Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8440/14.1T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
TRANSCRIÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
CUMPRIMENTO
RECURSO DE APELAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
TEMPESTIVIDADE
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
-António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil (NCPC), 3.ª Edição, p. 125.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 609.º, 635.º, N.º 4, 636.º, N.º 2, 638.º, N.º 7, 640.º, N.ºS 1, ALÍNEAS A) E B) E 2, 671.º, N.º 1 E 676.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 22-10-2015, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 26-11-2015;
- DE 28-01-2016, PROCESSO N.º 1006/12.2TBPRD.P1-A.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-04-2016, PROCESSO N.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - É admissível recurso de revista do acórdão da Relação que, não admitindo o recurso de apelação por intempestividade, pôs termo ao processo (art. 671.º, n.º 1, do CPC).

II - A apelante que sustenta a alteração da matéria de facto com base em depoimento testemunhal gravado beneficia da prorrogação do prazo de dez dias para recorrer, independentemente da regularidade da impugnação da matéria de facto e do respectivo mérito (art. 638.º, n.º 7, do CPC).

III - De acordo com a orientação reiterada do STJ, a verificação do cumprimento do ónus de alegação do art. 640.º do CPC tem de ser realizada com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal.

IV - Tendo a recorrente identificado, no corpo das alegações e nas conclusões, o ponto da matéria de facto que considera incorrectamente julgado, identificando e transcrevendo o depoimento testemunhal que, no seu entender, impõe decisão diversa e retirando-se da leitura das alegações, ainda que de forma menos clara, qual a decisão que deve ser proferida a esse propósito, mostra-se cumprido, à luz da orientação referida em III, o ónus de impugnação previsto no art. 640.º do CPC.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




1. AA e marido BB e CC intentaram acção declarativa, sob a forma de processo comum contra DD, Lda., pedindo que esta seja condenada a reconhecer o direito de propriedade e de usufruto, respectivamente, dos 1º e 2º AA. sobre a fracção A destinada a estacionamento coberto e fechado, situado na cave e parte do rés-do-chão do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, com entrada pelo nº …-A da Praça …, na cidade do Porto; que seja condenada a reconhecer que não detém título que legitime a sua ocupação do espaço que integra a mesma fracção A, situado ao nível do rés-do-chão do mesmo prédio, e a abster-se de praticar quaisquer actos que ofendam o direito de propriedade e de usufruto dos AA. sobre o mesmo espaço; que seja condenada a entregar-lhes, livres de pessoas e de coisas, o espaço integrante da fracção acima identificada e que seja condenada a pagar à 2ª A., a título de indemnização pela privação do uso e fruição daquele espaço em consequência da sua ocupação abusiva e ilegítima, a quantia de € 12.320,00, acrescida de € 800,00 por cada mês de ocupação, desde o dia 1 de Outubro de 2014 até efectiva entrega, bem como nos juros que se vencerem sobre as quantias em dívida à 2ª A. em cada momento, até efectivo e integral pagamento, à taxa de 4% ao ano.

Para o efeito alegaram que a R., por virtude de contrato de trespasse celebrado com a respectiva inquilina, passou a ser arrendatária de duas fracções do prédio do qual são proprietários os 1ºs AA. e usufrutuária a 2ª A., arrendamentos esses que são distintos entre si em termos de contratos de arrendamento, sendo que o da fracção A diz respeito à Cave e o da fracção B diz respeito ao R/C, pelo que, quando a R. denunciou o contrato referente à fracção B, deveria ter entregue todo o espaço do R/C que ocupava; no entanto, mantém-se a ocupar uma área desse R/C de cerca de 207,00 m2 sem qualquer título que o legitime e cujas utilidades goza sem pagar aos AA. qualquer contrapartida.  

A R. apresentou contestação, invocando a excepção de caducidade da presente acção e, impugnou motivadamente a factualidade invocada pelos AA. na petição inicial alegando que apenas denunciou o arrendamento referente à fracção B, mantendo-se arrendatária da fracção A, fracção essa que engloba parte do R/C, precisamente o espaço que os AA. pretendem que a R. entregue, concluindo que não é devida essa entrega nem a quantia mensal reclamada pelos AA. pelo não uso de parte da fracção A porque está abrangido no direito de arrendamento da R.

Foi proferido despacho saneador, julgando improcedente a excepção da caducidade e foram fixados os factos assentes e temas de prova.

Foi proferida sentença, que julgou totalmente procedente a presente acção e condenou a R.:

“a) a reconhecer o direito de propriedade e de usufruto, respectivamente dos 1º e 2º AA sobre o rés-do-chão do prédio identificado no art. 1º da PI, com entrada pelo nº …-A da referida Praça …;

b) a reconhecer que não detém título que legitime a sua ocupação do espaço situado ao nível do rés-do-chão do mesmo prédio e a abster-se de praticar quaisquer actos que ofendam o direito de propriedade e de usufruto das AA sobre o mesmo espaço;

c) a entregar-lhes, livres de pessoas e de coisas, o espaço situado ao nível do R/C do prédio identificado em 1º da PI ;

d) a pagar à 2ª autora, a título de indemnização pela privação do uso e fruição daquele espaço em consequência da sua ocupação abusiva e ilegítima do mesmo, a quantia de € 14.725,53, acrescida de € 545,39 por cada mês de ocupação, desde a data da sentença (Novembro de 2016) até efectiva entrega desse espaço, bem como os juros que se vencerem sobre as quantias em dívida à 2ª A. em cada momento, até efectivo e integral pagamento, à taxa legal em vigor.”

       Inconformada, a R. interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

        Por decisão do relator de 23/05/2017, o recurso não foi admitido por intempestividade.

        Tendo a R. apelante impugnado para a conferência, por acórdão de fls. 361 foi confirmada a decisão de não admissão do recurso com a seguinte fundamentação:

“Assim sendo, deve ser rejeitado o recurso da apelante quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

E tendo as alegações de recurso sido apresentadas no 10º dia posterior ao termo do prazo geral para a sua interposição (30 dias), que teve o seu termo em 14.12.2016, rejeitado este quanto à matéria de facto, rejeitado deverá ser quanto à questão de direito colocada nas alegações recursivas, por extemporâneo, face ao disposto no artº 638ª, nºs 1 e 7 NCPC, sendo certo que o despacho que o admitiu na primeira instância não vincula este tribunal superior- artº 641º, nº 5, NCPC.” (negrito nosso)


3. Vem a R. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pedindo que seja atribuído efeito suspensivo e formulando as seguintes conclusões:

I - A Recorrente nas suas alegações parte II e nas conclusões nos pontos VIII e IX, impugna a matéria de facto dado como provada no ponto 20 dos Factos Provados, concluindo com a razão que considera existir para que o valor da indemnização a fixar fosse relegado para execução de sentença pelo tribunal.

II - Nas conclusões foi identificado e fundamentado o ponto da matéria de facto em relação ao qual há discordância com o decido pelo tribunal a quo (conclusões VIII e IX), tendo nas alegações (parte II) identificado e transcrito o depoimento da testemunha EE, que dá razão e fundamenta o pretendido pela Recorrente, estando preenchidos os requisitos para a reapreciação da matéria de facto.

III - A Relação, ao considerar que as alegações e conclusões não cumprem os requisitos do artº 640º, nºs 1 e 2 do C.P.C., e tendo o prazo do recurso “beneficiado” dos dez dias previstos para a reapreciação da prova gravada (artº 638º, nº 7 do C.P.C.), o recurso interposto nunca poderia ser considerado intempestivo,

IV - Com o alargamento do prazo de recurso em dez dias, o legislador pretendeu proporcionar tempo ao recorrente para analisar, ouvir e transcrever a prova testemunhal gravada.

V - A Recorrente utilizou tal prazo com a audição, transcrição e análise dos depoimentos das testemunhas que considerou relevantes e que põem em crise a decisão da 1ª instância.

VI - A Recorrente não teve qualquer “aproveitamento” de prazo para um fim que não tenha utilizado - o da análise e utilização da prova gravada.

VII - O recurso nunca poderia, em qualquer circunstância, ter sido considerado como intempestivo.

VIII - O prazo para a apresentação do recurso era de quarenta dias (30 + 10), e o recurso foi apresentado dentro desse prazo, não podendo a Relação reduzir o prazo para trinta dias.

IX - Na eventualidade de a Relação entender não apreciar a matéria de facto, tal não pode ser impeditivo da apreciação da restante matéria do recurso, não podendo a decisão que recai sobre a apreciação ou não da prova gravada prejudicar o prazo legal de quarenta dias para prejudicar todo o processo.       

X - Nas alegações - II) - a Recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, referindo que tal valor não podia ser fixado da forma como o foi, mais referindo e argumentando a razão pela qual o valor da indemnização teria de ser apurado em sede de execução de sentença (artº 609º do C.P.C.), transcrevendo o depoimento da testemunha da Recorrente EE, impugnando, como tal, o facto vertido no ponto 20 da sentença.

XI - Nas conclusões indica o facto provado que considera ter sido julgado incorrectamente, propondo a decisão alternativa de o valor da indemnização ser relegado para execução de sentença (VIII e IX).

XII - O Tribunal da Relação deveria de ter como processualmente adquirido que a Recorrente utilizou a prorrogação do prazo de dez dias para ouvir, analisar e transcrever o depoimento das testemunhas. Não fez uma utilização abusiva desse prazo.

XIII - Independentemente da perfeição/imperfeição da impugnação da matéria de facto, demonstrado está que a própria Relação analisou a impugnação apresentada, considerou que a mesma não cumpria os requisitos processuais e, posteriormente, conclui, erradamente, que o recurso é extemporâneo decidindo no sentido da sua rejeição.

XIV - A Recorrente cumpriu com a totalidade dos requisitos, nas alegações e nas conclusões, que constam do artº 640º do C.P.C., a saber:

• A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados (facto do ponto 20 da sentença);

• A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa (parágrafo II das alegações); e

• A decisão alternativa que é pretendida (parágrafo II das alegações e conclusões VIII e IX).

XV - O Tribunal da Relação não devia de ter rejeitado o recurso interposto quanto ao julgamento da matéria de facto.

XVI - O Tribunal da Relação em caso algum, podia rejeitar o recurso por extemporaneidade relativamente à matéria de direito.

XVII - A Relação violou o disposto nos art°s 639°, n° 1, 640°, n°s 1 e 2 e 638°, n° 7 do C.P.C., bem como o princípio de Acesso ao Direito consagrado na Constituição (art° 20° C.R.P.).

Termina pedindo que seja dado provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido e determinando-se a apreciação do recurso de apelação.

       As Recorridas AA e CC contra-alegaram, contestando o pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso e pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.


4. Não obstante os termos em que o âmbito do recurso de revista se encontra definido na letra do nº 1, do art. 671º, do Código de Processo Civil, tem este Supremo Tribunal entendido que – nas palavras do acórdão de 28/01/2016 (proc. nº 1006/12.2TBPRD.P1-A.S1, consultável em www.dgsi.pt) – “os mesmos motivos que levaram o legislador a prevenir a admissibilidade da revista nos casos literalmente previstos na parte final do nº 1 do art. 671º do NCPC são extensivos às situações em que a Relação, no âmbito de recurso de apelação interposto de decisão da 1ª instância, profere acórdão que, não apreciando o mérito do recurso (ou da causa), ponha “termo ao processo” por decorrência de outros eventos, v.g., inutilidade superveniente da lide, declaração de deserção do recurso ou, como ocorre no caso concreto, abstendo-se de apreciar o mérito do recurso por motivos ligados aos seus pressupostos ou requisitos formais, ao abrigo do art. 641º, nº 2, al. a), do NCPC (negrito nosso).

      Tal como no caso deste último acórdão, também nos presentes autos o acórdão da Relação pôs termo ao processo, não admitindo o recurso de apelação por intempestividade.

        Conclui-se, assim, pela admissibilidade do recurso de revista, confirmando-se o despacho de admissão que atribuiu efeito meramente devolutivo, uma vez que, de acordo com o previsto no art. 676º, nº 1, do CPC, o recurso de revista só tem efeito suspensivo em questões sobre o estado das pessoas.


5. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do CPC, o objecto do recurso delimita-se pelas conclusões do mesmo. Assim, no presente recurso estão em causa as seguintes questões:

- Reapreciação do acórdão recorrido na parte em que rejeitou o recurso de apelação respeitante à decisão da matéria de facto com fundamento no incumprimento do ónus de impugnação do art. 640º do CPC;

- Reapreciação do acórdão recorrido na parte em que rejeitou a apreciação da apelação relativamente à matéria de direito com fundamento na inaplicabilidade da extensão do prazo de 10 dias previsto no art. 638º, nº 7, do CPC, tendo em conta o incumprimento daquele ónus de alegação respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto.


6. Começaremos por conhecer da segunda questão, em ordem a apurar se – independentemente de dever ser conhecido o recurso de apelação relativamente à decisão da matéria de facto – deverá o mesmo recurso ser conhecido quanto à reapreciação da decisão de direito.

Tendo esta questão sido objecto de desenvolvida análise no acórdão deste Supremo Tribunal de 28/04/2016 (proc. nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt), aqui se reproduz o teor do mesmo acórdão:


“2.2. A Relação, com fundamento no facto de ter sido incumprido o ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC, na parte a que se reporta a al. b) do nº 1, concluiu que aos recorrentes não aproveitaria a extensão do prazo de 10 dias prevista no art. 638º, nº 7, do CPC, considerando o recurso intempestivo. Isto é, com base numa putativa ausência de um requisito formal a respeito da impugnação da decisão da matéria de facto – que, como já se referiu, foi cumprido – extrapolou para a intempestividade do recurso também no que respeita ao enquadramento jurídico dos factos.     

(…)


2.3. Para os casos em que o recurso de apelação tenha por objecto a decisão da matéria de facto, implicando a reapreciação de meios de prova oralmente produzidos e que tenham sido gravados a lei concede ao recorrente um prazo adicional de 10 dias, nos termos do art. 638º, nº 7, do CPC.

Constitui uma medida de fácil compreensão e que tem como justificação as maiores dificuldades inerentes ao cumprimento do ónus de apresentação de alegações, o que implica necessariamente com o conteúdo de gravações que foram realizadas e a que a parte terá de aceder.

Resulta claro do preceito que a aplicabilidade da extensão temporal não se basta com o facto de terem sido produzidos oralmente meios de prova na audiência de julgamento, sendo imprescindível que a impugnação da decisão da matéria de facto (relativamente a todos ou alguns dos pontos impugnados) implique, de algum modo, a valoração desses meios de prova. Aliás, não é suficiente que os depoimentos gravados tenham interferido potencialmente na formação da convicção, sendo necessário que o recorrente efectivamente se sirva do teor de depoimentos ou declarações prestadas e gravados para sustentar, perante a Relação, a modificação da decisão da matéria de facto.

É isto - e só isto - o que decorre do art. 638º, nº 7, do CPC, sendo inconcebível uma outra interpretação que, sem o menor respeito pelas regras de interpretação, acabe por redundar na negação da apreciação do mérito da apelação procurado pelos recorrentes.

Repare-se que no sistema que vigora desde a Reforma do regime dos recursos de 2007, em que as alegações são apresentadas conjuntamente com o requerimento de interposição de recurso, nem sequer existe a possibilidade de a parte pré-anunciar que pretende impugnar a decisão da matéria de facto. Por isso, após ser proferida e notificada a sentença, há que aguardar pelo decurso do prazo de 30 dias, a que acrescerão 10 dias se acaso existir a possibilidade de a sentença ser impugnada também no que concerne à decisão da matéria de facto sustentada em prova gravada.

Assim aconteceu no caso concreto. Tendo o recurso sido apresentado dentro do prazo acrescido, a sua tempestividade ficou unicamente dependente da inserção nas respectivas alegações de um segmento em que, independentemente do seu mérito, seja efectivamente impugnada uma parte da decisão da matéria de facto com sustentação em prova gravada.


2.5. Ao invés do que foi decidido pela Relação, não pode ser feita qualquer associação entre a admissibilidade formal da impugnação da decisão da matéria de facto e a tempestividade do recurso de apelação. Não se compreende que, nas circunstâncias que foram reportadas, tivessem sido extraídas pela Relação as consequências radicais que se traduziram na rejeição do recurso de apelação também na parte referente à qualificação jurídica dos factos.

(…)

Mas ainda que houvesse alguma objecção relativamente a essa parte do recurso de apelação, tal não prejudicaria a aplicabilidade do acréscimo de 10 dias que lhes foi concedido e de que beneficiaram para apresentação das alegações, nos termos do nº 7 do art. 638º do CPC, nas quais integraram uma pretensão assente, em parte, na prova que tinha sido oralmente prestada.

Por isso, ainda que porventura tivesse sido confirmado o acórdão na parte em que rejeitou a apelação referente à impugnação da decisão da matéria de facto, nem assim haveria motivo para que a Relação se abster de apreciar o recurso de apelação na parte restante, uma vez que iniludivelmente o recorrente sustentou a impugnação da decisão da matéria de facto em depoimento que foi oralmente prestado e gravado.


2.6. Em Recursos no NCPC, 3ª ed., pág. 125, o ora relator concluiu que “o recorrente apenas poderá beneficiar deste prazo alargado se integrar no recurso conclusões que envolvam efectivamente a impugnação da decisão da matéria de facto tendo por base depoimentos gravados”. E que “caso contrário, terá de se sujeitar ao prazo geral do art. 638º, nº 1. Se, apesar de existir prova gravada, o recurso for apresentado além do prazo normal sem ser inserida no seu objecto a impugnação da decisão da matéria de facto com base na reapreciação daquela prova verificar-se-á uma situação de extemporaneidade determinante da sua rejeição”.

Tal foi a linha interpretativa que também foi seguida no Ac. do STJ, de 22-10-15 (www.dgsi.pt), numa situação em que o recorrente começou por dirigir o seu recurso de apelação prioritariamente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, especificando os pontos factuais que considerava incorrectamente julgados, analisando criticamente as provas produzidas sobre o respectivo conteúdo factual e questionando, de modo minimamente fundado e inteligível, os resultados probatórios alcançados na 1ª instância, propondo as respostas que tinha por certas à matéria de tais quesitos.

Segundo o referido aresto, “tanto basta para que, na óptica do prazo para recorrer, se tenha por definitivamente verificada e consolidada a prorrogação de 10 dias, decorrente da citada disposição legal, a qual não depende, nem está condicionada, pelo efectivo conhecimento – e muito menos pela procedência - da impugnação deduzida pelo recorrente em sede de decisão sobre a matéria de facto; tal como não depende de um integral cumprimento dos ónus secundários (por visarem apenas a localização no suporte que contém a gravação dos depoimentos invocados) decorrente do preceituado na al. a) do nº 2 do art. 640º, cuja utilidade e funcionalidade só ganham sentido se a Relação for efectivamente reapreciar as provas”. Refere-se ainda no mesmo aresto que “contendo a alegação apresentada pelo recorrente uma impugnação séria, delimitada e minimamente consistente da decisão proferida acerca da matéria de facto, deve ter-se por processualmente adquirido, em termos definitivos, que se verificou a prorrogação do prazo para recorrer por 10 dias, independentemente do preciso juízo que ulteriormente se faça acerca do cumprimento do ónus de exacta indicação das passagens da gravação – que naturalmente poderá condicionar o conhecimento de tal impugnação, sem, todavia, pôr em causa a tempestividade do recurso de apelação”.

No mesmo sentido decidiu o Ac. do STJ, de 26-11-15 (Secção Social), em cujo sumário se diz que:

“Interposto recurso de apelação, visando, para além do mais, a impugnação da matéria de facto fixada na decisão recorrida, no prazo a que se refere o n.º 3 do art. 80º do CPT, demonstradas na fundamentação das alegações e nas conclusões respectivas as razões subjacentes a essa interposição, o eventual não cumprimento integral das exigências formais das conclusões, previstas no art. 640.º do mesmo código, não retira a tempestividade ao recurso interposto, pelo que o Tribunal sempre terá de conhecer da parte restante do respectivo objecto”.


2.7. A solução apresentada pela Relação apenas faria sentido numa situação em que, sendo impugnada a decisão da matéria de facto numa acção em que tivesse existido gravação da prova, a impugnação não fosse sustentada de modo algum em prova gravada.

Nestes casos, sim, poderia concluir-se que não existia motivo para o recorrente beneficiar do prazo mais alargado que, como se referiu, encontra justificação na necessidade de analisar a gravação dos depoimentos ou de outras declarações que, na perspectiva dos recorrentes, sirvam para modificar o sentido da decisão proferida pela 1ª instância.

Mas não foi essa a actuação dos recorrentes no caso, sendo inequívoco que justificaram a alteração de um segmento da decisão da matéria de facto em depoimento testemunhal que foi gravado.

Por isso, independentemente da apreciação do mérito de tal impugnação, era vedado à Relação extrair a posteriori um efeito que contende com a admissibilidade do próprio recurso.

A tempestividade dos recursos constitui um pressuposto processual atinente à sua admissibilidade, pelo que de modo algum o resultado alcançado aquando da apreciação do seu mérito poderá interferir em tal pressuposto cuja satisfação se deve reportar ao momento da sua interposição.”


      Aplicando esta orientação ao caso dos autos, a verificação de que a apelante sustentou a alteração do ponto 20 da matéria de facto, reproduzindo, a págs. 25 a 29 da apelação (fls. 324 a 326), o teor de depoimento testemunhal gravado, basta para concluir que independentemente da regularidade da impugnação da matéria de facto e respectivo mérito a apelante beneficiava da prorrogação por dez dias do prazo para recorrer.

      Assim, o recurso de apelação é tempestivo, independentemente da resposta dada à questão do cumprimento pelo apelante do ónus de impugnação do art. 640º do CPC, que se apreciará em seguida.


7. Relativamente à reapreciação do acórdão recorrido na parte em que rejeitou o recurso de apelação respeitante à decisão da matéria de facto com fundamento no incumprimento do ónus de impugnação do art. 640º do CPC, recorde-se o teor deste preceito legal:


1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.


     No acórdão recorrido entendeu-se que, mesmo admitindo-se que a transcrição dos excertos dos depoimentos das testemunhas seja suficiente para preencher as exigências do nº 2, do art. 640º do CPC, os requisitos do nº 1 não foram cabalmente respeitados.

      Contra, alega a Recorrente, em sede de conclusões de revista, no essencial, o seguinte:

A Recorrente cumpriu com a totalidade dos requisitos, nas alegações e nas conclusões, que constam do artº 640º do C.P.C., a saber:

• A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados (facto do ponto 20 da sentença);

• A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa (parágrafo II das alegações); e

• A decisão alternativa que é pretendida (parágrafo II das alegações e conclusões VIII e IX).”


     Consideremos a questão, tendo sempre presente que, de acordo com a orientação reiterada deste Supremo Tribunal – expressa na fundamentação do supra citado acórdão de 28/04/2016, no qual a questão foi amplamente analisada – “é necessário que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640º do CPC seja compaginado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo maior relevo aos aspectos de ordem material”.

      Ora, compulsado o recurso de apelação, verifica-se que:

- Tanto na conclusão VIII (fl. 327) como na pág. 29 (fl. 326) do corpo das alegações se identifica o ponto 20 da matéria de facto como estando incorrectamente julgado;

- Nas págs. 25 a 29 (fls. 324 a 326) do corpo das alegações se identifica e transcreve o depoimento testemunhal que, segundo a apelante, impõe que o ponto 20 da matéria de facto seja decidido de forma diversa.


      Encontram-se assim satisfeitas as exigências das alíneas a) e b) do nº 1 do art. 640º do CPC.

Já o cumprimento da exigência da alínea c) deste mesmo nº 1 (indicação da decisão que, no entender da apelante, deve ser proferida sobre a questão de facto impugnada), não sendo tão evidente, pode, com relativa facilidade, ser extraído das conclusões VIII e IX da apelação, completadas pelo texto da pág. 29 (fl. 326) do corpo da apelação.

        Vejamos.

      Antes de mais, aqui se reproduzem os factos 19 e 20, tal como fixados pela sentença:

19. Espaço do rés-do-chão do prédio das AA onde a Ré recolhe 6 veículos automóveis, sendo que um ocupa dois lugares;

20. E por cuja recolha e parqueamento cobra mensalmente aos respectivos proprietários a quantia total de €545,39


      Aqui se transcrevem as conclusões VIII e IX do recurso de apelação:

“VIII. O tribunal julgou incorrectamente o ponto 20 dos Factos Provados.

IX. O valor da indemnização deveria de ser relegado para execução de sentença, de forma a poder ser apurado qual o real valor cobrado pela Apelante ao longo do tempo pelas seis recolhas, ao não o fazer o tribunal violou os limites da condenação previstos no artº 609º do Cód. Civil.”


     Decorre destas conclusões que a apelante pretende que o facto 20 impugnado seja alterado no sentido de se dar como não provado o valor exacto da cobrança que a R. obtém pelo “espaço do rés-do-chão do prédio das AA onde a Ré recolhe 6 veículos automóveis”

Apesar de a apelante não se ter expresso de forma muito clara no texto da pág. 29 (fl. 326) do corpo das alegações, tal texto, lido à luz das conclusões VIII e IX, aponta nesse mesmo sentido: a apelante pretende que o facto 20 impugnado seja alterado, dando-se como não provado o valor exacto da cobrança que a R. obtém pelo espaço em causa.

Deste modo – seguindo, repita-se, a orientação reiterada deste Supremo Tribunal, de que a verificação do cumprimento do ónus de alegação do art. 640º do CPC tem de ser realizada com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente dimensão formal – considera-se que, no caso dos autos, a apelante respeitou todas as exigências do ónus de impugnação da matéria de facto, previstas no nº 1, do art. 640º, do CPC.

Conclui-se, assim, ter a apelante cumprido o ónus de impugnação do art. 640º do CPC.


8. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o acórdão recorrido, e determinando-se o conhecimento do recurso de apelação, tanto no que se refere ao pedido de alteração da decisão relativa à matéria de facto como ao pedido de reapreciação da decisão de direito.


Custas pelos Recorridos.


Lisboa, 08 de Fevereiro de 2018


Maria da Graça Trigo (Relator)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho