Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B4240ver acórdão T REL
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: QUIRINO SOARES
Nº do Documento: SJ200301090042407
Data do Acordão: 01/09/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 4036/02
Data: 06/06/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
1. "A," pediu a condenação de B- Telefones Nordeste, Lª, a lhe pagar o preço de mercadoria que lhe vendeu, e juros de mora.
A ré contestou, alegando defeitos da mercadoria, composta de telemóveis e de material destinado à instalação de uma central telefónica, defeitos que a fornecedora não reparou, apesar de logo denunciados;
pediu, em reconvenção, indemnização pelos prejuízos sofridos, a liquidar em execução de sentença e a compensar com o crédito da autora.
Esta replicou, e, reconhecendo, embora, alguns defeitos da mercadoria, disse que deu satisfação a todas as reclamações.
Em 1ª instância, a acção obteve parcial ganho de causa, através da condenação da ré a pagar 4.557.940$00, e juros de mora, e foi dada total procedência à reconvenção.
A Relação de Lisboa, para que tinham apelado ambas as partes, revogou a decisão recorrida, absolvendo a ré do pedido de juros de mora e a autora de parte do pedido reconvencional,
a parte que respeita aos prejuízos derivados da substituição das baterias dos telemóveis;
foi dito, como razão de decidir, que, não lhe tendo a autora satisfeito o direito de reparação dos defeitos, a ré nunca chegou a cair em mora, porque lhe assistia o direito de recusar o pagamento do preço enquanto a reparação não fosse efectuada (isto quanto ao problema dos juros moratórios); no que toca à reconvenção, foi a falta de causa de pedir a razão indicada pela Relação para a improcedência do pedido de condenação da autora a indemnizar os prejuízos resultantes da reparação dos telemóveis.
De novo ficaram insatisfeitas ambas as partes, que pediram revista.
A autora diz que a ré não beneficiava da excepção de não cumprimento do contrato porque não alegou que os telemóveis avariados fossem aqueles a que respeitam as facturas em causa, e porque, por outro lado, se provou que a central telefónica foi oportunamente substituída.
A ré defende, por seu lado, que alegou suficientemente os factos materiais que baseiam o pedido de condenação da contra-parte a lhe indemnizar os prejuízos referidos.
2. Os factos dados como provados são os seguintes:
· a autora dedica-se ao fabrico e comercialização de material eléctrico, electrodoméstico e de comunicações, e, no exercício da sua actividade, vendeu à ré, nas datas a que se referem as facturas de fls.4 a 10 e 13 a 15, o material ali discriminado, no montante de 950.040$00, 950.040$00, 958.230$00, 147.420$00, 122.850$00, 958.230$00, 404.586$00, 12.285$00, 46.800$00 e 7.459$00;
· o valor das facturas referidas devia ser pago pela ré, respectivamente, em 19 de Janeiro de 1995, 29 de Janeiro de 1995, 18 de Fevereiro de 1995, 18 de Fevereiro de 1995, 18 de Fevereiro de 1995, 23 de Fevereiro de 1995, 23 de Fevereiro de 1995, 4 de Março de 1995, 9 de Março de 1995 e 24 de Março de 1995;
· a ré apenas pagou à autora, até ao momento, a quantia de 643.131$00;
· em 1994, a autora nomeou a ré agente da A na área de telecomunicações, para Bragança;
· o material a que se referem as facturas constantes de fls. 10 e 15 dos autos foi fornecido e instalado, pela ré, na central telefónica do Instituto ..., em Macedo de Cavaleiros;
· posteriormente, a autora enviou à ré, a pedido desta, e por a central referida ter avariado, uma nova placa Hicom 120;
· mais tarde, a ré solicitou uma nova placa à autora por a central não estar a funcionar, placa que a autora não lhe enviou;
· o material instalado na central telefónica do Instituto ..., em Macedo de Cavaleiros, tinha a garantia de um ano;
· passados cerca de dois ou três meses após a primeira remessa de telemóveis a ré começou a ter reclamações dos clientes;
· essas diziam respeito a deficiências de algumas baterias incorporadas nos telemóveis, e que causavam o não funcionamento do aparelho;
· alguns dos telemóveis remetidos pela autora à ré apresentavam essa deficiência;
· a ré contactou a autora no sentido de regularizar a situação;
· a bateria e o telemóvel haviam sido fornecidos com um ano de garantia;
· a autora recusou-se a substituir baterias;
· a ré comprou a outras firmas baterias novas para os seus clientes;
· a ré recebeu reclamações de clientes a quem vendeu os telemóveis;
· a deficiência das baterias provocava a danificação do cartão SIM/TELECEL;
· alguns clientes tiveram de substituir o cartão, e alguns por mais de uma vez;
· por cada substituição do cartão o cliente paga a quantia de 3.000$00;
· a ré comunicou à autora a avaria ou defeito de uma placa central Hicom 120, dois meses depois de a ter instalado;
· a central deixou de funcionar;
· após o envio da segunda placa, a central apenas funcionou cerca de um mês;
· a autora recusou-se a deslocar alguém a Macedo de Cavaleiros enquanto não fossem pagos os custos de deslocação, tempo de serviço prestado e material;
· a central referida ainda se encontra por reparar, o que afectou a imagem comercial da ré;
· a ré perdeu clientes em face das deficiências das baterias dos telemóveis e das deficiências de funcionamento da central telefónica referida.
3. Diz-se no relato da matéria de facto que a ré B era agente da autora, mas apenas isso.
São desconhecidos os pormenores da vinculação das duas partes, e o facto de se ter qualificado a ré como agente não basta, nem pouco mais ou menos, para enquadrar o vínculo na categoria do contrato de agência.
Em todo o caso, a palavra (e não só a palavra, mas, também, a grandeza da fornecedora) indica claramente que os fornecimentos da autora à ré se enquadraram num contrato de distribuição, ampla categoria esta que abrange diversos negócios, típicos e atípicos, destinados a cobrir as modernas necessidades de uma distribuição fluida e controlada dos produtos e serviços das grandes empresas.
Entre esses negócios, conta-se, precisamente, o contrato de agência, e, também, o de mandato comercial, o de comissão, o de mediação, o de concessão comercial.
E todos eles implicam, para a distribuidora, uma especial conformação do dever de boa fé que deve acompanhar o cumprimento de qualquer obrigação (veja-se, a mero título de exemplo, o que, a propósito, dispõem os artº12º e 13º, DL 178/86, de 3/7), que se concretiza em particulares deveres de informação e assistência técnica, tanto mais instantes quanto mais sofisticado for o equipamento ou o serviço fornecido.
São, recorda-se, dois os pilares em que a recorrente A assenta o seu recurso: que se não alega nem, portanto, prova que as facturas em dívida respeitem aos telemóveis avariados, e que, portanto, não se justificava exceptio inadimpleti, quanto ao respectivo pagamento.
E, na verdade, uma leitura atenta e compreensiva da matéria de facto desde logo suscita a seguinte dúvida: (?) se nem todos os telemóveis tinham avaria, que é que levou a Relação a concluir que a tinham todos os que foram remetidos com as facturas em dívida?
E à dúvida acresce a constatação de um evidente lapso: é que nem todas as facturas dizem respeito a telemóveis, ou respectivas baterias, ou a material para a central telefónica, mas também a cabos de isqueiro, e a um kit conforto (cfr. facturas de fls.7, 8, 14), relativamente aos quais se não põem quaisquer problemas.
Mas, não só.
Nada, com efeito, permite concluir que os telemóveis fornecidos através das facturas dadas á acção se incluem entre os que tinham avaria.
Pode ser que sim, mas a matéria de facto provada não no-lo diz com segurança, e isso é tanto mais importante quanto é certo que, como se disse, os fornecimentos da autora à ré se inscreveram num contrato de distribuição.
Ora, isso não pode deixar de ter uma significativa relevância no problema da exceptio, sobretudo se não se perder de vista as relações de estreita cooperação estabelecidas entre as partes, por efeito do acordo de distribuição referido, implicando especiais deveres de boa fé e de lealdade para ambas.
A ré não poderia invocar o defeito de alguns telemóveis, para reter indiscriminadamente o pagamento das facturas, não só porque nem todos os telemóveis tinham avaria, mas sobretudo porque não estabeleceu uma relação inequívoca entre os telemóveis avariados e as facturas que a autora pretende cobrar.
Tão pouco lhe era lícito desculpar-se com os problemas de instalação da central para reter o pagamento daquele outro material não defeituoso.
Haveria de ter oferecido o pagamento da parte sã dos fornecimentos e só reter o da defeituosa.
O pagamento parcial era um dever que, em todo o caso, lhe incumbia (artº763º, nº2, CC), e com acrescida justificação, tendo em conta as especiais relações existentes, a que o contrato de distribuição dava o enquadramento.
Quer isto dizer que, no que respeita ao preço dos telemóveis, a B se encontra em mora para com a A desde o vencimento das facturas respectivas.
E o mesmo se deve dizer a respeito do preço dos outros produtos não defeituosos (cabos de isqueiro, um kit conforto - facturas de fls.7, 8, 14)
A central telefónica, diz a recorrente autora, foi substituída, e, por isso, não tem justificação a ré para, quanto ao pagamento do respectivo preço, invocar a exceptio
Foi, sim, substituída, mas avariou logo depois, e a autora recusou-se a fazer deslocar gente sua ao local enquanto não fossem pagas as despesas de deslocação e de material.
Competido-lhe o dever de reparar o defeito, não tem razão de ser a exigência de antecipado pagamento de despesas de deslocação e material, tanto mais despropositada quanto feita no âmbito de um contrato de distribuição, a que são inerentes, como, atrás, se disse, obrigações especiais de informação e assistência técnica.
De tudo o que fica dito acerca do recurso da autora, deverá, portanto, concluir-se que lhe assiste parcial razão no que respeita à exceptio inadimpleti contractus, invocada pela ré.
A excepção não tem fundamento na parte do preço correspondente aos telemóveis, respectivas baterias, cabos de isqueiro e kit conforto.
Portanto, a autora terá direito a juros de mora, á taxa legal, desde a data de vencimento das correspondentes facturas.
· Sobre o recurso da ré, dir-se-á que ele gira à volta da interpretação da reconvenção.
As instâncias divergiram a tal respeito.
Na sentença, foi entendido que o pedido reconvencional de indemnização tinha como fundamento todos os prejuízos alegados na contestação (despesas de reparação dos telemóveis, má imagem comercial provocada pelos telemóveis defeituosos e pela avaria da central telefónica).
A Relação entendeu que, "na parte em que se julgou (em 1ª instância) procedente a reconvenção com o fundamento na eliminação e no custo dos defeitos dos telemóveis.....se conheceu de questão de que não podia conhecer-se....por falta de alegação da respectiva materialidade factual...".
Mas, não é forçosamente assim.
A interpretação que a Relação fez do articulado reconvencional é demasiado ao pé da letra.
Mais razoável é o entendimento da 1ª instância, que colocou em pé de igualdade a alegação das despesas de reparação dos telemóveis e a da má imagem provocada pelos defeitos, pese, embora, toda a pobreza e, até, ambiguidade do articulado.
A interpretação que foi dada em 1ª instância, sem desmerecer do texto, é, afinal de contas, a que melhor se quadra com toda a lógica e fundamentos da defesa, e é por isso que se apresenta como a mais razoável.
· Resumindo, tem a autora direito a receber o preço dos fornecimentos, com juros de mora, à taxa legal, a partir do 30º dia subsequente à emissão de cada uma das facturas, excepção feita às relativas aos componentes da central telefónica (fls.10 e 15), sobre as quais incidem juros de mora só a partir da citação;
tem a ré direito, por sua vez, a receber, de indemnização, o que for liquidado em execução de sentença pelos danos resultantes da substituição das baterias dos telemóveis e da perda de clientela que derivou das deficiências daquelas baterias e das da central telefónica, assim como tem direito a compensar este crédito indemnizatório com o crédito da autora.
4. Por todo o exposto, concedem parcialmente a revista da autora e totalmente a da ré, e, em consequência, condenam-nas nos termos supra-referidos.
Na revista da autora, custas a meio, por recorrente e recorrida.
Na revista da ré, custas pela recorrida.
Nas instâncias, custas a meio.
Lisboa, 9 de Janeiro de 2003
Quirino Soares
Neves Ribeiro
Araújo de Barros