Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
165/12.9TBSJP.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO SILVA GONÇALVES
Descritores: DOCUMENTO AUTÊNTICO
PROVA PLENA
PROVA TESTEMUNHAL
VONTADE DOS CONTRAENTES
INTERPRETAÇÃO DE DOCUMENTO
CONFISSÃO
DEVER DE COOPERAÇÃO PARA A DESCOBERTA DA VERDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO
Doutrina:
- A. Varela, Manual das Obrigações, 346, 671.
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, Vol. V, 141, 143.
- Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, 483, 462.
- Mota Pinto, na C.J., 1985, 3.º, 9.
- Vaz Serra, na R.L.J., 111.º, 302.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 352.º, 393.º, N.º3, 394.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 574., N.º2, 607.º, N.º5, 615.º, N.º1, ALS. C) E D), 662.º, 674.º, N.º 3, 682.º, N.ºS 2 E 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 13.11.1986, BMJ, 361.º, 496.
-DE 21.10.1988, NO B.M.J.; 380-444.
-DE 22.06.1989, AJ, 1.º-10/13.
-DE 01.03.2011, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Um documento autêntico apenas faz prova plena quanto aos factos referidos como praticados pelo oficial público respectivo (ac. STJ de 22-06-1989, AJ, 1.º-10/13), não prova plenamente que as declarações nele contidas são válidas e eficazes (V. Serra, RLJ, 111.º, 302) e, como é consabido, é admissível a inquirição de testemunhas para prova de quesito sobre averiguação da intenção ou vontade dos contraentes expressa em documento autêntico.

II - Tem natureza diferente desta a confissão projectada no processo por força do disposto no art. 574.º, n.º 2, do NCPC (2013). Esta confissão (confissão ficta), porque se insere no âmbito do princípio da descoberta da verdade e correspondendo a um ónus estreitamente ligado ao dever de verdade que a lei impõe a ambos os litigantes (A. Varela, obra cit., p. 346), não constitui “um meio de prova integrador do arsenal de provas previsto no art. 512.º do NCPC”.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




O Município de São João da Pesqueira, representado em juízo pelo Presidente da respectiva Câmara Municipal, com sede na Av. Marquês de Soveral, intentou a presente acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra AA e esposa BB, residentes em …, concelho de São João da Pesqueira, pedindo que, na procedência da acção:

a) - se reconheça ao autor o direito de propriedade da nascente existente no prédio rústico identificado no art.º 1.º al. b) da petição inicial, bem como de todas as águas que da nascente brotem, e se condenem os réus a reconhecer e a acatar esse direito, abstendo-se de praticar quaisquer actos que colidam com esses direitos;

b) - sejam os réus condenados a restituir ao autor o abastecimento e o uso de água existente na nascente situada na Quinta do CC, direito que o Requerente adquiriu por força de um título justo - escritura pública - e ainda por usucapião, devendo aqueles, para concretização de tal obrigação, proceder às obras necessárias para reposição da situação anterior, designadamente mantendo a ligação da água da nascente para a conduta aí existente, que por gravidade permite a ligação da água para o depósito e fontanários da freguesia de …, ou a consentir na realização de obras necessárias àquela finalidade;

c) - sejam os réus condenados a absterem-se de praticar quaisquer actos que colidam com estes direitos;

d) - se reconheça constituída uma servidão de aqueduto por meio de tubos subterrâneos desde a nascente até atingir o limite do prédio dos réus confrontante com a estrada pública, e que o autor é titular desse direito de servidão de aqueduto, condenando-se os réus a reconhecer esse direito e a abster-se de praticar quaisquer actos que colidam com esse direito.


Alegou, para tanto, em resumo, que, por escritura pública celebrada na secretaria da Câmara Municipal de São João da Pesqueira, no dia 07 de Setembro de 1982, entre autor e R.R. foi celebrado um contrato nos termos do qual os réus arrogando-se a legítima propriedade de dois prédios rústicos, um deles designado por Quinta do CC, sito no limite da freguesia de Riodades, cederam ao autor, representado pela Câmara Municipal, cinquenta e cinco metros quadrados de terreno de prédio mencionado alínea número um, para construção de uma fossa séptica, e declararam ainda ceder a exploração de uma nascente de água já feita, nessa data, na Quinta do CC, para reforço do abastecimento de água à freguesia de Paredes da Beira, prédio referido na alínea número dois; que, por sua vez, a Câmara Municipal obrigou-se, em resultado da cedência da exploração da nascente, a garantir as sobras de água explorada na quinta da Quinta do CC, que seriam conduzidas através do cano de saneamento (esgoto da Costinha), e a assegurar, sem quaisquer encargos, o direito de aqueduto aos canos já colocados pelos R.R. outorgantes, junto à canalização pública, para condução de água por eles explorada na dita Quinta do CC. Mais alega que, na sequência dessa escritura, efectuou obras de exploração/captação e condução das águas da nascente até à aldeia de …, reveladoras da captação e posse da água, bem como de limpeza e de condução da mesma; que a situação descrita se manteve e o contrato foi cumprido por ambas as partes, tendo a Câmara Municipal assegurado a captação e abastecimento de água àquela povoação de …, cujos habitantes a utilizaram para beber (pessoas e animais) para as lavagens (pessoas e coisas), bem como para rega; que, desde a data da celebração da escritura, a população vem utilizando a água proveniente daquela nascente, sem perturbação ou oposição de quem quer que seja, há mais de 10, 20, 30 anos, ininterruptamente à vista de toda a gente, na convicção de ninguém prejudicarem e de estarem a exercer um direito próprio; que, assim, se constituiu, voluntariamente e por instrumento público, o direito ao uso das águas, a favor do Município de S. João da Pesqueira, nos termos do disposto nos artigos 1 389.º e 1390.º n.º 1 do Código Civil, provenientes da nascente da Quinta do CC, por título justo, consubstanciado na escritura pública através da qual foi outorgado o contrato, e mesmo que esse instrumento público não houvesse conferido tal direito ao uso da água, teria o autor adquirido o mesmo por usucapião, nos termos do disposto no artigo 1390.º n.º 2 do mesmo Código Civil; que, por outro lado, existe também uma servidão de aqueduto a onerar o prédio dos réus, consistindo no tubo subterrâneo implantado no seu prédio; e que, como para aceder à mina, orientar as águas e desobstruir os tubos, sempre o autor passou pelo prédio dos réus, actos estes praticados à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de quem quer que fosse, designadamente dos réus e na convicção de exercerem um direito próprio, lhe assiste enquanto titular da servidão de aqueduto, para tais fins, o direito de passagem pelo prédio serviente; que, entretanto, a empresa Águas de Trás-os-Montes (a “ATM”) assumiu a responsabilidade pela captação e abastecimento de água ao domicílio em … e, nessa sequência, os réus entenderam que toda a água da nascente da Quinta do CC passou a ser “sobrante” e deveria ser conduzida para o “…”, um outro prédio dos RR, ficando deste modo a autora lesada no seu direito de uso das águas da nascente.

 

Os réus, na sua contestação-reconvenção, alegaram que o contrato titulado por escritura de 27 de Setembro de 1982 não é de doação, nem de compra e venda de águas, pelo que o Município nunca possuiu em nome próprio as águas da nascente; que, por outro lado, a aquisição do direito através da usucapião pressupõe não só a prática dos actos possessórios, mas também o animus possidendi, ou seja, a convicção de usar um bem próprio, tendo o autor mudado de opinião, na medida em que, no âmbito da providência cautelar apensa aos presentes autos, alegava que através da escritura tinha adquirido uma servidão de águas a favor do Município e agora arroga-se seu dono; que, no caso dos autos, há simplesmente uma utilização contratual das águas, por cedência do dono do prédio onde elas nascem, que são os réus, cedência esta que tem contrapartidas para a sua utilização por parte do Município e, que incumpridas essas contrapartidas por parte do autor, os réus têm o direito de também não cumprir pela sua parte (artigo 428º do Código Civil); que a exploração da água já tinha sido feita, como aliás consta da escritura, sendo que o Município apenas procedeu a arranjos, revestiu o poço de captação e construiu uma pequena estação de tratamento, actualmente desativada; que, assim, a água da Quinta do CC lhes pertence, porque são donos do prédio onde ela nasce e ninguém a adquiriu por qualquer título; que o autor através do contrato feito com as Águas de Trás-os-Montes e Alto Douro, S.A. desviou os efluentes que eram conduzidos para os prédios dos réus denominado …, onde eram tratados e após esse tratamento, tais efluentes eram utilizados pelos réus na rega, designadamente nos terrenos que ali possuem; que, por tal motivo, a falta dessa água já implicou que os réus tivessem tido necessidade de fazer um depósito com cerca de 200 metros cúbicos no seu terreno, junto da casa de habitação, para ali coligirem outras águas e assim assegurarem a irrigação dos seus terrenos, tratando-se de uma obra que os réus tiveram de fazer por o autor não cumprir as cláusulas a que estava obrigado, e, mesmo assim, deixaram de poder fertilizar os seus pomares com os efluentes que, uma vez tratados, não só serviam para a irrigação como forneciam matéria orgânica importante para a respectiva adubação; que, uma vez que a cedência foi feita com um fim específico, não pode o autor deixar de lhe dar essa utilidade, de acordo com o contratado, pelo que se a acção for julgada procedente, também o autor deverá ser condenado a repor a água da Quinta do CC para ser utilizada no abastecimento público de …, com ligação ao depósito do Monte de Nossa Senhora e, a partir daí, para distribuição domiciliária e dos fontanários e, bem assim, deverá ser condenado a indemnizar os réus pelos prejuízos causados em montante que ainda não é possível liquidar e decorrentes do facto de não terem continuado a dispor das águas sobrantes em conjunto com os efluentes, conforme acordado.


Concluem pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido; e, para o caso de a acção ser julgada procedente, pedem, em reconvenção, que o Município:

a) - seja condenado a utilizar as águas da Quinta do CC que lhe foram cedidas apenas para abastecimento da povoação de Paredes da Beira (abastecimento domiciliário e dos fontanários a partir do depósito existente no Monte da Nossa Senhora); e

b) - que os efluentes e as sobras sejam repostos no prédio denominado o ..., pertencente aos réus;  

c) - seja condenado a pagar aos réus a indemnização pelos prejuízos para estes decorrentes do não cumprimento do contrato e a liquidar em execução de sentença.


O autor replicou, mantendo o alegado na petição e impugnando a matéria de reconvenção, sustentando que está impossibilitado dar cumprimento ao pedido reconvencional por força da intervenção da empresa “Águas de Trás-os-Montes”.

 

Os réus triplicaram, defendendo que inexiste impossibilidade de o Município cumprir o contratado e que, a existir tal impossibilidade, sempre a mesma seria imputável ao autor.


Foi admitida a reconvenção e proferido despacho saneador onde, após se conhecer e decidir da competência do tribunal e se afirmar a validade e a regularidade da instância, se selecionou, de seguida, a matéria de facto assente e a que passou a constituir a base instrutória.


Instruídos os autos foi designado dia para a audiência de discussão e julgamento.

Em sede de audiência de julgamento os réus desistiram da instância reconvencional, desistência essa aceite pelo autor e homologada pelo Tribunal.

 

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção totalmente improcedente, com a consequente absolvição dos R.R. dos pedidos.


Inconformado, interpôs o autor recurso para a Relação de Coimbra que, por acórdão de 16.03.2016 (cfr. fls. 514 a 545), tomou a seguinte deliberação:

1. Julgar parcialmente procedente a apelação e revogar a sentença recorrida;

2. Julgar parcialmente procedente a acção e, em consequência:

  a) - Reconhecer ao A. o direito de propriedade sobre toda a água da nascente existente no prédio rústico dos R.R., denominado de Quinta do CC, condenando os R.R. a restituir-lhe a água da mesma e absterem-se de praticar quaisquer actos que colidam com esse direito;

  b) - Reconhecer ao A. o direito de servidão de aqueduto para gastos domésticos, constituída sobre o mencionado prédio dos R.R., por meio de tubos subterrâneos, com a extensão e pelo sítio assinalados nas alíneas C) e N) da matéria provada, para aproveitamento das águas daquela nascente, condenando os R.R. a absterem-se de praticar quaisquer actos que interfiram com tal direito.


Desagradados, interpõem agora recurso para este Supremo Tribunal os réus AA e esposa BB, que alegaram e concluíram pela forma seguinte:

1. O Tribunal de primeira instância deu como provado o facto constante do n.º 2 da base instrutória, reconhecendo que as águas eram conduzidas para os fontanários públicos, através de reservatório e tanques da Curtinha.

2. O acórdão recorrido revogou esta resposta, dando-a como não provada, com o fundamento de que a mesma contraria a alínea J) da matéria assente e por, ainda, a considerar obscura.

3. Os vícios apontados no acórdão recorrido não ocorrem, pelo que não se justificava que o Tribunal da Relação tivesse alterado a referida resposta.

4. Para além disso, tal alteração constitui a negação da evidência dos factos e confronta o acordo das partes quanto à sua verificação.

5. Por outro lado o Tribunal de primeira instância julgou não provados os factos constantes dos factos n.º s 5 e 10 da base instrutória onde se questionava o seguinte:

"Desde a data da celebração do acordo referido em A), desde há mais de 20 e 30 anos, o Autor, através dos seus órgãos, utiliza a água proveniente da nascente sita no prédio rústico, denominado Quinta do CC, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer se seja, de forma ininterrupta, na convicção de estar a exercer um direito próprio, sem lesar interesses de outras pessoas?"

"Aquando do descrito em O) e P), o Autor actuava na convicção de estar a agir como dono das águas da nascente sita no prédio rústico, denominado Quinta do CC, com exclusão de outros donos e ignorando lesar interesses de outras pessoas?"

6. E justificou devidamente tal decisão como no texto das presentes alegações se documenta.

7. O Tribunal recorrido alterou a resposta para provado servindo-se do argumento que extrai da matéria fixada nas alíneas C), D), E), M) e N) dos factos assentes.

8. Estas alíneas não significam e muito menos impõem o argumento utilizado pelo Tribunal recorrido;

9. Apenas questionam se os factos nelas aludidos o foram no âmbito e na sequência da escritura de 1982, sem a menor alusão ao elemento subjetivo dos comportamentos abrangidos.

10. E não tendo sido alegada nem verificada qualquer inversão na posse que pudesse modificar o título que concedeu à Câmara Municipal a prática de tais atos, é ilegítima a ilação extraída pelo Tribunal recorrido.

11. Este invoca ainda a utilização da palavra ceder utilizada na escritura de 1982 onde se diz que os recorrentes "...cedem à Câmara Municipal de S. João da Pesqueira...a exploração de uma nascente de água já feita nesta data na "Quinta do CC" para reforço do abastecimento de água à freguesia de Paredes da Beira".

12. O Tribunal recorrido não teve em conta o disposto no artigo 607.º, n.º 4 e 5 que mandam analisar todas as provas, mormente as que resultam da confissão reduzida a escrito ou plenamente provada por documento, acordo ou confissão das partes.

13. Essa confissão escrita consta expressamente dos artigos 21.º e 37.º do requerimento de Providência Cautelar instaurada como preliminar desta ação onde o autor rejeita a transmissão para si do domínio mas simplesmente invoca a constituição de uma servidão de águas.

14. Fazendo além disso uma interpretação autêntica do seu animus possidendi.

15. Por outro lado, a cedência à Câmara e não ao Município diz apenas respeito à exploração da água de uma nascente já existente e para reforço do abastecimento de Paredes da Beira.

16. A Câmara não é titular, é apenas um órgão de administração do Município e não um órgão autárquico que pode ser titular de direitos reais, o que justifica só por si o entendimento de primeira instância quanto à natureza meramente obrigacional do contrato de 1982, com estabelecimento de direitos e obrigações recíprocas.

17. E celebrou tal contrato por estar no seu âmbito contratual de mera gestão.

18. Interpretando e decidindo de modo diverso, o Tribunal violou o disposto no artigo 674.º do Código de Processo Civil.

19. E mais concretamente entendeu o Tribunal recorrido que a palavra ceder significa transmissão do domínio sobre as águas.

20. Não conseguiu o Tribunal determinar se esta transmissão era título oneroso ou gratuito.

21. Como não conseguiu determinar, nem explorou essa hipótese e nem essa expressão foi aflorada, se haveria a transmissão de um outro direito, designadamente de servidão como os Réus alegaram na providência cautelar.

22. Ou um mero direito de usufruto, ou de uso, ou de fruição, ou de simples fruição.

23. A posição do Tribunal é por isso ambígua ou obscura, para não dizer totalmente opaca, quanto ao contrato de 1982, em que o Município nem sequer interveio, o que faz incorrer a decisão além do mais no disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

24. Por outro lado o Tribunal alterou duas respostas à matéria de facto de não provado para provado.

25. Tal alteração não era consentida pelo Tribunal recorrido por força do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, disposição esta que o Tribunal violou.

26. Deste modo, o Tribunal violou, além do mais o disposto nos artigos 607.º, 615.º e 662.º do Código de Processo Civil.

27. E esta decisão permite, por isso, a sindicação das decisões proferidas ao abrigo do disposto nos artigos 674.º e 682.º n.º 4 do mesmo diploma.

28. Por último, o Tribunal de primeira instância tinha julgado totalmente improcedente a ação, na qual era formulado um pedido de reconhecimento de servidão de águas. Contudo,

29. Julgou o Tribunal recorrido procedente este pedido sem sequer o analisar no seu conteúdo e no seu fundamento.

30. Trata-se de uma situação de não pronúncia que faz incorrer a decisão no disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.

31. Terminam pedindo que seja revogado o acórdão recorrido, ficando assim repristinada a que foi proferida em primeira instância.

Contra-alegou o Município de São João da Pesqueira/autor pedindo a manutenção do julgado.


Corridos os vistos legais, cumpre decidir.


As instâncias (a Relação julgou “não provados” os artigos 3.º e 4.º e “provados” os quesitos 5.º e 10.º, da BI) julgaram provados os seguintes factos:

A)  Por escritura pública celebrada na secretaria da Câmara Municipal de São João da Pesqueira, no dia 07 de Setembro de 1982, foi celebrado um acordo entre o autor e os Réus AA e BB, pelo qual os Réus se declararam donos e legítimos proprietários do prédio rústico composto de terreno de semeadura, sito no lugar do …, freguesia de Paredes da Beira, inscrito na matriz Predial Rústica sob o artigo 1471.º descrito na C.R.P. sob o n.º 20… a fls. 31 do livro B-50, e do prédio rústico designado por Quinta do CC, sito no limite da freguesia de Riodades, composto de casa de alvenaria, palhais e terra de semeadura, inscrito na matriz Predial Rústica sob os artigos 971, 978, 981, 983, 984, 985, 986, não descrito na C.R.P. de São João da Pesqueira, e no qual se pode ler: «(…) No dia sete de Setembro do ano mil novecentos e oitenta e dois, nesta Vila de são João da Pesqueira, secretaria da Câmara Municipal, perante mim, DD, chefe da secretaria e notário (…) mesma Câmara, compareceram como outorgantes: Primeiro: - AA e esposa BB, naturais e residentes da freguesia de Paredes da Beira, deste concelho, casados segundo o regime da Comunhão Geral de bens. Segundo: - EE (…) outorgando em representação da Câmara Municipal de São João da Pesqueira, conforme poderes que lhe foram conferidos por deliberação de um de Julho do ano (…) exarada a folhas cento e dezoito (…) do livro de actas número treze. (…) Pelos primeiros outorgantes foi dito que são donos e legítimos proprietários dos seguintes prédios:

Número um: Prédio rústico composto de terreno de semeadura, sito no lugar do …, freguesia de Paredes da Beira, deste concelho, inscrito na respetiva matriz sob o artigo mil quatrocentos e setenta e um, com o valor matricial de quatro mil escudos, descrito na Conservatória de Registo Predial desta Vila, sob o número vinte mil quinhentos e quarenta, a folhas trinta e um (…) do livro – B – cinquenta.

Número dois: (…) quinta designada por “Quinta do CC”, sita no limite da freguesia de Riodades, composto de casa de alvenaria, palhais e terra de semeadura, inscrita na respetiva matriz sob os artigos novecentos e setenta e um, novecentos e setenta e oito, novecentos e oitenta e um, novecentos e oitenta e três, novecentos e oitenta e quatro, novecentos e oitenta e cinco, novecentos e oitenta e seis, não descrito na C.R.P. de São João da Pesqueira, respectivamente com os valores matriciais de vinte mil oitocentos e quarenta escudos; treze mil trezentos e quarenta escudos, três mil e oitenta escudos, quatro mil cento e vinte escudos, dois mil seiscentos e oitenta escudos e mil setecentos e oitenta escudos, não descrita na Conservatória do Registo Predial desta Comarca (…).

Que, pela presente escritura, cedem à Câmara Municipal de São João da Pesqueira, representada pelo segundo outorgante, o seguinte:

- Cinquenta e cinco metros quadrados de terreno do prédio mencionado na verba número um, para construção de uma fossa séptica, em consequência da obra da rede de esgotos que presentemente decorre na freguesia de Paredes da Beira.

- A exploração de uma nascente de água, já feita nesta data na “Quinta do CC”, para reforço do abastecimento de água à freguesia de Paredes da Beira (Prédio referido na verba número dois). O segundo outorgante, em nome da Câmara Municipal que representa, em relação aos primeiros outorgantes, obriga-se: Um - Pela cedência dos cinquenta e cinco metros quadrados, para construção de fossa séptica: a) Pagar, a título de indemnização, a quantia de vinte mil escudos; b) Construir um depósito (…) com a capacidade de trinta metros cúbicos, junto da referida fossa séptica, que fica a ser pertença dos primeiros outorgantes. Dois - Pela cedência da exploração da nascente de água na “Quinta do CC”, para reforço do abastecimento de água à freguesia de Paredes da Beira: a) A Garantir as sobras de água explorada na “Quinta do CC” que serão conduzidas através do cano de saneamento - esgoto da Cortinha; b) Assegurar, sem quaisquer encargos, o direito de aqueduto aos canos já colocados pelos primeiros outorgantes, junto à canalização pública, para condução de água por eles explorada na dita Quinta do CC. (…) 7-9-82” (Facto assente A).

B) Actualmente os prédios identificados em A) encontram-se inscritos na matriz predial rústica sob os artigos 557, Freguesia de Riodades e 948, Freguesia de Paredes da Beira, respetivamente. (Facto assente B);

C) Na sequência do acordo referido em A), o Autor, Município de São João da Pesqueira, efectuou obras de condução das águas da nascente até à aldeia, conduzida por uma conduta subterrânea que levava a água, por gravidade, canalização, essa, feita através de um sistema de tubagem próprio, partindo da nascente ali existente e directamente para a aldeia de Paredes da Beira. (Facto assente C);

D) Na sequência do acordo referido em A), o Autor construiu no prédio dos Réus, uma Estação de Tratamento de águas, para correcção do «ph» da água captada. (Facto assente D);

E) Na sequência do acordo referido em A), o Autor, por intermédio da Câmara Municipal de São João da Pesqueira, procedeu à abertura de uma vala e colocação de tubagem entre a Quinta do CC e o reservatório localizado no Monte de Nossa Senhora. (Facto assente E);

F) Na sequência do acordo referido em A), desde que começou a captar e conduzir a água, o Autor procedeu a operações de limpeza. (Facto assente F);

G) Na sequência do acordo referido em A), em 1982, os Réus utilizaram a vala aberta pelo Autor para colocar tubagem e para condução de água de nascente para o prédio denominada …. (Facto assente G);

H) Como contrapartida da cedência da nascente da água, relativamente a água não necessária para efeitos de abastecimento da rede (a água sobrante) seria para os Réus, mais propriamente para o prédio denominado … a partir dos tanques da Curtinha, para onde estava canalizada a água que transbordava do depósito de abastecimento da rede pública, sito no Monte de Nossa Senhora. (Facto assente H);

I) Na sequência do acordo referido em A) e desde 1982, a Câmara Municipal de São João da Pesqueira, assegurou a captação e abastecimento de água à freguesia de Paredes da Beira. (Facto assente I);

J) As águas captadas e conduzidas pelo Autor na sequência do acordo referido em A) eram destinadas ao consumo e uso doméstico da população da freguesia de Paredes da Beira, que a utilizavam para beber e dar de beber aos animais e para lavagens de pessoas e coisas. (Facto assente J);

K) Desde a data da celebração do acordo referido em A), a população da freguesia de Paredes da Beira vem utilizando a água proveniente da nascente sita no prédio rústico, denominado Quinta do CC, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém. (Facto assente K);

L) Aproveitando a referida água para os gastos domésticos, indo buscá-la com recipientes próprios (cântaros e jarros) ao fontanários localizados na freguesia de Paredes da Beira, lavando-se e cozinhando com ela, bebendo-a e dando-a de beber aos animais domésticos (Facto assente L);

M) As obras de captação, adução e depósito das águas da nascente sita no prédio rústico, denominado Quinta do CC estão à vista de toda à gente, incluindo o poço existente no mesmo prédio. (Facto assente M);

N) O acesso da estrada pública à nascente sita no prédio rústico, denominado Quinta do CC bem como à canalização subterrânea que a transporta para o depósito é feito através do prédio dos Réus, numa extensão de cerca de 1000 metros de comprimento. (Facto assente N);

O) Para aceder à nascente e orientar as águas do prédio rústico, denominado Quinta do CC, o Autor, através dos seus funcionários, passava pelo referido prédio, à vista de toda a gente, de forma ininterrupta, sem oposição dos Réus ou de quem quer que fosse. (Facto assente O);

P) Para aceder à mina sita no prédio rústico, denominado Quinta do CC, orientarem as águas e desobstruírem os tubos, o Autor, através dos seus funcionários, passava pelo prédio dos Réus, à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de quem quer que fosse. (Facto assente P);

Q) Na sequência da aprovação do Decreto-Lei n.º 270-A/2001 de 6 de Outubro que criou, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 379/93, de 5 de Novembro, o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento de Trás-os-Montes e Alto Douro, para captação, tratamento e distribuição de água para consumo público e para recolha, tratamento e rejeição de efluentes do município de São João da Pesqueira, entre outros e constituiu a sociedade águas de Trás-os-Montes e Alto Douro, S. A., foi celebrado um acordo entre a sociedade Águas de Trás-os-Montes e Alto Douro, S.A. e o Autor no sentido de aquela sociedade passar a assegurar o abastecimento público de Paredes da Beira e o tratamento dos respetivos efluentes, através da rede pública de distribuição, incluindo a distribuição domiciliária. (Facto assente Q);

R) Mercê do descrito em Q), a Empresa Águas de Trás-os-Montes assumiu a responsabilidade pela captação e abastecimento de água ao domicílio em Paredes da Beira. (Facto assente R);

S) Aquando do descrito em E), o Autor construiu um tanque, para onde fez conduzir a água captada e conduzida através de um tubo de plástico. (resposta ao artigo 1º da Base Instrutória);

T)  Mercê do descrito de C) a E) e em S), o Autor conduziu as águas para os fontanários públicos; reservatórios e tanques da Curtinha. (resposta ao quesito 2º da Base Instrutória);

U) … Onde depois era utilizada para a rega de culturas agrícolas domésticas, no âmbito da distribuição domiciliária. (eliminada em resultado da decisão proferida pela Relação);

V) As águas captadas e conduzidas pelo autor na sequência do acordo referido em A) também eram destinadas à rega de terrenos agrícolas de cultivo doméstico da população da freguesia de Paredes da Beira, no âmbito da distribuição domiciliária. (eliminada em resultado da decisão proferida pela Relação);

U) Desde a data da celebração do acordo referido em A), desde há mais de 20 e 30 anos, o Autor, através dos seus órgãos, utiliza a água proveniente da nascente sita no prédio rústico, denominado «Quinta do CC», à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta, na convicção de estar a exercer um direito próprio, sem lesar interesses de outras pessoas. (resposta ao quesito 5.º da base instrutória, já com o aditamento decidido pela Relação);

V) Captando e conduzindo a água para uso de toda a população da freguesia de Paredes da Beira. (resposta ao quesito 6.º da base instrutória);

W)  Procedendo a obras de limpeza das condutas, do reservatório, da nascente, da ETAR e do tanque, sem que para tal pedisse autorização ou prestasse contas ao alguém, inclusive aos Réus. (resposta ao quesito 7.º da base instrutória);

X)  Procedendo a obras de conservação e de reparação dos tubos condutores da água, criando de uma reserva e depósito de forma a concentrar, sem que para tal pedisse autorização ou prestasse contas ao alguém, inclusive aos Réus. (resposta ao quesito 8.º da base instrutória);

Y) Actos realizados desde 1982 até à presente data pelos funcionários ao serviço da Autora: FF; GG; HH; II; JJ; KK; LL, entre outros. (resposta ao quesito 9.º da base instrutória);

Z) No prédio rústico denominado Quinta do CC existe um tubo subterrâneo implantado pelo Autor no mesmo prédio que liga a nascente à ETAR referida em D) e daí até ao limite do prédio. (resposta ao quesito 11.º da base instrutória);

AA) Em momento não apurado mas anterior a Fevereiro do ano de 2012, os Réus desviaram toda a água da nascente do prédio rústico denominado Quinta do CC, conduzindo-a para o prédio rústico denominado … (resposta ao quesito 12.º da base instrutória);

BB) Aquando do descrito em O) e P), o Autor actuava na convicção de estar agir como dono das águas da nascente sita no prédio rústico, denominado Quinta do CC, com exclusão de outros donos e ignorando lesar interesses de outras pessoas (aditado pela Relação, em consequência da alteração da resposta dada pelo tribunal recorrido ao quesito 10º da base instrutória).



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Nesta ação pretende o Município de São João da Pesqueira que os réus AA e esposa BB lhe reconheçam o direito de propriedade da nascente existente no prédio rústico denominado Quinta do CC, bem como de todas as águas que da nascente brotem, sejam os réus condenados a restituir ao autor o abastecimento e o uso de água existente na nascente situada na Quinta do CC, a absterem-se de praticar quaisquer actos que colidam com estes direitos e, ainda, a reconhecerem constituída uma servidão de aqueduto, por meio de tubos subterrâneos, desde a nascente até atingir o limite do prédio dos réus confrontante com a estrada pública.


Os réus contestam estes invocados direitos; e, para o caso de a acção ser julgada procedente, pedem, em reconvenção, que o Município seja condenado a utilizar as águas da Quinta do CC que lhe foram cedidas apenas para abastecimento da povoação de Paredes da Beira (abastecimento domiciliário e dos fontanários a partir do depósito existente no Monte da Nossa Senhora), que os efluentes e as sobras sejam repostos no prédio denominado Coelhal, (pertencente aos réus) e seja condenado a pagar aos réus a indemnização pelos prejuízos para estes decorrentes do não cumprimento do contrato e a liquidar em execução de sentença.


A 1.ª instância deu a razão aos réus, absolvendo-os do pedido que a autarquia contra eles deduziu.

A Relação, todavia, procedendo à pedida reapreciação do julgamento da matéria de facto, alterou as respostas dadas aos quesitos 3.º e 4. (considerou-os “não provados”) e 5.º e 10.º (julgou-os “provados”) da BI, reconheceu ao Município de São João da Pesqueira o direito de propriedade sobre toda a água da nascente existente na Quinta do CC e, também, o direito de servidão de aqueduto para gastos domésticos, constituída sobre o mencionado prédio dos réus, por meio de tubos subterrâneos, para aproveitamento das águas daquela nascente.


É contra esta determinação que os recorrentes se insurgem.

Para os recorrentes, não se justifica a alteração das respostas dadas aos pontos 3.º, 4., 5.º e 10.º da base instrutória; tal alteração viola o disposto no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

A posição do Tribunal é, por isso, ambígua ou obscura, o que faz incorrer a decisão, além do mais, no disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil; e, porque julgou procedente o pedido de reconhecimento de servidão de águas sem sequer o analisar no seu conteúdo e no seu fundamento, é o acórdão nulo, conforme o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, concluem os recorrentes.



Vamos analisar a argumentação dos recorrentes.

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I. O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” (n.º 3 do artigo 674.º do atual C.P.Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, em vigor desde o dia 1 de Setembro de 2013 e aplicável ao caso “sub judice”),


Neste circunstancialismo jurídico-processual havemos de ter em conta que a decisão proferida pelo tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 3 do artigo 674.º do atual C.P.Civil (n.º 2 do art.º 682.º do atual C.P.Civil) e que “o processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito” (n.º 3 do art.º 682.º do atual C.P.Civil).

Quer isto dizer que, funcionando como tribunal de revista e, por isso, excluído por regra da possibilidade de abordar questões de facto, o Supremo Tribunal de Justiça só nos particularizados termos admitidos pelos números 2 e 3 do art. 682.º do atual C.P.Civil lhe é permitida ingerência em matéria de facto, ou seja, neste domínio só é admissível a sua intervenção no campo da designada prova vinculada, isto é, quando a lei exige determinado tipo de prova para certas circunstâncias factuais ou quando atribui específica força probatória a determinado meio probatório.


Às instâncias cabe averiguar, exclusivamente, todo o circunstancialismo factual envolvente da acção, reservando-se para a Relação o último passo a dar sobre esta temática.

Ao Supremo Tribunal de Justiça compete vigiar e denunciar se a Relação fez mau uso dos poderes que a proposição descrita no art.º 662.º do C.P.Civil lhe concede.

Neste último aspecto também se pode dizer que estamos perante uma discussão sobre matéria jurídica, porquanto em tais casos, não estamos a dirimir consistências de provas segundo a convicção de quem julga (artigo n.º 5 do art.º 607.º do C.P.Civil).   

   

Está, assim, este Supremo Tribunal impossibilitado de se pronunciar sobre a problemática do erro sobre o julgamento da matéria de facto posta no recurso - como vimos e é jurisprudência pacífica, não podendo ser objecto do recurso de revista o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa - artigo 722º do CPC (antigo) - está vedado ao STJ afastar ou censurar as ilações retiradas dos factos provados pela Relação, quando, baseando-se em critérios desligados do campo do direito, estiverem logicamente fundamentadas, pois que, sendo assim, não integram mais do que matéria de facto (Ac. STJ de 1.3.2011; www.dgsi.pt).   

  

II. Invocam os recorrentes em seu proveito que a Relação não fez uma interpretação cuidada e atenta da descrição posta no contrato outorgado pelas partes, celebrado no dia 07/09/1982 e mediante outorga de escritura pública.

Não foram analisadas todas as provas mostradas na ação, designadamente a confissão escrita constante dos artigos 21.º e 37.º do requerimento de providência cautelar instaurada como preliminar desta ação, concluem os recorrentes.


Não assentimos, porém, nestas asserções.

1. As alterações que a Relação produziu (julgou “não provados” os artigos 3.º e 4.º e “provados” os quesitos 5.º e 10.º, da BI, repetimos) estão, clara e inequivocamente, sustentadas na interpretação do pacto firmado em 7 de Setembro de 1982 (de acordo com o estatuído nos artigos 236º n.º 1 e 238.º, ambos do C. Civil) e no depoimento das testemunhas ..., ... JJ, ...o e ....


Lembremos que todo o documento é susceptível de interpretação e que é admissível a prova testemunhal, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 393.º do C.Civil, com o objectivo de determinar o sentido que as partes atribuíram a determinada cláusula inserta num documento (cfr. Ac. do STJ de 13.11.1986; BMJ, 361.º, pág. 496), ou seja, que, por excepção ao disposto no art.º 394.º do C.Civil, é admissível prova testemunhal com vista a interpretar o conteúdo de documentos ou completar a prova documental (Prof. Mota Pinto; C.J, 1985, 3.º, pág. 9).


O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las; e será através da valoração que delas faça que vai proferir a decisão, ponderadamente tomada e de acordo com a convicção que sobre cada facto tenha livremente firmado, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas consagrado no n.º 5 do art.º 607.º do C.P.Civil.


2. Argúem os recorrentes que se não teve em conta a “confissão” das partes, documentada na providência cautelar instaurada como preliminar desta ação e constante dos artigos 21.º e 37.º do seu requerimento, circunstancialismo processual que determinaria que fosse outro o julgamento sobre a matéria de facto realizado pela Relação.


Quer-nos parecer que, da interpretação que destes articulados fazemos, não resulta a “confissão expressaque os recorrentes apontam como capaz de fazer perigar a alteração dada pela Relação aos quesitos 3.º, 4.º, 5.º e 10.º, da BI.


Convenhamos que, traduzindo a “confissão” o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art.º 352.º do C.Civil), esta anuência só releva no contexto da prova da aceitação de um facto que contraria a posição do confitente.

 

Ora, tomando em consideração a plenitude da facticidade comprovada em julgamento, dela não perscrutamos circunstancialismo algum que nos remeta para a verificação da existência da figura jurídica da “confissão”; e, como vimos e é jurisprudência pacífica, não podendo ser objecto do recurso de revista o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa … está vedado ao STJ afastar ou censurar as ilações retiradas dos factos provados pela Relação, quando, baseando-se em critérios desligados do campo do direito, estiverem logicamente fundamentadas, pois que, sendo assim, não integram mais do que matéria de facto (Ac. STJ de 1.3.2011; www.dgsi.pt).


Lembremos, ainda, que tem natureza diferente desta, a confissão projectada no processo por força do disposto no n.º 2 do art.º 574.º do C.P.Civil.

Esta confissão (confissão ficta) - consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados… - porque se insere no âmbito do princípio da descoberta da verdade e correspondendo a um ónus estreitamente ligado ao dever de verdade que a lei impõe a ambos os litigantes (A. Varela; Obra cit. pág. 346), não constitui “um meio de prova integrador do arsenal de provas previsto no art.º 512º do Código de Processo Civil”.


Desviada que está de uma declaração, pessoal e expressa, a asseverar um facto que a embaraça, a parte que incorre nesta particularizada falha não faz um pessoal reconhecimento a integrar o conceito de confissão que o estatuído no art.º 352.º do C.Civil consagra - exclusivamente ligada à inactividade do réu…a omissão em causa só surte efeito de admissão conjugada com o acto positivo da prévia alegação e apenas na medida em que ocorre a preclusão do direito de praticar um acto processual” (Lebre de Freitas; A Confissão no Direito Probatório, página 483 e 462).


Deste modo, considerando bem tomada a decisão que corporiza a resposta dada a cada um daqueles referenciados artigos da base instrutória, a conclusão que deles retirou a Relação nenhuma reprovação merece.

  

III. Endereçam os recorrentes ao acórdão recorrido as sua nulidades prescritas nas alíneas c) e d) do art.º 615.º do C.P.Civil - é ambíguo, obscuro e reconheceu o direito de servidão de águas ao Município sem o analisar no seu conteúdo e no seu fundamento


Não pensamos que assim seja.

1. Opera-se o vício dito no art.º 615.º, n.º l, alínea c), do C.P. Civil - os fundamentos estão em oposição com a decisão) sempre que nela se manifeste falta de coerência na abordagem dos motivos e na resolução final da acção, dessa condução analítica se podendo inferir que a argumentação nela posta conduz a resultado diverso do expendido - esta nulidade verifica-se quando os fundamentos invocados pelo Julgador deveriam conduzir logicamente a resultado oposto ao expresso na sentença (Prof. Alberto dos Reis, Cód. Civil Anot., V, pág. 141; A.Varela, Manual, pág. 671 e Ac. do S.T.J. de 21.10.1988; B.M.J.; 380.º. pág. 444).


Estamos perante uma factualidade obscura quando se não consegue apreender bem o seu conteúdo e determinar com clareza os seus limites e alcance; e existe contradição nas respostas dadas aos quesitos sempre que delas resulta um facto que exclua necessariamente o outro, isto é, quando, seguindo um raciocínio lógico, os factos neles referidos não possam coexistir ente si ou com outro já assente.

 Da facticidade que a Relação julgou provada (quesitos 5.º e 10.) e da sua envolvência relativa com os restantes factos considerados também provados - e só estas descritas circunstâncias são suscetíveis de, neste âmbito, serem avaliadas - não resulta qualquer equivocidade que torne duvidosa a sua perceção.

    

2. É, ainda, nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento - n.º 1, al. d), do art.º 668.º, do Cód. Proc. Civil.

Recorrendo-se a Tribunal para que aí sejam solucionadas as questões trazidas pelas partes, impõe-se ao Juiz que aprecie cada uma, dirimindo todas elas através de uma justa decisão.

É através do pedido que se faz e da descrição dos factos que o fundamentam que os sujeitos processuais dão conteúdo à questão que pretendem ver solucionada, ou seja, é da análise dos factos avançados por autor e réu que se enquadram dentro dos limites da causa de pedir, apontada para o concreto pedido - e só esses - que o Julgador terá de agenciar com vista a resolver o litígio que os opõe.

"Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão" - Prof. Alberto dos Reis; Cód. Proc. Civil Anotado; Vol. V; pág. 143).

Também se não pode validar a decisão que exorbite do âmbito da questão que as partes assinalam e definem na demanda, ou seja, se o julgado se não identificar com a causa de pedir e pedido da acção.


Porque o Município de São João da Pesqueira pediu que lhe fosse reconhecida a constituição de uma servidão de aqueduto por meio de tubos subterrâneos desde a nascente até atingir o limite do prédio dos réus confrontante com a estrada pública, dúvidas não podemos ter de que o acórdão recorrido, ao reconhecer esta prerrogativa ao Município, se confinou ao que lhe foi pedido para julgar; e, cuidando na procura da fundamentação jurídico-positiva que determinou a solução do litígio em que as partes estão envolvidas, não detetamos no acórdão da Relação a deficiência que os recorrentes lhe inventariam.


Concluindo:

1. Um documento autêntico apenas faz prova plena quanto aos factos referidos como praticados pelo oficial público respectivo (Ac. STJ de 22.06.1989; AJ, 1.º -10/13), não prova plenamente que as declarações nele contidas são válidas e eficazes (V. Serra; RLJ, 111.º, 302) e que, como é consabido, é admissível a inquirição de testemunhas para prova de quesito sobre averiguação da intenção ou vontade dos contraentes expressa em documento autêntico.

2. Tem natureza diferente desta, a confissão projectada no processo por força do disposto no art.º 574.º, n.º 2, do C.P.Civil. Esta confissão (confissão ficta), porque se insere no âmbito do princípio da descoberta da verdade e correspondendo a um ónus estreitamente ligado ao dever de verdade que a lei impõe a ambos os litigantes (A. Varela; Obra cit. pág. 346), não constitui “um meio de prova integrador do arsenal de provas previsto no art.º 512.º do Código de Processo Civil”.


Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


Supremo Tribunal de Justiça
, 15 de setembro de 2016.


António da Silva Gonçalves (Relator)

António Joaquim Piçarra

Fernanda Isabel Pereira