Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3739/18.0T8VFR.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
CONFISSÃO JUDICIAL
ADMISSIBILIDADE DE PROVA TESTEMUNHAL
CONVENÇÃO ADICIONAL
PROVA DOCUMENTAL
DOCUMENTO AUTÊNTICO
DOCUMENTO AUTENTICADO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
BEM IMÓVEL
PROIBIÇÃO DE PROVA
PROVA TABELADA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 03/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: -NEGADA A REVISTA NORMAL.
-REMETER OS AUTOS À FORMAÇÃO DE JUÍZES A QUE ALUDE O Nº. 3 DO ARTIGO 672º DO C.P.CIVIL
Sumário :
“I. A confissão judicial espontânea, se for feita fora dos articulados em qualquer acto do processo, não pode consistir numa declaração meramente oral: tem de ser “firmada “ pela parte, por escrito.

II. A confissão feita num processo só vale como judicial nesse processo.

III. Só pode valer noutro processo como confissão extrajudicial se tiver valor extraprocessual; e só tem valor extraprocessual se existir identidade da parte contra a qual é invocada.

IV. O art. 394º do CC não exclui a possibilidade de se provar por testemunhas o fim ou o motivo de qualquer documento autêntico, que não é contrário ao conteúdo do documento, nem constitui uma cláusula adicional ao mesmo. “

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:


*


AA e BB instauraram a presente acção declarativa sob forma comum contra CC e DD pedindo a declaração da ineficácia da partilha subsequente a divórcio celebrada entre os réus, por forma a que o património ali partilhado sirva de garantia ao crédito dos autores no montante de € 23.323,94, sendo € 15.500,00 de capital, € 3.303,93, a título de juros de mora contados à taxa de 4% ao ano, € 4.136,16 a título de sanção pecuniária compulsória legal e € 378,85 a título de custas de parte de ação executiva que infrutiferamente instauraram contra o réu.

Para fundamentar a sua pretensão os autores alegam que, por transacção judicial homologada em 25 de Maio de 2013, o réu assumiu a obrigação de pagar aos autores a quantia de € 15.500,00 e que o processo em que tal transacção foi celebrada foi intentado pela aqui ré contra os autores e contra o também aqui réu alegando que os mesmos haviam celebrado entre si um contrato de compra e venda de um jazigo nulo por falsidade da procuração usada por este para, também em nome da ali autora, proceder à venda de um jazigo no Cemitério Paroquial de ...; assim, tendo os aqui réus e autores acordado na referida acção pela declaração de nulidade do referido negócio, sabia a ré da existência do crédito dos autores até porque, posteriormente, os mesmos em 12 de Dezembro de 2014 moveram execução para realização coerciva da transacção e na sequência da penhora ali efetuada a ré veio pedir a suspensão daquela instância de modo a permitir a conclusão da partilha dos bens comuns; a ré acordou com o réu na partilha de bens do ex-casal em que este ficaria apenas titular de um direito de uso e habitação sobre um dos imóveis do casal e com um veículo automóvel, sabendo que essa partilha impediria a cobrança do crédito dos autores deixando-os sem qualquer possibilidade de usar o património do devedor como garantia do crédito que a autora bem sabia existir; alegam ainda que os réus agiram de forma concertada com intuito de impedir a cobrança do crédito dos autores sobre o réu.

Citados os réus, a ré contestou, alegando que tem, desde muito antes do divórcio, uma relação de grande conflitualidade com o réu, nomeadamente em sede judicial e impugnando ter agido em conluio com o mesmo; alega, ainda, que a partilha que com ele celebrou, no âmbito de inventário judicial apenso a divórcio, decorreu do facto de ter sido percepcionado por ela e por todos os presentes em tribunal no dia da referida transacção, que o réu era devedor de € 81.590,30 à sua ex-mulher, aqui ré, por lhos haver subtraído e que jamais conseguiria pagar-lhe tal débito pelo que, por sugestão da própria Juíza que homologou a transacção celebrada, deu o seu acordo a uma forma de partilha em que ela mesma ficou prejudicada patrimonialmente, dado ter entendido que não teria qualquer utilidade a prossecução de qualquer tentativa judicial de cobrança ao réu do valor de que se tinha apropriado; num gesto de misericórdia para com o pai dos seus filhos, permitiu-lhe, ainda, o uso e habitação de parte de um dos imóveis a partilhar; se a partilha não tivesse sido celebrada nos moldes em que o foi, sempre o réu não ficaria com bens capazes de garantir o pagamento do crédito dos autores – que afirma que nessa data desconhecia que ainda estava em dívida –, antes implicaria que o mesmo ficasse ainda com passivo superior pois a sua meação no património comum era inferior ao valor do passivo que o mesmo tinha para com a ré; alega que a partilha impugnada pelos autores não foi um negócio gratuito porque havia lugar ao pagamento de tornas; finalmente, a ré deduziu reconvenção contra os autores alegando que o comportamento dos autores prévio à constituição do crédito foi abusivo por ter avisado os mesmos para que nada adquirissem ao ex-marido, já que soube que o mesmo estaria a tentar vender bens comuns sem o seu consentimento; conclui, assim, que o crédito de que os autores se arrogam titulares decorreu de conúbio deles com o réu para aquisição de bem que sabiam ser comum e que sabiam que a ré se recusava vender, pedindo por isso a condenação dos autores ao pagamento da indemnização de € 26.700,00 para ressarcimento dos danos que diz ter suportado e suportar como consequência do comportamento dos autores.

Os autores replicaram pugnando pela inadmissibilidade da reconvenção deduzida pela ré e, caso assim não se entendesse, sustentaram a sua improcedência impugnando a generalidade dos factos aduzidos pela ré para substanciar a sua pretensão reconvencional e, bem assim, os documentos oferecidos pela ré com a contestação-reconvenção.

Em 02 de abril de 2019 foi proferido despacho fixando o valor da causa no montante de € 50.681,00 e determinando que após trânsito dessa decisão os autos fossem remetidos à Secção Central Cível de ..., Comarca de Aveiro.

Remetidos os autos à Secção Central Cível de ..., Comarca de Aveiro, designou-se e realizou-se audiência prévia, sendo em 17 de setembro de 2019, no âmbito dessa diligência proferido o seguinte despacho:

“Tendo em conta a formulação do pedido reconvencional e a causa de pedir do mesmo, articulada nas alíneas 80º a 108º da contestação-reconvenção, convida-se a ré reconvinte a aperfeiçoar o seu articulado por forma a distinguir o pedido que faz a título de abuso de direito da pretensão de indemnização por danos não patrimoniais, na medida em que aquela primeira causa de pedir é articulada mas não se traduz um pedido concreto.

Caso a ré reconvinte, aceite o convite do Tribunal deverá ter em conta, adiantando já uma das soluções plausíveis a esse propósito que:

a-) O abuso de direito constitui excepção peremptória sendo com toda a probabilidade de indeferir um pedido reconvencional formulado com

b-) Os artº 83º a 85º da contestação reconvenção contêm alegações de facto frontalmente contrariadas pela declaração da ré reconvinte na transacção celebrada no procº sumário nº 2012/18.5... e constante de fls 27 e junta aqueles autos a 21 de Maio 1013. Assim, sendo a sua eventual não prova com base nessa transacção, poderá ter consequências ao nível da conduta processual da ré, podendo levar à condenação da mesma como litigante de má-fé.

c-) Os artº 102º e 104º da contestação reconvenção descrevem padecimento morais da ré decorrentes de condutas do co-réu CC, pelo que, não têm cabimento como causa de pedir de uma pretensão dirigida contra os Autores como acima exposto.

Concede-se facultado o contraditório à ré reconvinte, quer relativamente à eventual improcedência imediata de parte do pedido reconvencional, quer à eventual condenação da mesma como ligante de má- fé.”

A ré respondeu ao convite que lhe foi endereçado pelo tribunal sustentando que o seu pedido reconvencional se estriba na alegada má-fé dos autores ao intentarem esta ação, nada dizendo quanto à apontada contradição entre os artigos 83 a 85 da sua contestação com o por si declarado em sede de transacção judicial nos autos que correram termos sob o número 2012/13.5...

Os autores ofereceram nova réplica pugnando pela inadmissibilidade legal da reconvenção deduzida pela ré e impugnando a generalidade da factualidade vertida no aperfeiçoamento oferecido pela ré.

Em 15 de Fevereiro de 2020 proferiu-se despacho saneador tendo-se indeferido o pedido reconvencional por se entender inadmissível.

A audiência final realizou-se numa sessão e foi proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:

“Julga-se a acção provada e procedente e, em consequência declara-se ineficaz em relação aos Autores a partilha celebrada por transacção nos autos com o número 5319/12.5... em 24-02-2017

II) determino a restituição ao património de ambos os réus dos bens ali adjudicados à Ré DD na medida necessária à satisfação do crédito dos Autores.

III) Condeno a Ré DD em multa de 2 ucs por litigância de má-fé.

Custas a cargo dos RR. (art. 527º, n.º1 do CPC)

Registe, Notifique e, oportunamente, comunique a presente decisão à competente Conservatória do Registo Predial de ....”

Inconformada com a sentença que precede, DD interpôs recurso de apelação.

Apreciado o recurso, a Relação deliberou o seguinte:

“Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto por DD e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida proferida em 20 de setembro de 2021 na parte em que condenou a recorrente como litigante de má-fé na multa de duas unidades de conta, mantendo-se no mais a decisão recorrida, salvo no que respeita aos fundamentos de facto alterados em consequência da reapreciação da decisão da matéria de facto, nos termos que constam dos fundamentos deste acórdão.

Custas a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso, mas sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.”

Não se conformando, a mesma ré/apelante interpôs recurso de revista excepcional, formulando as seguintes conclusões:

“1. A segunda instância fez a reapreciação da matéria de facto com violação do regime consagrado no artigo 662.º do NCPC, e ainda, dos artigos 351º, 358º, n.º3 e 4 e 361º, 393º, n.º3, do Código Civil e artigo 466º, n.º3 do Código Processo Civil.

2. Existe uma confissão expressa por parte do Réu Ex-Marido relativamente à venda de um veículo automóvel património do casal pelo valor de 15.000,00€, nomeadamente, no despacho a fls. ---- que refere despacho é referido o seguinte: “CC (diga-se o Réu nestes autos) alega que vendeu esse veículo pelo valor de15.000,00€,mas a requerente não acredita e acusa o interessado de ter recebido mais dinheiro”.

3. Pelo que, Não há, conforme alega o Tribunal da Relação do Porto, “questão controvertida entre as partes, havendo necessidade de produção de prova” – pois a única questão controvertida, seria o valor dessa venda, que a Requerente acreditava ser superior.

4. Assim, entende a Recorrente, que inexiste prova maior do que a própria confissão do Réu, espelhada em documento judicial, no caso um despacho.

5. Pelo que, a aplicação do art. 662º do CPC por parte deste Tribunal foi de forma manifesta, incorretamente efetuada quanto a este ponto, quando refere que não existe confissão do Réu Ex-Marido relativamente a este ponto.

6. Quanto à aplicação das normas de direito à reavaliação dos pontos 3 a 6 dos factos não provados entendeu o Tribunal a quo que seria de aplicar ao caso dos autos o normativo legal previsto no artigo 394º do Código Civil, e consequentemente, proibiu no tocante a tal matéria a prova testemunhal, por declarações de parte e ainda o uso de presunções judiciais.

7. A Recorrente em lado algum, quer da sua contestação, quer das alegações, ou qualquer outro requerimento constante dos autos, alega que a partilha efetuada com o Réu Ex-Marido é falsa e/ou simulatória, ou que existiria ali outra vontade.

8. O que alegou a Recorrente ao longo de toda a sua instância, é que houve um motivo para que a partilha tivesse ocorrido dessa forma, dito de outro modo, a partilha realizou-se nesses termos por um conjunto de razões que foram o contexto da mesma.

9. Tais razões estão enunciadas nos pontos 28. a 37. dos factos dados como provados.

10. A proibição contida no art. 394º, n.º1 do CC, é aplicável quando invocado pelos simuladores, relativamente ao acordo simulatório e simulado.

11. A alegada “existência” de um acordo simulado foi alegado pelos Autores, e a Ré/Recorrente sempre pugnou pela veracidade do acordo alcançado na partilha, apenas esclarecendo o contexto e as razões para a sua realização nesses moldes.

12. Pelo que, entende a Recorrente que a aplicabilidade do art. 394º, n.º1 e 2 do CC aos presentes autos não poderia ter sido efetuada, e poderiam e deveriam ter sido analisados todos os meios de prova previstos no normativo legal e que foram produzidas nomeadamente, prova testemunhal, declarações e depoimentos de parte e presunções judiciais.

13. Ao não o fazer, o Tribunal a quo errou na forma como procedeu à reapreciação da matéria de facto, nomeadamente na aplicação dos normativos legais da mesma.

14. Ainda dos pontos 27 a 38 dos factos provados são manifestamente visíveis as razões pela qual a partilha foi efetuada.

15. A acrescer a tal matéria dada como provada foram ainda provados os pontos 6, 7, 8,9,38,39 e 40 que reforçam a inexistência da realização de um acordo de partilha enquanto expediente impeditivo de cobrança de créditos.

16. O espírito do legislador aquando da previsão do instituto de impugnação pauliana, não quis certamente “atacar” casos como o dos presentes autos.

17. Foi dado como provado pelo Tribunal a quo que o Tribunal que presidiu à partilha do ex-casal:

32. No dia 24/02/2017, no início da inquirição das testemunhas, o Tribunal iniciou pela tentativa de conciliação das partes e, visando um entendimento entre as mesmas, fez uma análise de toda a prova documental já existente nos autos, quer junta pela Ré, quer pelos Bancos comunicando às partes o seu entendimento relativamente a essa prova documental

33. A Ré percebeu nessa altura que nunca iria conseguir reaver qualquer quantitativo do Réu. (Ponto 3.2.1.33 do Acórdão do TRP)

34. Pelo que o efeito útil pretendido das acções que futuramente poderiam ser propostas para reaver o seu dinheiro seria impossível de alcançar. (Ponto 3.2.1.34 do Acórdão do TRP)

35. Foi chamada à atenção, nesse acto para o facto de a idade do Réu CC o mesmo nunca ganharia rendimentos para pagar tal dívida à Ré. (Ponto 3.2.1.35 do Acórdão do TRP)

18. Ora, se o Réu nunca ganharia rendimentos para pagar tal dívida à Ré, com toda a certeza, que a sua meação no património comum do casal, não chegava para pagar tal dívida, não havendo, por isso, qualquer diminuição de garantia patrimonial do Réu Ex-Marido com o acordo alcançado.

19. No caso dos autos, estávamos perante não apenas a partilha dos bens comuns do casal, mas perante apropriação indevida de dinheiro próprio da Recorrente, que nessa medida tinha, e tem, direito a ser ressarcida não apenas pelo património comum correspondente à meação do Réu Ex-Marido, como pelos seus bens próprios.

20. Tal crédito da Recorrente nasceu durante o período conjugal devia e foi reclamado no momento correto, que foi a partilha do património do casal, porquanto observam o regime do 1689º nº 3 do Código Civil: “os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum”.

21. Não há aplicabilidade ao caso dos autos do art.º 604º do Código Civil, já que a partilha conjugal visa a igualdade daqueles que nela intervém, e é precisamente por não haver tal aplicabilidade que, a lei proíbe a ingerência de credores no acordo e/ou composição de quinhões da partilha conjugal.

22. Pois, o que está em causa nessa partilha é património próprio e comum que deve ser distribuído tendo em conta todos os pontos do art. 1689º do Código Civil.

23. Caso contrário, o que aconteceria, e acontece nos presentes autos com a decisão tomada, é um enriquecimento do Réu Ex-Marido à custa do património próprio da Recorrente, que com isso consegue não apenas ter-se apropriado de todo o património próprio da Recorrente, como ainda que a Recorrente pague as dívidas que são da sua única responsabilidade.

24. Por tudo o exposto, entende a Recorrente que o Tribunal a quo subverteu o espírito do legislador aquando da previsão do instituto da impugnação pauliana, violando os princípios da segurança jurídica, proteção da confiança intrínsecos a um Estado de Direito

25. O princípio da protecção da confiança e segurança jurídica pressupõe um mínimo de previsibilidade em relação aos actos do poder, de molde a que, a cada pessoa seja garantida e assegurada a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos actos que pratica.

26. Por isso que «não é consentida uma normação tal que afecte, de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa, aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito devem respeitar.» (Cf. Ac. TC nº 365/91, DR II Série, de 27.09.91).

27. A justiça deve, sim, representar um esforço de racionalização, desde que afastada uma qualquer «arbitrariedade matemática» ou uma menor exigência de reflexão sobre os dados. O direito, como ciência prática e não especulativa nunca atingirá a certeza das matemáticas ou das ciências da natureza, mas a jurisprudência deve abrir-se ao permanente aperfeiçoamento

28. A invocação destes princípios é válida e relevantemente, pois a Recorrente não pretende alicerçar apenas, na sua mera convicção psicológica, antes impõe-se pela enunciação de sinais exteriores produzidos pela Tribunal suficientemente concludentes para um destinatário normal e onde seja razoável ancorar a invocada confiança, nomeadamente, pelos factos dados como provados que espelham a forma e o contexto em que decorreu toda a partilha.

29. Por último, o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, mais não fez do que permitir aos Autores e Réu Ex-Marido (que não apresentou sequer contestação, revelando de forma clara a sua intenção, na condenação da Recorrente no pagamento das suas dívidas), perpetrar um efeito útil ao negócio que não conseguiram realizar devido à falsidade da procuração utilizada.

30. Pelo que, sob pena de violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, entende a Recorrente ser necessária uma melhor aplicação do direito, pois há espaço para tal no normativo legal português

Assim, ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou os artigos 662.º do NCPC, artigo 394º do CC, artigos 351º, 358º, n.º3 e 4 e 361º, 393º, n.º3, 394, 604 do Código Civil e artigo 466º, n.º3 do Código Processo Civil, art. 302º, n.º3, 304º, nº1, 2ª parte, 297º, nº1 do CPC, 1689º, do Código Civil, art 2º da CRP, artigos 47º e 465º, nº 2, ambos do CPC e artigo 358º, nº1 do CC.”

Pediu, a final, a revogação do acórdão da Relação.

Os AA /recorridos prescindiram do direito de contra-alegar.

Em despacho liminar o relator proferiu o seguinte despacho:

“O Tribunal da Relação confirmou, sem voto de vencido nem fundamentação essencialmente diferente, a sentença da 1.ª instância.

Sucede, porém, que os recorrentes invocam uma confissão expressa por parte do réu ex-marido que não foi atendida, o que permite o recurso de revista, nos termos do art. 674º, nº 3 do CPC.

Consideram, também, os recorrentes que o tribunal aplicou erradamente o art. 394º do Código Civil proibindo, no tocante à reavaliação dos pontos 3 a 6 dos factos não provados, a prova testemunhal, a prova por declarações de parte e, ainda, o uso de presunções judiciais.

Como assim, pode entender-se que não se procedeu na Relação a uma adequada e integral utilização dos meios que o art. 662º do CPC faculta na apreciação da impugnação da decisão de facto, podendo ser exercida censura sobre o uso que a Relação fez desses poderes (cfr. Ac. STJ de 9.7.2014, proc. 5944/07.6TBVNG.P1. S1; e o de 14.9.2021, no proc. 864/18.1T8VFR.P1. S1; ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Mantém-se, deste modo, a admissão do recurso de revista normal (…) “

Cumpre decidir.

Os factos provados são os seguintes:

“1. Os réus dissolveram o seu casamento por divórcio decretado por sentença proferida em 10/01/2013, nos autos de divórcio que correram termos sob o processo nº 5319/12.5..., no extinto ...º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ....

2. Por escritura pública de compra e venda de 06/02/2013, exarada a fls. 46 e ss., do Livro 37-A, do Cartório Notarial do Dr. EE, o autor declarou adquirir aos réus um jazigo perpétuo e o respetivo direito à concessão de um terreno destinado a duas sepulturas, sito no Cemitério Paroquial da freguesia de ..., concelho de ..., a que respeita o Alvará n.º 33, do ano de 1988, emitido pela Junta de Freguesia de ... a favor do respetivo concessionário, o réu CC

3. Pela aquisição do jazigo e respetiva concessão, o autor pagou a quantia de € 14.500,00 (catorze mil e quinhentos euros).

4. Nessa escritura, o réu CC interveio por si e, ainda, como procurador da ex-mulher, a ré DD.

5. A procuração utilizada pelo réu CC em representação da ré DD era falsa, porque não subscrita por esta.

6. Em 16/04/2013 a ré DD instaurou contra os aqui autores e o réu CC, uma ação declarativa comum com processo sumário, que, sob o processo nº 2012/13.5..., correu termos pelo extinto ...º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ..., pedindo a declaração de nulidade da aludida compra e venda, com fundamento na falsidade da procuração, alegadamente conferida por si ao réu CC, seu ex-marido, e por este usada para outorgar a dita escritura de venda do jazigo.

7. Para tanto, alegou que, à data da celebração da dita escritura de compra e venda, já os réus se encontravam divorciados por sentença proferida em 10/01/2013, estando na altura a correr termos entre ambos um processo de separação da meação dos bens comuns do casal, entre os quais figurava o referido jazigo e respetivo direito de concessão de uso de um terreno destinado a duas sepulturas, e que era falsa a assinatura cuja autoria lhe era atribuída na procuração de que o réu CC se servira para a representar na mesma escritura.

8. A ré DD apresentou nos Serviços do Ministério Público de ..., em 12/03/2013, uma queixa-crime contra o réu CC, o Notário que lavrou a escritura pública, Dr. EE e a funcionária do respetivo cartório notarial que lavrou o termo de autenticação da procuração alegadamente falsa, FF, tendo o respetivo processo-crime terminado com a condenação, pelo menos, do réu CC, por crime de falsificação.

9. Por transação judicial junta aos referidos autos em 21/05/2013 e homologada por sentença de 25/05/2013, as partes nesse processo acordaram em considerar a aludida compra e venda nula e de nenhum efeito, com o consequente regresso do jazigo perpétuo e respetivo direito de concessão de terreno para duas sepulturas ao património comum do dissolvido casal, os ora réus DD e CC.

10. Nessa mesma transação, o réu CC assumiu a obrigação de pagar aos ora autores (ali réus), até ao dia 20 de junho de 2013, “a título de compensação pelos prejuízos causados

por força da venda do jazigo aqui considerada nula”, a quantia de € 15.500,00 (quinze mil e quinhentos euros), nela incluindo-se a restituição do preço de € 14.500,00.

11. Ali foi ainda declarado pelos outorgantes aqui réus que “reconhecem que os réus AA e BB desconheciam qualquer facto que levasse a presumir alguma irregularidade no momento da escritura de compra e venda do jazigo melhor identificado nos presentes autos”.

12. Porque tal débito não foi pago na data do seu vencimento nem posteriormente, os autores, em 12/12/2014, requereram a competente execução de sentença contra o réu CC para a cobrança coerciva do seu crédito, a qual correu termos sob o processo nº 2882/14.0..., do Juízo de Execução de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.

13. Além do capital em dívida, no valor de € 15.500,00, os autores, ali exequentes, peticionaram ainda o pagamento dos juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, calculados sobre o capital em dívida, desde 20/06/2013 até efetivo pagamento e dos juros à taxa de 5% ao ano, a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do n.º 4, do artigo 829-A do Código Civil, calculados sobre o capital em dívida, desde o trânsito em julgado da sentença (30/06/2013) até efetivo pagamento.

14. Nessa execução, foram penhorados do património comum do dissolvido casal, os seguintes bens:

(i) Direito ao uso de um terreno para Jazigo Perpétuo, sito no Cemitério Paroquial da Freguesia de ..., concelho de ..., titulado em nome do réu CC pelo Alvará nº 33, de 17/03/1983, da Junta de Freguesia de ..., por Auto de Penhora de 04/02/2015; e

(ii) Prédio misto em propriedade total, composto por casa de rés do chão e 1º andar, com logradouro, com área coberta de 75m² e descoberta de 1040m², sito no lugar de ..., União das Freguesias de ..., ... e ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob os artigos 509-Urbano e 4152-Rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número ...59-..., conforme Auto de Penhora de 13/01/2015 e certidão predial do imóvel, sendo que da descrição predial nº ...27, freguesia de ..., da Conservatória de Registos Predial, Comercial e Automóvel de ... consta a menção que foi desanexada da parte rústica uma parcela com 650 m2 para formar o nº ...03.

15. Citada pelo Agente de Execução para os termos do artigo 740º do Código de Processo Civil, a ré DD requereu nos autos de execução a suspensão da instância até à conclusão da partilha judicial dos bens comuns do casal que, na altura, era já objeto de inventário, a correr termos sob o processo nº 5319/12.5... (apenso à acção de divórcio), no Juízo de Família e Menores de ... - Juiz ..., da Comarca de Aveiro.

16. Por despacho de 14/03/2016, foi determinada “a suspensão da execução até à partilha dos bens comuns do casal”.

17. No referido processo de inventário foi feita a partilha por acordo celebrado entre os interessados e homologado por sentença em 24-02-2017.

18. Ali acordaram os interessados em eliminar as verbas 1, 14, 17 e 18 da relação de bens e o interessado CC “deixar cair” todas as reclamações feitas à relação e bens e reconhecer que a “quantia de 32.840,00€ na posse da cabeça de casal é dinheiro próprio da mesma, advindo de heranças” bem como não ter qualquer direito de crédito sobre aquela por benfeitorias construídas em imóvel por ela herdado.

19. O réu CC declarou ainda renunciar “a eventuais tornas a que tivesse direito fruto desta partilha”.

20. Nos termos da partilha do património comum do dissolvido casal e com referência à relação de bens atualizada nela considerada, foram adjudicados ao réu CC os seguintes bens:

a) Verba n.º 13, correspondente a um veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca “Volkswagen”, modelo “Polo”, de 999 cc, com a matrícula ..-..-MZ, com o valor atribuído de € 100,00;

b) Direito de uso e habitação, previsto no artigo 1484.º e seguintes do Código Civil, de natureza vitalícia, sobre o imóvel relacionado sob a Verba n.º 16, sem valor atribuído.

21. Por seu turno, à ré DD foram adjudicados os seguintes bens: I – Bens Móveis:

a) Verba n.º 2: Um quarto de casal composto por cama, 2 mesas de cabeceira e cómoda, em mau estado, com o valor atribuído de € 100,00;

b) Verba n.º 3: Um quarto [de] solteiro composto por cama, 2 mesas de cabeceira e cómoda, com o valor atribuído de € 100,00;

c) Verba n.º 4: Um quarto de casal composto por cama, 2 mesas de cabeceira e cómoda, em mau estado, com o valor atribuído de € 100,00;

d) Verba n.º 5: Móvel de sala de jantar composta de mesa e 8 cadeiras, em madeira de castanho, com o valor atribuído de € 300,00;

e) Verba n.º 6: Conjunto de 3 sofás, composto por um sofá de três lugares e 2 pequenos, em tecido aveludado, muito gasto e em mau estado, com o valor atribuído de € 100,00;

f) Verba n.º 7: Um frigorífico e um fogão, muito gastos e em mau estado de conservação, com o valor atribuído de € 60,00;

g) Verba n.º 8: Arca frigorífica, em muito mau estado e avariada, com o valor atribuído de € 20,00;

h) Verba n.º 9: Uma mesa de cozinha com 4 cadeiras, muito gasta, com o valor atribuído de € 40,00

i) Verba n.º 10: 23 televisões, muito gastas, com o valor atribuído de € 10,00;

j) Verba n.º 11: máquina de lavar louça, com o valor atribuído de € 50,00;

k) Verba n.º 12: Duas motosserras, uma máquina de jardim de cortar arbustos, duas máquinas de furar, uma betoneira e uma máquina de sulfatar, com o valor global atribuído de € 1,00;

II – Bens Imóveis:

a) Verba n.º 15: Parcela de terreno, destinado a duas sepulturas, no Cemitério Paroquial da Freguesia de ..., concelho de ..., com a respetiva concessão titulada pelo Alvará nº 33, de 1981, emitida pela Junta de Freguesia de ..., com o valor atribuído de € 3.000,00;

b) Verba n.º 16: Prédio misto composto de casa de rés do chão e 1º andar, com a área coberta de 75m², com logradouro, com a área de 200m², e terreno de cultura, com a área de 1040m²[41], sito no Lugar de ..., da União das Freguesias de ..., ... e ..., do concelho de ..., inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 575-Urbano, e o artigo 7410-Rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...59, da freguesia de ..., com o valor atribuído de € 20.000,00, sendo que da descrição predial nº ...27, freguesia de ..., da Conservatória de Registos Predial, Comercial e Automóvel de ... consta a menção que foi desanexada da parte rústica uma parcela com 650 m2 para formar o nº ...03.

22. Em 27-03-2017, a ré DD requereu na execução o levantamento da penhora sobre os bens identificados em 14 i) e ii).

23. O réu CC não tem quaisquer bens, móveis e/ou imóveis, que possam ser penhorados e responder pelo pagamento da sua dívida aos autores.

24. Apurou-se na execução que o réu CC apenas tinha de rendimentos uma pensão mensal de € 154,85 da Segurança Social, tendo-se revelado infrutíferas todas as demais diligências requeridas pelos Exequentes e realizadas pelo Agente de Execução para identificar e localizar outros bens penhoráveis.

25. Em face de tal realidade, o Agente de Execução, em 03/04/2018, notificou os Exequentes “da extinção do presente processo executivo, por falta de bens, sem qualquer recuperação por conta da quantia exequenda”.

26. Com a execução, os autores, ali Exequentes, suportaram um encargo global de € 378,85 (trezentos e setenta e oito euros e oitenta e cinco cents), correspondente à soma das remunerações pagas ao Agente de Execução (€ 250,70), do respectivo IVA (€ 57,66), das despesas e encargos da execução (€ 45,00) e da taxa de justiça da execução (€ 25,50), conforme resulta da Nota discriminativa de despesas e honorários do Agente de Execução.

27. A concessão do direito de uso do terreno para um Jazigo perpétuo de duas sepulturas, a que respeita a Verba n.º 15, teria à data da partilha, pelo menos, o valor igual ao preço de € 14.500,00, por que havia sido vendido aos Autores em 06/02/2013.

28. Em 12 de março de 2015, no decorrer da partilha, a ré teve conhecimento de que o dinheiro resultante de vendas de bens próprios da mesma, não se encontrava nas suas contas bancárias à data tituladas também pelo seu ex-marido e de que tinha sido transferido para contas bancárias tituladas apenas por este.

29. Desse facto deu de imediato conhecimento ao tribunal através de requerimento registado no sistema CITIUS sob a ref.ª ...59, a 20/03/2015 reclamando, consequentemente ao ex-marido um crédito no valor de € 81.590,30.

30. Por despacho registado de 24 de abril de 2015 foi admitida a relação de bens adicional apresentada pela ré, passando a constar como passivo do aqui réu à ré, a verba de € 81.590,30.

31. Nos referidos autos de inventário foi pedida às entidades bancárias a documentação relativa às respetivas contas bancárias, cuja junção foi efetuada.

32. No dia 24/02/2017, no início da inquirição das testemunhas, o Tribunal iniciou pela tentativa de conciliação das partes e, visando um entendimento entre as mesmas, fez uma análise de toda a prova documental já existente nos autos, quer junta pela ré, quer pelos Bancos comunicando às partes o seu entendimento relativamente a essa prova documental.

33. A ré percebeu nessa altura que nunca iria conseguir reaver qualquer quantitativo do réu.

34. Pelo que o efeito útil pretendido das ações que futuramente poderiam ser propostas para reaver o seu dinheiro seria impossível de alcançar.

35. Foi chamada à atenção, nesse ato para o facto de [com] a idade do réu CC o mesmo nunca ganharia rendimentos para pagar tal dívida à ré.

36. Assim, o réu aceitou que tinha um passivo perante a ré, ex-mulher.

37. O direito de uso e habitação atribuído ao réu decorreu dos escassos rendimentos do mesmo tendo a ré acedido ao pedido feito pelos seus dois filhos para que não deixasse o pai sem teto para morar, atenta a sua idade.

38. Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo Central Cível de ... - Juiz ..., processo nº 577/18.4..., ação judicial de reivindicação, que a ré propôs contra o réu CC, por este a impedir de entrar nas suas propriedades e por estar indevidamente a ocupar espaços que não lhe foram destinados e que não estavam a coberto de tal direito.

39. Ação que culminou com acórdão do Tribunal da Relação do Porto que deu provimento à pretensão da aqui ré.

40. Desde o divórcio e partilha dos bens entre ambos que os réus permanecem em litígio, de que decorreu já a pendência dos processos judiciais que correram termos sob os números 96/17.6... do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Criminal de ...; 444/13.8... do Juízo Local Criminal de ...; e 246/17.2... Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Criminal de ....

41. Os autores tomaram conhecimento do teor integral do processo de inventário subsequente a divórcio dos réus antes de proporem a presente ação.”

Factos não provados:

1. No Apenso A do processo n.º 5319/12.5..., os réus procederam à partilha dos bens que integravam o património comum do casal, tendo ambos acordado de forma deliberada e concertada o preenchimento dos quinhões para que o réu CC não ficasse com quaisquer bens suscetíveis de penhora que pudessem responder pelo pagamento da sua dívida aos autores.

2. O imóvel da Verba n.º 16, o seu valor de mercado à data da partilha, atentas as suas caraterísticas, rondaria, no mínimo, os € 80.000,00 (oitenta mil euros).

3. Ainda que os réus não tivessem chegado a acordo quanto à partilha da forma como foi homologada, não haveria quaisquer tornas a receber pelo réu que, pelo contrário veria reconhecida a dívida à ré, que teria de ser paga pelos bens próprios do mesmo, que inexistem uma vez que este não tem rendimentos e não trabalha.

4. Ao réu em tal partilha nada caberia, e pelo contrário, em muito ficou a ré prejudicada, não chegando todo o património para pagar à ré o seu prejuízo.

5. O acordo efetuado quanto à partilha foi-o nos termos em ata descritos por ser a alternativa mais favorável para o réu CC e por forma a evitar custos com o processo.

6. O réu CC aceitou que o valor do seu quinhão era manifestamente insuficiente para compensar tal passivo em face dos prejuízos causados àquela.

7. A ré [foi] alertada pelos seus vizinhos de que o réu CC apregoava na sua zona de residência que procurava compradores para os bens do casal, nomeadamente bens imóveis, móveis (carros) e jazigos e tendo ainda tomado conhecimento de algumas das pessoas às quais o seu ex-marido teria oferecido tais bens.

8. Explicou ainda a ré os conflitos existentes entre ela e o ex-marido, e as dificuldades que estava a passar e passou com o seu divórcio.

9. Os autores sempre souberam que a relação entre ré e réu não existia, e que ambos nem sequer se falam.

10. Nunca colocaram em questão a falsidade da procuração usada pelo réu na compra e venda pelo que aceitaram a declaração de nulidade de tal venda e restituíram o jazigo ao património comum do casal.

11. Fizeram-no porque tinham consciência que a ré nunca quis vender, que a mesma estava a ser enganada, que a procuração era falsa e nunca teria passado a mesma ao ex-cônjuge.”

Como decorre do despacho do relator acima transcrito, as questões a decidir no âmbito da revista normal estão limitadas às seguintes: a existência de confissão expressa do réu ex-marido; e a aplicação do art. 394º do CC no tocante à reavaliação dos pontos 3 a 6 dos factos não provados.

A confissão expressa do réu ex-marido.

Escreveu-se no acórdão da Relação:

“ Reapreciemos agora o ponto 20 dos factos provados.

Ao invés do que sustenta a recorrente, o despacho proferido em 11 de abril de 2016 no processo de separação de meações nº 5319/12.5... não reconheceu que o réu ficou com quinze mil euros resultantes da verba nº 16 da primeira relação de bens, limitando-se a referir em sede de fundamentos que “CC alega que vendeu esse veículo pelo valor de € 15.000,00, mas a requerente não acredita e acusa o interessado de ter recebido mais dinheiro” e, posteriormente, em sede de decisão, ordenou a notificação do aqui réu para “alegar factos tendentes a demonstrar a venda do veículo Renault pelo preço de €15.000,00 e juntar a documentação que entender ser relevante para a prova desse negócio ou, não existindo, esclarecer o tribunal sobre o destino desse dinheiro, de que forma é que foi pago e por quem”.

É assim claro que a decisão judicial proferida em 11 de abril de 2016 no processo de separação de meações nº 5319/12.5... não reconheceu que o réu ficou com quinze mil euros resultantes da verba nº 16 da primeira relação de bens e, pelo contrário, evidenciou que se tratava de questão controvertida entre as partes, havendo necessidade de alegação de factos e de produção de prova a fim de poder tomar uma decisão sobre tal matéria.

Assim, face ao exposto, improcede a pretensão da recorrente de alteração do ponto 20 dos factos provados.”

Insiste a recorrente que existe uma confissão expressa por parte do réu ex-marido relativamente à venda de um veículo automóvel património do casal pelo valor de 15.000,00€, expressa através do despacho proferido em processo de separação de meações do seguinte teor “CC (diga-se o Réu nestes autos) alega que vendeu esse veículo pelo valor de 15.000,00€,mas a requerente não acredita e acusa o interessado de ter recebido mais dinheiro”.

Assim, entende que se verifica confissão judicial escrita de que o réu vendeu o veículo da verba 16 por 15,000 € e que o Tribunal aplicou incorrectamente, quanto a este ponto, o art. 662 do CPC.

Porém, é evidente a falta de razão da recorrente.

Em primeiro lugar, não existe qualquer confissão judicial do réu neste processo.

Nos termos do art. 356º do CC, a confissão judicial espontânea, se for feita fora dos articulados em qualquer acto do processo, tem de ser “firmada “ pela parte. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela no CC anotado, volume I, 3ª edição, a pág. 314, “procedendo do próprio confitente, a confissão judicial espontânea não pode consistir numa declaração meramente oral, que não dá as garantias de reflexão exigidas pela lei: há-de constar de acto firmado pela própria parte”.

Ora, as declarações prestadas no processo de separação - e que constituem a pretensa confissão - não foram ali firmadas pelo réu, por escrito.

Por outro lado, a confissão feita num processo só vale como judicial nesse processo (art. 355º, nº 3 do CC). Só pode valer noutro processo como confissão extrajudicial se tiver valor extraprocessual. E só tem valor extraprocessual se existir identidade da parte contra a qual é invocada ( cfr art. 421º do CPC), o que não é o caso: os aqui AA. não eram partes no referido processo de separação de bens (cfr. acórdão do STJ de 3.11.2021, proc. 8902/18.1T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt).

Além disso, mesmo que tivesse valor extraprocessual, nunca poderia valer como confissão extrajudicial com força probatória plena, uma vez que não foi prestada em documento autêntico ou particular e feita aos ora AA., que aqui são a parte contrária ( cfr, art. 358º, nº 2 do CC).

Improcede, assim, este fundamento do recurso.

A aplicação do art. 394º do CC no tocante à reavaliação dos pontos 3 a 6 dos factos não provados.

Foram dados como não provados os seguintes factos:

“3. Ainda que os réus não tivessem chegado a acordo quanto à partilha da forma como foi homologada, não haveria quaisquer tornas a receber pelo réu que, pelo contrário veria reconhecida a dívida à ré, que teria de ser paga pelos bens próprios do mesmo, que inexistem uma vez que este não tem rendimentos e não trabalha.

4. Ao réu em tal partilha nada caberia, e pelo contrário, em muito ficou a ré prejudicada, não chegando todo o património para pagar à ré o seu prejuízo.

5. O acordo efetuado quanto à partilha foi-o nos termos em ata descritos por ser a alternativa mais favorável para o réu CC e por forma a evitar custos com o processo.

6. O réu CC aceitou que o valor do seu quinhão era manifestamente insuficiente para compensar tal passivo em face dos prejuízos causados àquela.”

Pretendia a recorrente, no recurso de apelação, que tais factos fossem dados como provados.

Sobre tal pretensão, a Relação ponderou o seguinte:

“Debrucemo-nos agora sobre os pontos 3 a 6 dos factos não provados que a recorrente pretende que sejam julgados provados e ainda sobre o ponto 36 dos factos provados que pretende seja objeto de alteração nos termos por si indicados.

Em primeiro lugar, importa salientar que esta pretensão de reapreciação da decisão da matéria de facto se confronta com a problemática da inadmissibilidade de prova por testemunhas e por presunções, que tenha por objeto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico, no caso o acordo quanto à partilha exarado em ata e objeto de homologação judicial (artigo 394º, nº 1, do Código Civil).

Sublinhe-se que a proibição de prova por testemunhas de convenções anteriores, contemporâneas ou posteriores à formação do documento com força probatória plena, que sejam contrárias ou adicionais ao conteúdo desse documento, pressupõe a validade das cláusulas em apreço.

As limitações probatórias à produção da prova testemunhal são extensivas à prova por presunções (artigo 351º do Código Civil) e, por identidade de razão, à prova por declarações de parte, sempre que sujeitas à livre apreciação do tribunal, ou seja, quando não tenham caráter confessório (artigo 466º, nº 3, do Código de Processo Civil) e ainda à prova por confissão quando seja livremente apreciada (vejam-se os artigos 358º, nºs 3 e 4 e 361º, ambos do Código Civil).

Além disso, por força do nº 1, do artigo 394º do Código Civil, é inadmissível a prova testemunhal, se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas, quer sejam posteriores.

Esta proibição de produção de prova testemunhal e, reflexamente, da prova por presunção (artigo 351º do Código Civil), bem como da prova por declarações de parte e por confissão, nos termos antes enunciados, aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocado pelos simuladores, não sendo aplicável a terceiros (nºs 2 e 3, do artigo 394º do Código Civil).

A doutrina maioritária e a jurisprudência têm flexibilizado a previsão do nº 1 do artigo 394º do Código Civil, admitindo a produção de prova testemunhal nos casos aí previstos, pelo menos sempre que exista um começo de prova por escrito.

Tem-se entendido que esta prova adminicular documental corroboradora da prova pessoal livremente apreciada deve ser proveniente da parte contra quem é aposta e deve tornar verosímil o facto alegado.

Porém, independentemente destes espartilhos à livre apreciação da prova, questiona-se se é de conhecimento oficioso a violação desta regra legal de proibição de prova testemunhal mesmo na versão mitigada que tem vindo a ser adotada na doutrina e na jurisprudência dominante.

O Professor Vaz Serra no estudo que serviu de base ao regime jurídico das provas no Código Civil, na senda do direito italiano, sustentou que estas limitações legais à admissibilidade da prova testemunhal não são de ordem pública, sendo por isso derrogáveis por acordo das partes e não podendo ser oficiosamente apreciadas, salvo tratando-se de prova em relação jurídica para que se exija a forma escrita ad substantiam, pois então a ordem pública opõe-se à derrogação.

Ora, no caso dos autos, a partilha dos bens do casal, porque envolve bens imóveis, é um ato formal, razão pela qual é de conhecimento oficioso deste tribunal a derrogação da regra do nº 1 do artigo 394º do Código Civil.

No caso dos autos, inexiste qualquer prova documental proveniente dos autores e que torne verosímil as convenções contrárias ao acordo de partilha exarado em ata invocadas pela recorrente e nem isso era possível no caso em apreço porquanto os autores são claramente terceiros face ao acordo de partilha, pois que nenhuma intervenção tiveram no mesmo.

Por isso, é legalmente inadmissível a prova pessoal invocada pela recorrente para sustentar respostas positivas aos pontos 3 a 6 dos factos não provados e a alteração da resposta ao ponto 36 dos factos provados.

Ainda que assim não fosse, sempre se dirá que toda a prova pessoal que foi produzida para comprovar os alegados créditos da recorrente sobre o réu foi genérica e sem corroboração documental suficiente, isto é, documentação que comprovasse, por um lado, a constituição de tais créditos próprios na esfera jurídica da recorrente e por outro, a apropriação por parte do réu de tais valores, sendo manifestamente insuficiente para tanto as cópias de escrituras públicas de compra e venda de bens herdados, uma delas aliás incompleta32 e os extratos da conta bancária comum de que alegadamente foram levantados os invocados créditos próprios da recorrente, na medida em que, por um lado, não permitem por si só identificar a proveniência dos valores tal como não permitem também referenciar o autor dos levantamentos efetuados na referida conta bancária comum.

Assim, face ao exposto, improcede a pretensão da recorrente de que se julguem provados os factos não provados vertidos nos pontos 3 a 6 e que se altere o ponto 36 dos factos provados nos termos por si propostos.”

Argumenta a recorrente que em lado algum, quer da sua contestação, quer das alegações, ou de qualquer outro requerimento constante dos autos, alegou que a partilha efetuada com o Réu Ex-Marido é falsa e/ou simulatória, ou que existiria ali outra vontade, tendo, pelo contrário, alegado que houve um motivo para que a partilha tivesse ocorrido dessa forma, dito de outro modo, a partilha realizou-se nesses termos por um conjunto de razões que foram o contexto da mesma e que estão enunciados nos pontos 28. a 37. dos factos dados como provados, sendo que a proibição contida no art. 394º, nº1 do CC apenas é aplicável quando invocado pelos simuladores, relativamente ao acordo simulatório e simulado.

Assim, entende que a aplicabilidade do art. 394º, n.º1 e 2 do CC aos presentes autos não poderia ter sido efectuada, pelo que poderiam e deveriam ter sido analisados todos os meios de prova previstos no normativo legal e que foram produzidas nomeadamente, prova testemunhal, declarações e depoimentos de parte e presunções judiciais.

Vejamos.

É verdade que dos pontos 28 a 37 dos factos dados como provados respeitam ao contexto do acordo da partilha, tendo ficado provado, designadamente que a ré reclamou, no âmbito do processo de separação de bens, a dívida do réu, que, depois, percebeu que o réu nunca teria dinheiro para lha pagar e que o direito de uso e habitação que atribuiu ao réu decorreu dos escassos rendimentos deste tendo a ré acedido ao pedido feito pelos seus dois filhos para que não deixasse o pai sem tecto para morar, atenta a sua idade. E, por isso, se alegou que o acordo foi efectuado nos termos da acta por ser a alternativa mais favorável para o réu e por forma a evitar custos com o processo ( facto 5 não provado).

Parece, pois, exacto que a ré não alegou, pois, em relação ao acordo da partilha, qualquer divergência bilateral entre a vontade declarada e a vontade real (art. 240º, nº 1 do CC), qualquer partilha “falsa e/ simulatória”, que justifique a aplicação do nº 2 do art. 394º do CC.

Mas também não alegou quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo da acta da partilha, que justifique a aplicação do nº 1 do mesmo artigo.

A matéria dos factos não provados 3 a 6 tem, assim, a ver com o contexto ( o fim ou o motivo) do acordo da partilha.

Ora, o art. 394º do CC não exclui a possibilidade de se provar por testemunhas o fim ou o motivo de qualquer documento autêntico, que nem é contrário ao conteúdo do documento, nem constitui uma cláusula adicional ao mesmo ( v. Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, Volume I, 3ª edição, pág. 342)

Sucede, no entanto, que a decisão de facto não se baseou exclusivamente na inadmissibilidade da prova testemunhal. Foi mais além: “ Ainda que assim não fosse, sempre se dirá que toda a prova pessoal que foi produzida para comprovar os alegados créditos da recorrente sobre o réu foi genérica e sem corroboração documental suficiente, isto é, documentação que comprovasse, por um lado, a constituição de tais créditos próprios na esfera jurídica da recorrente e por outro, a apropriação por parte do réu de tais valores, sendo manifestamente insuficiente para tanto as cópias de escrituras públicas de compra e venda de bens herdados, uma delas aliás incompleta e os extratos da conta bancária comum de que alegadamente foram levantados os invocados créditos próprios da recorrente, na medida em que, por um lado, não permitem por si só identificar a proveniência dos valores tal como não permitem também referenciar o autor dos levantamentos efetuados na referida conta bancária comum.”

Assim, independentemente da aplicação ou não do art. 394º do CC, constata-se que a Relação apreciou também a prova pessoal e, com base nela, julgou a impugnação de facto improcedente, decisão que não pode ser sindicada por este Supremo (art. 662º, nº 4 do CPC)

Improcede, igualmente, este fundamento de recurso de revista normal.

Porém, a recorrente interpôs, também, recurso de revista excepcional., nos termos do art. 672º, nº 1, al. a) e b) do CPC.

Assim, nas suas alegações, em” I. Motivação do recurso de revista c) 2 e 3 e d)” refere: que a questão de saber se perante a matéria de facto provada se deve ter por demonstrado o cumprimento dos requisitos legais da impugnação pauliana tem relevância jurídica, sendo necessária uma melhor aplicação do direito (I c 2); que está em causa aferir a ausência da justa apreciação e aplicação dos” princípios da segurança jurídica, confiança e da boa fé no instituto da impugnação pauliana e ainda os moldes e objectivos em que a partilha entre cônjuges deverá ser realizada” (I c 3); e que estão em causa interesses de particular relevância social, atenta a “repercussão e quiçá alarme dada a controvérsia dos interesses em causa, por afinidade com valores de segurança jurídica, mediante uma situação que põe em causa a eficácia do direito…“ (I d)).

Mostram-se verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso, designadamente os relacionados com a natureza e conteúdo da decisão, valor do processo e da sucumbência, legitimidade e tempestividade (arts 629º, 631º, 638º e 671º do CPC).

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível em:

a) negar a revista normal relativamente à decisão de facto;

b) determinar a remessa dos autos à formação com vista a verificar os requisitos específicos da admissibilidade da revista excepcional.

As custas do recurso ficarão pela recorrente, se a revista excepcional não for admitida.


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Lisboa, 12 de Março de 2024

António Magalhães (Relator)

Jorge Arcanjo

Manuel Aguiar Pereira