Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1253/07.9TVLSB.L2.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
SEGURADORA
DIREITO DE REGRESSO
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 05/07/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:

DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL - CONTRATO DE SEGURO E PROVA - DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 429 e 641.
- Fernando Reglero Campos, Tratado de Respansabilidad Civil, Tomo I, Parte General, Thomson-Arandazi, 2008, Cizur Menor (Navarra), 721 a 780.
- Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 1997, 409.
- Ignacio Sierra Gil de la Cuesta, Tratado de Responsabilidad Civil, Tomo I, Bosch, Barcelona, 2008, 415.
- Miranda Barbosa, Ana Mafalda, Responsabilidade Civil Extracontratual – Novas Perspectivas em Matéria de Nexo de Causalidade, Princípia Editora, Cascais, 2014, 23 a 26, 33 e segs., 196.
- Vaz Serra, “Obrigação de Indemnização”, BMJ nº 84, nº 5, 29.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 722.º, 729.º.
DL N.º 522/85, DE 31-12 (ACTUALMENTE, ART. 27.º, AL. C), DO DL N.º 291/2007, DE 31-08): - ARTIGO 19.º, ALÍNEA C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 11-5-2000, BOL. 497-350; AC. S.T.J. DE 30-11-2000, COL. AC. S.T.J., VIII, 3º, 150; AC. S.T.J. DE 21-6-2001, COL. AC. S.T.J., IX, 2º, 127; AC. S.T.J. DE 15-1-2002, COL. AC. S.T.J., X, 1º, 36, DE 01-07-2003, DE 11-01-2011, E DE 15-03-2012, ESTES ÚLTIMOS EM WWW.DGSI.PT .
Jurisprudência Estrangeira:
SUPREMO TRIBUNAL ESPANHOL:
-DECISÃO DE 24 DE MAIO DE 2004.
Sumário :
I - O nexo que tem de ser apurado, a fim de indagar do direito de regresso por uma indemnização paga por uma seguradora, tem que estabelecer-se entre uma conduta que está legalmente vedada ao sujeito que assume a responsabilidade de conduzir um veículo na via pública – a saber, liberto de substâncias tóxicas e obnubilantes que impeçam a concentração das percepções e dos sentidos no acto de condução – e a concreta produção do evento lesivo, que não fora o estado inibidor das faculdades intelectivas, psicológicas, motoras e de percepção da dinâmica dos fenómenos circundantes não teria acontecido.

II - No caso concreto, apurou-se que o comportamento pessoal do condutor – condução sob o efeito do álcool provocando um estado de lassidão dos sentidos de atenção e de reacção aos sinais circunstanciais que se passavam na via por onde pretendia passar a circular – teve influência na forma como assumiu a condução e, sequencialmente, no modo como enfrentou, ou desprezou, as circunstâncias em que pretendia abordar a manobra de inversão de marcha que veio a ocasionar a eclosão do evento danoso, ocorrendo, assim, o nexo causal fundamentador que justifica o pedido de regresso, por parte da seguradora, ao amparo do disposto na alínea c) do art. 19.º do DL n.º 522/85, de 31-12 (actualmente, art. 27.º, al. c), do DL n.º 291/2007, de 31-08).
Decisão Texto Integral:

I. – Relatório.  

“AA, S.A.”, intentou acção com processo ordinário, contra BB, peticionando a condenação deste no pagamento da quantia de €120.931,28 - correspondente à indemnização por ela paga no âmbito da acção que correu termos contra si instaurada pelos pais do lesado em acidente de viação em que foi interveniente o Réu que na ocasião conduzia sob a influência do álcool -, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa supletiva legal aplicável aos créditos de que são titulares empresas comerciais, a contar da citação e até integral pagamento.

O réu contestou impugnando a culpa na produção do acidente, e alegando que este se ficou a dever a velocidade excessiva do condutor do motociclo, considerando inverificado o pressuposto do direito de regresso, porquanto a taxa de álcool no sangue de que era portador não foi causa adequada do evento danoso.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença – cfr. fls.351 a 368 -, na qual se condenou o réu a pagar à autora a quantia de €120.931,28, acrescida dos juros de mora desde a citação.

Interposto recurso de apelação pelo réu, por acórdão da Relação de Lisboa, de 14/02/2012 – cfr. fls.502 a 526 -, foi alterada a matéria de facto, e anulada a sentença, a fim do tribunal a quo proferir decisão sobre o quesito 8.º da base instrutória, sem prejuízo do disposto no art. 712.º, n.º 4, in fine, do CPC.

Realizado o julgamento restrito à matéria constante do quesito 8.º, veio a ser foi proferida nova sentença – cfr. fls. 646 a 661- na qual a acção veio a ser julgada parcialmente procedente e o Réu condenado a pagar à Autora, “Companhia de Seguros AA, SA.”, a importância de € 60.465,64, a que deveriam acrescer juros de mora, desde a citação, ocorrida em 2.04.2007, de harmonia com o disposto no art. 805.º, n.º 1, do Código Civil, à taxa legal (relativa a créditos de que são titulares empresas comerciais).

Na apelação interposta, veio, depois de coonestada a decisão da matéria de facto, a ser julgada “[parcialmente] procedente a apelação e, em consequência, revoga[da] a sentença recorrida na parte atinente à taxa de juros de mora, a qual é a estabelecida na lei para os juros de mora civis, sendo o mesma a 4% ao ano.” – cfr. fls. 770 a 797.

Da decisão ora prolatada vem impulsado o presente recurso de revista, que o demandado/recorrente ceva com o quadro conclusivo que a seguir queda transcrito – cfr. fls. 827 a 843. 

I.A. – Quadro Conclusivo.

“A) Advém o presente recurso do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, na parte em que negou provimento ao Recurso de Apelação, interposto pelo ora recorrente, decidindo pela procedência, no caso sub judice, do direito de regresso da seguradora, e ora recorrida, contra o segurado, e ora aqui recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 19.º, alínea c) do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, que dispõe que "satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso contra o condutor se este tiver agido sob a influência de álcool", considerando que:

i) Ao abrigo deste normativo o fundamento do direito de regresso se traduz no facto de o réu ter causado o acidente (do qual resultaram danos e o pagamento da indemnização subsequente) por ter agido sob a influência do álcool, exigindo-se à seguradora o ónus da prova do nexo de causalidade adequada entre a condução sob a influência do álcool e o acidente.

ii) Para a determinação do que se considera causa adequada se utiliza um juízo de prognose posterior, sendo do conhecimento comum que o álcool influencia os comportamentos, actuando sobre o cérebro e que uma TAS de 1,86 g/l interfere nas capacidades e reflexos necessários à condução automóvel.

iii) Em face das circunstâncias concretas envolventes do acidente dos presentes autos, o grau de alcoolemia apresentado pelo réu (o qual constitui um ilícito criminal) era de molde a determinar as infracções estradais e as falhas de condução (violação das regras de prioridade de passagem) cometidas por este, sendo razoável e previsível para um homem médio que aquela taxa era adequada a influenciar o acto de condução. Concluindo que há, assim, uma ligação causal entre o estado de alcoolemia do condutor e as deficiências e erros de condução que despoletaram o acidente ou seja que a taxa de álcool no sangue influenciou efectivamente o tipo de condução praticado funcionando como causa do acidente.

iv) Na ordem natural das coisas, se o réu tivesse atentado na circulação do motociclo e não tivesse cortado a trajectória deste, em violação do direito de prioridade, o acidente não teria ocorrido. Pelo que se verificou o nexo de causalidade entre o facto e os danos.

v) O que produz como consequência a obrigação de pagar à Recorrida, “Companhia de Seguros AA, S.A.” a importância de 60.465,64 €, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% contados desde a citação, ocorrida, em 02 de Abril de 2007, até integral pagamento.

B) O artigo 19.º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro (em vigor na altura em que ocorreram os factos em discussão no presente recurso) estatui que: "Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefaciente ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado.

C) O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2002, de 28 de Maio (publicado no Diário da República, I Série A, de 18 de Julho de 2002) veio pronunciar-se sobre o âmbito de interpretação e aplicação da alínea c), do artigo 19.º, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro.

D) Pela sua relevância jurisprudencial e pela importância que este Acórdão Uniformizador tem para o caso sub judice dele se transcrevem os excertos seguintes: "Constituindo o direito de regresso um direito ex novo surgido com a extinção da obrigação para com o lesado e ficando a seguradora na posição de credora em relação ao segurado pela mesma ou diversa quantia, pelo mesmo motivo e pelo mesmo facto, o segurado terá o dever de pagar à seguradora o que esta despendeu se se verificar o fundamento do regresso. E este tem a sua razão de ser no facto e na medida em que o condutor tiver causado o acidente por influência do álcool... "

E) "O direito de regresso no Decreto-Lei n.º 522/85 é uma circunstância específica em relação à responsabilidade da seguradora nos acidentes de viação [...] Não é qualquer fundamento de culpa do condutor que leva à existência do direito de regresso, mas só um dos incluídos no artigo 19.º do decreto-lei citado. [...] "

F) "E porque de um direito especial se trata, o direito de regresso tem de ser demonstrado nos termos gerais de direito, uma vez que nenhuma disposição do Decreto-Lei n.º 522/85 veio afastar o regime geral da responsabilização, criando presunções, alterando o ónus da prova ou outro circunstancialismo que se desvie do regime geral."

G) "Posições diferentes, como o efeito automático ou o funcionamento da presunção, podiam conduzir a que, satisfeita a indemnização, o segurado estivesse sujeito a uma sanção civil (pagamento da indemnização, independentemente do grau de culpa, da sua inexistência ou até do acidente ter ocorrido por mero risco. Este efeito automático. espécie de responsabilidade objectiva. não é aceitável e só existe quando a lei o preveja. Temos ainda de ter em conta que pode até haver ausência de intervenção do segurado no processo que levou à atribuição da indemnização ao lesado com fundamento em condução sob a influência do álcool. Não resulta da lei nem é função do sistema reparador dos danos em direito civil uma solução cujo efeito derivaria de uma solução que representa uma sanção civil resultante do efeito da condução sob certo grau de alcoolemia sem a averiguação da culpa e do nexo entre o estado de alcoolemia e o acidente.

H)"Sendo o fundamento do direito ao reembolso pela seguradora a condução sob o efeito do álcool, cabe a quem invoca o direito o dever de provar os pressupostos de que ele depende e no qual se inclui a existência de alcoolemia e do nexo causal dela com a produção do acidente (artigo 342.ºdo Código Civil)[…] "

I) "Agir sob a influência do álcool é um facto relativizado. pois as circunstâncias em que a influência do álcool potencializa uma condução irregular varia de pessoa para pessoa: e nem o grau de alcoolemia podia ser fixado em termos de ser presunção segura de que fosse ele o causador da manobra que levou ao acidente.[...]"

J) A justificação para a necessidade da prova do nexo de causalidade pelo autor entre a condução sob a influência do álcool e o acidente resulta dos próprios termos da alínea c) do artigo 19.º o Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro. É necessário que o demandado aja sob a influência do álcool e não apenas que ele conduzisse etilizado, nos termos previstos nas normas penais ou contra-ordenacionais. O grau de alcoolemia podia estar acima dos limites legais, o que seria fundamento para a condenação, em sede própria, no regime penal, como actividade perigosa. Mas uma tal condução pode não contribuir para o acidente. A expressão usada na lei “agido sob a influência do álcool”, é uma exigência relativa à actuação do condutor que não tem de ligar-se ao regime considerado legalmente susceptível de condenação penal. Diz a lei agir sob a influência do álcool e não estar sob a influência do álcool […]"

K) «A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente. "

L) Nos termos do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2002, de 28 de Maio, a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool exige o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.

M) Como bem refere o acórdão recorrido ''[...] o direito de regresso atribuído à seguradora no confronto do beneficiário do seguro obrigatório de responsabilidade civil que tenha agido sob a influência do álcool não é um efeito automático da violação objectiva das normas penais ou contra-ordenacionais que dispõem sobre as condições psicológicas e de domínio do comportamento de veículos automóveis (proibindo-a sempre que se ultrapasse determinado limiar de alcoolemia), nem assenta numa presunção legal de causalidade do arau de alcoolemia apurado quanto ao condutor relativamente à eclosão do acidente."

N) Ora apesar da afirmação feita no douto acórdão da Relação recorrido, a verdade é que a decisão recorrida se socorreu de inferências e presunções de culpa em clara violação da lei. Senão vejamos.

O) A regra em matéria de responsabilidade civil extracontratual é a de que não há responsabilidade sem culpa (artigo 483.º do Código Civil) e que a culpa não se presume, incumbindo ao lesado provar a culpa do autor da lesão.

P) Relativamente à questão da culpa na produção do acidente, importa verificar o que sobre este assunto se dispôs no douto acórdão recorrido: "Este segmento da decisão proferida em 1.ª instância, relativo ao facto da infeliz vítima no momento do acidente, circular a cerca de 110 Kms/h e de ter contribuído de forma culposa para a ocorrência do mesmo não foi impugnado na apelação, nem nas contra-alegações da apelada, que não promoveu a ampliação do objecto do recurso (artigo 684-A do CPC).

Consequentemente, nesta parte, haverá que respeitar o princípio da estabilidade das decisões recorridas, ínsito no n.º 4 do artigo 684.ºdo CPC. "

E, como supra deixámos expresso, o tribunal a quo deduziu dos factos provados, sem impugnação, que o motociclo circulava à velocidade de cerca de 110 Kms/h. A essa velocidade o motociclo percorreu 30,55m por segundo. Ora, ainda que o réu tivesse realizado a manobra de inversão do sentido de marcha lentamente, a 10Km/h percorria 2,77 metros por segundo.

Infere-se daqui que o réu executou a manobra provada (invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária em sentido oblíquo, avançando até à fila direita, do sentido Norte­-Sul, já tendo descrito cerca de 320.º daquela manobra aquando do embate) em cerca de 2 segundos.

Significa isto que, aquando o réu iniciou a manobra de inversão do sentido de marcha, podia ter avistado o motociclo.

E, segundo se apurou, só não avistou o mesmo por conduzir com uma taxa de álcool no sangue de 1.86 gramas por litro, a qual lhe causou perturbações que interferiram na sua capacidade de condução, a nível mental, neuromuscular e visual, que o impediu de se aperceber da aproximação do motociclo, o que contribuiu para a ocorrência do embate (O sublinhado é nosso).” Do acima exposto verifica-se que a decisão recorrida partindo de pressupostos de facto que não se encontravam na matéria de facto provada, estimou tempos de reacção do condutor do veículo e aqui recorrente, para concluir, com base nesses pressupostos de facto e inferências, que este podia ter avistado o motociclo e que isso só não aconteceu devido à taxa de álcool no sangue.

Q) Desde logo, partiu a decisão recorrida do princípio que o réu teria realizado a manobra de inversão de sentido de marcha a 10 Km/h, percorrendo 2,77m por segundo, pelo que teria realizado tal manobra em 2 segundos. Tal facto não consta da matéria de facto provada e a realidade é que os factos dados como provados não apontam neste sentido.

R) Na verdade refere-se logo no ponto um da matéria de facto dada como provada que "no âmbito do exercício da sua actividade, a “Companhia de Seguros AA, SA.”, celebrou com a Câmara Municipal de Lisboa, o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice 60/6.630.880, através do qual assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de mercadorias, de marca (e modelo) I..., com a matrícula …-0P.

S) Ora este tipo de veículo, como consta de fotografias juntas aos autos pela própria Autora, tem dimensões superiores a um automóvel, sendo uma verdadeira camionete, com duas filas de assentos para passageiros e uma caixa aberta na parte detrás para recolha de mercadoria.

T) Considerando as características e a dimensão destas camionetes I..., parece-nos ser manifestamente exagerado e até inexequível que a mesma consiga realizar a manobra de inversão de sentido de marcha a 10 km/h, para além de que a execução de qualquer manobra com um veículo de maior dimensão demora sempre mais tempo, superando com facilidade os dois segundos considerados. Pelo que, e face à velocidade do motociclo, o recorrente não o conseguiu avistar.

V) Assim, a decisão recorrida socorreu-se de inferências e presunções para firmar a culpa do aqui ora recorrente em clara violação do artigo 483.º do Código Civil e do artigo 19.º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro.

W) Por outro lado, refere o douto acórdão recorrido que: “E, segundo se apurou, só não avistou o mesmo por conduzir com uma taxa de álcool no sangue de 1,86 gramas por litro, a qual lhe causou perturbações que interferiram na sua capacidade de condução, a nível mental, neuro-muscular e visual, que o impediu de se aperceber da aproximação do motociclo, o que contribuiu para a ocorrência do embate (O sublinhado é nosso).

X) A este propósito cita-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/04/2003, proferido no processo n.º 03A202, acessível em www.dgsi.pt : "Ora, no caso da alcoolemia, embora se possa ter por adquirido que a ingestão de álcool para além de certos limites (que são ainda discutidos) afecta a capacidade de reacção e concentração, diminuindo os reflexos, é também do conhecimento geral que tais efeitos variam de individuo para individuo, de tal modo que determinada taxa de alcoolemia pode ser indiferente para uma pessoa e deixar outra em estado de notária perturbação. [...]

Porque é este o ensinamento da experiência, só casuisticamente se poderá retirar a referida conclusão.”

Y) Ora não se pode afirmar que tivesse havido uma análise casuística no presente caso, uma vez que após o acidente o Recorrente não foi observado por qualquer médico, sendo assim o testemunho do Sr. Dr. DD, entendido tão só como mero parecer ou opinião técnica sob os efeitos, em geral, do álcool nos condutores - sem qualquer incidência concreta sobre a situação dos autos.

Z) De harmonia com o estabelecido no artigo 349.º do Código Civil, presunção legal são as ilações que a lei tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido.

AA) As presunções legais fundamentam-se nos ensinamentos da experiência comum, em razões de ciência e até na grande dificuldade que teria a parte, normalmente onerada com o ónus da prova, em fazer a demonstração do facto presumido, mas são sempre estabelecidas pelo legislador, não sendo lícito ao interprete alterar as regras do ónus da prova.

BB) O Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro em parte alguma estabelece uma tal presunção legal.

CC) Assim, neste caso e contrariamente ao afirmado no acórdão recorrido não é possível perante a prova de uma taxa de álcool de 1,86 g/l no sangue do Recorrente concluir-se pela necessária influência no comportamento ou forma de agir do mesmo, em termos de poder ter-se como certo, como notório, que o acidente em que teve intervenção o Recorrente resultou do seu estado de alcoolemia.

DD) Deste modo não está demostrado, nem provado que a situação de alcoolemia foi a causa ou concausa do acidente, nem a presença de álcool no sangue do Recorrente admite que se presuma esse nexo de causalidade, pelo que não assiste à Recorrida qualquer direito de regresso sobre o Réu.

EE) Sem prescindir, cumpre ainda salientar que à velocidade a que circulava o motociclo - 110Km/h muito superior a que é permitida dentro das localidades ­configura um facto imprevisível e excepcional para os outros condutores e que desde logo o Recorrente não a podia prever antes de iniciar a manobra.

FF) Sendo certo que se se verificassem as mesmas circunstâncias de tempo, lugar, e modo como se produziu o acidente em questão nos autos, mas com uma única diferença que o motociclo circulasse à velocidade de 50 km/h, como legalmente estava obrigado, produzir-se-ia um toque no veículo ligeiro de mercadorias sem a gravidade dos danos e lesões que aqui se discute.

GG) Assim, pelo facto de se terem verificado os danos no veículo ligeiro de mercadorias e no motociclo e as lesões que provocaram a morte do seu condutor, tais danos não podem ser imputados ao ora Recorrente, uma vez que são consequência directa da velocidade excessiva a que circulava o motociclo.”

A recorrida, não contaminou a alegação do recorrente.

I.B. – Questões a Merecer apreciação.

Tal como, correctamente, se anuncia na alegação de recurso, a questão de que depende a resolução do litigio que opõe a demandante e o demandado, aqui recorrente, prende-se com a interpretação da alínea c) do artigo 19.º do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, o que vale dizer, nas palavras do recorrente, se “[para] a verificação do direito de regresso é necessário que o agente tenha causado o acidente por ter agido sob a influência do álcool . O que significa que o estado de alcoolemia do condutor terá de ser a causa adequada do acidente, para quer surja o direito de regresso concedido, a título excepcional á seguradora.” 

II. – FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. – DE FACTO.

Sem alteração da decisão de facto que cevou a decisão de primeira (1.ª) instância, está adquirida para a decisão a proferir, a factualidade que a seguir se deixa extractada:          

“I. No âmbito do exercício da sua actividade, a Companhia de Seguros AA, S.A. celebrou com a Câmara Municipal de Lisboa, o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice … através do qual assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de mercadorias, de marca (e modelo) I..., com a matrícula …0P (al. A) dos Factos Assentes).

2. No dia 26 de Março de 2000, pelas 05H15, o condutor da dita viatura segura na A., o ora Réu, BB, esteve envolvido num acidente de viação que ocorreu na Avenida ..., neste Concelho e Comarca de Lisboa (al. B) dos Factos Assentes).

3. No momento do embate o tempo estava bom e o piso estava seco (al. I) dos Factos Assentes).

4. A faixa de rodagem da Av. ... é uma recta, com duplo sentido de trânsito, composta por duas filas de trânsito, em cada sentido. Havendo, porém, a cerca de 20 metros do entroncamento com a Rua ..., nos dois sentidos, uma terceira fila para quem pretenda mudar de direcção (resposta ao art. 3.º-A da BI).

5. A faixa de rodagem da Av. ... é uma recta e no sentido Norte/Sul, antes de chegar ao entroncamento com a Rua ..., faz uma inclinação ascendente (resposta ao art. 3.º-B da BI).

6. O Réu circulava na faixa mais à esquerda daquela avenida, no sentido de marcha Sul/Norte (al. C) dos Factos Assentes).

7. Ao chegar ao entroncamento formado entre aquela avenida e a Rua ..., e com o intuito de inverter o seu sentido de marcha, o Réu avançou com o veículo seguro de forma oblíqua (al. D) dos Factos Assentes).

8.O Réu procedeu à manobra de inversão de marcha (resposta ao art. 1.º da BI).

9.E invadiu, assim, a hemi-faixa de rodagem esquerda destinada à circulação dos veículos que seguiam em sentido contrário ao seu (al. E) dos Factos Assentes).

10. Na sequência de tal manobra ocorreu o embate entre a parte lateral direita do veículo seguro e do motociclo Honda CBR 900 RI de matrícula ...DG (al. F) dos Factos Assentes).

11. O qual era conduzido por EE (al. G) dos Factos Assentes).

12. Que circulava em sentido contrário ao do Réu, ou seja, no sentido Norte/Sul, na faixa mais à esquerda daquela mesma Avenida ... (al. H) dos Factos Assentes).

13. Quando entrou no cruzamento o Réu avançou até à fila da direita, do sentido Norte/Sul, e quando estava prestes a concluir a manobra referida na resposta ao art. 1.º - já tendo descrito cerca de 320.º - foi embatido na parte dianteira lateral direita pela frente do motociclo ...DG (resposta ao art. 7.º da B I).

14. O motociclo ...DGI devido à velocidade a que sequia, deixou vestígios de travagem numa extensão de 8.10 m de extensão a que acresceu um vestígio de derrapagem de 4m (resposta ao art. 8.º da BI).

15. No local onde o veículo seguro se encontrava, no momento do embate e para o seu lado direito, permitia-lhe uma visibilidade de cerca de 100 metros (resposta ao arte 3.º da BI).

16. Quem seguia no sentido de trânsito do motociclo e pela mesma fila de trânsito só conseguia ver um veículo no local onde estava o veículo conduzido pelo Réu a cerca de 70/80 metros (al. J) dos Factos Assentes).

17. Aquando do acidente, o Réu conduzia o veículo seguro pela Autora com uma taxa de álcool no sangue de 1,86 gramas por litro (al. P) dos Factos Assentes).

18. Tal facto deu origem ao processo judicial movido pelo Ministério Público contra o ora R., que correu os seus termos sob o n.º 309/00.3SILSB, do 5.º Juízo Criminal, desta Comarca de Lisboa, e onde o R. veio a ser condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e como autor material de um crime de homicídio por negligência (al. Q) dos Factos Assentes).

19. A quantidade de álcool de que o Réu era portador na altura em que efectuou a manobra de inversão de marcha causou-lhe perturbações que interferiram na sua capacidade de condução, a nível mental, neuro-muscular e visual, afectando a respectiva capacidade de julgamento, compreensão, coordenação, acuidade visual e audição e tempo de reacção que o impediram de se aperceber da aproximação do motociclo (resposta ao art. 4.º da BI).

20. O que contribuiu para a ocorrência do embate (resposta ao art. 5.º da BI).

21. Em consequência deste acidente, resultaram danos no veículo terceiro e no veículo seguro (al. K) dos Factos Assentes).

22. Bem como, lesões no condutor do motociclo, EE, que determinaram directa e necessariamente a sua morte (al. L) dos Factos Assentes).

23. Em virtude dos factos supra descritos, foi intentada uma acção judicial por FF e GG, pais do falecido EE contra a ora Autora, que correu termos na 2.ª Secção da 5.ª Vara Cível de Lisboa, sob o n.º 5257/03.2TVLSB, na qual foi proferida sentença que condenou a ora Autora no pagamento aos pais de EE das seguintes quantias: € 7.278/82 a título de danos patrimoniais, acrescido de juros de mora contados a partir de 26/6/2003 à taxa de 4%; € 10.000,00 pelo sofrimento tido por EE, em virtude do acidente; €40.000,00 pela perda do direito à vida de EE e, ainda € 35.000,00, a cada um dos pais pelo sofrimento m razão da morte do seu filho (al. M) dos Factos Assentes).

24. Dessa sentença foi interposto recurso para o Tribunal de Relação de Lisboa que veio a proferir acórdão, já transitado em julgado, que elevou para € 50.000/00 a indemnização, pela perda do direito à vida, de EE e baixou para 25.000.00 a indemnização a receber por cada um dos pais do falecido EE, pelos danos não patrimoniais por eles próprios sofridos (al. N) dos Factos Assentes).

25. Em virtude da decisão proferida nos referidos autos a ora Autora pagou as quantias supra referidas aos pais do falecido EE da seguinte forma:

a) € 58.248,54, em 22/04/2005, respeitante à condenação proferida em 1.ª Instância na parte em que não foi objecto de recurso e acrescida dos respectivos juros de mora;

b) € 62.682,74, em 23/03/2006, respeitante à condenação proferida pelo Acórdão da Relação de Lisboa, acrescida dos respectivos juros de mora (al. O) dos Factos Assentes).”

II.B. – DE DIREITO.

II.B. – Pressupostos do Direito de Regresso da Seguradora contra o condutor, em estado de embriaguez, causante, ou co-causante, de um acidente de viação. Nexo de Causalidade entre o estado de embriaguez e a produção do evento danoso.

O recorrente centra a fundamentação do recurso na inexistência de nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o embate verificado entre o veículo que conduzia e o motociclo conduzido pela vítima, o que a verificar-se isentaria o condutor do dever de pagar a indemnização paga pela empresa seguradora à família do condutor colidente com o veículo conduzido pelo condutor etilizado.

Para a decisão impugnada, que decretou a inteireza do quadro factológico fixado na primeira (1.ª) instância, “o Réu procedeu à manobra de inversão de marcha (resposta ao art. 1.º da BI)”, tendo invadido a “hemi-faixa de rodagem esquerda destinada à circulação dos veículos que seguiam em sentido contrário ao seu (al. E) dos Factos Assentes”; tendo “Na sequência de tal manobra ocorreu o embate entre a parte lateral direita do veículo seguro e do motociclo Honda CBR 900 RI de matrícula ...DG (al. F) dos Factos Assentes)”.

Numa outra dimensão da factualidade adquirida o condutor do veículo automóvel (camioneta), “Quando entrou no cruzamento o Réu avançou até à fila da direita, do sentido Norte/Sul, e quando estava prestes a concluir a manobra referida na resposta ao art. 1.º - já tendo descrito cerca de 320.º - foi embatido na parte dianteira lateral direita pela frente do motociclo ...DG (resposta ao art. 7.º da B I)”, o embate ocorreu, “[devido] à velocidade a que sequia, deixou vestígios de travagem numa extensão de 8.10 m de extensão a que acresceu um vestígio de derrapagem de 4m (resposta ao art. 8.º da BI).

Quanto às características da via e condições de visibilidade, para o condutor do veículo automóvel, tratava-se de uma estrada de traçado recto, sendo oque na via por onde o motociclo circulava, a sua presença avistável a cerca de cem metros do local onde ocorreu a manobra de inversão de marcha – cfr. resposta ao enunciado fáctico sob o n.º 3.º da BI -, para o ciclomotorista o veículo conduzido pelo recorrente seria avistável a cerca de 70/80 metros. 

O condutor do veículo automóvel, aquando do acidente, “conduzia o veículo seguro pela Autora com uma taxa de álcool no sangue de 1,86 gramas por litro (al. P) dos Factos Assentes)”, sendo “[a] quantidade de álcool de que o Réu era portador na altura em que efectuou a manobra de inversão de marcha causou-lhe perturbações que interferiram na sua capacidade de condução, a nível mental, neuro-muscular e visual, afectando a respectiva capacidade de julgamento, compreensão, coordenação, acuidade visual e audição e tempo de reacção que o impediram de se aperceber da aproximação do motociclo (resposta ao art. 4.º da BI).”

O tribunal deu como provado que a influência exercida pelo álcool no condutor “[contribuiu] para a ocorrência do embate (resposta ao art. 5.º da BI).”

Em lhanas e lineares palavras, o acidente de viação que cumpre apreciar ficou a dever-se: a) – na valoração da conduta do condutor do veículo automóvel à tomada de decisão e execução de uma manobra de inversão de marcha, sem que tivesse atentado que a realização dessa manobra punha em perigo o trânsito que se processava na faixa de rodagem por onde passava a circular, dada a distracção, impreparação e torpeza de sentidos que lhe era, psicologicamente, induzida por uma taxa de alcoolemia de 1,86 gramas/litro de álcool no sangue; b) – por banda do condutor que conduzia a moto, por circular a uma velocidade superior aquela que é permitida no interior de uma localidade – 50 Kilómetros/hora – e não ter, devido à velocidade que imprimia ao veículo motorizado, conseguido parar a tempo de evitar o embate no veículo automóvel. Ainda em termos mais singelos, o condutor do veículo com motor infringiu regras de inversão de marcha, por conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à que é permitida por lei, enquanto que, o ciclomotorista excedeu os limites de velocidade impostos por lei para circulação de veículos nas localidades, o que terá sido concausal do sinistro. Concorrem, deste modo duas causas, reciprocas e simultâneas, para a produção do resultado danoso. A uma inversão de marcha descuidada e desatenta, pela elevada taxa de álcool no sangue, da parte do condutor do veículo automóvel, concorre ou conchava-se um excesso de velocidade com que o condutor do velocípede com motor circulava e que impediu uma evitação do embate.

A recorrente traz como único fundamento da revista a causalidade adequada que deve patentear-se entre uma condução sobre a influência do álcool e o direito de regresso que a demandante invoca com fundamento do direito que peticiona.

A questão de uma exigência lógico-normativa entre o direito de regresso a accionar contra um segurado, pela seguradora que, por virtude de um contrato de seguro, é compelida a indemnizar o lesado, por danos materiais e pessoais que o seu segurado haja provocado na esfera de direitos de outrem, teve guarida no artigo 19.º do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro e foi transportado para o artigo 27.º do Decreto-lei n.º 291/2007, de 31 de Agosto.    

Atendo-nos, entre os vários fundamentos elencados nas alíneas dos citados preceitos, ao direito de regresso com base na influência do álcool, prescrevia a alínea c) do artigo 19.º do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, que a seguradora tinha o direito de regresso “contra o condutor: a) se este não estiver legalmente habilitado ou se tiver agido sob a influência do álcool (…)”. A alínea c) do artigo 27.º do Decreto-lei n.º 291/20007, de 31 de Agosto dispõe, por seu turno, que: “Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: c) contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida (…)”.            

Não quedam dúvidas que, ao tempo em que ocorreu o sinistro ajuizado, a lei regente colimava-se no Decreto-lei n.º 522/85, de 85, de 31 de Dezembro, pelo que, ainda que façamos alusão, no decorrer da argumentação que iremos expender para apreciação do fundamento do recurso ao normativizado na alínea c) do artigo 27.º do Decreto-lei n.º 291/2007, de 31 de Agosto, ela não servirá ou terá outra utilidade que não seja o cotejo e a evolução legislativa que o legislador entendeu imprimir a esta matéria.

A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, resultava de difícil interpretação, na medida em que o legislador colocava como singelo fundamento e motivo para a empresa seguradora accionar o segurado, que este tivesse intervindo num acidente, de que tendo resultado danos materiais ou pessoais, pelos quais devesse ser responsabilizado, e em resultado do qual a empresa seguradora tivesse sido compelida a satisfazer a indemnização, se se apurasse (objectivamente) que o segurado estava, no momento em que ocorreu o acidente, a efectuar a condução sob o efeito ou influência do álcool. Presumia-se que essa influência havia de se fixar em limites legalmente proibidos, fosse para efeitos de processamento do condutor de procedimento contra-ordenacional ou criminal.

A dificuldade de hermenêutica do preceito induziu a necessidade de Supremo Tribunal ter que definir, para efeitos de uniformização de jurisprudência, quais as condições, pressupostos e circunstâncias em que o direito de regresso da empresa seguradora poderia obter provimento. [[1]]

Como se alcança da consulta do aresto a questão apresentou suma dificuldade, atenta a cópia de votos de vencido. (O acórdão foi relatado pelo Conselheiro Simões Freire, por vencimento).

Seja, porém, como for o facto é que a jurisprudência nele plasmada assume natureza de obrigatoriedade – e diga-se, em abono da verdade, que reputamos dever ser a doutrina a ser acatada, por ser a que melhor se adequa, em nosso juízo, à doutrina da imputação (objectiva) [[2]/[3]] de uma conduta a um agente. [[4]]

Para os casos em que a causa de um evento danoso se apresente como única, “o problema causal consistirá, fundamentalmente, em dilucidar se a conduta ou actividade do sujeito, eventualmente, responsável teve a suficiente entidade (idoneidade) para que o resultado danoso tivesse sido provocado, assim como decidir se todos os danos que foram consequência desse facto poderiam ser-lhe imputados. (…) Quer dizer, se de um determinado facto causal se seguem consequências lesivas, que por circunstâncias extraordinárias alcançam uma intensidade desproporcionada em relação com as que normalmente derivariam de factos idênticos ou análogos.” [[5]]          

Em nosso juízo, no caso em apreço, ocorre uma causalidade fundamentadora da responsabilidade entre o estado de etilização do condutor do veículo automóvel e a produção do resultado, ou evento, antijurídico e ilícito. Ou pelo menos, o estado de etilização contribuiu, em igual proporção, para o resultado, dado que, com bem se ponderou nas decisões recorridas, a velocidade a que o motociclo circularia não era compaginável com a velocidade regulada para a circulação viária no interior de uma cidade.

Importando, por constituir o cerne do recurso, avaliar e ponderar a contribuição do condutor do veículo automóvel para a produção do acidente, e, em particular, se da comprovada condução sob o efeito do álcool resultou, causalmente, ou influiu na produção, de forma adequada e necessária, para a produção do resultado ilícito e antijurídico, cremos, em nosso aviso, que a factualidade que supra ficou extractada não deixa margem para dúvida, quando refere, apertis verbis, que “[a] quantidade de álcool de que o Réu era portador na altura em que efectuou a manobra de inversão de marcha causou-lhe perturbações que interferiram na sua capacidade de condução, a nível mental, neuro-muscular e visual, afectando a respectiva capacidade de julgamento, compreensão, coordenação, acuidade visual e audição e tempo de reacção que o impediram de se aperceber da aproximação do motociclo (resposta ao art. 4.º da BI)” e que o álcool de que o condutor do veículo com motor era portador “[contribuiu] para a ocorrência do embate (resposta ao art. 5.º da BI).”

A verificação da existência de nexo de causalidade é matéria que escapa à sindicância deste Supremo Tribunal de Justiça, [[6]] se perspectivada na sua feição naturalística. [[7]/[8]] Na verdade, se abordada no plano meramente naturalístico, o nexo de causalidade inclui matéria de direito probatório cuja sindicância escapa a este Supremo Tribunal, na afirmação do que vem disposto nos artigos 722.º, n.º e 729.º, n.º 2, ambos do Código Processo Civil. A ausência de prova quanto a este pressuposto e não a indagação de se “(…)o facto concreto apurado seja, em abstracto e em geral, apropriado para provar o dano”, como se  escreveu no douto acórdão de 01-07-2003, infra transcrito, não cabe dentro dos poderes de reapreciação deste Supremo Tribunal, pelo ao repristiná-lo neste sede importa o seu desmerecimento.   

No caso concreto, ficou apurado que a conduta pessoal do condutor – condução sob o efeito do álcool gerador, ou indutor, de um estado de lassidão dos sentidos de atenção e de reacção aos sinais circunstanciais que se passavam na via por onde pretendia passar a circular – teve influência na forma com assumiu a condução e, sequencialmente, na maneira e modo como enfrentou, ou desprezou, as circunstâncias em que pretendia abordar a manobra de inversão de marcha e que a incorrecta abordagem da manobra veio a ocasionar a eclosão do evento danoso. Sobra para apurar se, se não verificasse esse estado de diminuição, lassidão, quebra ou capitulação dos sentidos e percepções psicológicas para o exercício da condução, não teria, necessária e adequadamente, ocorrido o sinistro, vale dizer se, abstractamente, o estado de alcoolização é apto a gerar um estado psicológico capaz de determinar a produção de perturbações susceptíveis de criar um risco e perigo acrescido para a circulação viária.

Numa inovadora e aliciante perspectiva da categoria jurídica do nexo de causalidade – crismado de nexo de imputação ou nexo de ilicitude – Ana Mafalda Castanheira Neves, refere que o lesado tem de provar “a existência de uma tessitura que, uma vez desenhada, justifique a assimilação do seu âmbito de relevância pelo âmbito de relevância do sistema. Isto é, tem de provar a edificação de uma esfera de risco e a existência de um evento lesivo. O juízo acerca da pertença deste aquela esfera traduzir-se-á numa dimensão normativa da realização judicativo-decisória do direito que convocará o sentido último da pessoalidade e um ideia de risco lido à luz daquela. Pelo que, em última instância, ficamos libertos das dificuldades que tradicionalmente agrilhoam o decidente e o levam a procurar soluções que vão desde as presunções de causalidade, o alívio do ónus da prova dos caos de dolo e situações especialmente perigosas, as presunções prima facie, a regra id quo plerumque accidit, a regra res ipsa loquitur, o alívio das exigências em termos de probabilidades, o recurso a categorias como a perda de chance.” [[9]]           

Seja numa perspectiva de assimilação/assumpção do nexo de causalidade como imputação objectiva [[10]], defendida pela autora citada, seja numa perspectiva de nexo de causalidade assumida como dimensão normativa-positival, de causalidade adequada, [[11]/[12]] na decisão do caso em apreço, em que o que vem pedido é o direito de regresso por uma indemnização já paga pela empresa seguradora, o estabelecimento do nexo de causalidade fundamentadora da responsabilidade pelo dever de regresso, por banda do responsável de uma conduta que, por ser ético-axiologicamente censurável e reprovável, exclui a responsabilidade contratual da empresa seguradora, radica na imputação, objectiva e subjectiva, da acção viária do sujeito obrigado ao regresso da indemnização já paga. Vale dizer, que, neste caso, o nexo que tem de ser averiguado, determinado e estabelecido é entre uma conduta que está legalmente vedada ao sujeito que assume a responsabilidade de conduzir um veículo na via pública, a saber liberto de substâncias tóxicas e obnubilantes que impeçam a concentração das percepções e dos sentidos no acto de condução, e a concreta produção de um evento lesivo, que não fora o estado inibidor das faculdades intelectivas, psicológicas, motoras e de percepção da dinâmica dos fenómenos circundantes, não teria acaecido. [[13]]

A factualidade que supra se deixou extractada reflecte uma conexão causal e sucessivamente conformada entre o estado psico-pessoal do condutor do veículo automóvel – influenciado por uma taxa de alcoolemia ético-penalmente censurável e reprovável – e o evento lesivo de que resultou um embate de que resultaria a morte de uma pessoa.

Em nosso juízo, não quedam dúvidas de que, em face da factologia provada, o estado de alcoolemia de que o condutor do veículo automóvel era portador foi causal e determinou um estado de incapacidade de percepção da aproximação do velocípede com motor que foi determinante da colisão entre este e o veículo automóvel.

Ocorre, no caso, nexo causal fundamentador que justifica o pedido de regresso, por parte da empresa seguradora, ao amparo do disposto na alínea c) do artigo 19.º do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro.

III. - DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 1.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Negar a revista e, consequentemente, manter a decisão recorrida.

- Custas pelo recorrente.

                                                           Lisboa, 7 de Maio de 2014

 Gabriel Catarino – (Relator)

 Maria Clara Sottomayor

 Sebastião Póvoas

    

________________________
[1] “A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor, por ter agido sob influência do álcool, o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.” – Diário da República – I Série –A, n.º 164, de 18 de Julho de 2002.
[2] cfr. Miranda Barbosa, Ana Mafalda, in “Responsabilidade Civil Extracontratual – Novas Perspectivas em Matéria de Nexo de Causalidade” Princípia Editora, Cascais, 2014, pgs. 23 a 26.     
[3] Quanto à necessidade de distinção entre imputação objectiva e relação causal (numa perspectiva jurídico-penal), veja-se Fernando Reglero Campos, in “Tratado de Respansabilidad Civil”, Tomo I, Parte General, Thomson-Arandazi, 2008, Cizur Menor (Navarra), pags. 730 e 731.
[4] Numa perspectiva mais actualista, Fernando Reglero Santos, in op. loc. cit. pags. 721 a 780, refere que para que uma conduta se possa imputar, ou ser causal de um evento danoso, “é suficiente que o prejuízo se haja produzido dentro de um determinado âmbito, o da aplicação da norma especial, para que seja imputável ao sujeito por ela designado, ou ainda que o tenha sido no seio de uma determinada actividade para que a imputação possa ser dirigida contra quem resulte ser o seu titular.” “A determinação de se uma conduta ou actividade se integra na etiologia do facto danoso não constitui tanto um fenómeno que possa ser ubicado dentro de certos critérios axiomáticos ou jurídico-dogmáticos, enquanto uma questão de direito que deva ser resolvida pelo juiz atendendo mais do que a elementos empíricos a critérios puramente subjectivos dirigidos, no caso concreto, à consecução de um resultado justo e equitativo.” (tradução nossa).      
[5] cfr. Fernando Reglero Santos, op. loc. cit. pág. 726.

[6] cfr. a este propósito o douto acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11-01-2011, in www.dgsi.pt, relatado pelo Conselheiro Sebastião Póvoas, em que se escreveu: “O juízo de causalidade numa perspectiva meramente naturalística de apuramento da relação causa-efeito, insere-se no plano puramente factual insindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos e com as ressalvas dos artigos 729.º, n.º 1 e 722.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. 10) Assente esse nexo naturalístico, pode o Supremo Tribunal de Justiça verificar da existência de nexo de causalidade, que se prende com a interpretação e aplicação do artigo 563.º do Código Civil. 11) O artigo 563.º do Código Civil consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias. 12) De acordo com essa doutrina, o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis.
[7] Cfr. a este propósito o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 01-07-2003, relatado pelo Conselheiro Azevedo Ramos. “(…)“Nexo de causalidade: A teoria da causalidade adequada, recebida no art. 563.º do C.C., comporta dois momentos. Num primeiro momento, um nexo naturalístico, consistente na existência de um facto condicionante de um dano, para que haja reparação desse dano sofrido. Ultrapassado aquele primeiro momento, pela positiva, impõe-se um segundo momento, um nexo de adequação, isto é, que o facto concreto apurado seja, em abstracto e em geral, apropriado para provar o dano. Enquanto o nexo naturalístico constitui matéria de facto, cujo apuramento incumbe às instâncias, já o nexo de adequação envolve matéria de direito, de que é lícito ao Supremo conhecer.”
[8] No mesmo sentido da jurisprudência portuguesa segue a jurisprudência do mais alto Tribunal espanhol, como o atesta a sentença do Tribunal Supremo, de 24 de Maio de 2004, citada por Fernando Reglero Campos, pág 727-728, onde se faz a destrinça entre o aspecto puramente fáctico e a dimensão jurídica que engolfa a questão do nexo de causalidade. Refere esta sentença que: “o juízo de causalidade “jurídica” se visualiza em duas sequências, a primeira das quais faz referência à causalidade material ou física, que se apresenta no processo como um problema eminentemente fáctico, e, por ende, como thema probandi, alheia aos preceitos substantivos como os artigos 1902 y 1903 do CC que servem de fundamento de cassação “casacional” motivado, pelo que somente mediante denúncia de erro na valoração probatória na forma adequada cabe uma verificação deste recurso. A segunda sequência – esta sim controlável em sede de cassação – faz referência ao juízo sobre a adequação ou eficiência da causa física ou material para gerar o nexo com o resultado danoso, cuja indemnização se pretende na demanda.” Para mais desenvolvimentos sobre as diversas teorias que informam esta problemática veja-se o Autor citado, na obra que vimos citando, a páginas            
[9] Cfr. Miranda Barbosa, Ana Mafalda, in “Responsabilidade Civil Extracontratual – Novas Perspectivas em Matéria de Nexo de Causalidade” Princípia Editora, Cascais, 2014, pgs. 196.
[10] Cfr. Miranda Barbosa, Ana Mafalda, in op. loc. cit., pgs. 33 e sgs.
[11] Constitui jurisprudência e doutrina assente que a lei – cfr. artigo 563.º do Código Civil – consagrou a teoria da causalidade adequada, segundo a qual, “para que um dano possa ser imputado, causalmente ao agente, o único que se exige é que o nexo causal não haja sido interrompido pela interferência de outra serie causal alheia ``a anterior.” – cfr. Fernando Reglero Campos, in op. loc. cit. pág. 733.  
[12] Na formulação de Ignacio Sierra Gil de la Cuesta, in “Tratado de Responsabilidad Civil”, Tomo I, Bosch, Barcelona, 2008, pag. 415, “(…) nem todos os acontecimentos que precedem um dano (sendo, por assim dizer, as causas da sua produção) têm a mesma relevância. O dano tem de se associar aquele antecedente que, segundo o curso normal dos acontecimentos, tenha sido a sua causa directa e imediata. Todos os demais são periféricos e, portanto, irrelevantes para efeitos de atribuição da responsabilidade. Por isso, uma pessoa responde pelo dano produzido só no caso de que a sua conduta culposa tenha tido esse carácter de causa adequada ou causa normalmente geradora do resultado.” Segundo este tratadista ocorre uma tendência doutrinal de matizar esta doutrina, privilegiando uma imputação subjectiva ou uma imputação objectiva. De acordo com esta última doutrina, constituem-se critérios excludentes da imputação objectiva: 1.º - o risco geral da vida; 2.º - a proibição de regresso (segundo o qual não deve imputar-se objectivamente a quem pôs em marcha um curso normal que conduz a um resultado danoso, quando neste intervém, supervenientemente, a conduta dolosa ou gravemente imprudente de um terceiro; 3.º - o critério da provocação; 4.º - o fim da protecção da norma (não podem ser objectivamente imputados à conduta do autor aqueles resultados danosos que caiam fora do âmbito da finalidade da protecção da norma sobre a qual pretenda fundamentar-se a responsabilidade do demandado; 5.º - o critério denominado do incremento do risco ou da conduta alternativa (não pode imputar-se uma determinada conduta um concreto evento danoso, se, suprimida idealmente aquela conduta, o evento danoso na sua configuração totalmente concreta se tivesse produzido também, com segurança ou probabilidade razoável em certeza, e se a conduta não incrementou o risco de que se haja produzido o evento danoso); 6.º - as supostas competências da vitima (se na configuração concreta de um contacto social, o controle da situação corresponde à vitima, é a ela a quem devam imputar-se as consequências lesivas e não ao comportamento do autor imediato).           
[13] “Assim, no nexo de causalidade entre o facto e o dano, a ligação é feita, em último termo, mediante um nexo de adequação do resultado danoso à conduta, nexo de que este Supremo pode conhecer, por ser questão de direito. (Ac. S.T.J. de 11-5-2000, Bol. 497-350; Ac. S.T.J. de 30-11-2000, Col. Ac. S.T.J., VIII, 3º, 150; Ac. S.T.J. de 21-6-2001, Col. Ac. S.T.J., IX, 2º, 127; Ac. S.T.J. de 15-1-2002, Col. Ac. S.T.J., X, 1º, 36)” – Cfr. Ac. do STJ de 01-07-2003, relatado pelo Conselheiro Azevedo Ramos.
Escreveu-se, a propósito da formulação negativa da teoria da causalidade adequada, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 15-03-2012, in www.dgsi.pt, relatado pelo Conselheiro Hélder Roque, que: “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado, provavelmente, não teria sofrido se não fosse a lesão, de acordo com a doutrina da causalidade adequada, na sua vertente negativa, consagrada pelo artigo 563º, do CC, segundo a qual um facto é causal de um dano quando é um de entre as várias condições sem as quais aquele se não teria produzido.
É que nem todos os danos sobrevindos ao facto ilícito estão incluídos na responsabilidade do agente, mas apenas os que resultam do facto constitutivo da responsabilidade, na medida em que se exige entre o facto e o dano indemnizável um nexo mais apertado do que a simples sucessão cronológica - cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 429 e 641.
Para que possa reclamar-se o ressarcimento de certo dano, é necessário, mas não suficiente, que o acto seja condição dele, porquanto se exige, igualmente, que o mesmo, provavelmente, não teria acontecido se não fosse a lesão, o que reconduz a questão da causalidade a uma questão de probabilidade, sendo, então, causa adequada aquela que, agravando o risco de produção do prejuízo, o torna mais provável – cfr. Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 1997, 409 -, e não aquela que, de acordo com a natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para o produzir, mas que só aconteceu devido a uma circunstância extraordinária – cfr. Vaz Serra, Obrigação de Indemnização, BMJ nº 84, nº 5, 29.