que se acaba de citar, que as instâncias - e, desde logo, a veneranda Relação de … - não vieram admitir, como sérias, as alegações da ora recorrente; não fizeram caso, apesar de não colocarem em causa a idoneidade e conhecimento técnico de testemunhas arroladas, o que estas vieram a expor e advertir, relativamente a tal risco35; não reconheceram o teor dos documentos que a recorrente veio a juntar aos autos, explicitando tal necessidade a autoridades administrativas, muito antes dos factos que deram origem aos presentes autos - não o fizeram, nem o esconderam na fundamentação que ofereceram.

XXII. Porém, a referida postura, de desconsideração do que veio ser alegado - não poderia fundamentar, apenas por si, a decisão tomada.

XXIII. O mesmo é dizer: em momento algum se descortina, no acórdão sob censura, qualquer fundamento para a tomada da referida opção, enquanto medida menos intrusiva, entre outras, na prossecução do fim visado (i.e. fazer prevalecer os direitos de personalidade dos recorridos, sem implicar a erradicação do direito da recorrente).

XXIV. Convirá relembrar que o que veio dar causa aos presentes autos reportou-se o incómodo que o ruído e/ou vibrações provocadas pela atividade recorrente causava na saúde dos recorridos - razão, cuja indispensabilidade motivou, por parte daqueles, a interposição de uma providência cautelar que veio redundar na execução de obras significativas nas instalações da ora recorrente, em abono do respeito e salvaguarda dos direitos afetados, e em estrita obediência ao que veio, em tal sede, ser determinado judicialmente.

XXV. Com efeito, pese embora, augurando fazer prevalecer, numa composição que supôs justa, os direitos de personalidade sobre o direito à iniciativa económica - i.e. harmonizando-os de forma a não suprimir nenhum - a confirmação da decisão proferida em primeira instância, terá por consequência um efeito que não esteve no horizonte, nem foi pretendido por nenhuma das referidas instâncias: o encerramento da atividade da ora recorrente

XXVI. Ora, a suspensão da respetiva laboração durante o turno da noite, mediado entre as 22:00 e as 06:00 horas, em que veio ser condenada, determinará o respetivo encerramento, não sendo de admitir a viabilidade desta última - conforme incumbirá avaliar - senão em laboração contínua.

XXVII. É certo que se acaba de referir que as instâncias, atento o fundamento que concederam à respetiva decisão, nunca verdadeiramente pretenderam fazer cessar a atividade da recorrente (colocando em causa o respetivo direito à livre iniciativa económica), apesar da verificada rota de colisão entre direitos fundamentais – no entanto, não deixaram as mesmas de conhecer o que veio ser veiculado insistente, reiterada e veementemente pela recorrente ao longo das instâncias percorridas.

XXVIII. Alarme que, conforme será de reiterar, remonta à contestação da ré à providência cautelar que veio desencadear os presentes autos: i.e. o facto de a laboração em regime de vinte e quatro horas se revelar condição nuclear, obrigatória e imprescindível para a respetiva subsistência[5].

XXIX. Não obstante a seriedade e insistência de tais preces, idoneamente veiculadas, não vieram as mesmas ser admitidas, muito menos ponderadas com a profundidade que mereciam; não assentando a decisão, por isso, numa avisada e fundamentada ponderação das respetivas implicações, mas antes numa errónea, e pouco fundamentada, pressuposição!

XXX. Assentando esta última, conforme será de reaçar, não num facto dado como provado, mas num raciocínio realizado a contrario sensu.

XXXI. Isto é, apesar de considerar tais factos, embora sustentados em prova testemunhal e documental, como conclusivos, não deixaram as instâncias de os interpretar e, por conseguinte, de os desconsiderar, ao impor e pugnar pelo exato contrário: pese embora atentasse contra o regime de laboração existente, a decisão não colocaria, em nenhum momento, em risco, a sustentabilidade da recorrente.

XXXII. Ora, dedicando-se a recorrente à atividade de tecelagem de fio, sacrificar aquele que é conhecido como o "turno da noite"- já para não mencionar os erros que tantas vezes impendem sobre as máquinas em resultado das referidas paragens, a que também se veio aludir ao longo do processo - fará com que o valor gerado pela empresa não se reporte suficiente para a amortização das respetivas máquinas.

XXXIII. A isso se resumindo, não obstante a indicação de valores concretos, e da prova documental produzida pela recorrente, designadamente a da conjugação dos documento n.° 14, 15, 16, 17 e 18, juntos aquando da contestação à providência intentada pelos recorridos, capazes de atestar ou desmentir, ao cêntimo, o que esta alegava.

XXXIV. Sendo, ademais, cristalino o que também veio ser alegado pela testemunha, Dr. DD, quando inquirido da importância da laboração contínua[6].

XXXV. Chegados aqui, será de questionar: não se evidencia pernicioso, vir a montante afirmar que a alegação de que a redução do horário de laboração de uma empresa têxtil importará a não realização de valor suficiente para amortizar o valor das respetivas máquinas, detém um cariz conclusivo, e a jusante, sem fundamento que o sustente, pugnar num sentido diametralmente oposto, desafiando as referidas evidências?

XXXVI. Não será esta solução judicativa, também assim, conclusiva? Haverá, pois, que atender ao entendimento já antes pugnado pelo venerando Supremo Tribunal de Justiça, sobre a questão:

"(...) torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos. Aliás, não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; Não é assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente. estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas"[7].

XXXVII. Porém, pese embora diversas vezes se ter feito alusão, por via documental e testemunhal, sendo, aliás, por demais conhecido o regime de capital intensivo que nestas empresas vigora, certo é que tal informação nunca veio admitir-se como suficiente à respetiva comprovação, essencial à determinação da boa decisão da causa.

XXXVIII. Sendo ainda de referir que, além da veiculada impossibilidade de amortização das respetivas máquinas, se deixou bem claro que a não laboração contínua inviabilizaria, também assim, encomendas vitais no presente paradigma de mercado, designadamente face a outras empresas, em concorrência imediatamente direta com esta, capazes de proceder a entregas num período mais curto do que a ora recorrente nas presentes condições - razão pela qual se demonstrando, a laboração contínua, face ao paradigma hoje assumido pela referida indústria, verdadeira razão sine qua non à atividade de tecelagem de fio.

XXXIX. Doutra banda, caberá referir que o Tribunal de primeira instância veio optar por uma solução distinta da que, em última análise, consubstanciava o pedido dos ora recorridos (nunca estes ansiando, como se pôde verificar, senão o encerramento da atividade da recorrente).

XL. Decisão, essa, que veio ser confirmada pelo Tribunal da Relação de …, desatendendo-se, por completo, quaisquer outras vias ou possibilidades, porventura passíveis de se demonstrar iminentemente mais praticáveis do que a propugnada.

XLI. No entanto, limitou-se, este venerando Tribunal - assaz simplesmente, apesar das alegações da ora recorrente, devidamente sustentadas, como se disse, em prova testemunhal e documental - a não considerar comprovada a indispensabilidade de se observar uma laboração contínua, dado o "cariz conclusivo''' alegadamente ostentado.

XLII. A referida opção judicativa, ao ser novamente sindicada por aquele venerando Tribunal, deveria ter sido, assim, devidamente averiguada, que não foi.

XLIII. O mesmo é dizer: não se revelando comprovados os alegados efeitos nocivos que tal suspensão induzirá, nada fizeram, as instâncias, para se devidamente inteirarem da justiça de semelhante opção, enquanto assumido cerne da decisão que se censura.

XLIV. O mesmo é dizer: não se revelando comprovados os alegados efeitos nocivos que tal suspensão induzirá, nada fizeram, as instâncias, para se devidamente inteirarem da justiça de semelhante opção, enquanto assumido cerne da decisão que se censura.

XLV. Sendo, aliás, de realçar que, apesar de confirmada, esta veio revelar-se inteiramente contestada por ambas as partes em litígio, em sede de apelação.

XLVI. Não será, neste desígnio, pois, de olvidar, também assim que, nos termos do artigo 607.°, n.° 4, in fine, do presente Código de Processo Civil, se incumbe ao juiz, aquando da elaboração da sentença, compatibilizar "toda a matéria de facto adquirida e extrair dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência", apreciando, nos termos do n.° 5 do referido preceito, "livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto", ressalvando, contudo, que "a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes".

XLVII. Ora, sem deixar de ter em atenção o que se acaba de expor, dir-se-á que na elaboração da respetiva decisão, cumpre ao juiz ter em atenção, além dos factos essenciais, que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções eventualmente invocadas, alegados pela partes, (i) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; (ii) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; (iii) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

XLVIII. Sem prejuízo do que fica dito, abrir-se-á um parênteses para trazer ainda à colação o entendimento que o Supremo Tribunal de Justiça veio oferecer numa situação, em tudo semelhante àquela que aqui se convoca, relativamente à admissibilidade da presente revista[8]:" não está vedado ao STJ avaliar a bondade da decisão de facto propriamente dita, por tal constituir matéria jurídica (cfr. arts. 662. °, n. ° 4, 674. °, n. ° 3,

e 682. ° CPC), apreciar se determinada asserção - tida como "facto " provado -consubstancia na realidade uma questão de direito ou um juízo de natureza conclusiva/valorativa, caso em que, sendo objecto de disputa das partes, deverá ser julgada não escrita, nos termos sobreditos."

XLIX. Ademais se diga que, à luz do presente Código de Processo Civil, a consideração dos factos essenciais - que sejam complemento ou concretização dos alegados - não depende hoje, do requerimento da parte interessada, isto é, a sua consideração pode ser oficiosa, devendo as partes operar, ante tal perspetiva e por desígnio do Tribunal, o exercício do contraditório, conferindo-se-lhes a possibilidade de arrolar novos meios de prova sobre eles.

L. Certo é que estaria ao alcance das partes e do próprio Tribunal, dirimir a controvérsia ora apontada pela recorrente, uma vez que outras soluções, indubitavelmente menos gravosas, seriam passíveis de se admitir, mas, mais importante do que averiguar doutras possibilidades, eventualmente passíveis de se aplicar à situação dos autos, haveria certamente de se considerar, com devida ponderação, a aplicabilidade daquela que consubstanciou a sua decisão de fundo, o que se não fez.

LI. Sendo de relembrar o que, quanto ao assunto que se acaba de aludir, se fez, assaz sintomaticamente, constar no douto acórdão do Tribunal da Relação de …, ora sob censura, desta vez quanto à pretensão dos ora recorridos:

"Por fim, pretendem ainda os AA. que se julgue demonstrado que a eliminação dos ruídos e trepidações em causa, implicam, necessariamente o encerramento das instalações da Ré, não havendo qualquer possibilidade desta continuar a exercer a sua atividade sem os produz (quesitos 72. ° e 73. °).

Ora, como já referido anteriormente, este é também um juízo. Além disso, mesmo sob o ponto de vista técnico, também não está demonstrado que os referidos ruídos e vibrações sejam insuscetíveis de serem eliminados; seja na sua origem. seja no seu impacto.

Por conseguinte, também não se podem julgar demonstradas as citadas afirmações."

LII. O que demonstra, uma vez mais, que não se revelaram sequer realmente apuradas as opções que poderiam fazer valer uma consideração distinta daquela que sobreveio.

LIII. Destarte, fazendo-o em tais circunstâncias, não vieram os Tribunais recorridos atender verdadeiramente, conforme soía, à matéria de facto que dispunham ao seu alcance, assim desatendendo aos ditames do princípio da proporcionalidade na aplicação da referida concordância prática, constante do artigo 335°, n.° 2 do Código Civil, tendo presente as circunstâncias, ainda por apurar, do caso concreto.

LIV. Acaso se poderá defender, ter existido, neste preciso sentido, "uma avaliação in concreto da relação empírica entre as medidas e os seus previsíveis efeitos, à luz dos fins prosseguidos, para apurar a previsível maior ou menor consecução dos objectivos pretendidos, perante as alternativas disponíveis?[9] "

LV. É entendimento da ora recorrente, que não: ao refutar e determinar tal invocação como meramente conclusiva, sem devidamente atender à prova produzida pela recorrente, as instâncias não cumpriram o ónus de tal avaliação.

LVI. Será, ademais, despiciendo aludir à forma como a veneranda Relação de … vem rematar o referido assunto? Atendamos ao teor da conclusão, com que vem rematar a resposta à presente questão: "É verdade que a restrição imposta pode ter implicações de ordem económica para a Ré5 Mas, como já assinalámos, essas implicações estão subordinadas a outros valores e interesses que a ordem jurídica tem por mais relevantes. Aquelas implicações, assim, devem ser assumidas como custos de contexto, que à Ré compete racionalizar, gerir e otimizar."

LVII. No entanto, podendo, em abstrato, cumprir com o requisito da "adequação ", a opção elegida, certo é que - dado a ré ter-se insurgido, desde o início dos autos, relativamente à inviabilidade da mesma, apresentando, ademais, prova para o efeito -teria, a decisão judicativa, necessariamente que atender aos demais critérios que presidem à averiguação da proporcionalidade, não se quedando, como afigura ter acontecido, por uma ponderação, em abstrato, da adequação da opção proposta, aos fins do processo.

LVIII. Caberá, quanto a esta questão, ademais aludir ao entendimento propugnado pela Relação de … numa situação em tudo semelhante à dos presentes autos, que veio claramente denunciar a importância de, "averiguar, caso a caso, se a prevalência dos direitos relativos à personalidade não resulta em desproporção intolerável face aos interesses em jogo, certo que o sacrifício e compressão do direito inferior apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante"[10]

LIX. Neste alcance, como também nos ensina Rabindranath Capelo de Sousa, observando-se conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo, será caso para defender que "a respetiva avaliação abrange não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a deteção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico, da subjectivização de tais direitos, máxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos'".

LX. Tudo o que dará primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade ou, noutros casos, aos que com ele são conflituantes direitos de outro tipo, pelo que, "a solução do conflito passa pelo sacrifício no mínimo necessário de qualquer dos direitos conflituantes e pelo não privilegiar qualquer um dos desses direitos, suportando cada um dos titulares dos seus direitos, em igual medida, os custos da resolução da colisão, de modo a que os direitos conflituantes, nos seus concretos modos de exercício, possam coexistir um ao lado do outro e produzam os seus efeitos próprios em condições de igualdade."[11]

LXI. Assim, apesar de, em princípio, as instâncias terem prosseguido o entendimento ínsito à concordância prática dos direitos colidentes, nunca vieram estas a cumprir a referida "deteção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico, da subjectivização de tais direitos, máxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos ", conforme lhes competiria

LXII. Razão pela qual se vem invocar a desconformidade da interpretação conferida ao artigo 335° do Código Civil, face à Constituição da República Portuguesa.

LXIII. Em concreto, considera-se que a decisão ora sob censura assenta numa interpretação, que não traduz - desconsiderando-o de forma evidente - a radicalidade última do que, em concreto, se veio decidir, subvertendo por completo o preceito acima invocado, assim esmagando e comprimindo por completo os direitos que assistem à recorrente, determinando uma decisão que implicará, a jusante, a supressão e total cerceamento do exercício do referido direito, que era seu desígnio salvaguardar.

LXIV. No entanto, tendo por apreço o que veio ser doutamente decidido no acórdão recorrido, como resposta a esta questão, dúvidas não restam que, pese embora se revelarem reunidas nos autos todas as informações indispensáveis a tal determinação, ou porventura o respetivo aprofundamento, assim se verificou.

LXV. Não se entendendo, salvo o devido respeito que merecem à recorrente, como as instâncias a quo vieram de assentir em tal entendimento.

LXVI. Os direitos de personalidade são - longe estamos de o contestar - direitos absolutos, prevalecendo, por serem de espécie dominante, sobre os demais direitos, em caso de conflito, designadamente sobre o direito à livre iniciativa económica, como é o caso dos autos, mas também se podendo elencar, a título de exemplo, o direito de propriedade e o direito ao exercício de uma atividade comercial, aos quais a nossa jurisprudência já concedeu devida atendibilidade[12].

LXVII. Ademais, resulta, bem assim, incontrovertido na jurisprudência - do qual os presentes autos não se reportaram exceção - que, o invocado direito ao repouso, ao descanso e ao sono pode considerar-se ofendido, não obstante o estabelecimento esteja licenciado, quanto ao ruído por si produzido, pela autoridade administrativa competente. A ofensa dos direitos não se exclui, neste sentido, pela mera circunstância de a ré estar autorizada administrativamente.

LXVIII. Socorrendo-nos do que também já veio ser propugnado pelo venerando Tribunal da Relação … - e sem prejuízo do que acima fica dito - será, ainda assim, de enfatizar que, "nos litígios em que se pondera a colisão de direitos e se ajuíza no sentido da prevalência dos direitos de personalidade sobre outros considerados inferiores, nomeadamente o direito de propriedade ou o direito ao exercício de uma actividade industrial ou comercial, a decisão não deve ser radical; o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível, apenas devendo ser limitado na exacta proporção em que isso é exigível pela tutela razoável do conjunto principal de interesses."[13].

LXIX. Assim, a tutela de eventuais violações de direitos de personalidade deverá ser assegurada pelas providências adequadas, conforme aliás decorre do artigo 70°, n.° 2, do Código Civil, ou seja, o sacrifício e compressão do direito inferior deverá apenas ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito predominante.

LXX. Neste alcance, entende-se, à semelhança do decorre do referido aresto da Relação do Porto, que existiria um manancial não despiciendo de soluções alternativas que cumpriria equacionar.

LXXI. Contudo, tais hipotéticas medidas, à semelhança da solução encontrada nos autos, não foram peticionadas a título principal, subsidiário, alternativo ou provisoriamente pelos recorridos, que sempre - e somente - pugnaram pelo encerramento da atividade da recorrente, violando-se o disposto nos artigos 70° e 335° do Código Civil.

LXXII. Que fazer - pergunta-se, à semelhança de Sá de Miranda - perante isto? Pois bem, dispõe excecionalmente o n° 3, do artigo 682°, do Código de Processo Civil, que "o processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito.”

LXXIII. O uso desta última faculdade é, conforme decorre da lei, de último reduto, e dela só pode lançar-se mão se se concluir pela existência de contradições essenciais, evidência de desconsideração do que oportunamente veio ser alegado pelas partes, ou matéria de conhecimento oficioso, tudo em pontos de facto, sem cuja eliminação, consideração ou esclarecimento fique comprometida a decisão final.

LXXIV. À semelhança do acórdão da Relação … citado, perante uma decisão de encerramento, as instâncias do caso em apreço pretenderam fazer valer o douto entendimento de que, nos litígios em que se pondera a colisão de direitos e se ajuíza no sentido da prevalência dos direitos de personalidade sobre outros considerados inferiores nomeadamente o direito de propriedade ou o direito ao exercício de uma atividade industrial, "a decisão judicial não deve ser, em princípio, tão drástica e radical (...), mandando encerrar, pura e simplesmente, as instalações comerciais ou industriais."

LXXV. Devendo, o direito inferior deve "ser respeitado até onde for possível apenas devendo ser limitado na exacta proporção em que isso é exigível pela tutela razoável do conjunto principal de interesses[14].

LXXVI. Como deve ser respeitada tal prerrogativa, perguntar-se-á ainda?

LXXVII. Justamente "ponderando-se, objectivamente, as várias soluções plausíveis da questão de direito, conforme disposto no artigo 596.° do Código de Processo Civil -razão pela qual, no exemplo citado, determinou-se por demais conveniente "ampliar a matéria de facto ".

LXXVIII. Impõe -se, assim, o uso dos poderes conferidos pela disposição constante do n.° 3 do artigo 682° do Código de Processo Civil, com vista ao apuramento, em audiência de julgamento, da toda a matéria de facto articulada que interessa à boa decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, concretamente aquando da contestação da ré, naturalmente que seja controvertida, anulando-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo em matéria de facto, sem prejuízo do já decidido e que, como vimos, não está viciado, bem como os termos subsequentes (sentença inclusive), a fim de proceder a novo julgamento, na Ia instância, com a ampliação da matéria de facto nos termos que se deixaram referidos, seguindo-se os pertinentes trâmites da lei processual.

LXXIX. Neste senda, recorrendo uma vez mais a Abrantes Geraldes, eis que se verifica "a necessidade de ser ampliada a matéria de facto, por forma a permitir a correia aplicação do direito" urgindo, pois, determinar a remessa dos autos à Relação, para que nesta (ou, por determinação desta, na l.a instância) "se apreciem os factos que, tendo sido oportunamente alegados, não foram objecto de decisão positiva ou negativa"[15]

LXXX. Reclamando a recorrente, grosso modo, em prol da boa decisão da causa e sob o desígnio do mais basilar imperativo de justiça, a ampliação e revalidação da matéria de facto no respeitante à questão oportunamente suscitada, designadamente a que respeita à averiguação da efetiva possibilidade de laboração nos termos determinados se pode verificar sem colocar em risco a sobrevivência económica da recorrente e, bem assim, ponderar-se que outras medidas poderão colocar-se à disposição do poder judicial e afigurar-se aptas a alcançar os fins visados pela norma concretamente aplicada, de modo a que a aplicação da norma que arregimenta o instituto da colisão de direitos, de forma à concordância prática convocada afigurar-se devidamente legitimada pela correta aplicação do princípio constitucional da proporcionalidade.

LXXXI. Sem prejuízo do acerto da fundamentação de Direito veiculada, urge apurar e integrar na matéria de facto o que, desde o início, veio ser suscitado pela recorrente, mas que se viu, por um lado, indevidamente julgada como conclusiva pelas instâncias recorridas e, por outro, interpretada e admitida a contrario - razão pela qual importa, redobradamente, apurar-se da justeza de semelhante decisão, uma vez que se veio fazer deste entendimento, sem qualquer fundamento, o verdadeiro cerne da decisão alcançada.

LXXXII. Em suma, e para concluir, não se poderá denegar a necessidade de se ampliar devidamente a matéria de facto dos presentes autos, sob pena de, não o fazendo, acarretar implicações gravosas, com repercussões de índole iminentemente social, que muito extravasam dos interesses da ora recorrente.

LXXXIII. Assim, pese embora o douto Acórdão do Tribunal da Relação de … ter negado provimento à sua Apelação, assim confirmando a sentença proferida em Ia instância, entende a ora recorrente que este tribunal superior, não obstante o elevado respeito que tal decisão lhes merece, pugnou por uma desacertada interpretação do artigo 335.° do Código Civil, face à Constituição da República, em específico por incorreta aplicação da mesma, mediante a infundamentada aplicação do princípio da proporcionalidade, e que, incorrendo error injudicando, veio culminar numa decisão contrária aos mais elementares imperativos de Justiça,

LXXXIV. Ao decidir de forma contrária ao supra alegado, o Tribunal recorrido fez errada interpretação e aplicação dos artigos 18.° n.°2, 266.° n.°2 (princípio da proporcionalidade, e bem assim, da adequação e da proibição do excesso), todos da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 70° e 335° do Código Civil e, bem assim, dos artigos 5o, n.°2, 414°, 607°, n.° 4, 615° do Código de Processo Civil».


Termos em que requer, ao abrigo do disposto no artigo 682°, n.° 3 do Código de Processo Civil, a remessa dos autos à Relação de Guimarães para que aí, se possível com intervenção dos mesmos juízes desembargadores, (ou por determinação desta, na primeira instância) se aprecie a questão submetida pela recorrente, designadamente os factos que, tendo sido oportunamente alegados, não foram objeto de resposta.


8. Os autores responderam, terminando as suas contra alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

« I. A recorrente interpõe recurso do douto Acórdão da Relação de … que, negando provimento à Apelação, veio confirmar a sentença recorrida.

II. Alega a recorrente como razão do seu recurso, em síntese, o facto de a Relação de … ter desatendido matéria de facto relevante que urgia apreciar.

III. Estando em causa matéria de facto de livre apreciação, que não seja alterada, não se coloca qualquer problema de revista excecional pela óbvia razão de que não se está perante uma questão de direito (não sendo caso, como não é, de prova vinculada).

IV. Assim sendo o objeto deste recurso é o não uso de poderes da Relação que só a ela competem, e dela são privativos quanto à última palavra sobre a apreciação da prova não vinculada, não haverá assim lugar ao recurso de revista nos termos gerais, pelo que a revista excecional estará igualmente arredada (art.º 674.º, n.º 3 do CPC)

Caso assim não se entenda, sem prescindir,

V. O nosso sistema jurídico consagra a regra da irrecorribilidade em situações de dupla conforme (art.º 671, n.º 3 do Código do Processo Civil).

VI. Não nos parece, salvo o devido respeito, que se encontrem verificados os pressupostos legais que a recorrente invoca para a admissibilidade do seu recurso de revista excecional: al. a) e b) do n.º1 do art.º 672.º CPC.

VII. O n.º 2 do artigo 672.º impõe ao recorrente que indique, na sua alegação, sob pena de rejeição do recurso, as razões porque entende verificado, no caso concreto, o fundamento que invoca para a admissão da revista excepcional

VIII. Em relação aos dois primeiros fundamentos (al. a) e b) do n.º1 do art.º 672.º do CPC), o legislador utiliza cláusulas gerais e recorre a conceitos indeterminados.

IX A propósito da al. a), do n.º 1 do art.º 672 do CPC retira-se do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/2/2010 (Proc. 3401/08.2TBCSC.L1.S1 disponível em www.dgsi.pt) o seguinte:

“Pressupõe o fundamento estabelecido na al. a) que estejamos em face de uma questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica reclame aturado estudo e reflexão, ou porque se trata de questão que suscita divergências a nível doutrinal, sendo conveniente a intervenção do Supremo para orientar os tribunais inferiores, ou porque se trata de questão nova, que à partida se revela suscetível de provocar divergências, por força da sua novidade e originalidade, que obrigam a operações exegéticas de elevado grau de dificuldade, suscetíveis de conduzir a decisões contraditórias, justificando igualmente a sua apreciação pelo STJ para evitar ou minorar as contradições que sobre ela possam surgir.”

Ora,

X. A recorrente não fez prova, como lhe competia, da verificação do fundamento que invocou para a admissibilidade do seu recurso, limitando-se a explanar juízos conclusivos e a desenvolver o que entende por objeto do seu recurso.

XI. Em relação ao segundo fundamento apresentado pela recorrente, a relevância social da questão apresentada, o legislador, também aqui, utiliza cláusulas gerais e conceitos indeterminados.

XII. A propósito da al. b), do n.º1 do art.º 672 do CPC retira-se do referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/2/2010 (Proc. 3401/08.2TBCSC.L1.S1 disponível em www.dgsi.pt) o seguinte:

“Na densificação do conceito indeterminado “interesses de particular relevância social” – cláusula bastante vaga, que permite grande flexibilidade e elevado grau de discricionariedade – deverá apelar-se, inter alia, para a repercussão (mesmo alarme, em casos limite), larga controvérsia (dos interesses em causa), por conexão com valores sócio-culturais, inquietantes implicações políticas que minam a tranquilidade ou, enfim, situações que põem em causa a eficácia do direito e põem em dúvida a sua credibilidade, quer na formulação legal, quer na aplicação casuística, estando, pois, aqui abrangidos casos em que há um invulgar impacto na situação da vida que a norma ou normas jurídicas em apreço visam regular.”

XIII. Ora, também quanto a este fundamento a recorrente não fez, como lhe competia legalmente (672.º, n.º2 do CPC), prova da verificação do mesmo limitando-se a explanar juízos conclusivos e considerandos genéricos.

XIV. Em momento algum nos deparamos com razões que nos possam levar a concluir que se possa estar perante um cenário em que se ponha em causa a tranquilidade, a segurança, ou a paz social em termos de haver a possibilidade de descredibilizar as instituições ou a aplicação do direito.

XV. Pelo que não se verificando qualquer das exceções invocadas pela recorrente, e havendo dupla conformidade das decisões, o recurso de revista excecional está vedado.

Se assim não se entender, sem prescindir, haverá ainda que atender ao que segue:

XVI. A recorrente desenvolve toda a sua argumentação no pressuposto de que a prova que apresentou em julgamento para sustentar a sua alegação de que não teria viabilidade económica a não ser em laboração contínua foi indevidamente considerada como não provada.

XVII. Sucede que as alegações da recorrente e a prova por si apresentada (a si cabia o ónus da prova) foi devidamente considerada como não provada, quer pelo tribunal da primeira instância, quer, em sede de recurso, pela Relação.

XVIII. Ora, é partindo do pressuposto de que tal decisão quanto à matéria de facto é incorreta que a recorrente desenvolve toda a sua argumentação em torno da aplicação do art.º 335.º do CC e do art.º18.º da CRP (violação do princípio da proporcionalidade).

Porém,

XIX. Não tendo a matéria de facto sido mal apreciada, nem sendo este o momento processual para a sua reapreciação, todas as considerações ulteriores quanto à matéria de direito carecem de fundamento pois resultam de um encadeamento de raciocínios ilegítimos uma vez que não se encontra verificado o pressuposto inicial a partir do qual os mesmos se poderiam sustentar: a errada apreciação da matéria de facto.

XX. Nem se poderá dizer que a Relação entrou em contradição ao considerar por um lado, que não se dava como provado que a não laboração contínua punha em risco a sobrevivência da empresa, e, por outro, numa interpretação “a contrario”, a recorrente poderia subsistir sem recurso à laboração continua.

XXI. O ónus da prova cabia à recorrente, o tribunal extraiu da ausência de prova as consequências lógicas que se impõem.

XXII. A recorrente, salvo o devido respeito, raciocina em termos de um falso dilema, da falácia da solução perfeita.

XXIII. De um lado temos a solução possível, a da sentença, com o sacrifício reciproco que ela impõe às partes.

XXIV. Do outro, uma solução perfeita só possível num mundo imaginário em que a recorrente, muito convenientemente, atua como sempre atuou e, como por magia, não viola os direitos dos autores, mas esse mundo perfeito não existe.

XXV. Medidas foram tomadas para eliminar os ruídos e vibrações provocados pela laboração contínua da recorrente, como se retira dos autos.

XXVI. Sucede que elas não eliminam a agressão a que os autores são sujeitos nos seus direitos.

XXVII. E não se diga, como a recorrente afirma, que os autores nunca tiveram outra intenção senão o de ver a recorrente encerrar: não é o que resulta da leitura dos pedidos formulados na petição inicial.

XXVIII. Na verdade, os sucessivos recursos apresentados pelos recorrentes mais não são do que expedientes dilatórios que visam continuar a retardar o prosseguimento do processo e a realização da justiça.

XIX. Por tudo o que ficou dito não restará outra solução do que, salvo melhor entendimento, negar provimento ao recurso apresentado.

Nestes termos e nos mais de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, devem as presentes conclusões ser recebidas e julgadas procedentes, mantendo-se, consequentemente, o acórdão proferido pelo insigne Tribunal da Relação de Guimarães, assim se fazendo a tão desejada JUSTIÇA».


9. Por acórdão da Formação a que alude o nº 3 do art. 672º, do CPC, o recurso foi admitido.


10. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objecto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[16].


Assim, a esta luz, as únicas questões a decidir consistem em saber se:


1ª- existe fundamento para  condenação da ré a cessar a sua atividade no período noturno que se situa entre as 22,00 horas e as 06,00 horas bem como no dia de descanso semanal, o domingo;

2ª- existe fundamento para, ao abrigo do disposto no artigo 682°, n.° 3 do Código de Processo Civil, ordenar  a remessa dos autos ao Tribunal da Relação com vista à ampliação da decisão da matéria de facto.

3ª- a decisão de condenação da ré a cessar a sua atividade no período noturno, que se situa entre as 22,00 horas e as 06,00 horas, e bem assim no dia de descanso semanal, o domingo, fazendo prevalecer os direitos de personalidade sobre o direito de livre iniciativa económica, constitui violação dos princípios da proporcionalidade, da proteção da confiança e da proibição do excesso, consagrados nos arts 18º, nº 2 e 266º, nº 2 da CRP, dos arts. 70º e 335º, ambos do C. Civil  e dos arts. 5º, nº2, 414º, 607º, nº 4 e 615º, todos do C.P.Civil



***



III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


As instâncias deram como provados os seguintes factos:


“1 - Os Autores são donos, legítimos proprietários e possuidores, por o terem recebido por doação dos seus antecessores do prédio urbano, composto por casa de habitação, de R/C com 5 divisões e 1 anexo, com a s.c. de 130m2 e quintal de 1570m2, sito no lugar de …, da freguesia de …, deste concelho, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o nº 45….2, a fls. 105v do livro B-125, inscrito na matriz urbana sob o artigo 1105º.

2 - Os Autores construíram no referido prédio a sua casa de habitação permanente, constituindo assim o seu lar e casa de morada de família.

3 - É nessa casa que, no seu dia-a-dia e desde pelo menos 1980, os Autores e os membros do seu agregado familiar (filhos) vivem, confecionam e tomam as suas refeições em família, convivem, descansam, dormem, recebem amigos e familiares.

4 - O quem vem ocorrendo desde há mais de 15, 20, 25 e mais anos.

5 - Os Autores não têm outra casa onde morar.

6 - A Ré é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à indústria têxtil, nomeadamente à atividade de tecelagem de fio.

7 - Para o efeito explora a sua atividade no prédio contíguo ao dos Autores, mais concretamente na Rua …, nº …, …, Vila Nova de Famalicão, confrontando ambos os prédios entre si.

8 - Os Autores interpuseram, em 12/12/2008, a providência cautelar, com o nº 4150/08.7TJVNF e que correu termos, pelo 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ….

9 - Foi realizado um estudo de ruído, no dia 27 de Novembro e 17 de Dezembro de 2008, nas instalações da Ré, pela firma, EE, Lda, no qual, após realização de medições no período diurno, entardecer e noturno, concluiu-se que a Ré cumpre os limites impostos pelo Regulamento Geral de Ruído.

10 - O Instituto de Investigação e Desenvolvimento Tecnológico em Ciências da Construção, da Universidade de …, a pedido da Ré, efetuou estudo em 07 de Dezembro de 2009, que também concluiu que a laboração da Ré não traz qualquer incomodidade.

11 - O relatório elaborado pela FF Acústica, em Dezembro de 2010, conclui que são cumpridas as determinações da norma técnica ISO 10137 respeitante àquela temática, mais se dizendo nas conclusões, quanto ao ponto 4. que “…a situação medida se encontra abaixo do  limite aí especificado tendo-se por isso atingido já o enquadramento objetivado no anterior estudo.”.

12 - Pela análise dos resultados da avaliação acústica realizada nos autos de procedimento cautelar apensos (cfr. ponto 9 do relatório de ensaio junto de fls. 320 a 328), conclui-se que, nas condições apresentadas no ponto 4, de tal relatório, verifica-se a conformidade do ruído produzido pela atividade do estabelecimento industrial da requerida com os limites estabelecidos no n.º 1, alínea b) do artigo 13º do Decreto-Lei 9/2007 de 17 de Janeiro, durante o período de referência diurno e a não conformidade do ruído produzido pela atividade do estabelecimento industrial da requerida com os limites estabelecidos no n.º 1, alínea b) do artigo 13º do Decreto-Lei 9/2007 de 17 de Janeiro, durante os períodos de referência entardecer e noturno.

13 - Foi realizada perícia nos autos de procedimento cautelar apensos, com vista a indicar expressa e concretamente as obras que a requerida terá de efetuar, assim como respetivo prazo, para recolocar os ruídos dentro daquilo que é legalmente aceitável, o qual se encontra junto àqueles autos a fls. 695 e 696, fls. 742 a 747 e cujo teor dou aqui por reproduzido.

14 - Foi, ainda, realizado, por acordo das partes nos autos de procedimento cautelar apensos, um estudo complementar sobre as vibrações, o qual se encontra junto aos mesmos, por linha, estudo esse que fez a análise das condições de emissão, transmissão e receção do domínio sensorial de vibrações originadas na zona de produção (teares e equipamentos de ventilação) – cfr. fls. 840 a 890, cujo teor dou por reproduzido).

15 - Encontra-se junto aos autos de procedimento cautelar apensos, a fls. 115, cópia de licença de construção obtida no ano de 1958, no processo nº 121/58, a coberto do Alvará de Licença nº 63/58, depois de requerimento apresentado pelo então proprietário da empresa GG, nesse sentido.

16 - Em 18.12.2007, a Ré apresentou pedido de licenciamento de ampliação, conforme documento junto a fls. 118 dos autos apensos.

17 - A Direção Regional da Economia do Norte (doravante designada por DREN), emitiu, em 15.03.2006, o documento junto a fls. 119 dos autos apensos.

18 - Nesse processo, a Ré apresentou o pedido de alteração do seu estabelecimento industrial, na data de 18.12.2007.

19 - Tendo sido fornecida à Ré uma declaração dizendo isso mesmo.

20 - O Município de … informou os Autores que, “…lamentavelmente a realização deste procedimento não poderá ser realizada a curto prazo pois o aparelho de medição necessita de efetuar a calibração anual…”.

21 - Pelo menos há cerca de 50 anos, ainda no tempo dos avós dos atuais sócios gerentes que a Ré numa pequena instalação industrial destinada a confeção de vestuário iniciou o exercício de tecelagem.

22 - Nessa altura, as instalações da Ré situavam-se a mais de 50 metros da casa de habitação dos Autores e a maquinaria utilizada era diferente.

23 - A Ré entre 2001/2 procedeu à construção de edifício destinado a indústria com uma área aproximada de 1.300m2 que uniu ao existente anteriormente, aumentando assim a sua capacidade produtiva.

24 - Em consequência dessas novas obras, as suas instalações passaram a situar-se a cerca de 14 metros da casa de habitação dos Autores.

25 - A Ré realizou essas obras de construção do novo edifício sem alvará de construção camarário.

26 - Foi lavrado pelos serviços camarários auto de notícia da correspondente contraordenação.

27 - Nesse edifício a Ré instalou diversos teares e outras máquinas, passando a explorar a sua atividade de tecelagem de fio motivação.

28 - Explorando a sua atividade e funcionando ininterruptamente 6 dias por semana, 24 horas por dia.

29 - Sem estar munida de autorização de utilização camarária, licença de utilização, pelo que foi lavrado pelos serviços camarários o auto de notícia da correspondente contra-ordenação.

30 - De acordo com o Plano Diretor Municipal (PDM) de …, quer o prédio dos Autores, quer o da Ré (onde foi construído o novo edifício) estão inseridos em aglomerado tipo 3.

31 - A atividade fabril da Ré provoca vibrações e ruídos constantes, que rapidamente se transferem para a casa dos Autores que é a mais próxima e que os incomoda.

32 - Fazendo vibrar de forma constante a habitação dos AA particularmente a cozinha dos AA.

33 - O facto da Ré funcionar ininterruptamente 24 horas por dia, 6 dias por semana, afeta o descanso dos AA com especial relevância para o período noturno e entardecer, impedindo-os de dormir convenientemente.

34 - Os AA. vivem em estado de nervosismo e irritação constantes.

35 - Tal situação, pela sua duração e continuidade, afeta a saúde física e psicológica dos Autores.

36 - Os Autores, por cartas registadas com aviso de receção datadas de 15/04/2008, 05/05/2008, denunciaram os problemas supra mencionados ao Presidente da Câmara Municipal de …, à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDRN), à Direção Regional de Economia do Norte, à Inspeção Geral da Administração do Território e ao Ministério do Ambiente.

37 - Face a essa denúncia, em 05/05/2008, os serviços de fiscalização do Município de …, realizaram uma deslocação ao local, tendo nomeadamente constatado o seguinte: “(…)

6 - Do referido da alínea d) do nº 2 (nota: ruídos e vibrações existentes), esse assunto deverá ser remetido ao Departamento do Ambiente.

7 - Quanto ao facto exposto na alínea e) do nº 2 (nota: alteração da exposição solar), esta questão foi verificada pelos técnicos que analisaram o processo.

8 - Verificamos que a firma CC, Ldª, procedeu à construção de um edifício destinado a indústria com a área aproximada de 1.300m2 sem estar munida do respetivo alvará de construção

9 - Do descrito no ponto anterior da presente informação constitui violação à alínea c) do número 2 do art. 4º do Decreto-Lei 555/99, de 16 de Dezembro,…, pelo que nos termos da alínea a) do número 1 e 2 do artigo 98º, do mesmo dispositivo legal, foi lavrado o respetivo auto de notícia de contraordenação.

10 - A respetiva edificação encontra-se ocupada com uma atividade de tecelagem de fio, sem estar munida da respetiva autorização de utilização.

11 - Do descrito no ponto anterior da presente informação constitui violação à alínea c) do número 4 do art. 4º do Decreto-Lei 555/99, de 16 de Dezembro, pelo que nos termos da alínea a) do número 1 e 2 do artigo 98º, do mesmo dispositivo legal, foi lavrado o respetivo auto de notícia de contra-ordenação.

12 - Deverá ser concedido um prazo de 45 dias para que a firma João & Feliciano, Ldª, proceda a uma eventual legalização das obras efetuadas sem licença, bem como proceder à desocupação do espaço. (…)”.


38 - Sobre essa informação técnica e proposta de decisão, em 07/05/2008, foi proferido o seguinte despacho pelo Vereador do Pelouro: “Despacho: Concordo. Proceda-se em conformidade”

39 - No seguimento desse despacho, os Autores foram notificados por carta data em 06/08/2008 para procederem ao pagamento de uma tarifa para efetuar uma medição do ruído no interior da sua habitação e dar andamento ao processo.

40 - Tarifa essa que os Autores pagaram logo em 13/08/2008.

41 - Foram então efetuadas medições de ruído em 12 e 13 de Agosto, 23 e 25 de Setembro de 2008.

42 - Por notificação datada de 23/09/2008, os Autores foram notificados pela Direção Regional de Economia do Norte do seguinte: “No seguimento da reclamação enviada por V. Exª, informa-se de que foi nesta data o industrial intimado a laborar apenas durante o período diurno, devendo no prazo máximo de 30 dias úteis apresentar avaliação de ruído que permita verificar do cumprimento do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei 9/2007 de 17 Janeiro”

43 - Para dar cumprimento a essa intimação da Direção Regional da Economia do Norte, uma firma especializada contratada pela Ré, EE, Ldª, chegou a efetuar medições na casa dos Autores com autorização destes.

44 - Por notificação datada de 14/10/2008, a CM… informou os AA que seria necessário efetuar uma nova medição.

45 - E que “…lamentavelmente a realização deste procedimento não poderá ser realizada a curto prazo pois o aparelho de medição necessita de efetuar a calibração anual…”.

46 - Passado o prazo de 45 dias concedido, a Ré continua a laborar nas novas instalações.

47 - Em 28/10/2008, cerca das 03h da madrugada, os Autores, chamaram a GNR em virtude do ruído provocado pela atividade da Ré, tendo sido elaborado o auto nº 172/08, junto a fls. 128.

48 - A GNR intimou a Ré para parar com o ruído.

49 - O mesmo sucedeu no dia 09/11/2008, pelas 23h40m, tendo sido elaborado o auto nº 178/2008.

50 - Situação que se repetiu na noite (22h) do dia 22/11/2008, tendo também a GNR elaborado o auto nº 179/2008.

51 - A A., mulher, padece de cefaleias crónicas.

52 - Os AA estão reformados, a sua saúde tem vindo a deteriorar-se há mais de três anos com os factos dos autos que causam stress e desgaste psicológico acentuado aos AA.

53 - Os AA. foram medicados com Valium 5, antes de se deitarem, para poderem descansar.

54 - A A., mulher, sofre de depressão.

55 - Os AA sentem tristeza, angústia e revolta com os factos dos autos.

56 - Os factos dos autos provocam transtornos de memória e cansaço aos AA.

57 - A unidade industrial da Ré teve a primeira reclamação dos AA em 15 de Abril de 2008.

58 - A Ré começou a laborar na parte ampliada no ano de 2002 e desde então fê-lo 24h por dia, ininterruptamente, sem qualquer alteração.



***



3.2. Fundamentação de direito


3.2.1. Da colisão de direitos e sua resolução 


Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se, em primeira linha, com a questão da colisão dos direitos fundamentais de personalidade - direito à integridade física e moral, à proteção à saúde e a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado, consagrados nos arts. 25º, 64º, nº 1 e 66º, nº 1, todos da CRP - com os direitos à livre iniciativa económica da ré e à propriedade privada, também garantidos nos arts 61º e 62º da CRP. 


Ou seja, mais concretamente com a tutela do direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida na sua própria casa, afetado, de forma duradoura e relevante, pela atividade de tecelagem de fio exercida, de forma ininterrupta durante 24 horas e seis dias por semana, pela ré no seu edifício industrial sito a cerca de 14 metros da casa de habitação dos autores.

Consabido que os direitos fundamentais, enquanto princípios que são, não têm carácter absoluto, sendo a sua relatividade uma das suas principais características, é inquestionável que, em caso de colisão entre eles, impõe-se sopesar cada um dos direitos por forma a decidir qual deles deve prevalecer e assegurar a sua harmonização, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada um.

Assim, colocados os direitos em conflito nos pratos da balança, a chave para uma tomada de decisão por parte do juiz sobre qual dos direitos deve sofrer maior compressão está no princípio da proporcionalidade, consagrado na parte final do nº 2 do art. 18º da CRP, que, por via dos seus três subprincípios,  fornece uma estrutura formal tripartida à ponderação dos bens, interesses e valores, dos   meios e  dos  fins que servirão de fundamento à decisão, por forma a estabelecer uma relação equilibrada  entre os direitos em confronto.

 São eles, no dizer do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 632/2008, de 23.12.2008[17] :

«Princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);

Princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato);

Princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito ou critério da justa medida (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).»

Decorre, assim, deste princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso que, na avaliação das circunstâncias específicas do caso a decidir e, por isso, aquando da aplicação do direito ao caso concreto, o juiz não pode deixar de fazer um juízo de proporcionalidade, no sentido de conseguir estabelecer uma relação “calibrada”, de justa medida, entre os fins prosseguidos pelas normas, os bens, interesses e valores em conflito, as medidas possíveis e os seus efeitos, o que exige uma ponderação de todos estes fatores, a harmonização dos direitos em confronto, por forma a evitar o sacrifício total de um em relação ao outro, e, se necessário, a realização, de uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada um deles.

No caso dos autos, ambas as instâncias, no confronto da colisão de direitos em causa - direito dos autores ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida na sua própria casa e o direito de propriedade e de livre iniciativa económica da ré - , consideraram que o primeiro deveria prevalecer sobre o segundo.

E a verdade é que não vislumbramos qualquer razão para dissentirmos deste entendimento.


Desde logo, porque a nossa Constituição, dando voz aos princípios proclamados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10/12/48[18] e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 04.11.1950[19], estabelece, no seu art. 1º, que a República Portuguesa, é «baseada na dignidade da pessoa humana», afirmando, no seu art. 25º, nº1 da CRP que «a integridade moral e física das pessoas é inviolável»[20].  

Por sua vez, o nosso Código Civil, contempla, no seu art. 70º, a tutela geral da personalidade dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

E se assim é, ou seja, se a nossa ordem jurídica assenta na “dignidade humana”, tal como se afirma no Acórdão do STJ, de 29.11.2016 (processo nº 7613/09.3TBCSC.L1.S1)[21], torna-se inquestionável que, em caso de colisão entre direitos fundamentais, a busca do instrumento  que melhor promova o valor supremo da dignidade da pessoa humana não pode deixar de  constituir um instituto norteador da solução do caso concreto».

Daí que, nas palavras do Acórdão do STJ, de 29.06.2017 (processo nº 117/13.1TBMLG.G1.S1)[22], «em regra - e sem prejuízo de uma concreta e casuística ponderação judicial, a realizar em função do princípio da proporcionalidade acerca da intensidade e relevância  da invocada lesão  da personalidade  – se imponha a conclusão de que, em caso de conflito, efectivo e relevante, entre o direito de personalidade e o direito (…) à exploração económica de indústrias se imponha a preservação dos direitos básicos de personalidade, por serem de hierarquia superior à dos segundos, nos termos do art. 335º do CC.

E porque dúvidas também não restam que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida se configuram como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do referido direito fundamental de personalidade [23], facilmente se compreende que, desde há muito, se tenha firmado na jurisprudência deste Supremo Tribunal o entendimento de que a relevância da ofensa do direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade nem sequer é afetada pela circunstância de se mostrar respeitado o que se encontra regulamentado relativamente ao ruído[24] e/ou  de a atividade[25] que o provoca se encontrar, ou não, devidamente licenciada, dispensando a ilicitude, nesta perspetiva, a aferição do nível do ruído pelos padrões legalmente estabelecidos.

Ou seja, em termos abstratos, a hierarquização do direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida, decorre do facto dos mesmos serem essenciais para a saúde e bem estar das pessoas e da violação destes direitos lesar baluartes da integridade pessoal.

Mas, ainda que a avaliação dos direitos em abstrato, feita através da comparação entre os bens jurídicos tutelados pelas situações em apreço, possa constituir um indício da possível superioridade de um dos direitos ou da igualdade entre ambos, a verdade é que, ela não se apresenta como um critério definitivo, impondo-se verificar no caso concreto se, em rigor e segundo as circunstâncias do caso, um dos direitos se apresenta

superior ao outro, pois, como refere Pessoa Jorge[26], não pode afirmar-se «que o interesse pessoal seja, em todas as circunstâncias, superior ao patrimonial».

Dito de outro modo, a avaliação feita abstratamente de cada um dos direitos em confronto, não dispensa uma concreta e casuística ponderação judicial, a realizar em função do princípio da proporcionalidade acerca da intensidade e relevância da invocada lesão da personalidade.  

E tal como já se deixou dito, esta ponderação far-se-á através do teste da proporcionalidade, com recurso aos falados subprincípios ou egras:

i) da adequação do meio;

ii) da indispensabilidade do meio escolhido em relação a esse fim, devendo esse meio ser o que menos prejudica os cidadãos envolvidos ou a coletividade;

iii) e da sua racionalidade, medida em função do balanço entre as respetivas vantagens e desvantagens, o que tudo exige uma ponderação, graduação e correspondência dos efeitos e das medidas possíveis.

No caso dos autos, está demonstrado que a atividade fabril da ré provoca vibrações e ruídos constantes, que rapidamente se transferem para a casa de habitação dos autores, fazendo-a vibrar de forma constante, particularmente a cozinha, e que o facto da ré funcionar ininterruptamente 24 horas por dia, 6 dias  por semana, afeta o descanso dos autores com especial relevância  para o período noturno e entardecer, impedindo-os de dormir convenientemente, sendo que esta situação, pela sua duração e continuidade, afeta a saúde física e psicológica dos autores, causando-lhes stress e desgaste psicológico acentuado e provocando-lhes  transtornos de memória e cansaço.    

Ora, perante este quadro factual, julgamos não poder duvidar-se que a atividade de tecelagem de fio, desenvolvida pela ré nos períodos diurnos e noturnos e em instalações fabris que distam da casa dos autores apenas 14 metros, vem, de forma duradoura, acarretando uma lesão séria e continuada do direito básico de personalidade dos autores, ocasionando-lhes dano substancial e efetivo não apenas do direito ao repouso e sossego e ao gozo e fruição de um mínimo de tranquilidade no interior do seu domicílio,

mas também envolve afetação do direito à saúde e integridade física e psicológica, que, no caso é agravada pela especial situação de vulnerabilidade dos autores, quer em função  da idade (são pessoas reformadas), quer  do estado de saúde dos autores ( foram medicados com Valium 5, antes de se deitarem, para poderem descansar), muito especialmente da autora mulher  que padece de cefaleias crónicas e sofre de depressão.

E porque assim é, não podemos deixar de ter por prevalecente o direito dos autores ao repouso, ao sono e à tranquilidade, enquanto emanação dos direitos fundamentais de personalidade, nomeadamente do direito à integridade moral e física, à proteção da saúde e a um ambiente de vida sadio dos autores, sobre os interesses empresariais da ré, em desenvolver, a escassos 14 metros de distância da casa de habitação dos autores e por via de uma ampliação não autorizada das suas instalações, uma atividade de tecelagem de fios, ininterruptamente, durante 24 horas e 6 dias da semana.

Acresce ainda que, numa perspetiva substancial e sob pena de preclusão da efetividade da tutela dos direitos de personalidade dos lesados, não podemos também deixar de afirmar a essencialidade da proibição de laboração da ré no período que decorre entre as 22 horas e as 6 horas e ao domingo (dia de descanso semanal) como forma adequada de assegurar aos autores, um descanso noturno de oito horas e um maior período de repouso e de tranquilidade no interior do seu domicílio aos domingos, e, desse modo, minimizar a afetação da saúde e integridade física e psicológica dos autores.


É que, como é consabido, a privação do sono e do descanso provoca alterações fisiológicas como cansaço, fadiga, falhas de memória, dificuldade de atenção e de concentração, hipersensibilidade para sons e luz, taquicardia e alteração do humor, tudo com repercussões muito nefastas a nível pessoal, profissional e social.

E se é certo que, tal como admitiu acórdão recorrido, que «a restrição imposta pode ter implicações de ordem económica para a ré», a verdade é que, na vida em sociedade, seria absolutamente intolerável que os interesses económicos da ré na exploração lucrativa da atividade industrial de tecelagem de fio fossem satisfeitos à custa do total esmagamento dos direitos básicos dos autores a gozar de um período de total tranquilidade, sossego e qualidade de vida no seu próprio domicílio ou da neutralização destes mesmos direitos em termos claramente desproporcionados.

Daí que, face às demonstradas condições do local (novo edifício construído pela ré entre 2001 e 2002, sem alvará de construção camarário, e que, unido ao primitivo edifício, fez com que as instalações onde a ré passassem a situar-se a cerca de 14 metros da casa de habitação dos autores) e ao horário de funcionamento das instalações da ré (a ré mantém, no novo edifício, os teares em funcionamento, ininterruptamente, 6 dias por semana e 24 horas por dias, sem, para tanto, estar munida da competente licença de utilização), se considere que o equilíbrio proporcional entre o direito de personalidade dos autores e o exercício da atividade empresarial da ré implica a sua inviabilidade de funcionamento durante o período de repouso noturno, ou seja, entre as 22 e as 6 horas bem como aos domingos, assim se minimizando os efeitos nefastos que as vibrações e os ruídos constantes dos teares em laboração provocam nas pessoas dos autores.

Assim, ponderando tudo o que deixou dito e na esteira do decidido nos Acórdãos do STJ[27], de 13.09.2007 (processo nº 07B2198)[28]; de 19/10/2010 (processo nº 565/1999.L1.S1)[29]; de 17/04/2012 (processo nº 1529/04.7TBABF.E1.S1)[30]; de 29.11.2012 (processo nº 1116/05.2TBEPS.G1.S1)[31]; de 01.03.2016 (proc. nº 1219/11.4TVLSB.L1.S1)[32]; de 29.11.2016 (processo nº 7613/09.3TBCSC.L1.S1)[33]; 29.06.2017 (processo nº 117/13.1TBMLG.G1.S1)[34]; de 18.09.2018 (processo nº 4964/14.9T8SNT.L1.S3)[35], tem-se como meio adequado e proporcional para a remoção da lesão do direito ao sono, ao repouso e à tranquilidade dos autores a limitação do período de laboração imposta à ré pelas instâncias, pelo que nenhuma censura merece, nesta parte, o acórdão recorrido.


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3.2.2. Da necessidade de ampliação da decisão de facto. 



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Antes de entrarmos na apreciação desta questão, importa esclarecer que, tendo a ação sido proposta em 2011 e tendo a decisões impugnada sido proferida em 25.04.2017 (na 1ª instância) e em 08.02.2018 (no Tribunal da Relação), é aplicável à presente revista o regime do novo Código de Processo Civil, nos termos do art. 5º, nº1 da Lei nº 41/2013, de 26 de junho

De realçar ainda que, em sede de revista, compete ao Supremo Tribunal de Justiça, de harmonia com o disposto no art. 682º, nº 3 do CPC, sindicar a decisão de facto das instâncias nos casos de necessidade  de ampliação dessa decisão de facto[36], pois, como escreve Abrantes Geraldes[37], em tal situação, defrontámo-nos  com um verdadeiro erro de direito.



*

A este respeito, sustenta a ré que, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, a matéria perguntada nos quesitos 103 e 104 da base instrutória não tem “cariz conclusivo”, pelo que ao não responder a esta factualidade com base neste argumento, o Tribunal da Relação inviabilizou a possibilidade de a ação ser decidida na perspetiva em que fundamentalmente se estriba a defesa da ré, ou seja, do facto de a laboração em regime de vinte e quatro horas se revelar condição nuclear, obrigatória e imprescindível para a subsistência da ré.

E porque, segundo ela, estamos perante factualidade essencial para a decisão da causa, requer que seja ordenado, ao abrigo do disposto no art. 682º, nº3 do CPC, a remessa dos autos à Relação de Guimarães  para aí ser reapreciada a decisão da matéria de facto quanto a tal matéria.



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Vejamos.


Na base instrutória perguntava-se no:

 - artigo 103º : «A laboração da Ré naquele local e em regime de 24 h é condição nuclear, obrigatória e imprescindível para a própria subsistência da empresa? »

- artigo 104º : «Porque se assim não for, a Ré terá obrigatoriamente que fechar as portas no dia seguinte ? »

- artigo 106º : «Além disso, a laboração contínua, num regime de 24 horas, é o pressuposto de qual dependem as indústrias de tecelagem em geral e a Ré em particular ? »  


A esta mesma matéria, o Tribunal de 1ª Instância, respondeu da seguinte forma: «prejudicados por conclusivos»


Por sua vez, o Tribunal da Relação, decidindo a impugnação destas respostas, afirmou:

«Nelas o que está fundamentalmente em causa é a questão de saber se a laboração contínua da Ré é condição imprescindível para a sua viabilidade económica (…) .

Pois bem, quanto à primeira temática, temos para nós, tal como se refere na sentença recorrida, que as afirmações questionadas pela Ré, a esse propósito, têm um cariz conclusivo.


E, assim, tem esse cariz a afirmação de que “[a] laboração da Ré naquele local e em regime de 24h é condição nuclear, obrigatória e imprescindível para a própria subsistência da empresa porque se assim não for, a Ré terá obrigatoriamente que fechar as portas no dia seguinte” (quesitos 103.º e 104.º). Aliás, o mesmo é dito, embora por outras palavras, quando se afirma que “a laboração contínua, num regime de 24 horas, é o pressuposto de qual dependem as indústrias de tecelagem em geral e a Ré em particular” – (quesito 106.º).

Trata-se, evidentemente, de uma opinião, respeitável certamente, mas não é um facto. Até porque a viabilidade financeira de uma empresa não é assegurada apenas pelo tempo em que a mesma se mantem em laboração. Depende de muitos outros fatores, como seja a sua capacidade para se modernizar, o modelo de negócio que adota, o segmento de mercado em que escolhe situar-se e outros custos externos e internos, em que se incluem os de contexto.

(…).

Por conseguinte, também não se podem julgar demonstradas as citadas afirmações. (…) ».


E com base nesta fundamentação, julgou  improcedente, nesta parte,  a impugnação da matéria de facto.



*


Que dizer?

Desde logo que nem sempre é fácil distinguir entre o que é matéria de facto e matéria de direito, mas é consensual, na doutrina e na jurisprudência, que, para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real, é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação de uma norma ou princípio de direito, isto é, a que resulta da valoração da lei.

No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respetivo conhecimento se atinja diretamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos)[38] .

Nada obsta, por conseguinte, que  se inclua, no  âmbito da matéria de facto, como realidades suscetíveis de averiguação e demonstração, factos conclusivos quando  constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio, caso em que devem considerar-se não escritos por integrarem matéria de direito que constitui o thema decidendum.

E são ainda matéria de facto  as ocorrências virtuais ou factos hipotéticos, que, no dizer de Antunes Varela outros [39], são, em bom rigor, não factos, mas verdadeiros juízos de facto.   

Assim, embora se reconheça que não corresponde à melhor técnica processual a inclusão dos conceitos “nuclear”, “obrigatória”, “imprescindível”, “obrigatoriamente”,

consideramos que a matéria perguntada nos quesitos 103, 104 e 106 da base instrutória consubstancia factos hipotéticos  que se inscrevem ainda na área dos factos na medida em que representam um juízo de facto a formular necessariamente a partir de determinados factos simples e apreensíveis.


Daí não podermos deixar de reconhecer assistir razão à ré quando afirma que matéria perguntada nos referidos quesitos não tem natureza conclusiva.

Julgamos, porém, contrariamente ao defendido pela ré, que a falta de resposta a estes quesitos da base instrutória em nada releva para efeitos de decisão da causa, porquanto, mesmo a dar-se como provados tais factos, estes não alteram a solução jurídica dada ao presente litígio.

É que, mesmo no caso de se provar que a laboração em regime de vinte e quatro horas é imprescindível para a subsistência da ré, daí não se retira que os interesses empresariais da ré na exploração lucrativa da atividade industrial de tecelagem de fio devam prevalecer sobre o direito fundamental dos autores a gozar de um mínimo de tranquilidade, sossego e qualidade de vida no seu próprio domicílio, impondo-se, antes, uma maior compressão por envolver violação de um direito que, pela sua natureza e relevância, tem de prevalecer sobre os interesses económicos da ré.

Daí que, mesmo admitindo-se que aos quesitos em causa seriam dadas respostas afirmativas, certo é que, nas circunstâncias concretas dos autos, o equilíbrio proporcional entre o direito de personalidade dos autores e o exercício da atividade empresarial da ré não pode deixar de implicar a cessação da atividade da ré no período noturno, que se situa entre as 22,00 horas e as 06,00 horas, bem como aos domingos, pois só assim se consegue minimizar os efeitos nefastos que as vibrações e os ruídos constantes dos teares em laboração provocam nas pessoas dos autores.

Assim sendo e porque a intervenção do STJ em sede de matéria de facto só é pertinente se houver motivos para concluir pela necessidade da sua ampliação nos termos do art. 682º, nº 3 do CPC, isto é, quando os factos em causa são verdadeiramente relevantes para a solução jurídica do litígio[40], o que não sucede no caso dos autos uma vez que, conforme se afirmou, a provarem-se tais factos, estes em nada alterariam a concreta solução jurídica do presente litígio.


Daí não haver necessidade de ampliação da matéria de facto, carecendo, por isso, de fundamento legal a requerida remessa dos autos à Relação nos termos e para os efeitos do disposto no nº 3 do citado art. 682º.



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3.2.3. Violação dos princípios da proporcionalidade, da adequação e da proibição do excesso consagrado nos arts. 18º, nº 2 e 266º, nº 2 da CRP.


Sustenta a recorrente que a decisão da sua condenação a cessar a sua atividade no período noturno, que se situa entre as 22,00 horas e as 06,00 horas, e bem assim no dia de descanso semanal, o domingo, fazendo prevalecer os direitos de personalidade dos autores sobre o direito de livre iniciativa económica, constitui violação dos princípios da proporcionalidade, da adequação  e da proibição do excesso, consagrados nos arts 18º, nº 2 e 266º, nº 2 da CRP, dos arts. 70º e 335º, ambos do C. Civil  e dos arts. 5º, nº 2, 414º, 607º, nº 4 e 615º, todos do C.P.Civil, pois equivale a aceitar-se uma penalização manifestante excessiva, desproporcionada e injustificada para a ré.



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Nesta vertente importa ter presente que, tal como nos dá conta o citado Acórdão do Tribunal Constitucional nº 632/2008, de 23-12-2008[41], na esteira de jurisprudência já firmada, «a ideia de proporção ou proibição do excesso - que, em Estado de direito, vincula as acções de todos os poderes públicos - refere-se fundamentalmente à necessidade de uma relação equilibrada entre meios e fins».

Conforme já se deixou dito, no caso dos autos, estamos perante uma situação de colisão de direitos - de um lado o direito de personalidade dos autores e, do outro, o direito de propriedade e da livre iniciativa económica da ré - e de confronto de interesses – de um lado, interesses dos autores na salvaguarda do seu direito ao sono, ao sossego, à tranquilidade e à qualidade de vida no seu próprio domicílio e, do outro, os interesses empresariais da ré na exploração lucrativa da atividade industrial de tecelagem de fio.

Contudo, laborando a ré, de forma ininterrupta, durante 24 horas por dia, 6 dias por semana, e provocando a atividade fabril da ré vibrações e ruídos constantes que afetam o descanso dos autores, com especial relevância para o período noturno e entardecer, impedindo-os de dormir convenientemente, inquestionável se torna que a atividade da ré, por envolver violação de um direito fundamental de personalidade - o direito à saúde e integridade física e psicológica dos autores - não pode deixar de sofrer maior compressão por forma a garantir aos autores um período mínimo de total tranquilidade, sossego e qualidade de vida no seu próprio domicílio.

Com efeito, tal como adverte o Acórdão do STJ, de 08.04.2010 (processo nº 1715/03.7TBEPS.G1.S1)[42], «as normas, constitucionais e legais, que tutelam a preservação do direito básico de personalidade não podem ser vistas como contendo uma mera proclamação retórica ou platónica, sendo essencial que lhes seja conferido o necessário relevo e efetividade na vida em sociedade», constituindo, por isso, os tribunais a última linha de defesa daquele direito fundamental de personalidade.

Daí que, ponderando tudo o que se deixou dito, seja de concluir que a solução preconizada pelas instâncias responde a todos os interesses em presença e apresenta-se, como meio adequado e proporcional para a remoção da lesão do direito ao sono, ao repouso e à tranquilidade dos autores, a limitação do período de laboração imposta à ré

durante o período noturno, que se situa entre as 22,00 horas e as 06,00 horas, e bem assim no dia de descanso semanal, o domingo.

Termos em que improcedem todas as conclusões do recurso interposto pela ré.



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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas a cargo da recorrente.


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Supremo Tribunal de Justiça, de 18 outubro de 2018

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Rosa Maria Ribeiro Coelho

José Manuel Bernardo Domingos

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[1] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-1-12, disponível em www,dgsi.pt.
[2] Direitos previstos no artigo 26°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa.
[3] Constante, como se sabe, do artigo 61° da Constituição da República Portuguesa.
[4] Indicando-se, a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.03.1997, Processo nº 96B557; e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.042004, Processo nº 034440, consultáveis em www. dgsi.pt.
[5] Conforme decorre dos documentos n.°s 14, 15, 16, 17 e 18, juntos à contestação à providência cautelar intentada pelos recorridos, e ainda, das declarações da testemunha, Luís Freitas, à altura, diretor financeiro da Ré.
[6] Sendo de recordar o depoimento prestado pela testemunha Luís Freitas, enquanto diretor financeiro da ré, designadamente, ao veicular que "Uma tecelagem não é sustentável de outra forma. Porque não consegue libertar o suficiente para pagar o equipamento, não é? Nós temos as nossas responsabilidades, nós e qualquer um, a João & Feliciano não é uma empresa à parte, todas as empresas para justificarem o investimento têm. de trabalhar em regime continuo de laboração. Senão não consegue pagar a máquina. Vou dar um caso prático: vem a Inditex fazer uma encomenda, eu preciso de "x" metros em 3 semanas, 4 semanas de prazo de entrega, e você diz assim: eu não consigo essa quantidade, consigo menos um bocado. Já não é assunto, ou fazem a encomenda ou não fazem. Não e negociável."
[7] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Novembro de 2007, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Designadamente no âmbito do processo n.° 819/11.7TBPRD.P1.SI, de 10-09-2015, disponível em http://www.dgsi.pt/isti.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6674acfld87722ef80257fld0053adf97OpenDocu ment&Highlight=:0.682. diferindo apenas no facto de aqui estar em causa justamente o inverso, do exemplo oferecido.
[9] Cfr. Acórdão 159/2007, do Tribunal Constitucional, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça/STJ de 129-04-2012 (p° 3920/07.8TBVIS.C1.S1) disponível em www.dgsi.pt.
[11] Cfr. Radindranath V. A. Capelo de Sousa, in, 'O Direito Geral de Personalidade'; Coimbra Editora, pags 547 e 548.
[12] Neste sentido, Pires de Lima/Antunes Varela, C. C. Anotada, 4a ed., pág. 104, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, págs. 145-146, J. Gomes Canotilho, RLJ, 125°, 538, Acs. do STJ, BMJ, 4067623, 4357816, 4507403, CJ, Ano II, 11/54, Ano III, 1/55, Ano VI, 11/76 e 111/77.
[13] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo n. 0351643, de 05 de Maio de 2003, disponível em
www.dgsi.pt.
[14] Cfr. CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral da Personalidade, p. 549, e, entre outros, os Acs. RP, CJ, 1998, I, p. 203, Apelação n.° 1293/99, 2a secção, de 26/01/2000, Agravo n.° 1318/99, 5a secção, de 10/01/2000 e RC, CJ, 2000, I, P- 22).
[15] ABRANTES GERALDES, ob. citada pág. 430 e ss..
[16] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[17] Acessível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc.
[18] Que dispõe, no seu art. 3º que «todo o indivíduo tem direito à vida...», estabelecendo o seu art. artigo 24.º que «Toda a pessoa tem direito ao repouso (…)» e o seu art. 25º, nº1 que «Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem estar (...) ».
[19] Aprovada pela Lei 65/78, de 13/10 e que dispõe, no seu art. 2º, nº1 que «o direito de qualquer pessoa à vida é protegido por lei ...», e no seu art. 8°, nº1 que « Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio  (…)».
[20]  Que, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira in, “ Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, 4ª ed., 2007, pág. 454, conste no direito a não ser agredido ou ofendido, no corpo ou no espírito, por meios físicos ou morais.
[21] Acessíveis in www dgsi.pt/stj.
[22] Acessível in www dgsi.pt/stj.
[23] Neste sentido, cfr., entre outros, Acórdãos do STJ, de 17.01.2002 (processo nº 4140/01); de 07.04.2011 (processo nº 419/06.3TCFUN.L1.S1); de 30.05.2013 (processo nº 2209/08.0TBVD.L1.S1); de 02.12.2013 (processo nº 100/2000.L1.S1) e de 29.06.2017 (processo nº 117/13.1TBMLG.G1.S1), todos acessíveis in www dgsi.pt/stj.
[24] Ou seja no Regulamento Geral sobre o Ruído, aprovado pelo DL nº 9/2007, de 17.01, que revogou o DL nº 292/2000, de 14.11. Neste sentido, cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ, de 17.01.2002 (processo nº 4140/01); Acórdão de 02/07/2007 (proc. nº 09B0511),de 30.05.2013 (processo nº 2209/08.0TBTVD.L1.S1 ) ; de 02.12.2013 (processo nº 110/2000.L1.S1) ; de 29.11.2016 (processo nº 7613/09.3TBCSC.L1.S1 ) e de 29.06.2017 (processo nº 117/13.1TBML.G.g1.S1), todos acessíveis in www dgsi.pt/stj.
[25] Neste sentido, cfr. Acórdãos do STJ, de 15.05.2008 (processo nº 08B779) e de 06.12.2012 (processo nº 247/1998.C2.S1), ambos acessíveis in www dgsi.pt/stj, nos quais se afirma a irrelevância da licença camarária para afastar a ilicitude da conduta lesiva do direito ao repouso.
[26] In, “ Pressupostos de Responsabilidade Civil”, pág. 201.
[27] Todos acessíveis in www dgsi.pt/stj.
[28] No qual se declara a superioridade do direito ao repouso sobre o direito à laboração de estabelecimento.
[29] Que reconhece a superioridade do direito ao repouso sobre o interesse na realização de obras públicas urgentes.
[30] No qual se afirma a superioridade do direito ao repouso sobre o direito à exploração de estabelecimento de diversão.
[31] No qual se afirma a superioridade do direito ao repouso sobre o direito à exploração de estabelecimento de diversão noturna.
[32] Que reconhece a superioridade do direito ao repouso sobre o direito de propriedade.
[33] Que reconhece a superioridade do direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade sobre a prestação de serviços de higiene e salubridade públicas.
[34] No qual se afirma a superioridade do direito ao repouso sobre o direito à exploração de estabelecimento de diversão noturna.
[35] Que reconhece a superioridade do direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade sobre o exercício da atividade de lavandaria.
[36] Caso em que  “o Supremo  determina a remessa dos autos à Relação para que nesta (ou, por determinação desta, na 1ª instância) se apreciem os factos que, tendo sido oportunamente alegados, não foram objecto de decisão positiva ou negativa”, cfr. Abrantes Geraldes, in, “Recursos  no Novo Código de Processo Civil”, 2018- 5ª Edição, pág.433.
[37] In, “Recursos  no Novo Código de Processo Civil”, 2018- 5ª Edição, pág.432. 
[38] Neste sentido, Manuel A. Domingues Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1963, pp. 180/181, e Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 268; Antunes Varela e outros, in,  “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 407. Na jurisprudência, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 24 de Setembro de 2008 (processo nº SJ20080924037934), acessível  em www.dgsi.pt/stj.
[39] in,  “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 408
[40] Neste sentido, cfr. Acórdãos do STJ, de 21.01.2016 (processo nº 66/12), in, Sumários, janeiro/2016, pág. 39, e de 28.04.2016 (processo nº 1723/06), in Sumários, abril/2016, pág. 67.
[41] Acessível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc.
[42] acessível  em www.dgsi.pt/stj.