Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B1843ver acórdão T REL
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO
MORA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
PERDA DE INTERESSE DO CREDOR
OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
Nº do Documento: SJ200306120018437
Data do Acordão: 06/12/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 752/02
Data: 12/12/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1. O recorrido só pode prevenir a necessidade de apreciação de fundamentos em que decaiu na decisão recorrida pela parte contrária sob a implementação da ampliação do recurso.
2. O incumprimento do contrato-promessa não decorre exclusivamente de um dos promitentes se recusar a celebrar o contrato prometido, podendo também decorrer da não satisfação pontual de outras prestações conexas que tenham sido convencionadas pelas partes
3. A perda do interesse na prestação por parte do credor não é aferida pelo que a esse propósito o último considera, mas pela apreciação objectiva dos factos que razoavelmente a revelem.
4. Pedindo o autor promitente comprador a execução específica do contrato-promessa é ao réu promitente vendedor que havia comunicado àquele a sua resolução por perda do respectivo interesse que deve alegar e provar o mérito daquele facto extintivo
5. No juízo sobre se a perda do interesse do credor corresponde ou não à realidade das coisas relevam não só as declarações negociais das partes, como também o seu comportamento e as demais circunstâncias envolventes.
6. No caso de obrigações pecuniárias, só em casos excepcionais a mora do devedor é susceptível de provocar a perda do interesse do credor na prestação.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
"A" intentou, no dia 8 de Maio de 1998, contra a "Herdade B, Lda.", acção declarativa constitutiva, com processo ordinário, com fundamento na mora da ré, como promitente vendedora, na outorga do contrato de compra e venda de um prédio rústico sito em São Miguel de Machede, concelho de Évora, pedindo a execução específica do contrato-promessa entre ambos celebrado.
A ré, em contestação, expressou essencialmente não poder proceder a pretensão do autor por lhe haver comunicado a resolução do contrato-promessa em virtude da mora do segundo na marcação da escritura e da perda do seu interesse na venda prometida.
No despacho saneador considerou-se constituir a resolução invocada pela ré excepção peremptória, e relegou-se para a sentença final o seu conhecimento.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença declarativa da substituição da vontade da ré na venda do mencionado prédio, da qual a ré apelou, a Relação negou provimento ao recurso e não conheceu do recurso de agravo interposto pelo autor de despacho atinente à não admissibilidade de um depoimento.

Interpôs a ré recurso de revista, no qual formulou, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- como a recorrente resolveu o contrato-promessa antes da propositura da acção e o recorrido não impugnou a resolução, esta operou os seus efeitos ex nunc, não pode haver execução específica, irrelevando que o recorrido tenha marcado a escritura antes de conhecer da declaração resolutória;
- tendo o recorrido deixado de poder recorrer ao crédito PAR desde 11 de Novembro de 1997 para pagar o preço previsto no contrato-promessa, o prazo para marcar a escritura da sua iniciativa, iniciado naquela data, terminou no dia 11 de Janeiro de 1998;
- ultrapassada a referida data sem o recorrido haver marcado a escritura, constituiu-se em mora que fez perder à recorrente o interesse na outorga do contrato de compra e venda;
- a perda do interesse deriva de a recorrente ter recorrido a crédito bancário para pagar parte do preço da Herdade ... e ter conseguido em Março de 1998 solver esse financiamento com o de um dos seus sócios;
- a resolução do contrato-promessa é válida e eficaz, por a mora do recorrido haver implicado a perda do seu interesse no contrato;
- não é possível a execução específica do contrato-promessa em causa por ter sido resolvido antes da propositura da acção e sem que nesta tenha sido questionada a validade da resolução;
- acórdão recorrido deve ser revogado por ter violado, por erro de interpretação os artigos 432º, nº. 1, 433º, 434º, nº. 1, 801º, nº. 2, 608º e 830º do Código Civil.

Respondeu o recorrido, em síntese de conclusão de alegação:
- a escritura foi marcada muito antes da notificação judicial avulsa e a recorrente defendeu-se na acção por impugnação e não por excepção;
- porque a decisão que julgou improcedente a excepção peremptória da resolução transitou em caso julgado, não pode a questão ser apreciada em sede de recurso;
- a recorrente não perdeu o interesse na celebração o contrato-promessa, a mora na celebração é-lhe imputável e desde sempre o recorrido lhe manifestou interesse naquela celebração;
- porque não invocaram qualquer relação com a recorrente, C e D não tinham legitimidade para resolver o contrato;
- a dificuldade financeira invocada pela recorrente derivada da demora na celebração da escritura não se verifica, por ela lhe ter dado causa e por já estar pago o preço dos três lotes;
- o contrato-promessa não foi válida e eficazmente resolvido pela recorrente porque o recorrido se lhe opôs na acção e as restantes partes no contrato não foram dela notificadas.
II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. C, D e E, este como representante e gerente da ré, como primeiros outorgantes, por um lado, e F, como segundo outorgante e A, como terceiro outorgante, por outro, declararam o seguinte, no dia 3 de Janeiro de 1996, em escrito por eles denominado contrato-promessa de compra e venda:
a) os primeiros outorgantes prometerem vender, por 20 000 000$, a liquidar no acto da escritura notarial de compra e venda, ao terceiro outorgante a parte do prédio rústico denominado Herdade ..., sito na freguesia de São Miguel de Machede, Évora, com a área de 138.700 hectares, composto por terreno de cultura arvorense de sequeiro e regadio, com oliveiras, sobreiros, azinho e pomar, a confrontar do Norte com o Lote B da Herdade ..., a Sul com a Herdade ..., a nascente com a Herdade ... e a Poente com a Ribeira ... .
b) a escritura de compra e venda será realizada em dia, hora e local, a designar de acordo com o IFADAP e a instituição de crédito que vão financiar o terceiro outorgante no âmbito do crédito PAR;
c) os primeiros outorgantes comprometem-se a fornecer toda a documentação necessária para a apreciação e concessão do crédito PAR, bem como a obter a assinatura da proposta respectiva de concessão de crédito, no prazo máximo de 90 dias a contar da data da assinatura do presente contrato;
d) em caso de indeferimento do pedido de financiamento no âmbito do crédito PAR, a escritura realizar-se-á em dia, hora e local a designar pelo terceiro outorgante, no prazo máximo de 60 dias após lhe ter sido comunicado o indeferimento;
e) O terceiro outorgante entra imediatamente na posse da parcela prometida e qualquer das partes pode requerer a execução específica do contrato promessa.
2. O autor tinha direito a recorrer ao crédito mencionado sob 1 b) por ser proprietário de um prédio confinante com o mencionado sob 1 a).
3. Após o declarado sob 1, o autor entregou à ré um formulário para a formulação do pedido de crédito PAR e a última assinou-o e aquele comunicou a esta que o IFADAP exigia que o formulário de candidatura ao crédito PAR fosse assinado pelos então proprietários da Herdade ... .
4. O autor entrou imediatamente na posse do prédio mencionado sob 1 b) e, decorridos os 90 dias mencionados sob 1 c), a ré não forneceu ao autor a documentação ali referida.
5. O prédio mencionado sob 1 b) constitui o lote C e resultou da divisão do prédio rústico denominado Herdade ..., sito na freguesia de São Miguel de Machede, Évora, inscrito na matriz cadastral sob o nº. 1 da secção K, descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora sob o nº. 151/911203.
6. Na data mencionada sob 1, a ré era titular de um contrato-promessa de compra e venda relativo ao lote C da Herdade ..., celebrado no dia 7 de Dezembro de 1995 com os anteriores proprietários daquela Herdade.
7. No dia 29 de Setembro de 1997, em escritura lavrada pelo notário do Cartório Notarial de Arraiolos, G, em representação da Cúria Arquidiocesana de ..., e H, na qualidade de procurador da "Província Portuguesa da Sociedade Salesiana Corporação Missionária", por um lado, e C e D, em representação da ré, as primeiras declararam vender à segunda e esta comprar, por 35.000.000$, o novo prédio rústico, designado por lote A, com a área de 151 hectares e três mil setecentos e cinquenta centiares, confrontando a norte com Herdade ..., do sul com o lote ..., do nascente com Herdade ... e do poente com a Ribeira ... .
8. A aquisição do direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob 7, omisso na matriz predial, está inscrita na Conservatória do Registo Predial de Évora, na titularidade da ré, sob a ficha nº. 261/971104, desde 4 de Novembro de 1997.
9. A ré tentou obter junto dos então proprietários da Herdade ... a assinatura do referido formulário, mas eles recusaram-se a assiná-lo por o sogro do autor ainda não ter pago as rendas devidas pelo arrendamento dos lotes A e B da referida Herdade.
10. Após o falecimento do sogro, o autor só liquidou essas rendas no dia 29 de Setembro de 1997 no Cartório Notarial de Arraiolos, aquando da escritura de compra da pela ré da mencionada Herdade.
11. Os factos mencionados sob 9 e 10 impossibilitaram a celebração da escritura prometida dentro dos prazos mencionados sob 1.
12. No dia 11 de Novembro de 1997, em escritura pública lavrada pelo notário do 4º Cartório Notarial de Lisboa, o autor e I, por um lado, e J, este como administrador da Sociedade Agrícola ..., SA, por outro, declararam, os primeiros vender e a segunda comprar, por 90.000.000$, o prédio misto Herdade ..., sito na freguesia e concelho do Redondo.
13. O autor comunicou à ré a marcação da escritura de compra e venda prometida para o dia 27 de Março de 1998, no 2º Cartório Notarial de Évora.
14. A ré fez chegar ao autor diversos documentos e identificação para a escritura.
15. Por notificação judicial avulsa requerida pela recorrente no dia 26 de Março de 1998, recebida pelo autor em meados de Abril de 1998, a ré declarou-lhe a resolução do contrato, a recusa de celebração do contrato prometido e a reclamar a devolução do prédio, invocando estarem excedidos os prazos estipulados para a celebração da escritura sem que esta se mostrasse realizada e tivesse sido paga qualquer importância relativa ao preço e que por isso tinha perdido o interesse na venda.
16. Nessa data a escritura não foi outorgada por a ré se ter recusado e, entretanto, ter perdido o interesse na concretização do negócio, tal como consta do requerimento para notificação judicial avulsa, com data de 26 de Março de 1998, não obstante tal facto não ser ainda conhecido do autor.
17. O autor enviou à ré uma carta, que ela recebeu, a informá-la de que a escritura de compra ficava aprazada para o dia 9 de Abril de 1998, pelas 10.00 horas, no 2º Cartório Notarial de Évora.
18. Na data mencionada sob 17, a realização da escritura ficou inviabilizada pelos mesmos motivos mencionados sob 16.
19. Posteriormente à data mencionada sob 1, o autor manifestou várias vezes à ré o seu interesse na realização do negócio e a partir do momento mencionado sob 12, deixou de reunir possibilidades de aceder ao crédito PAR.
20. O autor informou o legal representante da ré da impossibilidade de aceder ao crédito par e da marcação da escritura de compra e venda prometida para o dia 27 de Março de 1998 no 2º Cartório Notarial de Évora.
21. A ré fez chegar ao autor diversos documentos de identificação para a escritura.
22. Para além dos factos mencionados sob 20, nada mais foi comunicado pelo autor à ré.
23. Face à demora na concretização do negócio prometido com o autor, a ré viu-se obrigada a recorrer ao crédito bancário para pagar a totalidade da herdade ... aos antigos donos, situação ultrapassada em Março de 1998, quando o sócio D lhe disponibilizou 20.000.000$ por conta do pagamento da sua parte do preço daquela herdade.
III
A questão essencial decidenda é a de saber se o recorrido tem ou não o direito de impor à recorrente a execução específica do contrato entre ambos celebrado.
Considerando o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e do recorrido, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- âmbito do recurso;
- síntese e sentido dos factos provados relevantes para a decisão da causa segundo as soluções plausíveis das questões de direito;
- natureza, regime jurídico e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e o recorrido;
- estrutura e efeitos da declaração de resolução contratual;
- a mora e o incumprimento definitivo no quadro obrigacional;
- consequência jurídica da não impugnação judicial pelo recorrido da resolução do contrato-promessa;
- eficácia ou ineficácia da declaração de resolução do contrato-promessa comunicada pela recorrente ao recorrido;
- solução para o caso decorrente dos factos e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões:

1. Afirmou o recorrido nas conclusões de resposta às alegações da recorrente, por um lado, que C e D não tinham legitimidade para resolver o contrato.
E, por outro, por aqueles não haverem invocado qualquer relação com a recorrente e o contrato-promessa não ter sido válida e eficazmente resolvido por não haver sido comunicada a resolução aos outros outorgantes naquele contrato.
O recorrido, porque a sua posição teve êxito na Relação, não tinha legitimidade para recorrer do seu acórdão (artigo 680º, nº. 1, do Código de Processo Civil).
Todavia, prevenindo a necessidade da sua apreciação, podia provocar a ampliação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, requerendo, mesmo a título subsidiário, que fossem considerados aqueles fundamentos em que tenha decaído, (artigo 684º-A do Código de Processo Civil).
Nada requereu, porém, nesse sentido e, consequentemente fez precludir o referido conhecimento.
Não se conhece, por isso, dos mencionados fundamentos agora invocados pelo recorrido.

2. A recorrente e o recorrido convencionaram, por um lado, condicionar a data da celebração do contrato de compra e venda ao acordo das instituições de crédito que deviam financiar o último quanto ao respectivo preço.
E, por outro, a primeira dever entregar ao segundo, no prazo de 90 dias, contado de 3 de Janeiro de 1996, a documentação necessária para a para a apreciação e concessão do crédito e a assinatura da proposta respectiva.
A recorrente não conseguiu obter de terceiros a assinatura do referido formulário por se terem recusado assiná-lo por o sogro do recorrido não lhes haver pago determinadas rendas, pagamento que só viria a ocorrer em 29 de Setembro de 1997.
Isso inviabilizou até aí, quando já tinha decorrido, desde a celebração do contrato-promessa, um ano, oito meses e vinte e seis dias, a concessão ao recorrido do crédito par e a outorga do contrato prometido.
Perante este quadro, ignorando-se a predisposição do recorrido de insistir na obtenção do crédito par com vista ao pagamento do preço relativo ao contrato prometido, ele a recorrente ficaram confrontados com uma situação de indefinição quanto ao prazo de celebração do contrato prometido.
O desbloqueamento desta situação passava, naturalmente, pela interpelação de uma das partes à outra para outorgar no contrato prometido num certo cartório notarial em determinado dia e hora, o que não ocorreu.
Todavia, posteriormente à data mencionada da celebração do contrato-promessa, o recorrente manifestou várias vezes à recorrente o seu interesse na celebração do contrato de compra e venda.
Mas um mês e doze dias depois da mencionada data de 29 de Setembro de 1997, o recorrido alienou o prédio contíguo àquele que é objecto mediato do contrato prometido, ficando na situação de não poder obter o crédito par.
Ignora-se quais os motivos pelos quais o recorrido optou por alienar o referido prédio contíguo, implicante da não obtenção do crédito par, designadamente se tal ocorreu por virtude de a recorrente não ter conseguido obter a documentação necessária à aludida obtenção.
Mas a recorrente e o recorrido convencionaram no contrato-promessa que indeferido ao último o pedido crédito par, realizar-se-ia a escritura em dia, hora e local a designar pelo último no prazo máximo de 60 dias contado da comunicação do indeferimento.
Não poder obter o crédito par por ter dado causa a essa situação por via da alienação do prédio contíguo, não é, naturalmente o mesmo que a recusa de concessão de crédito por não verificação dos respectivos pressupostos, embora o resultado prático final seja o mesmo.
Mas os princípios da boa fé e da colaboração entre o devedor e o credor implicavam que o prazo de sessenta dias para que o recorrido marcasse a escritura de compra e venda se iniciasse no dia em que aquele teve conhecimento de já não poder aceder ao crédito par.
Ignora-se, porém, se o recorrido conhecia, aquando da alienação do prédio contíguo, que por esse facto ficava impossibilitado de utilizar o referido crédito par ou se apenas conheceu depois disso dessa circunstância.
De qualquer modo, o recorrido, de harmonia com o princípio da boa fé no âmbito contratual, informou o representante da recorrente da impossibilidade de aceder ao crédito par e da marcação da escritura de compra e venda num cartório notarial de Évora para o dia 27 de Março de 1998.
Fê-lo cerca de dois meses e meio depois de 11 de Janeiro de 1998, data em que, segundo a mencionada cláusula a mesma devia ter sido marcada se de recusa de concessão do crédito par se tratasse.
Todavia, conforme acima se referiu, na situação presente, atento o motivo pelo qual o recorrido ficou impossibilitado de recorrer ao crédito par, o referido prazo de sessenta dias devia ser contado da data em que ele teve conhecimento dessa impossibilidade, momento que se ignora.

De qualquer modo, a recorrente, independentemente do circunstancialismo que envolveu a alienação pelo recorrido do prédio contíguo e da data que lhe foi inicialmente comunicada pelo último para a outorga do contrato prometido no respectivo cartório notarial, remeteu àquele, para esse efeito, documentos de identificação, sem referência à sua situação de mora.
Todavia, na véspera do dia marcado para a referida escritura, a recorrente requereu ao tribunal a notificação ao recorrido da sua resolução do contrato-promessa, sob o fundamento de o prazo de marcação da escritura haver sido excedido e de o último nada lhe haver entregue a título de preço, alegando a perda do interesse na contratação e exigindo-lhe a devolução do prédio objecto mediato do contrato prometido, e não compareceu no cartório notarial.
A propósito, ficou assente que pela demora na concretização do negócio prometido, a recorrente se viu obrigada a recorrer ao crédito bancário para pagar a totalidade do preço da Herdade ... aos antigos donos relativo ao contrato de compra e venda celebrado no dia 29 de Dezembro de 1997, e que essa situação foi ultrapassada em Março de 1998, quando o sócio D lhe disponibilizou 20.000.000$ por conta do pagamento da sua parte do preço dela.
O recorrido recebeu a referida notificação cerca de 18 dias depois da data para a qual marcou a outorga da escritura de compra e venda, comunicou à recorrente nova data para essa outorga, no dia 9 de Abril de 1998, às 10:00 horas, no 2º Cartório Notarial de Évora, mas lá não compareceu o seu representante.
Consta de II 16 que a escritura não foi outorgada no dia 27 de Março de 1998. por a recorrente se ter recusado e entretanto perdido o interesse na concretização do negócio tal como constava da notificação judicial avulsa pedida no dia 26 de Março de 1998.
A referida afirmação da perda do interesse na celebração do contrato de compra e venda, que consubstancia uma conclusão jurídica não pode funcionar, como natural, em termos de substituição dos factos que permitissem essa conclusão (artigo 646º, nº. 4, do Código de Processo Civil).

3. Expressa a lei, relativamente ao contrato-promessa, em termos genéricos, por um lado, que à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, pela sua razão de ser, se não devam considerar extensivas ao contrato-promessa (artigo 410º, nº. 1, do Código Civil).
E, por outro, que a promessa relativa à celebração de contrato para o qual a lei exija documento autêntico ou particular, só vale se constar de documento assinado pelos promitentes (artigo 410º, nº. 2, do Código Civil).
Dir-se-á ser o contrato-promessa a convenção pela qual uma ou ambas as partes assumem a obrigação de celebrar determinado contrato.
Considerando as referidas considerações de ordem jurídica e a factualidade mencionada sob II 1 e 4, a conclusão é no sentido de que a recorrente e o recorrido celebraram um contrato-promessa bilateral de compra e venda, sem passagem de sinal, com traditio operada pela primeira para o último do prédio rústico objecto mediato do contrato prometido e convenção de execução específica.
A lei expressa, a propósito da execução específica do contrato-promessa, que se alguém estiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, na falta de convenção em contrário, no que se inclui a passagem de sinal, pode a outra parte, se a tal se não opuser a natureza da obrigação assumida, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso (artigo 830º, nºs. 1 e 2, do Código Civil).
O incumprimento do contrato-promessa não decorre exclusivamente do facto de um dos promitentes se recusar a celebrar o contrato prometido, certo que também pode derivar da não satisfação pontual de outras prestações conexas que tenham sido convencionadas pelas partes, aplicando-se o regime geral da falta de cumprimento das obrigações, conforme decorre do disposto no artigo 410º, nº. 1, do Código Civil.
A natureza da obrigação de prestação de facto relativa à celebração do contrato de compra de venda, assumida pela recorrente e pelo recorrido, é compatível com a convenção de execução específica que está em causa no recurso.
O efeito da procedência da acção declarativa constitutiva intentada por um dos promitentes contra o outro é o de suprimento da vontade negocial do faltoso, isto é, a decisão judicial concernente envolve um efeito igual ao contrato prometido, desde que, no caso de ser intentada pelo promitente comprador contra o promitente vendedor, o primeiro tenha procedido ao depósito judicial do respectivo preço em falta (artigo 830º, nº. 5, do Código Civil).
O facto de um dos promitentes intentar acção de execução específica significa, como é natural, o seu propósito e interesse em obter por via dela a prestação de facto que incumbe à parte contrária.
A via da acção de execução específica é susceptível de procedência, seja, no caso da parte contrária estar na situação e mora de cumprimento como também no caso de haver ocorrido inadimplemento propriamente dito.

4. É admitida a resolução do contrato fundada na lei ou na convenção, a qual é equiparada, em regra, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, e tem efeito retroactivo, salvo se ele contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução (artigos 432º, nº. 1, 433º e 434º do Código Civil).
Não está sujeita a forma especial e pode ser feita por declaração de uma parte comunicada à outra, porque receptícia, sem necessidade de recurso para o efeito aos tribunais, porque reveste carácter extrajudicial, ou seja, ope voluntatis (artigos 224º, nº. 1, e 436º, nº. 1, do Código Civil).
Produz efeitos ex nunc, ou seja, a partir do momento em que a comunicação for recebida pelo respectivo destinatário, embora, conforme o objecto imediato ou mediato do contrato, possa assumir efeito semelhante ao da declaração de nulidade ou de anulabilidade do contrato.
Se litígio houver em juízo sobre a legalidade da resolução do contrato operada pelo credor, verificará o tribunal se ao tempo da respectiva comunicação ao devedor ocorriam ou não os pressupostos legais para o efeito.

5. Os contratos devem ser pontualmente cumpridos e o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (artigos 406º, nº. 1 e 762º, nº. 1, do Código Civil).
Distingue-se, nesta sede, entre o mero retardamento da prestação e a sua não realização definitiva. No primeiro caso, na altura do vencimento, o devedor não cumpre, mas a sua prestação ainda é possível e com interesse para o credor; no segundo caso, tal já não é possível.
O devedor considera-se constituído na situação de mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação ainda possível não foi efectuada no tempo devido (artigo 804º, nº. 2, do Código Civil).
O momento da constituição em mora ocorre, em regra, depois de o devedor haver sido notificado judicial ou extrajudicialmente para cumprir, salvo, além do mais que aqui não releva, a prestação tiver prazo certo (artigo 805º, nºs. 1 e 2, alínea a), do Código Civil).
A prestação que o devedor não realizou no momento devido mas materialmente possível pode, em razão das circunstâncias deixar de assumir interesse para o credor, o que equivale a incumprimento definitivo.
É isso que resulta da lei, ao expressar que se em consequência da mora, o credor perder o interesse que tinha na prestação, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação (artigo 808º, nº. 1, do Código Civil).
A referida perda do interesse na prestação por parte do credor não é aferida por aquilo que a esse propósito ele considera, certo que deve ser apreciada em termos objectivos (artigo 808º, nº. 2, do Código Civil).
No juízo sobre se a perda do interesse do credor corresponde ou não à realidade das coisas relevam não só as declarações negociais das partes, como também o seu comportamento posterior e as demais circunstâncias envolventes.

6. Expressou a recorrente que a resolução do contrato-promessa que operou deve produzir o seu efeito normal por virtude de o recorrido a não haver impugnado.
A referida comunicação foi pedida pela recorrente ao tribunal na véspera do dia em que o recorrido, pela segunda vez, marcava a data da outorga no cartório notarial do contrato prometido de compra e venda.
Ignora-se se a recorrente, na altura em que pediu ao tribunal a notificação judicial avulsa do recorrido no que concerte à referida resolução, já conhecia dessa nova marcação da escritura, mas sabe-se que o último intentou a acção em causa contra a primeira cerca de vinte e três dias depois de a recorrente lhe haver comunicado a aludida resolução.
É certo que o recorrido não se referiu desenvolvidamente na petição inicial da acção à comunicação de resolução do contrato-promessa que a recorrente lhe havia comunicado cerca de vinte e três dias antes.
Com efeito, limitou-se a expressar que a recorrente, por via da notificação judicial avulsa, assumiu a recusa a celebrar o contrato prometido e a reclamação da devolução do prédio.
De resto, limitou-se a estruturar a causa de pedir consubstanciada em factos consubstanciadores do incumprimento pela recorrente do contrato-promessa de compra e venda, com base nos quais formulou o pedido da sua execução específica.
A causa de pedir deve ser estruturada com base em factos integrantes da previsão das normas concedentes do direito que se pretende ver reconhecido em juízo (artigos 342º, nº. 1, do Código Civil, 264º, nº. 1 e 467º, nº. 1, alínea c), do Código de Processo Civil).
Quem tinha, segundo os referidos princípios, de impugnar, no instrumento de contestação, a pretensão do recorrido, designadamente invocando a referida resolução, era a recorrente (artigos 487º, nº. 2, 488º, 489º, nº. 1 e 490º, nº. 1, do Código de Processo Civil).
Quem, naturalmente, tinha interesse na declaração da legalidade e da eficácia da mencionada comunicação de resolução do contrato-promessa era, naturalmente, a recorrente, e podia formular esse pedido por via de dedução de pedido reconvencional (artigos 4º, nº. 2, alínea a) e 274º, nº. 2, alínea a), do Código de Processo Civil).
O réu defende-se por impugnação quando contradiz os factos articulados pelo autor ou quando afirma que eles não podem produzir o efeito por ele pretendido (artigo 487º, nº. 2, do Código de Processo Civil).
Ao invocar a resolução do contrato-promessa de compra e venda, a recorrente afirmou que os factos afirmados pelo autor relativos à existência do primeiro dos referidos contratos não podiam produzir o efeito por ele pretendido.
Em consequência, a mencionada invocação traduziu-se em defesa por impugnação, em relação à qual não podia o recorrido apresentar instrumento de réplica (artigo 502º, nº. 1, do Código de Processo Civil).
Ainda que fosse de qualificar a referida defesa da recorrente como defesa por excepção peremptória, caso em que o recorrido podia produzir réplica em relação aos respectivos factos, a consequência respectiva limitar-se-ia à confissão ficta, ou seja, a que eles fossem considerados assentes por acordo das partes (artigos 502º, nº. 1 e 505º do Código de Processo Civil).
Na realidade, porém, conforme resulta dos factos provados, os que a recorrente articulou relativos à resolução do contrato-promessa em causa, foram considerados assentes, do que decorre a irrelevância fáctica da omissão de impugnação por parte de recorrido da factualidade relativa à aludida declaração resolutiva.
O que releva, com efeito, é a questão de saber se a declaração de vontade de resolução do contrato-promessa comunicada ao recorrido pela recorrente deve ou não ser tida por juridicamente relevante para produzir o efeito por ela pretendido.
A conclusão não pode, por isso, deixar de ser no sentido da inexistência de efeito negativo para a pretensão do recorrido pelo facto não haver impugnado judicialmente a comunicação de resolução do contrato-promessa em causa que lhe foi dirigida pela recorrente.

7. Fundou a recorrente a sua declaração de resolução do contrato-promessa de compra e venda em causa na perda de interesse na prestação de facto convencionada com o recorrido, em razão do incumprimento por este do prazo de marcação da escritura e do não pagamento por ele de qualquer parte do preço estipulado.
A este propósito, ficou assente que pela demora na concretização do negócio prometido, a recorrente se viu obrigada a recorrer ao crédito bancário para pagar a totalidade da herdade ... aos antigos donos e que essa situação foi ultrapassada em Março de 1998, quando o sócio D lhe disponibilizou 20.000.000$ por conta do pagamento da sua parte do preço dela.
Estamos perante um contrato-promessa com traditio operada pela recorrente para o recorrido do objecto mediato do contrato prometido.
Ainda que se considerasse o início do prazo de marcação da escritura no momento da alienação do prédio contíguo pelo recorrido e, como vimos, assim não deve ser, atraso ter-se-ia consubstanciado em apenas dois meses e meio, tempo relativamente curto em relação à data da celebração do contrato-promessa, com prazo infixo de celebração do contrato prometido.
Com efeito, o contrato de compra e venda do prédio a que a recorrente se refere ocorreu no dia 29 de Setembro de 1997, ou seja, cerca de dois meses e meio antes de o recorrido, na referida hipótese, dever marcar a escritura de compra e venda e cerca de seis meses antes de o mesmo haver procedido à sua primeira marcação.
Quando o recorrido marcou pela primeira vez a data da escritura de compra e venda, ou seja, no dia 27 de Março de 1998, ainda a recorrente lhe enviou documentos de identificação necessários para o efeito, o que revela que muito próximo dessa data, ainda não havia configurado a sua perda de interesse na prestação de compra do primeiro.
O facto de o recorrido não haver entregue à recorrente alguma parte do preço do prédio estipulado no contrato-promessa assume-se aqui como absolutamente irrelevante, certo que o seu pagamento integral foi por ambos convencionado para o momento da outorga do contrato prometido de compra e venda.
A prestação que a recorrente esperava do recorrido por força do contrato-promessa de compra e venda em causa era essencialmente o pagamento do respectivo preço (artigo 879º, alínea c), do Código Civil).
Trata-se, por isso, de uma obrigação pecuniária, em relação às qual, salvo em casos excepcionais, a mora do devedor não afecta o interesse do credor na sua prestação pelo primeiro, pelo que só a via da interpelação admonitória a que se reporta o artigo 808º, nº. 1, do Código Civil justificará, se for caso disso, a resolução do contrato ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128º, nº. 3854, págs. 136 e 137).
Tendo em conta o que resulta dos factos provados e das considerações de ordem jurídica acima enunciadas, analisados os primeiros em termos de objectividade, eles não justificam a resolução do contrato-promessa que a recorrente dirigiu ao recorrido.
Decorrentemente, a conclusão não pode deixar de ser no sentido de que a declaração de resolução do contrato-promessa em causa comunicada pela recorrente ao recorrido queda para o efeito ineficaz e, consequentemente, não obsta, na espécie, ao funcionamento da execução específica.

8. A recorrente, através do seu representante, ao recusar, nos termos categóricos em que o fez, faltando por duas vezes à marcada pelo recorrido escritura de compra e venda e dirigindo àquele a sua declaração de vontade de resolução do contrato de compra e venda, certo é que incumpriu o contrato de promessa de compra e venda em causa.
Não se pode concluir, tendo em conta o que acima se referiu, que o recorrido estivesse em situação de mora ao informar da impossibilidade de recorrer ao crédito par e ao marcar, pela primeira vez, a escritura relativa ao contrato prometido,
Acresce que, nessa altura, ao enviar ao recorrido documentação necessária à celebração da escritura do contrato prometido, a recorrente se comportou em termos de concordância com essa marcação e mora do segundo não houvesse.
Em consequência, perante o incumprimento do contrato-promessa por parte da recorrente, o recorrido, que depositou o preço concernente, tem o direito de àquela impor, no quadro da execução específica e por via de sentença judicial, a substituição da sua declaração de vontade de alienação do prédio em causa.

Improcede, por isso, o recurso, com a consequência de dever manter-se o conteúdo do acórdão recorrido.
Vencida no recurso, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs. 1 2, do Código de Processo Civil).
IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, mantém-se o acórdão recorrido, e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 12 de Junho de 2003
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís