Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
37/13.0TBMTR.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS PATRIMONIAIS
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
EQUIDADE
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 12/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
- Maria da Graça Trigo, in Responsabilidade Civil: Temas especiais, Lisboa : Universidade Católica Editora, 2015, 69 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 8.º, N.º3, 566.º, N.º3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 13.º.
PORTARIA Nº 377/2008, DE 26-05, ALTERADA PELA PORTARIA Nº 679/2009, DE 25-06.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 20/10/2011, PROC. Nº 428/07.5TBFAF.G1.S1, DE 10/10/2012, PROC. N.º 632/2001.G1.S1, DE 07/05/2014, PROC. N.º 436/11.1TBRGR.L1.S1, DE 19/02/2015, PROC. N.º 99/12.7TCGMR.G1.S1, DE 04/06/2015, PROC. N.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, E DE 07/04/2016, TODOS CONSULTÁVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 6/4/2015, PROC. N.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, COM REMISSÃO PARA O ACÓRDÃO DE 28/10/2010, PROC. Nº 272/06.7TBMTR.P1.S1, E PARA O ACÓRDÃO DE 5/11/2009, PROC. Nº 381/2002.S1, TODOS CONSULTÁVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 28/01/2016, PROC. N.º 7793/09.8T2SNT.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT, E DE 07/04/2016, CIT., IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - O STJ tem admitido, de forma reiterada, que as consequências danosas que resultam da incapacidade geral permanente (“dano biológico”) são, em abstracto, reparáveis como danos patrimoniais, ainda que essa incapacidade não tenha repercussão directa no exercício da profissão habitual, por aquelas poderem compreender igualmente a afectação, em maior ou menor grau, da capacidade laboral para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais.

II - Tendo ficado provado que: (i) o lesado tinha 43 anos de idade à data do acidente que o vitimou; (ii) apresenta lesões às quais é de atribuir uma IPP de 11 pontos; (iii) esta limitação se repercute na sua actividade profissional (agente de inseminação artificial de bovinos) já que, estando esta dependente de elevados níveis de força e destreza física, o seu exercício acarreta, actualmente, um esforço suplementar; (iv) faz esforços acrescidos para o exercício das actividades comuns por os movimentos do braço estarem condicionados; (v) antes do acidente era um homem robusto e saudável, apto para qualquer tipo de trabalho e colaborava na exploração agrícola da sua mulher, é de concluir que a incapacidade geral permanente de que ficou a sofrer afecta as possibilidades da sua progressão na profissão habitual, assim como a futura mudança ou reconversão profissional e até mesmo as possibilidades da prossecução da sua colaboração na referida exploração agrícola familiar.

III - Concluindo-se pela reparabilidade das consequências patrimoniais do dano biológico, o montante indemnizatório devido a esse título não está sujeito ao regime da Portaria nº 377/2008, de 26-05, alterada pela Portaria nº 679/2009, de 25-06, nem se obtém pela aplicação das tabelas financeiras utilizadas para determinação dos danos patrimoniais resultantes da IPP para o exercício da profissão habitual, devendo antes ser fixado segundo juízos de equidade (art. 566.º, n.º 3, do CC), em função dos seguintes factores: (i) a idade do lesado; (ii) o seu grau de incapacidade geral permanente; (iii) as suas potencialidades de aumento de ganho em profissão ou actividade económica alternativa, aferidas, em regra pelas suas qualificações; e (iv) outros que relevem casuisticamente como, no caso dos autos, o facto de o desempenho profissional do lesado estar dependente de elevados níveis de força e destreza física.

IV - Ponderando o referido nos pontos antecedentes, a indemnização pelo dano biológico, na vertente patrimonial, poderia ascender – em função dos parâmetros adoptados por este STJ – a quantia superior a € 30 000; porém, não tendo o autor recorrido do acórdão da Relação, fica a mesma limitada ao valor de € 22 000 que aí foi fixado a esse título.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA instaurou acção declarativa, com processo comum, contra BB - Companhia de Seguros, S.A.., pedindo que a R. seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 79.132,87, assim discriminada:

a) Dano decorrente da incapacidade permanente geral (dano biológico), que se situa em 11 pontos, conforme consta dos documentos nºs 3 e 4: € 37.500,00;

b) Quantum doloris previsível, na ordem de 5/7, e dano estético, na ordem previsível de 4/7, atento o número de intervenções que teve de suportar, o tempo que demorou a sua cura, as deformidades e cicatrizes com as consequências descritas: € 25.000,00;

c) Dano moral complementar resultante da incapacidade permanente que exige esforços acrescidos no desempenho da actividade habitual, bem como para a prática da sua profissão habitual: € 15.000,00;

d) Dano moral complementar por cada dia de internamento hospitalar (31 dias + 17 dias): € 954,18 + € 523,26;

e) Despesas emergentes com consultas médicas, medicamentos e taxas moderadoras: € 155,43.

Tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal.

Alegou, para tanto e em síntese, que sofreu danos, de natureza patrimonial e não patrimonial, em consequência de um acidente de viação em que interveio o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ...-DU-..., propriedade de CC e por ele conduzido, assim como o veículo de mercadorias, com a matrícula ...-...-QF, propriedade de DD - Cooperativa Agrícola de ..., conduzido pelo A. Imputa o sinistro a culpa exclusiva do condutor do ...-DU-..., segurado na R., que por isso é demandada.

A R. contestou, admitindo a ocorrência do acidente e a sua imputação ao condutor do veículo segurado, mas impugnando a extensão dos danos sofridos e a sua quantificação. Alegando que o seu segurado, condutor do veículo, conduzia sob efeito do álcool, requereu a intervenção principal acessória do mesmo, CC.

Admitindo o sinistro, o chamado apresentou articulado em que impugnou a dinâmica do acidente, tal como foi descrita pelo A. Alegando que o acidente em causa foi também um acidente de trabalho, requereu a intervenção da entidade empregadora do A. Tal incidente não foi admitido.

O A. respondeu às contestações apresentadas, concluindo como na petição inicial e requerendo a condenação do interveniente como litigante de má-fé.

A fls. 597 foi proferida sentença em que se decidiu julgar a presente acção parcialmente procedente, por provada, condenando-se a R. (actual EE - Companhia de Seguros, S. A..) a pagar ao A. a quantia global de €35.155,43, sendo € 155,43 a título de indemnização por danos patrimoniais e € 35.000 a título de indemnização por danos não patrimoniais. Quantia global aquela acrescida de juros, à taxa legal, a contar da citação até efectivo e integral pagamento. Absolveu-se a R. da parte restante do pedido formulado pelo A.

Inconformados, A. e R. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães.

Na apelação do A. formularam-se as seguintes pretensões: fixação de indemnização por incapacidade geral permanente (dano biológico) conforme peticionado; aumento do valor da indemnização por danos não patrimoniais.

Na apelação da R. pretendeu-se a redução da indemnização por danos não patrimoniais para o valor de € 25.000.

Por acórdão de fls. 654, foi decidido conceder indemnização por incapacidade geral permanente (dano biológico) no montante de € 22.000 e manter a indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 35.000. A final, julgou-se:

“Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente a apelação do autor e improcedente a apelação da ré, alterando-se a sentença recorrida no tocante ao montante da indemnização que a ré vai condenada a pagar ao autor, para a quantia de € 57.155,43, mantendo-se o mais aí decidido quanto a juros e custas.”


2. Vem a R. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

1. A recorrente não se conforma com o teor do douto Acórdão proferido nestes autos, que a condenou a pagar ao recorrido AA a quantia de 22.000,00€, a título de compensação pelos seus danos de natureza patrimonial futuros emergentes do acidente de viação ocorrido no dia 28 de Fevereiro de 2010.

2. Salvo o devido respeito por opinião diversa, entende a recorrente que a indemnização ora concedida ao recorrido não reveste a natureza ressarcitória de um dano patrimonial futuro, mas antes de um dano não patrimonial, razão pela qual, tendo o autor sido contemplado com o arbitramento de uma indemnização desta natureza em 1ª instância, confirmada pelo Acórdão recorrido, parece à recorrente não ser devida a indemnização agora concedida ao recorrido.

3. A não ser assim, e por mera cautela, caso assim não se entenda e se venha a confirmar - nesta sede - que o dano ora em apreço tem natureza "patrimonial", crê a recorrente o ressarcimento deste dano se mostra manifestamente excessivo mediante o arbitramento da quantia de 22.0000,00€, devendo tal montante ser reduzido para um valor mais adequado aos danos efectivamente sofridos pelo recorrido.

4. O dano biológico do autor, emergente do sinistro dos autos, consubstanciou um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica avaliado em 11 pontos, que exige esforços acrescidos, entre outros, para o exercício da sua profissão habitual.

5. Não resultou provado nos autos, que o ajuizado acidente originou a incapacidade de o autor prosseguir com o exercício da sua actividade profissional, e/ou bem assim, a uma diminuição dos rendimentos que da mesma o recorrido retirava.

6. O indicado dano tem natureza eminentemente não patrimonial, o que na situação em apreço não é de todo despiciendo, atento o facto de, por um lado, não ter resultado provado nos presentes autos que o autor tivesse sofrido qualquer prejuízo de natureza patrimonial decorrente da incapacidade de que ficou a padecer, como por outro, lhe ter sido reconhecido o direito a uma indemnização pelos danos de natureza não patrimoniais sofridos, no valor global de 35.000,00€, categoria em que o indicado dano se insere.

7. A recorrente entende, salvo o devido respeito, que o dano biológico - como dano corporal que é - atinge direitos de conteúdo imaterial, tais como o direito à vida, à saúde, à integridade física ou à beleza, e por conseguinte, corresponde à ofensa de bens que não se integram no património do lesado e deve ser compensado de acordo com o disposto no artigo 496º do Código Civil.

8. Por conseguinte, o dano biológico sofrido pelo recorrido, gerador de uma incapacidade permanente de 11 pontos, enquanto lesão dos seus direitos à saúde e à integridade física não pode determinar uma indemnização a título de dano patrimonial, por não interferir com a sua capacidade de aquisitiva.

9. Ora, no que tange a indemnização por danos não patrimoniais, prevê a Lei que a mesma seja fixada com recurso a critérios de equidade, atenta a impossibilidade de reposição da situação anterior ao sinistro ou da atribuição de um bem equivalente, que substitua o bem lesado.

10. A indemnização deste dano deve ter em conta o grau de culpa do responsável, a sua situação económica, bem como a do lesado, a gravidade dos danos e quaisquer outras circunstâncias que devam ser ponderadas - artigo 494º do Código Civil, entre as quais está a existência da Tabela Nacional para a Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, aprovada pelo Decreto-lei nº 352/2007 de 23 de Outubro, e bem assim da legislação que lhe está associada.

11. É sabido que a existência da indicada Tabela, e legislação conexa, foi destinada pela Lei a ser utilizada sobretudo por seguradoras, como a aqui recorrente, no âmbito da gestão extrajudicial de processos de sinistro, e por conseguinte, não vincula os Tribunais na fixação de indemnizações, os quais continuam apenas vinculados à Lei.

12. Estes instrumentos legais não deixam de ter todo o interesse para a determinação da medida da indemnização por danos não patrimoniais, também nesta sede, atentas as dificuldades que uma tal actividade encerra, potenciando elas mesmas a uniformização de decisões, sem colocar em causa as especificidades de cada caso em concreto.

13. No que respeita a fixação da indemnização devida pelo dano biológico, quando ocorre a afectação da pessoa do ponto de vista funcional, sem traduzir perda de rendimento de trabalho, a Portaria 377/2008 dispõe que a mesma deve ter em consideração o número de pontos resultante da utilização da Tabela Nacional de Avaliação de Dano Corporal à situação do lesado e a sua idade.

14. A compensação a atribuir pelo dano biológico, quando este não interfere com a capacidade de ganho do lesado, não tem de ter uma relação directa com a sua actividade profissional e com o rendimento que dela retira.

15. Está em causa a afectação do direito à saúde, o qual é - tal como o direito à vida -igual para todo e qualquer ser humano.

16. Fazer interferir o valor do salário de cada um ou o do salário mínimo nacional, quando o lesado não exerce ou não tem profissão, pode até, a nosso ver, gerar situações injustas.

17. De acordo com o estabelecido pela Portaria 377/2008 de 26 de Maio e atendendo ao valor actual da remuneração mínima garantida (530,00€), à idade do lesado à data do sinistro (44 anos) e o grau de desvalorização que dele resultou (11 pontos) chegamos ao valor [um] compensatório, a título de dano biológico, de € 15.392,35.

18. Ora, Tribunal de 1ª Instância arbitrou ao lesado uma indemnização pelos danos não patrimoniais que sofreu no valor d francamente superior à indemnização concedida ao autor a título de dano biológico (€ 22.000,00) e àquela que o legislador previu como boa para o indemnizar do referido dano (€ 15.392,35).

19. Atento o facto de o autor não ter sofrido qualquer perda no seu património devido à incapacidade permanente de 11 pontos emergente do acidente dos autos e de ter visto reconhecido o direito ao ressarcimento dos seus danos não patrimoniais, mediante a atribuição do montante de global de € 35.000,00 (onde se inclui o dano biológico sofrido) cumpre reconhecer que o autor não tem direito à indemnização que lhe foi arbitrada em 2ã Instância.

20. A decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrente do pagamento ao autor da quantia de € 22.000,00, a título de dano patrimonial futuro.

Quando assim não se entenda,

21. Importa reconhecer que subsiste a possibilidade do dano ora em apreço ser subsumido na categoria dos danos patrimoniais futuros, atenta a corrente jurisprudencial ainda maioritária acerca este tema no Supremo Tribunal de Justiça.

22. Ora, a entender-se que o indicado deve ser indemnizado dentro do quadro legal relativo a danos patrimoniais, ainda assim a aqui recorrente não pode deixar de sublinhar que o montante arbitrado ao autor pelo Tribunal da Relação de Guimarães a título de dano patrimonial futuro é francamente exagerado.

23. Recorrendo às regras da aludida Portaria 679/2008 de 25/06, a compensação do autor pelo dano biológico sofrido seria na ordem dos € 15.392,35.

24. Fazendo uso das tradicionais tabelas financeiras como ponto de partida para o cálculo de uma indemnização por dano patrimonial futuro, e atendendo a que o lesado receberá de uma só vez uma indemnização que respeita a um dano que se verificará por um longo período de tempo, chegamos ao valor indemnizatório de cerca de 14.300,00€.

25. Ambas as circunstâncias evidenciam a sobrevalorização da indemnização atribuída ao autor para o compensar do dano biológico que sofreu fixado no Acórdão recorrido.

26. A entender-se que indemnização devida pela recorrente, como ressarcimento do dano biológico sofrido pelo recorrido, deve autonomizar-se daquela quantia arbitrada ao autor pelo Tribunal de 1ª Instância em virtude dos seus danos não patrimoniais, considera a recorrente - atendendo às circunstâncias concretas ora em apreço, que a compensação pelo indicado dano deve ser reduzida para o montante de 15.500,00€, o que se pede.

27. Neste caso, a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que condene a recorrente a pagar ao recorrido a quantia de 15.500,00€ a título de dano patrimonial futuro decorrente da perda de capacidade de ganho.

28. A douta sentença sob censura violou as regras dos artigos 483º, 494º, 496º e 562º e seguintes do Código Civil.

29. Termos em que deve ser dado provimento ao recurso nos termos preconizados supra


O Recorrido contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

1. A indemnização pelo dano biológico detém autonomia em relação à indemnização por dano não patrimonial, na medida em que a afetação da pessoa do ponto de vista funcional, ainda que não se traduza em perda de rendimento de trabalho, sempre constitui uma desvalorização efetiva com expressão patrimonial autónoma.

2. A indemnização concedida ao Autor no acórdão recorrido reveste, assim, a natureza ressarcitória de um dano patrimonial futuro e não um dano não patrimonial.

3. Ao decidir como decidiu, o acórdão recorrido acolhe a jurisprudência pacífica e maioritária do Supremo Tribunal de Justiça, devendo ser mantida a decisão e, consequentemente manter-se a indemnização pelo dano biológico, na sua repercussão patrimonial.

4. A quantia fixada, tendo em consideração o recorte factual assente, é proporcional e adequada à gravidade das lesões sofridas pelo Autor decorrentes do acidente, pelo que não merece, também nesta parte, qualquer censura.

Termos em que, deve ser negado provimento ao recurso de Revista, confirmando-se a decisão recorrida


Cumpre decidir.


3. Vem provado o seguinte:


A - No dia 28 de Fevereiro de 2010, cerca das 14 horas, na Estrada Nacional n.º 103, ao km 103,780, no lugar de …, concelho de Montalegre, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes:

a) o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-DU-..., de serviço particular, de que é proprietário CC e por ele conduzido na ocasião, e

b) o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ...-...-QF, de serviço particular, de que era proprietária DD - Cooperativa Agrícola … e na ocasião conduzido pelo ora Autor.

B - O autor nasceu no dia 14 de Abril de 1966, pelo que tinha 43 anos de idade à data do acidente.

C - A responsabilidade civil por danos causados a terceiros pela circulação do ...-DU-... encontrava-se, à data em que ocorreu o acidente, transferida para a ré através de contrato de seguro titulado pela apólice 648….

1 - O veículo de matrícula ...-DU-... circulava na E. N. n.º 103 no sentido Braga-Chaves.

2 - O veículo de matrícula ...-...-QF circulava em sentido contrário.

3 - No local a via apresenta-se numa curva para a direita, atento o sentido de marcha do DU.

4 - A faixa de rodagem tem a largura de 7,10 metros, o seu piso é em betuminoso e encontrava-se molhado devido à chuva que caía.

5 - Ao desfazer a dita curva para a direita, o condutor do veículo DU não conseguiu manter-se na hemifaixa de rodagem que lhe competia e, invadindo a hemifaixa de sentido contrário de trânsito, foi embater no QF.

6 - O condutor do DU imprimia a este veículo uma velocidade de cerca de 100 Km/hora.

7 - Em virtude do embate o QF foi projectado contra o rail do lado direito, tendo em conta o seu sentido de marcha, onde se imobilizou.

8 - O veículo QF, em consequência do acidente, ficou totalmente destruído, tendo a ora Ré pago o valor correspondente à perda total, já que o veículo foi para abate.

9 - Mercê do questionado acidente sofreu o Autor fractura do fémur esquerdo e fractura dos ossos do cúbito esquerdo (tipo Monteggia).

10 - Esteve encarcerado cerca de 30 minutos, e após desencarceramento foi transportado pelo INEM ao Hospital de Chaves, nesse mesmo dia, atendido na urgência, onde fez RX que revelou as referidas fracturas.

11 - Foi operado no mesmo dia, 28.02.2010, tendo sido realizado encavilhamento centro-medular do fémur e redução e osteossíntese com placa no membro superior.

12 - Teve alta desta unidade hospitalar em 14.03.2010, com indicação a ser seguido em consulta externa e realização de MRF.

13 - Numa dessas consultas, em 01.09.2010, o Autor queixou-se de dores e deformação do antebraço esquerdo, tendo feito RX, que mostrou fractura/falência do material de osteossíntese colocado na primeira cirurgia, com pseudo artrose do cúbito bem como pseudoartrose do fémur.

14 - No dia 2.9.2010 realizou nova intervenção cirúrgica do cúbito, ou seja, nova osteossíntese com placa e parafusos 4.5 e enxerto autologo, e ainda dinamização da cavilha do fémur) com extracção de parafuso de bloqueio.

15 - Teve alta para o domicílio 09.09.2010 com consulta de seguimento hospitalar para 20.9.2010.

16 - Voltou a ser observado em 20.12.2010, novamente por falência do material de osteossíntese do cúbito esquerdo (fractura de placa) o que originou terceira operação a 21.12.2010.

17 - Realizou extracção de placa e parafuso e ainda osteossíntese com colocação de cavilha medular e de enxerto autologo no foco de fractura, colhido na crista ilíaca direita.

18 - Teve alta a 24.12.2010 com imobilização gessada braquiopalmar e seguimento em consulta externa de ortopedia marcada para o dia 29.12.2010.

19 - Teve consultas de seguimento em 24.03.2011, 1.4.2011 07.04.2011, 21.04.2011, 19.05.2011 e 14.07.2011, tendo feito sempre controlos imagiológicos das fracturas sofridas.

20 - Na última consulta - 14.07.2011 - foi considerada a pseudo artrose do cúbito como sequela inoperável, tendo sido levantada a possibilidade do sinistrado iniciar a sua actividade laboral com uma ITP de 20% até 06.12.2011.

21 - Por contínua dor no pulso e no cotovelo, em consulta que efectuou com perito médico a 26.07.2011 foi dada nota de “ainda não estar o sinistrado em condições de poder iniciar a sua actividade profissional”, propondo-se nova avaliação em 8 semanas, “uma vez que há risco de fractura do material”.

22 - Informada a Ré, a mesma entendeu, face a esta nota clínica, efectuar nova avaliação com diagnóstico complementar, o que veio a acontecer em 11.08.2011.

23 - Nesta consulta ficou estabelecido que ao Autor seria atribuída ITP podendo retomar a actividade profissional, mantendo a avaliação periódica em consulta de ambulatório e que, até indicação em contrário, mantinha a ITP até à data da próxima consulta a realizar a 22.09.2011.

24 - Nesta consulta de 22 de Setembro foi dada indicação ao Autor de que se manteria com ITP de 20% até ser avaliado em nova consulta a 27.10. 2011.

25 - Feita esta avaliação em Outubro, foi marcada nova consulta para 24 de Novembro de 2011 sendo o Autor informado de que lhe seria dada alta nos meses seguintes.

26 - A alta foi dada a 6 de Janeiro de 2012 tendo a Ré comunicado ao A. as conclusões do processo de avaliação corporal a 9 de Fevereiro de 2012.

27- Porque não se sentia melhor, o Autor consultou novamente o seu perito médico a 23 de Fevereiro de 2012 e após RX dos ossos do antebraço concluiu tratar-se de pseudo artrose inoperável do cúbito, reconhecendo contudo benefício da extracção do material de osteossíntese do fémur.

28 - Foi intervencionado pela 4.ª vez em 13.06.2012, com alta em 15.06.2012, para extracção do material de osteossíntese do fémur.

29 - Foi seguido em consultas regulares até 27.07.2012, iniciando nesta data ITP de 5% que manteve até 17.08.2012, altura em que lhe é dada alta definitiva.

30 - Observado em consulta de dano corporal em 17.08.2012, as lesões são consideradas estabilizadas.

31 - Dois meses após o acidente – 06 Abril de 2010 – o Autor sofreu dor abdominal localizada nos quadrantes inferiores, que ocorreu pela primeira vez e após o acidente dos autos.

32 - Ficou para observação, tendo sido internado nesse mesmo dia até 9 de Abril de 2010.

33 - A 23 seguinte reincidiu a dor abdominal tendo sido novamente observado.

34 - A 17 de Julho de 2010, novo episódio, tendo sido, novamente, internado no Hospital de Chaves, onde permaneceu até ao dia 29 de Julho (13 dias), com um diagnóstico de “suboclusão intestinal aderencial.

35 - Estes traumatismos abdominais sucederam-se à ocorrência do acidente e dele foram resultantes.

36 - Actualmente o Autor apresenta:

a. Deformidade de 1/3 superior do antebraço esquerdo e cicatriz distrófica;

b. Pseudo-artrose (atrófica) do cúbito esquerdo, que, dada esta dificuldade de consolidação não é de excluir uma infecção sub-clínica que poderá agudizar em qualquer momento; (inoperável, mantendo o material de osteossíntese);

c. Fractura do fémur consolidada com calo exuberante;

d. Cicatrizes no antebraço e coxa esquerda;

e. Claudicação do membro inferior esquerdo.

37 - A estas lesões é de atribuir uma I.P.P. de 11 pontos de acordo com a tabela de avaliação de incapacidades permanentes em direito civil.

38 - Resultante da fractura do fémur, o Autor apresenta marcha claudicante e desequilibrada, o que impossibilita de correr e praticar desporto, com tendência para se agravar com o decorrer do tempo.

39 - Esta limitação funcional repercute-se na sua actividade profissional pois, para o seu exercício necessita de prender os animais e saltar gradeamentos de acesso aos locais onde se encontram, o que actualmente faz com acrescida dificuldade.

40 - Para além dos reflexos na sua vida profissional, não trabalhou nem auxiliou a sua mulher na exploração agrícola que possui, desde a data do acidente até Janeiro de 2012, trabalho que até fazia com regularidade.

41 - Em consequência do acidente, e ainda hoje, sente dores na perna esquerda quando conduz ou permanece sentado ou deitado para o lado esquerdo.

42 - Mesmo durante os períodos ITP (20%) de 15.07.2011 a 06.12.2011, portanto cerca de 5 meses, em que quer por dificuldades de locomoção quer por manipulação do braço esquerdo, por medo de nova fractura, não conseguiu igualmente trabalhar.

43 - O mesmo acontecendo de 13.06.2012 a 24.07.2012 em que esteve com ITA, novamente, e ITP (5%) de 25.07.2012 a 17.08.2012, data em que lhe é concedida alta em definitiva.

44 - O Autor não trabalhou, ou fê-lo condicionadamente, desde a data do acidente até à data da alta definitiva, portanto durante quase 30 meses.

45 - Como apresentou grande limitação funcional relativamente ao retomar da marcha e mobilidade do braço, teve de efectuar tratamento fisiátrico que decorreu no serviço de fisiatria da unidade Hospitalar de Chaves onde lhe foram prestados cuidados específicos de recuperação funcional para melhoria da capacidade de marcha e recuperação da força muscular.

46 - Estas sessões decorreram, após a primeira cirurgia, todos os dias entre 13 de Abril até 18 de Junho de 2010.

47 - Na sequência da segunda cirurgia de 11 de Outubro até 19 de Novembro de 2010.

48 - Para realizar a marcha e porque a mobilidade ficou limitada teve de recorrer ao auxílio de canadianas que manteve desde Março de 2010 até Setembro de 2010.

49 - Ficou totalmente dependente de terceiros para os actos normais da vida diária, como conduzir, situação que o perturbou especialmente tanto mais que a sua mulher não conduz veículos automóveis.

50 - Entre Março de 2010 a Outubro de 2010, na sequência da primeira cirurgia, entre finais de Dezembro de 2010 até Março de 2011 na sequência da segunda e entre Junho e agosto de 2012 na sequência da quarta cirurgia esteve impedido de conduzir, levando o Autor aos constantes pedidos de auxílio de familiares mais próximos, tanto mais que tinha indicação para manter a mobilização das articulações.

51 - Sofreu limitações decorrentes da fractura dos ossos do cúbito esquerdo, já que ficou com perda de força neste membro.

52 - Faz esforços acrescidos para o exercício de actividades comuns e até ao fazer a higiene pessoal, como por exemplo lavar as costas ou pentear, já que os movimentos do braço estão condicionados.

53 - O Autor é agente de inseminação artificial de bovinos, sendo a fixação do útero e a apalpação rectal executada com o braço esquerdo.

54 - Ao introduzir a mão para o efeito, nomeadamente para puxar o útero, sente dificuldades em rodar o pulso e dores como consequência da força redobrada que agora tem de imprimir ao braço.

55 - Sente as mesmas dificuldades na manipulação dos animais, cujo peso médio é de 500 kg a 800 kg (novilhas e vacas) resultante da falta de força no braço e no pulso.

56 - Receia pela falência do material de osteossíntese que mantém, como de resto, aconteceu por duas vezes em que teve de ser intervencionado por força da fractura do mesmo.

57 - Sofreu dificuldade de consolidação da fractura e uma infecção sub clínica poderá agudizar a qualquer momento.

58 - Necessita de ter muitos e específicos cuidados, e um controlo mais atento dos esforços excessivos.

59 - Actualmente exerce a sua profissão, embora com um esforço suplementar.

60 - O Autor ficou afectado de uma IPP de 11 pontos a qual, no aspecto profissional, lhe acarretará esforços suplementares e limitação para as mais elementares tarefas da sua profissão.

61 - O Autor ficou com cicatrizes cirúrgicas na anca esquerda e apresenta deformidade no 1/3 superior do ante braço esquerdo e cicatriz distrófica, o que muito o desfeia e incomoda.

62 - No tempo mais frio sente dores no local das cicatrizes.

63 - Suportou dores, quer no momento do acidente quer posteriormente nos tratamentos e convalescença, tanto mais que foi sujeito a quatro intervenções cirúrgicas.

64 - Estas intervenções cirúrgicas importaram um total, 31 dias de internamento: 28.02.2010 a 14.03.2010; de 02.09.2010 a 09.09.2010; de 20.12.2010 a 24.12.2010; 13.06.2012 a 15.06.2012.

65 - E as que se referem à dor abdominal importaram mais 17 dias de internamento.

66 - As lesões que sofreu e os exames e tratamentos a que se submeteu causaram ao Autor dores e angústia desde o acidente, para fazer face às quais, e durante dois anos, teve de tomar analgésicos e medicamentos para dormir.

67 - Necessitou igualmente de acompanhamento psicológico.

68 - As dores que sofreu e sofre são consideráveis na ordem grau de 5/7 enquanto o dano estético é médio, grau 3/7.

69 - O autor era homem robusto e saudável apto para qualquer tipo de trabalho.

70 - Era trabalhador da DD – Cooperativa Agrícola de ….

71 - Auferia o vencimento mensal de 520,00 euros.

72 - Além disso ainda colaborava na exploração agrícola de sua mulher.

73 - O Autor despendeu com consultas médicas, medicamentos, e taxas moderadoras a quantia de 155,43 €.

74 - A Seguradora ora Ré já liquidou ao Autor os montantes respeitantes ao tempo de ITA e de ITP (até 17.08.2012).

75 - Após o acidente, já no Hospital de Chaves, o tripulante do veículo de matrícula ...-DU-..., seguro na contestante, foi submetido a teste de despistagem de álcool no sangue, tendo apresentado uma taxa de álcool no sangue de 1,05 g/l.


4. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, estão em causa, neste recurso, as seguintes questões:

- Exclusão da indemnização por incapacidade geral permanente (dano biológico), atribuída pela Relação a título de reparação de danos patrimoniais futuros, e fixada em € 22.000;

- Subsidiariamente, redução do valor dessa parcela indemnizatória para €15.500.


5. Tendo o acórdão recorrido condenado a R. ao pagamento da quantia global de € 57.155,43, assinale-se que, com a sentença, transitou em julgado a condenação ao pagamento da indemnização por despesas feitas pelo A. em consequência do acidente no valor de € 155,43, e, com o acórdão da Relação, transitou em julgado a condenação ao pagamento de indemnização por danos não patrimoniais por ele sofridos no montante de € 35.000. No presente recurso apenas está em causa a condenação ao pagamento de indemnização por danos patrimoniais correspondentes à incapacidade geral permanente (dano biológico), fixada em 11 pontos.


Tal questão foi decidida pela sentença nos seguintes termos:

“… diremos que a questão da incapacidade permanente de que o autor ficou afetado pode também ser apreciada no âmbito dos danos patrimoniais, uma vez que pode estar relacionada com a perda da capacidade de ganho futuro.

No entanto, no caso concreto sob análise, o autor não sofreu devido a incapacidade qualquer perda no seu património, não tendo diminuído o rendimento que o mesmo retira dessa actividade, pelo que o maior esforço que o autor tem que despender na execução das suas aptidões profissionais, não pode ser valorado senão como um dano não patrimonial.


      Enquanto, no acórdão recorrido, se considerou o seguinte:

“Se o lesado tem uma actividade profissional e uma vida activa pela frente, o dano biológico integra-se na indemnização pelo dano patrimonial decorrente da incapacidade para o trabalho, calculado com base nos rendimentos auferidos ou que provavelmente viria a auferir, ainda que, de facto, não haja supressão de parte do rendimento, compensando-se como dano não patrimonial parte do “dano biológico”, v.g. a perda de aptidões familiares ou afectivas, em especial da capacidade procriativa; a perda da faculdade de prática de actividade desportiva ou de outra actividade recreativa; a perda do gozo dos anos da juventude; perda da possibilidade de iniciar ou prosseguir determinados estudos; perda de esperança de vida.

No caso em apreço, tendo o autor uma actividade profissional, a incapacidade funcional de que ficou portador integra um dano patrimonial futuro indemnizável.


      Vem a Recorrente alegar nos seguintes termos: “4. O dano biológico do autor, emergente do sinistro dos autos, consubstanciou um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica avaliado em 11 pontos, que exige esforços acrescidos, entre outros, para o exercício da sua profissão habitual. 5. Não resultou provado nos autos, que o ajuizado acidente originou a incapacidade de o autor prosseguir com o exercício da sua actividade profissional, e/ou bem assim, a uma diminuição dos rendimentos que da mesma o recorrido retirava. 6. O indicado dano tem natureza eminentemente não patrimonial, o que na situação em apreço não é de todo despiciendo, atento o facto de, por um lado, não ter resultado provado nos presentes autos que o autor tivesse sofrido qualquer prejuízo de natureza patrimonial decorrente da incapacidade de que ficou a padecer, como por outro, lhe ter sido reconhecido o direito a uma indemnização pelos danos de natureza não patrimoniais sofridos, no valor global de 35.000,00€, categoria em que o indicado dano se insere. 7. A recorrente entende, salvo o devido respeito, que o dano biológico - como dano corporal que é - atinge direitos de conteúdo imaterial, tais como o direito à vida, à saúde, à integridade física ou à beleza, e por conseguinte, corresponde à ofensa de bens que não se integram no património do lesado e deve ser compensado de acordo com o disposto no artigo 496º do Código Civil. 8. Por conseguinte, o dano biológico sofrido pelo recorrido, gerador de uma incapacidade permanente de 11 pontos, enquanto lesão dos seus direitos à saúde e à integridade física não pode determinar uma indemnização a título de dano patrimonial, por não interferir com a sua capacidade [de] aquisitiva.”


     A apreciação da primeira questão objecto do presente recurso impõe uma ponderação em dois níveis distintos: o primeiro nível relativo à admissibilidade, em abstracto, da reparação das consequências danosas patrimoniais do dano biológico quando não se verifique incapacidade parcial permanente para o exercício da profissão habitual; o segundo nível relativo à prova de tais consequências patrimoniais no caso dos autos.


6. Quanto ao primeiro problema - admissibilidade, em abstracto, de consequências danosas patrimoniais do dano biológico quando não se verifique incapacidade parcial permanente para o exercício da profissão habitual - tem a jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal respondido afirmativamente, como aliás a própria Recorrente reconhece (no texto das alegações e na conclusão 21).

Nas palavras do acórdão de 28/01/2016 (proc. nº 7793/09.8T2SNT.L1.S1), in www.dgsi.pt, retomadas no acórdão de 07/04/2016 (proc. nº 237/13.2TCGMR.G1.S1), in www.dgsi.pt, “A afectação da integridade físico-psíquica (em si mesma um dano evento, que, na senda do direito italiano, tem vindo a ser denominado “dano biológico”) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e danos de natureza não patrimonial. Na primeira categoria não se compreende apenas a perda de rendimentos pela incapacidade laboral para a profissão habitual, mas também as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais (neste sentido, decidiram os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Junho de 2015 (proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1), de 19 de Fevereiro de 2015 (proc. nº 99/12.7TCGMR.G1.S1), de 7 de Maio de 2014 (proc. nº 436/11.1TBRGR.L1.S1), de 10 de Outubro de 2012 (proc. nº 632/2001.G1.S1), e de 20 de Outubro de 2011 (proc. nº 428/07.5TBFAF.G1.S1), todos em www.dgsi.pt.)”.

        Afirma-se, mais à frente, no acórdão de 28/01/2016, que vimos citando:

“Para além dos danos patrimoniais consistentes em perda de rendimentos laborais da profissão habitual, segue-se a orientação deste Supremo Tribunal, supra referida, de procurar ressarcir as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade laboral para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais. Trata-se das consequências patrimoniais do denominado “dano biológico”, expressão que tem sido utilizada na lei, na doutrina e na jurisprudência nacionais com sentidos nem sempre coincidentes. Na verdade, a lesão físico-psíquica é o dano-evento, que pode gerar danos-consequência, os quais se distinguem na tradicional dicotomia de danos patrimoniais e danos não patrimoniais (cfr. tratamento mais desenvolvido pela relatora do presente acórdão, Responsabilidade Civil – Temas Especiais, 2015, págs. 69 e segs.). Com esta precisão, a indemnização pela perda da capacidade de ganho, tem a seguinte justificação, nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de 10 de Outubro de 2012, cit.: “a compensação do dano biológico [dentro das consequências patrimoniais da lesão físico-psíquica] tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas.”

        Entende-se que o aumento da penosidade e esforço para realizar as tarefas diárias pode ser atendido no âmbito dos danos patrimoniais (e não apenas dos danos não patrimoniais), na medida em que se prove ter como consequência provável a redução da capacidade de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas.

“A perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe [ao lesado], de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha e evolução na profissão, eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável - e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, - erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais” (acórdão do Supremo Tribunal de 10 de Outubro de 2012, cit.).”

Nestes termos, consideram-se reparáveis como danos patrimoniais as consequências danosas resultantes da incapacidade geral permanente (ou dano biológico), ainda que esta incapacidade não tenha tido repercussão directa no exercício da profissão habitual. Considera-se ainda que o aumento da penosidade e esforço pode ser atendido nesse mesmo âmbito (danos patrimoniais) - e não apenas no âmbito dos danos não patrimoniais -, desde que seja provado que tal aumento de penosidade e esforço tem como consequência provável a redução da capacidade genérica de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas.


7. Passemos, assim, para o segundo nível de apreciação da questão objecto do recurso: verificar se, no caso dos autos, se deve concluir pela existência de danos patrimoniais resultantes da incapacidade geral permanente (dano biológico).

Os factos provados relevantes são os seguintes:

B - O autor nasceu no dia 14 de Abril de 1966, pelo que tinha 43 anos de idade à data do acidente.

36 - Actualmente o Autor apresenta:

a. Deformidade de 1/3 superior do antebraço esquerdo e cicatriz distrófica;

b. Pseudo-artrose (atrófica) do cúbito esquerdo, que, dada esta dificuldade de consolidação não é de excluir uma infecção sub-clínica que poderá agudizar em qualquer momento; (inoperável, mantendo o material de osteossíntese);

c. Fractura do fémur consolidada com calo exuberante;

d. Cicatrizes no antebraço e coxa esquerda;

e. Claudicação do membro inferior esquerdo.

37 - A estas lesões é de atribuir uma I.P.P. de 11 pontos de acordo com a tabela de avaliação de incapacidades permanentes em direito civil.

38 - Resultante da fractura do fémur, o Autor apresenta marcha claudicante e desequilibrada, o que impossibilita de correr e praticar desporto, com tendência para se agravar com o decorrer do tempo.

39 - Esta limitação funcional repercute-se na sua actividade profissional pois, para o seu exercício necessita de prender os animais e saltar gradeamentos de acesso aos locais onde se encontram, o que actualmente faz com acrescida dificuldade.

52 - Faz esforços acrescidos para o exercício de actividades comuns e até ao fazer a higiene pessoal, como por exemplo lavar as costas ou pentear, já que os movimentos do braço estão condicionados.

53 - O Autor é agente de inseminação artificial de bovinos, sendo a fixação do útero e a apalpação rectal executada com o braço esquerdo.

54 - Ao introduzir a mão para o efeito, nomeadamente para puxar o útero, sente dificuldades em rodar o pulso e dores como consequência da força redobrada que agora tem de imprimir ao braço.

55 - Sente as mesmas dificuldades na manipulação dos animais, cujo peso médio é de 500 kg a 800 kg (novilhas e vacas) resultante da falta de força no braço e no pulso.

58 - Necessita de ter muitos e específicos cuidados, e um controlo mais atento dos esforços excessivos.

59 - Actualmente exerce a sua profissão, embora com um esforço suplementar.

60 - O Autor ficou afectado de uma IPP de 11 pontos a qual, no aspecto profissional, lhe acarretará esforços suplementares e limitação para as mais elementares tarefas da sua profissão.

69 - O autor era homem robusto e saudável apto para qualquer tipo de trabalho.

70 - Era trabalhador da DD – Cooperativa Agrícola de ….

72 - Além disso ainda colaborava na exploração agrícola de sua mulher.


Tendo ficado provado que o A. lesado é pessoa cujo desempenho profissional está inteiramente dependente de elevados níveis de força e destreza física, tendo ficado provado que “ficou afectado de uma IPP de 11 pontos a qual, no aspecto profissional, lhe acarretará esforços suplementares e limitação para as mais elementares tarefas da sua profissão, é patente que a incapacidade geral permanente de que ficou a sofrer afecta as possibilidades da sua progressão na profissão habitual, assim como de futura mudança ou reconversão profissional, e até mesmo as possibilidades de prossecução da sua colaboração na exploração agrícola familiar. No caso dos autos, o aumento da penosidade e esforço do lesado no exercício das suas tarefas profissionais não corresponde apenas a um dano não patrimonial, antes se considera que, com elevada probabilidade, virá a traduzir-se em perda de ganho, com previsível antecipação da reforma em condições menos vantajosas.

Conclui-se pois pela reparabilidade das consequências danosas patrimoniais do dano biológico do A.


8. Afirmando-se a reparação das consequências patrimoniais do dano biológico, há que conhecer da questão subsidiária da redução do valor dessa parcela indemnizatória, que a Relação fixou em € 22.000, e que a Recorrente pretende que não ultrapasse € 15.500. Alega a Recorrente nas suas conclusões: “22. Ora, a entender-se que o indicado deve ser indemnizado dentro do quadro legal relativo a danos patrimoniais, ainda assim a aqui recorrente não pode deixar de sublinhar que o montante arbitrado ao autor pelo Tribunal da Relação de Guimarães a título de dano patrimonial futuro é francamente exagerado. 23. Recorrendo às regras da aludida Portaria 679/2008 de 25/06 [rectius: Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, alterada pela Portaria nº 679/2009, de 25 de Junho], a compensação do autor pelo dano biológico sofrido seria na ordem dos €15.392,35. 24. Fazendo uso das tradicionais tabelas financeiras como ponto de partida para o cálculo de uma indemnização por dano patrimonial futuro, e atendendo a que o lesado receberá de uma só vez uma indemnização que respeita a um dano que se verificará por um longo período de tempo, chegamos ao valor indemnizatório de cerca de 14.300,00€. 25. Ambas as circunstâncias evidenciam a sobrevalorização da indemnização atribuída ao autor para o compensar do dano biológico que sofreu fixado no Acórdão recorrido. 26. A entender-se que indemnização devida pela recorrente, como ressarcimento do dano biológico sofrido pelo recorrido, deve autonomizar-se daquela quantia arbitrada ao autor pelo Tribunal de 1ª Instância em virtude dos seus danos não patrimoniais, considera a recorrente - atendendo às circunstâncias concretas ora em apreço, que a compensação pelo indicado dano deve ser reduzida para o montante de 15.500,00€, o que se pede.”

      Tal como reconhecido pela Recorrente (texto das alegações e conclusão 11), a Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio (alterada pela Portaria nº 679/2009, de 25 de Junho) vigora apenas no domínio da regularização extrajudicial dos sinistros por parte das seguradoras, não vinculando os tribunais. Além disso, saliente-se que a reparação das consequências patrimoniais do dano biológico – na acepção que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem dado ao conceito e que se expôs supra no ponto 6. – não tem correspondência no conceito de dano biológico do art. 3º, alínea b), da Portaria, nem no Anexo IV da mesma (cfr. a análise da relatora do presente acórdão em Responsabilidade Civil – Temas especiais, 2015, págs. 69 e segs.). Deste modo, a fixação do montante indemnizatório devido pelas consequências patrimoniais do dano biológico sofrido pelo A. não pode ser aferida pelos valores nela previstos.

Estamos antes no domínio dos danos patrimoniais indetermináveis, cuja reparação deve ser fixada segundo juízos de equidade (cfr. art. 566º, nº 3, do Código Civil). Ora, como tem sido considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr., por exemplo, o acórdão de 6 de Abril de 2015, proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para o acórdão de 28 de Outubro de 2010, proc. nº 272/06.7TBMTR.P1.S1, e para o acórdão de 5 de Novembro de 2009, proc. nº 381/2002.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt), “a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito»”; se é chamado a pronunciar-se sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, não compete ao Supremo Tribunal de Justiça “a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio»”. Para além disso, a sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade (ao abrigo do regime do art. 13º da Constituição e do art. 8º, nº 3, do Código Civil), o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto.

Vejamos.

No acórdão recorrido a fixação da indemnização pelas consequências patrimoniais do dano biológico foi assim fundamentada:

“Ora, no tocante ao dano patrimonial futuro, decorrente da incapacidade de que o autor ficou portador em consequência das lesões corporais sofridas, é consensual o recurso a tabelas financeiras, pelo menos como base de trabalho.

Dos factos provados resulta que o autor ficou portador de uma IPG de 11 pontos, tinha 43 anos à data do sinistro (nasceu 14 de Abril de 1966), auferia o vencimento mensal de 520,00 euros (além disso ainda colaborava na exploração agrícola de sua mulher).

Tomando por ponto de partida a tabela financeira que tem obtido maior consenso na jurisprudência e corrigindo a taxa real de juro e a taxa de crescimento médio, cuja baixa tem persistido nos últimos 10 anos e atendendo à expectativa de vida média, que já atinge os 80 anos.

Cientes de que o valor a atribuir não é o resultado matemático das tabelas financeiras, mas aquele que, em face da factualidade provada e, se necessário, com recurso à equidade, assegure a reconstituição da situação hipotética (a que existiria no futuro, não fosse a lesão sofrida pelo autor).

E que, mesmo assim, não tivemos em conta outras varáveis, nomeadamente a expectável progressão na carreira, o trabalho que realiza na exploração agrícola da mulher, que, mesmo não remunerado, contribui para o acervo familiar e é para todos os efeitos um rendimento.

Afigura-se justo atribuir ao autor, a título de indemnização pelo dano patrimonial futuro, decorrente da perda de capacidade de trabalho, o montante de €22.000.”


Quer dizer que a Relação utilizou, como critério base, uma das tradicionais fórmulas financeiras criadas para a determinação dos danos patrimoniais resultantes da incapacidade parcial permanente para o exercício da profissão habitual; temperando o resultado final com uma certa, mas limitada, ponderação equitativa.

Este procedimento não pode ser aceite porque, na verdade, o acórdão recorrido se afasta do regime legal, que estabelece que a indemnização por danos patrimoniais indetermináveis deve ser fixada segundo juízos de equidade, dentro dos limites que o tribunal tiver como provados (cfr. art. 566º, nº 3, do Código Civil), para assentar antes num critério normativo que se afigura inadequado: assumir que a incapacidade geral permanente de 11 pontos equivale a incapacidade parcial permanente para o exercício da profissão habitual do lesado. Este critério normativo entra em contradição, aliás, com tudo o que se afirmou, tanto no acórdão recorrido como no presente acórdão, sobre a reparabilidade dos danos patrimoniais pela perda de capacidade geral de ganho, mesmo que sem perda de rendimentos efectiva para o exercício da profissão habitual. Não pode ser fixada indemnização com base em critério normativo que vale para uma categoria de danos que expressamente se excluiu, acrescentando que, “se necessário”, se recorrerá ainda à equidade. Na verdade - não existindo, no caso sub judice, limites de danos que o tribunal tenha dado como provados -, a equidade é o único critério legalmente previsto e não um plus que apenas viria temperar ou completar o resultado obtido pela aplicação de fórmula financeira criada em função da verificação de situação de incapacidade parcial permanente para o exercício da profissão habitual, que, no caso dos autos, não se deu como provada.

Na jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr. acórdãos de 20/10/2011, proc. nº 428/07.5TBFAF.G1.S1, de 10/10/2012, proc. nº 632/2001.G1.S1, de 07/05/2014, proc. nº 436/11.1TBRGR.L1.S1, de 19/02/2015, proc. nº 99/12.7TCGMR.G1.S1, de 04/06/2015, proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, e de 07/04/2016, cit., todos consultáveis em www.dgsi.pt), a atribuição de indemnização por perda de capacidade geral de ganho, segundo um juízo equitativo, tem variado, essencialmente, em função dos seguintes factores: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho em profissão ou actividade económica alternativa, aferidas, em regra, pelas suas qualificações. A que acrescem outros factores que relevam casuisticamente.

No caso dos autos, temos de ter em conta: que o lesado tinha 43 anos na data do sinistro; que a esperança de vida, à data do acidente, dos homens nascidos em 1966 se situa entre 65 e 75 anos; que o lesado ficou a padecer de incapacidade geral permanente de 11 pontos; que, se, por um lado, é provável que as habilitações do lesado não sejam significativas, por outro lado, ficou provado que o seu desempenho profissional está inteiramente dependente de elevados níveis de força e destreza física, pelo que o “dano biológico” sofrido limita gravemente as suas possibilidades de evolução e progressão profissional, bem como a possibilidade de prossecução da colaboração na exploração agrícola familiar.

Tudo ponderado, a indemnização por “dano biológico” – nos termos supra equacionados, e em função dos parâmetros que têm vindo a ser adoptados por este Supremo Tribunal – poderia ascender a quantia superior a € 30.000, mas, não tendo o A. interposto recurso da decisão da Relação, fica limitada ao valor de € 22.000, fixado por tal decisão.


9. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se – ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente – a condenação da R. a pagar ao A. a quantia de € 22.000 (vinte e dois mil euros), a título de indemnização por dano biológico, na vertente de danos patrimoniais.


Custas pela Recorrente.


Lisboa, 14 de dezembro de 2016


Maria da Graça Trigo (Relator)

Bettencourt de Faria

João Bernardo