Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
176/06.3TBMTJ.L1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: CONTRATO DE FORNECIMENTO
NULIDADE DO ACÓRDÃO
CONTRATO DE SEGURO
INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
CONDENAÇÃO GENÉRICA
LIQUIDAÇÃO ULTERIOR DOS DANOS
Data do Acordão: 11/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
DIREITO COMERCIAL - SEGUROS
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - SENTENÇA
Doutrina: - Alberto dos Reis, Código do Processo Civil Anotado, vol. 1º, p. 641.
- Almeida Costa, Direito da Obrigações, 6ª edição, pp. 455-461.
- Heirinch Ewald Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português- Teoria Geral do Direito Civil, 1992, pp. 511, 512.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português l, Parte Geral, Tomo l, 1999, págs. 478 e 479.
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Maio 2005, p. 446 e ss..
- Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita, 1995, 208.
- Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. 1º, pág. 233, em nota ao artigo 236.º.
- Rodrigues Bastos, Notas ao Código do Processo Civil, vol. III, pp. 232/233.
- Rui de Alarcão, Direito das Obrigações (Lições Policopiadas – 1983), p. 210.
- Vaz Serra, “Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extracontratual”, in BMJ, 85, 115-239; R.L.J., Ano 114-31.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 237.º, 238.º, 342.º, N.º1, 443.º, N.º1, 566.º, Nº3.
CÓDIGO COMERCIAL (C. COM.): - ARTIGOS 426.º, 427.º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 661.º, N.º2, 668.º, N.º1, C).
DL N° 176/95, DE 26-7: - ARTIGOS 8.º, 9.º.
DL N.º72/2008, DE 16-4: - ARTIGO 426.º.
LEI 23/96, DE 26-7 (ALTERADA PELA LEI N.º12/2008, DE 26-2, PELA LEI N.º 24/2008, DE 2-6, PELA LEI N.º 6/2011, DE 10-3 E PELA LEI N.º 44/2011, DE 22-6): - ARTIGOS 1.º, N.º2, AL. B) E 5.º.
REGIME DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS (CCG) – DL N° 446/85, DE 25-10.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-Nº 880/96, DE 8-10-96.
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 2.2.88, IN BMJ–374, 436;
-DE 11.11.92, IN BMJ-421/364;
-DE 21-1-98, BMJ 473-445;
-DE 23-9-98, BMJ 479-498;
-DE 7-10-99, BMJ 490-212;
-DE 19-4-01, CJSTJ, II, 33;
-DE 25.3.2003, IN CJSTJ, ANO XXVII, TOMO I, PÁG.140;
-DE 11-5-05, PROC. N.º 4007/04, DA 6ª SECÇÃO;
-DE 20-9-05, PROC. N.º 1980/06-6ª SECÇÃO;
-DE 21-11-06, PROC. N.º 3.600/06, DA 6ª SECÇÃO,
-DE 7.2.2008, PROC. N.º08B050, ACESSÍVEL IN WWW.DGSI.PT.
-DE 17.6.2008, PROC. N.º08A1700 – IN WWW.DGSI.PT ;
-DE 19.5.2009, PROC. N.º2684/04.1TBTVD.S1, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. Há contradição entre os fundamentos e a decisão, quando estes dois aspectos cruciais da sentença, na sua sustentação, enfermam de um vício lógico insanável, através do qual se evidencie que a concreta fundamentação utilizada pelo julgador, seja ancorada na matéria de facto ou na matéria de direito, jamais poderia ter conduzido ao resultado alcançado que, assim, não pode ser considerado inteligível e coerente desfecho por estar inquinado de um vício no raciocínio lógico-dedutivo; ou seja, o caminho trilhado na via da fundamentação nunca poderia, de uma maneira lógica e razoável, desaguar naquele concreto resultado plasmado na sentença.

II. Mesmo que o recorrente sustente que a interpretação do contrato de seguro foi incorrecta, por ter violado princípios lógico-normativos da hermenêutica jurídica negocial, isso não exprime nulidade da sentença, quando muito mostra ter havido erro de julgamento. O erro de julgamento conduz à revogação da decisão, a contradição entre os fundamentos e a decisão conduz à nulidade da decisão.

III. Uma cláusula de um contrato de seguro que sob a designação “Responsabilidade Civil Geral” estatui -“Fica estabelecido, de acordo com os termos da Cláusula n°11 – Objecto do seguro – que está coberta a Responsabilidade Civil Legal do Segurado por lesões corporais e/ou danos materiais e suas consequências causadas a terceiros, derivadas de actos, factos ou omissões ocorridos no exercício das suas actividades”, abrange a responsabilidade civil contratual e extracontratual do segurado.

IV. Um declaratário normal, prudente, experiente e conhecedor da realidade da vida e muito mais da terminologia jurídica e dos conceitos usados na contratação, como é o caso de uma seguradora, não pode pretender que a cláusula referida em III) apenas envolva a responsabilidade extracontratual do segurado.

V. Classicamente, a responsabilidade civil coenvolve a responsabilidade contratual (a violação do contrato) e a extracontratual (a que não se filia na violação de deveres contratuais, mas em normas que tutelam interesses alheios, ou direitos absolutos) e ainda a responsabilidade objectiva: em não poucos casos, a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual miscigenam-se, mal se destrinçando os campos de aplicação e nem sequer a nitidez das fronteiras.

VI. Provada a existência de danos, mas não o seu quantum, o Tribunal pode recorrer, desde logo, à equidade e fixá-los – art. 566º, nº3, do Código Civil – ou relegar o seu apuramento para momento ulterior – art. 661º, nº2, do Código de Processo Civil.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



           AA, S.A. intentou, em 23.1.2006, pelo Tribunal Judicial da Comarca do Montijo – com distribuição ao 1º Juízo – acção declarativa de condenação com processo ordinária, contra:

 BB, S.A.,

Pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe uma indemnização no valor de € 24.109,45, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação e até integral pagamento.

Alegou, em síntese, que, no dia 18.02.2003, sofreu um corte de energia eléctrica nas suas instalações, em Pegões-Montijo, por parte da EDP- Distribuição Energia, S.A, sem qualquer aviso prévio, com a invocação de falta de pagamento de uma factura, o que não correspondia à verdade, pois a factura que serviu de base à decisão do corte tinha sido efectivamente paga dentro do prazo e do conhecimento desta.

A actuação da EDP causou à autora danos decorrentes da paragem da laboração das instalações, entre as 11.00 horas e as 19.30 horas, do dia 18.2.2003.

Além disso, a autora sofreu quebra da sua boa reputação e imagem, já que o referido corte foi efectuado na presença de colaboradores e clientes que se encontravam nas instalações.

Contestou a ré, arguindo a sua ilegitimidade para ser demandada sozinha, devendo o seu segurado também estar presente na acção, como sujeito da relação jurídica material, sem o que se mostra preterido o litisconsórcio necessário.

Em sede de impugnação, refere que o contrato de seguro celebrado com a EDP apenas abrange situações de responsabilidade civil extra-contratual.

 Impugna os valores peticionados, que tem por exagerados e incorrectos, nomeadamente por incluírem o IVA, que nunca pode ser tido como prejuízo, uma vez que se a autora não vendeu o produto não pode contabilizar tal imposto, o qual por isso não representa um prejuízo para a mesma, dado que se destina a ser entregue ao Estado, nunca constituindo perda de património daquela, além de que a ré só contabiliza o que deixou de vender mas já não o que deixou de gastar por não ter produzido.

Termina pugnando pela procedência da excepção de ilegitimidade, com a absolvição da instância e se assim não for entendido, pela improcedência do pedido e correspondente absolvição.

A autora apresentou réplica, onde alega que a ré nunca pôs em causa a transferência de responsabilidade e que em sua opinião inexiste qualquer ilegitimidade singular passiva.

Porém, à cautela, requereu a intervenção principal provocada da EDP, de modo a suprir a alegada ilegitimidade singular passiva da Ré, intervenção que foi admitida.

Citada para os termos da acção, a EDP Distribuição-Energia, S.A contestou, admitindo ter procedido ao corte de energia, o que ocorreu por não ter sido tido como paga uma factura cujo prazo de pagamento era até ao dia 16.01.2003.

Admite que um mês depois de estar em atraso, a autora, em 12.02.2003 fez entrar nos serviços comerciais um cheque para pagamento da referida factura, mas que só em 18 de Fevereiro os serviços o tiveram como efectivamente recebido.

Trata-se de uma cliente reincidente em pagamentos em atraso, sendo que entre 22.11.2004 e até 28.02.2006, foram emitidas e executadas contra a autora 12 ordens de corte por falta de pagamento, tendo esta pago entre 04.05.2005 e 01.03.2006, a quantia de € 1.712,59 de encargos por religação.

No que respeita aos danos que a autora alega ter sofrido, aponta que esta nunca os demonstrou convenientemente, entendendo destituído de fundamento o pedido que a mesma formula.

 Termina pugnando pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.

Foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a Ré, BB, S.A, a pagar à Autora, por força do contrato de seguro celebrado com a Ré - EDP Distribuição de Energia, SA., a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, correspondente ao ganho que aquela deixou de ter em virtude do corte de energia, respeitante ao próprio dia em que ocorreu o corte e dias seguintes, suportando a EDP a parte correspondente à franquia, no montante de € 1.000,00.

 Absolveu as Rés do restante pedido (valor/hora de paralisação dos veículos).

Inconformada, recorreu a Ré “BB, S.A”, para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 26.4.2012, fls. 337 a 354, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida[1].

De novo inconformada, recorreu a Seguradora para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

a) O Acórdão recorrido apreciou mal, com o devido respeito, a suscitada nulidade da sentença de 1ª instância por contradição entre a decisão e os seus fundamentos.

É que,

b) Os fundamentos são, antes dos de carácter jurídico, os relativos aos factos. Ora,

c) Não há nulidade por contradição entre a decisão e os fundamentos apenas quando o raciocínio do juiz vai num sentido e a decisão se lhe opõe, mas também, e antes disso, quando a decisão, de acordo com um silogismo lógico-jurídico, decide em contrário do que os factos apurados impõem.

d) E foi isso que se verificou com a sentença de 1ª instância e também, por consequência, com o Acórdão recorrido, uma vez que ambas as decisões estão em oposição directa com o facto assente n°23° constante das mesmas.

e) O que é gerador de nulidade de ambas as decisões por oposição entre estas e os respectivos fundamentos de facto.

f) Ainda que se entendesse não existir a apontada nulidade por oposição entre as decisões e os seus fundamentos (de facto), sempre existiria erro de julgamento em ambas as decisões.

g) Em primeiro lugar, tal erro de julgamento consubstancia-se em contrariar o que consta do ponto 23° da factualidade descrita nas decisões de ambas as instâncias e que resulta do acordo de todas as partes no processo sobre o conteúdo das garantias do contrato de seguro ajuizado: este garante apenas a responsabilidade civil extracontratual da aqui Interveniente.

 Ora,

h) Não pode o Tribunal sobrepor-se ao acordo das partes sobre matéria de facto, já que nenhum dos pressupostos que permitiriam que tal acontecesse se verifica nos presentes autos.

i) A cláusula 12ª do contrato de seguro dos autos deve ser interpretada de acordo com o sentido que lhe foi dada pela ora recorrente e que era do conhecimento do declaratário, a ora Interveniente, que aceitou tal sentido quando interveio nos autos.

j) As disposições sobre cláusulas contratuais gerais não são aplicáveis ao contrato de seguro dos autos: desde logo, porque ninguém alegou, e muito menos demonstrou, que este clausulado haja sido redigido pela ora recorrente, e que a ora Interveniente a ele tenha aderido.

k) Sendo embora habitual que os contratos de seguro sejam contratos de adesão, não é da essência destes que tal assim seja necessariamente.

l) Sobretudo quando o contrato de seguro dos autos só tinha aplicação possível, à época da sua celebração, à ora Interveniente, que era então monopolista das actividades objecto do mesmo, torna-se patente que o mesmo não resulta de um clausulado pré-aprovado mas de um outro feito à medida e por acordo entre as partes.

m) E só depois de feita a prova de que tal contrato corresponderia a um formulário a que a ora Interveniente houvesse aderido, o que não é o caso, incumbiria à ora recorrente o ónus de demonstrar que a cláusula em concreto havia sido objecto de negociação entre si e a Interveniente.

n) Não há, pois, que interpretar tal cláusula no sentido mais favorável ao aderente, a ora Interveniente, pela singela razão de que esta não aderiu a um contrato pré-elaborado pela ora recorrente.

o) Nos termos da cláusula 12ª do contrato de seguro dos autos, só ficaram garantidos os danos causados pela ora Interveniente a terceiros.

p) Neste sentido, terceiros terão de ser pessoas ou entidades que não sofram danos em razão de uma qualquer relação contratual com a ora Interveniente.

q) Não pode interpretar-se a expressão ‘terceiros’ como referindo-se ao próprio contrato de seguro, já porque não tem qualquer acolhimento na letra da cláusula, como não teria outra aplicação que não fosse excluir do conceito apenas a ora recorrente, seguradora que não teria que pagar danos a si própria, ou à ora Interveniente, que não pode ser titular de uma obrigação de indemnização resultante de responsabilidade civil a si imputável...

r) A expressão “responsabilidade civil legal” apenas pode ser interpretada como sinónima de responsabilidade civil extracontratual e por oposição a responsabilidade civil contratual.

s) Entender-se que a responsabilidade civil contratual também é legal e, por isso, estaria também abrangida nas garantias do contrato de seguro, seria deixar a expressão sem qualquer sentido: por um lado, todas as formas de responsabilidade civil ou de obrigações de indemnização — mesmo as cláusulas penais — sempre resultariam da lei, com o que nada ficaria de fora; por outro, seria equiparar a expressão “responsabilidade civil legal” à expressão “responsabilidade civil” pura e simplesmente — e há que presumir que, escrevendo-se a primeira não se pretendeu dar à mesma o sentido que a segunda teria.

t) Com o que importa concluir que o que se quis garantir no contrato de seguro dos autos, quer pela ora recorrente quer pela Interveniente, foi apenas e tão só a responsabilidade civil extracontratual.

u) Nenhuma consequência se pode retirar da circunstância da ora recorrente ter incumbido uma empresa de averiguações sobre as causas e consequências dos factos dos autos, já porque tal não significa a assunção de qualquer responsabilidade ou a garantia do que não estava abrangido pelo contrato de seguro, já porque tal foi, não só útil para si como para a sua segurada, a aqui Interveniente, nos presentes autos.

v) Nunca poderia ter sido proferida uma condenação genérica uma vez que tal significa conceder-se à ora apelada uma segunda oportunidade para demonstrar o que não logrou fazer, e ao contrário do que estava obrigada, nos presentes autos.

w) Ao permitir-se tal segunda oportunidade está-se a violar o princípio da igualdade das partes e a beneficiar a ora apelada em detrimento da posição processual da ora apelante e da Interveniente EDP.

x) A primeira entidade a violar obrigações contratuais na situação em análise nos presentes autos foi a ora apelada que, em doze ocasiões distintas, não pagou dentro dos prazos assinalados os valores que devia.

y) Na situação dos autos, foi a ora recorrida quem não cumpriu deixou passar os dois prazos que teve para cumprir a sua obrigação sem que fosse cortada a energia eléctrica.

z) Ao não cumprir no segundo deles sujeitou-se a que a energia fosse cortada sem qualquer lapso da Interveniente.

aa) Tal violação contratual, gravemente culposa pela reiteração e pela displicência no modo e no tempo em que a sua obrigação foi cumprida, sempre deveria conduzir à exclusão ou, ao menos, à redução para valor não superior a metade da indemnização que viesse a ser fixada.

bb) Foram violadas as normas dos arts. 3°, 3°-A, 264°, 471°, n°1, b), 661°, n°2, 668°, n°1, e) e d), do Código de Processo Civil, 236°, 342°, 406°, 562° e seguintes, maxime 564°, 565°, 569° e 570°, do C. Civil.

Termos em que o Acórdão recorrido deve ser revogado, substituindo-se o mesmo por Acórdão que absolva a ora apelante do pedido.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguinte factos:

º - No dia 18 de Fevereiro de 2003, pelas 10.00 horas, deslocaram-se às instalações da autora, sitas no Lugar Herdades do Marquês, Pegões, Montijo, técnicos da EDP com a intenção de procederem ao corte de fornecimento de energia eléctrica – (A).

2º - Invocando ordens e tendo por justificação o não pagamento, pela autora, de uma factura – (B).

3º - O corte no abastecimento de energia eléctrica às instalações da autora efectivou-se cerca das 11.00 horas do dia 18 de Fevereiro de 2003 e durou até às 19.30 horas do mesmo dia – (C).

4º - Na altura referida no ponto 1º, os colaboradores da autora referiram aos técnicos da EDP que não havia qualquer pagamento em atraso – (2º).

5º - No dia 18 de Fevereiro de 2003 a factura que serviu de base ao corte de fornecimento de energia já se mostrava paga – (3°).

6º - A factura que esteve na origem do corte de energia tinha como data limite de pagamento o dia 16.01.2003 – (22°).

7º - Após o decurso do prazo relativo à factura referida no ponto 6º foi emitido aviso/recibo pela EDP, sobre eventual interrupção do fornecimento de energia eléctrica caso o valor não fosse pago até 10.02.2003 – (23°).

8º - A autora costuma pagar as facturas de energia com atraso – (24°).

9º - Facto que levou a que o corte de energia por parte da EDP apenas fosse efectuado em 18.02.2003 – (25°).

10° - Datado de 09.02.2003 a autora emitiu um cheque no valor de € 2.517,00 a favor da EDP, para pagamento da factura em dívida – (documento de fls. 196, apresentado pela EDP e aceite pela Autora)

11º - O cheque para pagamento da factura em causa deu entrada nos serviços comerciais da EDP no dia 12 de Fevereiro de 2003 – (26°).

12° - A EDP emitiu recibo, datado de 12 de Fevereiro de 2003, em que declara ter recebido a quantia de € 2.517,06 – (27°).

13° - Entre 22.11.2004 e 28.02.2006 foram emitidas e executadas pela interveniente 12 ordens de corte por falta de pagamento – (28°).

14° - O corte de fornecimento de energia eléctrica fez com que a produção da autora parasse – (6º).

15° - Entre as 11.00 horas e as 19.30 horas, do dia 18.2.2003, a autora produziria 1.275 toneladas de areia – (7º).

16º - No valor de € 5,00 por tonelada – (8º).

17º - Em 11 de Março de 2003 a firma V......, Lda. comunicou à autora que teria de facturar a imobilização das viaturas 00-00-00, 00-00-00, 00-00-00 e 00-00-00 (€ 40,00/hora) por terem estado paradas no estaleiro desta no dia 18.02.2003, das 12.00 às 20.00 horas, por o estaleiro não ter energia eléctrica e por isso não haver matéria prima para carregar, situação a que eram alheios – (9º).

18º - O corte de energia foi efectuado na presença de colaboradores e clientes da autora que se encontravam nas suas instalações – (10°).

19º - Facto que afectou a reputação e imagem da autora – (11°).

20° - E levou a que os negócios agendados para esse dia não tivessem sido efectuados – (12°).

21° - Os clientes que se encontravam no local para carregar retiraram-se e nos dias seguintes ao ocorrido houve um decréscimo de afluência de clientes e de encomendas – (13°, 14° e 15°).

22° - A deslocação de clientes trouxe prejuízo à autora de montante não apurado – (16°).

 23° - A Ré BB, SA celebrou com a EDP – Electricidade de Portugal, S.A., um contrato de seguro titulado pela apólice n. °00000000, através do qual assumiu para si transferida a responsabilidade civil extracontratual, entre outras, da EDP Distribuição -Energia, S.A. – (D) e documento de fls. 35 a 48 (contrato de seguro), que aqui se dá por integralmente reproduzido).

 24° - Sendo a franquia para danos materiais de “€ 1.000,00 por sinistro, para sinistros com valor de indemnização igual ou inferior a € 50.000,00” – (contrato de seguro, fls. 38 dos autos)

24. A EDP comunicou tais factos à BB, em data não concretamente apurada, mas não posterior a 25.06.2003 - (17°).

25° -Tendo a ré encarregue a empresa de peritagens AMR de averiguar o sucedido e o valor dos danos – (18°).

26° - Na sequência de várias deslocações às instalações da autora, a AMR solicitou verbalmente elementos contabilísticos que justificassem a produção horária e o custo unitário da tonelada de areia produzida por esta – (19°).

27° - Não tendo recebido esses elementos, acabou por os solicitar por escrito – (20°).

28° - A autora nunca forneceu esses elementos à ré – (21°).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

            - se existe contradição entre os fundamentos e a decisão, com a consequente nulidade do Acórdão, pelo facto do contrato de seguro celebrado entre a EDP e a recorrente não abranger o tipo de responsabilidade civil assacada à EDP segurada da recorrente;

            - se a recorrida contribuiu para existência de danos;

            - se o Tribunal poderia ter proferido condenação genérica, relegando para execução de sentença o quantum dos prejuízos sofridos pela Autora.

            De modo sucinto, a pretensão indemnizatória da Autora, exercida contra a Ré segurada e contra a EDP, prende-se com o facto de, existindo entre a demandante e a EDP um contrato de fornecimento de energia eléctrica, a EDP, no dia 18.2.2003, ter cortado o abastecimento de energia à Autora, levando a que entre as 11 h e as 19.30 h do dia do corte – 10.2.2003 – por ter estado privada de energia, tivesse sofrido prejuízos, sustentando a Autora que nessa data já a factura em débito estava paga.

            As instâncias, quanto a este ponto foram concordes em considerar que a EDP actuou em violação do contrato pelo facto de a factura que a EDP considerava em dívida ter sido paga no dia que precedeu o do corte, considerando que o contrato celebrado entre a Seguradora e a EDP abrange o dano sofrido pela Autora.

            Desde logo, a recorrente, tal como fez no recurso de apelação, sustenta que existe nulidade do Acórdão por contradição entre os fundamentos e a decisão – art. 668º, nº1, c) do Código de Processo Civil – já que o contrato de seguro celebrado entre a EDP e a recorrente, se interpretado adequadamente, mormente o seu art.12º, não abrange o risco que se verificou e não obriga a recorrente a indemnizar.

            Importa, desde já afirmar que não existe qualquer nulidade do Acórdão por alegada contradição entre os seus fundamentos e a decisão, por na perspectiva da recorrente ter sido interpretada erradamente a norma contratual do contrato de seguro em causa.

            Há contradição entre os fundamentos e a decisão, quando entre estes dois aspectos cruciais da sentença, na sua sustentação, enfermam de um vício lógico, insanável, através do qual se evidencie que a concreta fundamentação utilizada pelo julgador, seja ancorada na matéria de facto ou na matéria de direito, jamais poderia ter conduzido ao resultado alcançado, que assim não pode ser considerado inteligível e coerente.

            Mesmo que a recorrente sustente que a interpretação do contrato de seguro foi incorrecta, por ter violado princípios lógicos normativos da hermenêutica jurídica negocial, isso não exprime nulidade da sentença, quando muito mostra ter havido erro de julgamento. O erro de julgamento conduz à revogação da decisão, a contradição entre os fundamentos e  a decisão conduz à nulidade da decisão.

            No caso em apreço do que se trata, atenta a argumentação da recorrente e o seu enfoque adequado do ponto de vista processual, é de erro de julgamento e não de nulidade do Acórdão.

            Vejamos a questão que se relaciona com os contratos envolvidos na controvérsia.

            Ninguém questiona que se trata de dois contratos: um celebrado entre a Autora e a EDP através do qual esta fornecia eléctrica à Autora; outro celebrado entre a EDP e a Ré/recorrente BB, S.A, titulado pela apólice n.°00000000, através do qual assumiu para si transferida a responsabilidade civil extracontratual, entre outras, da EDP Distribuição-Energia, S.A. – (D) e documento de fls. 35 a 48.

            O primeiro é um contrato “atípico, envolvido de elementos próprios dos contratos de compra e venda e de prestação de serviços… com a contrapartida de pagamento pela cliente do respectivo preço.” – Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 7.2.2008 – Proc. 08B050 – Relator Salvador da Costa, acessível in www.dgsi.pt.


O segundo é um contrato de seguro, que, como emerge da definição contida no art. 426º do Código Comercial ao tempo vigente, é um contrato formal que, para valer, tem de ser reduzido a escrito – apólice – dela constando como menções obrigatórias, as referidas naquele normativo de que importa destacar as relativas à identidade do segurador, do segurado, ao objecto do seguro, sua natureza e valor, os riscos salvaguardados, o período de duração do contrato e a quantia ou objecto segurado, bem como o prémio do seguro.

O contrato em causa consta de fls. 35 a 48, foi celebrado tendo tido início de vigência em 1.1.2003. O referido documento é a Acta nº11 desse contrato.

O contrato de seguro rege-se pelas estipulações constantes da respectiva apólice, desde que não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições legais aplicáveis – art. 427º do C. Comercial. O art. 426º do DL. 72/2008, de 16.4, muito embora exigindo que o contrato de seguro conste de uma apólice (documento escrito) deixou de ser considerado um contrato formal.

 Como se lê no Preâmbulo do diploma de 2008 - “Quanto à forma, e superando as dificuldades decorrentes do artigo 426.º do Código Comercial, sem descurar a necessidade de o contrato de seguro ser reduzido a escrito na apólice, admite -se a sua validade sem observância de forma especial.

Apesar de não ser exigida forma especial para a celebração do contrato, bastando o mero consenso, mantém -se a obrigatoriedade de redução a escrito da apólice. Deste modo, o contrato de seguro considera-se validamente celebrado, vinculando as partes, a partir do momento em que houve consenso (por exemplo, verbal ou por troca de correspondência), ainda que a apólice não tenha sido emitida”.


Por se tratar de um contrato formal as regras de interpretação aplicáveis constam do art. 238º do Código Civil:

 
“1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.”

Heirinch Ewald Hörster, in “A Parte Geral do Código Civil Português -Teoria Geral do Direito Civil”, 1992, pág.512, escreve:

Quanto aos negócios formais, seja legal ou voluntária a forma adoptada, determina o nº1 do art. 238º que em princípio a declaração negocial não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento (...).

No entanto, um sentido que não tenha esta correspondência sempre pode valer se corresponder à vontade real das partes do negócio e as razões determinantes de forma se não opuserem a essa validade (art. 238, nº 2). Quer dizer, a regra “falsa demonstratio non nocet”, também se aplica a negócios formais (...).”

            Importa, analisando o contrato de seguro, saber se os prejuízos sofridos pela Autora estão cobertos pelo contrato celebrado entre a recorrente e a EDP a quem a Autora imputa incumprimento do contrato de fornecimento.

            A recorrente sustenta que o contrato de seguro em causa apenas garante a responsabilidade civil extracontratual. Na interpretação que perfilha das Condições Especiais da Apólice seu art. 11º – que versa sobre o “Objecto do Seguro” – e 12. “Responsabilidade Civil Geral”, – fls. 39 e segs. a responsabilidade contratual da EDP perante os seus clientes não está abrangida por esta Apólice.

            A Cláusula 11. - Objecto do Seguro – tem a seguinte redacção:

“Fica estabelecido, de acordo com os termos e condições desta Apólice, que a Seguradora garante ao Segurado:

11.1. Pagamento de indemnizações (incluindo custos, honorários e despesas do reclamante) que o Segurado venha a ser obrigado a satisfazer de acordo com a Legislação em vigor de qualquer país, decorrente da responsabilidade directa, indirecta, subsidiária, conjunta e individualizada ou qualquer outra, por danos corporais, danos materiais e as suas consequências, ocorridas durante o período de validade do seguro, causados a terceiros no exercício das suas actividades.”

A Cláusula 12ª“RESPONSABILIDADE CIVIL GERAL”, consigna:

 “Fica estabelecido, de acordo com os termos da Cláusula n°11 – Objecto do seguro – que está coberta a Responsabilidade Civil Legal do Segurado por lesões corporais e/ou danos materiais e suas consequências causadas a terceiros, derivadas de actos, factos ou omissões ocorridos no exercício das suas actividades”. 

                     As instâncias consideraram que a recorrente seguradora se constituiu na obrigação de indemnizar com base neste normativo.

O Acórdão recorrido tendo lançado mão das regras da hermenêutica negocial – art. 236º e 238º do Código Civil – para a interpretação do contrato, sobretudo para precisar o alcance da locução “está coberta aresponsabilidade Civil legal do segurado” operou ainda com o regime das Cláusulas Contratuais Gerais (CCG) – Decreto-Lei n° 446/85, de 25 de Outubro (LCCG), e artigos 8° e 9° do Decreto-Lei n° 176/95, de 26 de Julho.

Interpretar a declaração negocial é determinar o sentido (dos vários possíveis face à literalidade e aos interesses em causa) com que deve valer, numa perspectiva de actuação ética e do agir de boa-fé, ou seja, tendo em conta padrões de objectividade, rectidão e protecção dos interesses que o negócio visa regular.

Estamos imersos na problemática da interpretação da declaração negocial, sendo pertinente a convocação dos princípios da hermenêutica negocial.


No que concerne à interpretação da declaração negocial rege o art. 236º do Código Civil que dispõe:

“1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.”

Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. 1º, pág. 233, em nota ao art. 236º do Código Civil ensinam:

“ [...] A regra estabelecida no nº l, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade, é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, media­namente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2).

(...) O objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectiva­mente atribuir.

 (...) A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.”


O declaratário normal deve ser uma pessoa com – “Razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-a na posição do real destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo” – Paulo Mota Pinto, in “Declaração Tácita”, 1995, 208.

Menezes Cordeiro – “Tratado de Direito Civil Português l, Parte Geral”, Tomo l, 1999, págs. 478 e 479, ensina:

  “A doutrina actual encara a interpretação do negócio jurídico como algo de essencialmente objectivo; o seu ponto de incidência não é a vontade interior: ela recai antes sobre um comportamento significativo”...“tem de ser temperada com o princípio da tutela da confiança…” […] “entendemos que a interpretação do negócio deve ser assumida como uma operação concreta, integrada em diversas coordenadas.
Embora virada para as declarações concretas, ela deve ter em conta o conjunto do negócio, a ambiência em que ele foi celebrado e vai ser executado, as regras supletivas que ele veio afastar e o regime que dele decorra.”
 

O art. 237º do mesmo diploma:

 “Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.”

O art. 238º do Código Civil fornece o critério de interpretação para os negócios formais, sendo aplicável no caso de ser cogente ou voluntária a solenidade contratual.

“1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

2. Se sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade”.

Nos negócios formais rege o princípio - “falsa demosntratio non nocet”.

Heirinch Ewald Hörster, in “A Parte Geral do Código Civil Português -Teoria Geral do Direito Civil”, 1992, pág.511, acerca da falsa demonstratio escreve:

Esta ocorre em...situações em que declarante e declaratário se exprimem mal e se entendem bem, apesar de este entendimento comum contrariar o uso linguístico ou o sentido normal das expressões empregues.” 

Mais adiante, pág.512:

Quanto aos negócios formais, seja legal ou voluntária a forma adoptada, determina o nº1 do art. 238º que em princípio a declaração negocial não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento (...).

No entanto, um sentido que não tenha esta correspondência sempre pode valer se corresponder à vontade real das partes do negócio e as razões determinantes de forma se não opuserem a essa validade (art. 238, nº 2).

Quer dizer, a regra “falsa demonstratio non nocet”, também se aplica a negócios formais (...).”

O Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11.11.92, in BMJ-421/364, sentenciou:

“O Código Civil acolheu no artigo 236º, n.º1, a chamada “teoria da impressão do destinatário”. Segundo essa teoria, a declaração negocial deve ser interpretada com o sentido que um declaratário normal possa deduzir do comportamento do declarante.

Mas, segundo o n.º2 daquele artigo, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é esta que prevalece ainda que haja divergência entre ela e a declarada, resultante da aplicação da teoria da impressão do destinatário.

A interpretação das cláusulas contratuais constitui “questão de direito”, cujo conhecimento é da competência do Supremo Tribunal de Justiça, mas a determinação da vontade real constitui matéria de facto, excluída daquela competência […]”

O Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 2.2.88, in BMJ – 374, 436, doutrinou:

No tocante à interpretação, o artigo 236º, determinado por razões de protecção ao declaratário e de segurança do tráfico, consagrou a denominada teoria da impressão do destinatário, vindo privilegiar o sentido objectivo da declaração negocial temperado por um elemento de inspiração subjectivista: aquele sentido deixa de prevalecer quando não possa razoavelmente ser imputado ao declarante (n.º 1, “in fine”). O mesmo sentido objectivo igualmente é inatendível quando não coincida com a vontade real do declarante e esta seja conhecida do declaratário (n.º 2).

Assim, a interpretação das declarações negociais não se dirige, salvo no caso do artigo 236º, n.º 2, a fixar um facto simples – o sentido que o declarante quis imprimir à sua declaração –, mas o sentido jurídico, normativo, da declaração.

A integração dos negócios jurídicos postula, por seu turno, duas exigências: investigar o que as partes teriam querido se houvessem previsto o ponto omisso, e o que os ditames da boa fé impõem. Estando em causa a aplicação de critérios da lei, ainda que apoiados factualmente, trata-se, nos dois casos, de matéria de direito.” 

Mota Pinto – “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto – Coimbra Editora – Maio 2005 – pág. 446 e segs, ensina:

“…O Código não se pronuncia sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação.

De acordo com o critério propugnado, quanto ao problema do tipo do sentido negocial decisivo para a interpretação, também aqui se deverá operar com a hipótese de um declaratário normal: serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta.

A título exemplificativo, Manuel de Andrade referia os termos do negócio”; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros); os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais ou especiais (próprios de certos meios ou profissões), etc.”.

Ao lado destas circunstâncias, referidas a título de exemplo, podem assinalar-se outras, designadamente “os modos de conduta por que, posteriormente, se prestou observância ao negócio concluído”.

             A questão que se coloca é a de saber se um declaratário normal colocado na posição do real declaratário – no caso a recorrente – além do mais, não menorizando os seus conhecimentos profissionais num sector onde o risco é o cerne do negócio –, o contrato de seguro é por definição aleatório e tem a natureza de um contrato a favor de terceiro – art. 443º, nº1, do Código Civil – estando, em caso de sinistro, muitas vezes envolvidas indemnizações avultadas – ao incluir na Cláusula 12ª a expressão “responsabilidade civil legal do segurado” como sendo o risco transferido para si, apenas queria abranger a responsabilidade civil extracontratual.

            Respondemos negativamente.

            Um declaratário normal, prudente, experiente e conhecedor da realidade da vida e muito mais da terminologia jurídica e dos conceitos usados na contratação, como é o caso de uma seguradora, não poderia pretender que o referido art. 12º apenas envolvesse a responsabilidade extracontratual do segurado.

            Desde logo, importa ponderar o texto que epigrafa o art. 12 – “Responsabilidade Civil Geral”. Como se sabe, classicamente, a responsabilidade civil coenvolve a responsabilidade contratual (a violação do contrato) e a extracontratual (a que não se filia na violação de deveres contratuais mas em normas que tutelam interesses alheios, ou direitos absolutos) e ainda a responsabilidade objectiva.

            Sempre importará dizer que, em não poucos casos, a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual se miscigenam, mal se destrinçando os campos de aplicação, e nem sequer a nitidez das fronteiras.

A expressão que dá título ao art. 12º abrange qualquer forma de responsabilidade civil da segurada EDP.

Como sublinhava Vaz Serra, “não pode negar-se que o mesmo facto pode, ao mesmo tempo, representar uma violação de um contrato e um facto ilícito extracontratual” – “Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extracontratual”, in BMJ, 85, 115-239.

No mesmo sentido, pronunciou-se Rui de Alarcão ao afirmar que “o mesmo facto humano pode provocar um dano simultaneamente contratual e extracontratual” – “Direito das Obrigações” (Lições Policopiadas – 1983), pág. 210.

            Daí o falar-se em “cúmulo de responsabilidades”, em “concurso de normas” que fundamentam a mesma pretensão.

Para o Professor Almeida Costa, o concurso das responsabilidades, contratual e extracontratual, reconduz-se à figura do concurso aparente, legal ou de normas.

Este insigne Civilista sustenta que o regime de responsabilidade contratual “consome” o da extracontratual, sempre que “perante uma situação concreta, sejam aplicáveis paralelamente as duas espécies de responsabilidade civil”. - Almeida Costa, “Direito da Obrigações”, 6ª edição, págs. 455- 461.

Ora, nos termos do art. 12º das Condições Especiais da Apólice a Responsabilidade Civil Geral do segurado EDP, abrange “lesões corporais e/ou danos materiais e suas consequências causadas a terceiros, derivadas de actos, factos  ou  omissões  ocorridos  no  exercício  das  suas actividades”. 

A ampla latitude da previsão da responsabilidade assumida abrange qualquer dano causado pela EDP, quer se enquadre no contexto da responsabilidade contratual, quer se enquadre no contexto da responsabilidade extracontratual.

No caso, tendo a EDP cortado o fornecimento da energia eléctrica à Autora, por sua actuação violadora do contrato, dados os latos termos em que transferiu a responsabilidade por danos decorrentes dos seus factos ou omissões no exercício das suas actividades, tem de concluir-se, como concluiria um declaratário normal, que compete à recorrente indemnizar os danos resultantes da violação do contrato.

  Quanto à condenação genérica.

Afirma a recorrente que, ao relegar-se o apuramento dos danos para incidente de liquidação, se está a dar uma segunda oportunidade à recorrida de fazer a prova em que decaiu.

Provada a existência de danos mas não o seu quantum, o Tribunal pode recorrer desde logo à equidade e fixá-los – art. 566º, nº3, do Código Civil –, ou relegar o seu apuramento para momento ulterior – art. 661º, nº2, do Código de Processo Civil.

“O art. 661º do Código de Processo Civil estatui:

“1. A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.

2. Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que se liquidar em execução de sentença, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida”.

            O art. 566º, nº3, do Código Civil dispõe:

Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgara equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.

 Estes normativos, aquele com sede no Código de Processo Civil e este no Código Civil, consentem ao julgador duas possibilidades – ou se relega para incidente ulterior a liquidação do valor em dívida ante a impossibilidade de prova do quantum debeatur, ou se decide com base na equidade “dentro dos limites que tiver por provados”.

Não se ignora que, em termos de celeridade processual, a fixação do quantum com base na equidade apressa o desfecho do processo.

A liquidação incidental do valor ilíquido da condenação é, sem dúvida, mais morosa por desencadear nova actividade processual, com as vicissitudes inerentes à tramitação incidental.

Quando se relega para liquidação em execução de sentença o apuramento do valor a receber pelo credor, tal significa, desde logo, que o Tribunal reconheceu a existência de um direito de crédito, que só não foi quantificado, ou seja, liquidado em montante certo, por não haver elementos para determinar o respectivo “quantum”, ou porque o Autor formulou pedido ilíquido, ou genérico, ou tendo formulado pedido líquido, o tribunal não apurou o exacto valor em dívida.

Ao fixar o valor em dívida com base na equidade, o Tribunal deixa de aplicar as normas jurídicas em sentido estrito, para lançar mão de um critério casuístico que aquela situação demanda, em termos de ponderação das particularidades do caso, tendo em conta a decisão justa e adequada à hipótese em julgamento, pelo que o critério é consentidamente deixado ao prudente arbítrio do julgador, com a carga de subjectividade que isso implica, mas sempre com o limite da solução justa, equitativa e objectiva.

Mas em que circunstâncias deve o julgador fixar o quantum recorrendo à equidade, ou relegá-lo para incidente ulterior?

            A lei não dá resposta, pelo que, reconhecendo-se que a situação ideal é aquela que sem maiores delongas dê resposta à pretensão do credor – então eleito seria o critério da equidade – mas, não menos certo é que a natureza da prestação em causa e o melindre na sua fixação, mormente, em casos em que esteja em causa a indemnização de danos que implicam uma apreciação rigorosa podem aconselhar a segunda via.

            O Supremo Tribunal de Justiça tem adoptado um critério que implica a ponderação casuística para optar por este ou aqueloutro “caminho”.

Assim, no Acórdão de 25.3.2003, in CJSTJ, Ano XXVII, Tomo I, pág.140 (item, III do sumário):  

“O art. 661.º, nº2, do Código de Processo Civil, aplica-se apenas à acção declarativa mas a qualquer acção desta natureza; o art. 566.º, nº3, do Código Civil, refere-se só à fixação da indemnização (não abrangendo o próprio dano) e aplica-se tanto na acção declarativa como na execução; a opção por uma ou outra dessas soluções depende do juízo que se formar, em face das circunstâncias concretas de cada caso, sobre a possibilidade de determinação do valor exacto dos danos; se esse juízo for afirmativo, será de aplicar o art. 661°, nº2, do Código de Processo Civil; de contrário, deve aplicar-se o art. 566.°, nº3, do Código Civil”.

Ulteriormente no Acórdão de 17.6.2008 – Proc. 08A1700 – in www.dgsi.pt. decidiu-se:

“O julgamento de equidade, designadamente nos termos do n.°3 do artigo 566.° do Código Civil, só ocorre quando se mostre esgotada a possibilidade de recurso aos elementos com base nos quais se determinaria com precisão o montante devido.

O recurso à equidade constitui um critério residual que só será aplicável desde que dos factos provados se tenha como demonstrada a existência de danos e estiverem esgotadas as possibilidades de determinação do valor desses danos. Isto porque a equidade envolve uma atenuação do rigor da norma legal, por virtude da apreciação subjectiva do julgador, subtraindo este aos critérios puros e rigorosos de carácter normativo fixados na lei.

A opção entre a liquidação em incidente de execução de sentença, e o julgamento equitativo do “quantum’” depende do juízo que, em face das circunstâncias concretas, se possa formular sobre a maior ou menor probabilidade de futura determinação de tal valor”.

Ao invés do que é comummente referido em situações análogas, em que se prova um dano mas não os elementos essenciais que servem de base de cálculo da indemnização devida ao lesado/credor, não se trata de conceder uma segunda oportunidade, ante a falência de prova que competia ao lesado/credor nos termos do art. 342º, nº1, do Código Civil.

Como se afirmou no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 19.5.2009 – Proc. 2684/04.1TBTVD.S1, in www.dgsi.pt – de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Azevedo Ramos:

“Sempre que o tribunal verificar o dano, mas não tiver elementos para fixar o seu valor, quer se tenha pedido um montante determinado ou formulado um pedido genérico, cumpre-lhe relegar a fixação do montante indemnizatório para execução de sentença.

Mesmo que se tenha deduzido na acção um pedido líquido, se o tribunal não puder fixar o valor exacto dos danos (nem mesmo com recurso à equidade), deve relegar-se a fixação da indemnização, na parte que não considerar ainda provada, para posterior liquidação – art. 661, nº2, do Código de Processo Civil.

Nem se diga que, ao relegar para posterior liquidação, se está a conceder nova oportunidade de prova à autora, violando o caso julgado.

Mesmo que se possa afirmar que se está a conceder uma nova oportunidade ao autor do pedido, não se vislumbra qualquer ofensa do caso julgado, material ou formal (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 880/96, de 8-10-96).

É que a existência de danos já está provada e apenas não está determinado o seu exacto valor, ou seja, o seu concreto montante.

Na verdade, não se está a conceder à autora do pedido uma nova oportunidade de provar os danos, na parte ilíquida, (pois esses já ficaram provados nesta acção declarativa), mas somente de os quantificar.

Só no caso de se não ter provado a existência de danos é que se forma caso julgado material sobre tal objecto, impedindo nova prova do facto, no posterior incidente de liquidação.

É neste sentido a melhor doutrina e jurisprudência (Alberto dos Reis, “Código do Processo Civil Anotado”, vol. 1º, pág. 641; Vaz Serra, R.L.J., Ano 114-31; Rodrigues Bastos, “Notas ao Código do Processo Civil”, vol. III, págs. 232/233, Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 21-1-98, BMJ 473-445, Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 23-9-98, BMJ 479-498; Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 7-10-99, BMJ 490-212, Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 19-4-01, CJSTJ, II, 33, Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 11-5-05, na revista nº 4007/04, da 6ª Secção; Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 20-9-05, na revista nº1980/06-6ª Secção; Ac Supremo Tribunal de Justiça, de 21-11-06, na revista 3.600/06, da 6ª Secção, entre outros).

Assim, como no caso concreto, ficou provada a existência de danos, quanto à parte ilíquida, deve relegar-se para posterior liquidação, o apuramento do seu exacto valor ou quantitativo – art. 661, nº2, do Código de Processo Civil”. (destaque nosso).

Concluímos, assim, que o Acórdão não merece qualquer censura ao ter acompanhado a decisão da 1ª Instância no que respeita à condenação da Recorrente no quantum a liquidar em sede incidental.

Finalmente, pretende a recorrente que a Autora concorreu para o evento danoso ao não ter pago, num primeiro momento, a factura do seu consumo e assim actuou com culpa concorrendo para a actuação culposa da EDP – que a recorrente não repudia – acenando com o facto provado de, entre 22.11.2004 e 28.02.2006, terem sido emitidas e executadas pela interveniente (EDP) doze ordens de corte por falta de pagamento.

O passado da Autora pode ter influência e ser um factor a ponderar no risco empresarial da EDP quando tem ante si a opção de contratar ou não contratar, mas, estando em vigor um contrato, mesmo que o seu cliente em ocasiões anteriores não tenha primado pela sua boa execução pagando pontualmente, isso não legitima o procedimento da EDP, tanto mais que, queira-se ou não, esta, no dia em que cortou o fornecimento de electricidade à fábrica da Autora, fê-lo culposa e ilicitamente uma vez que a factura que considerava em dívida tinha sido paga.

Ademais, tratando-se de fornecimento de bem essencial - Lei 23/96, de 26 de Julho, seu art. 1º nº2, al. b)   alterada pela Lei n.º12/2008, de 26 de Fevereiro, pela Lei n.º 24/2008, de 2 de Junho, pela Lei n.º 6/2011, de 10 de Março e pela Lei n.º 44/2011, de 22 de Junho - o utente desses serviços é protegido, desde logo, pelo regime de suspensão do fornecimento do serviço público mesmo tendo incorrido em mora – art. 5º do citado diploma.

Em termos de nexo de causalidade, e pese embora o pregresso comportamento da autora, não existe culpa concorrente a despoletar a aplicação do regime legal do art. 570º do Código Civil.

Pelo quanto fica dito o recurso soçobra.

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Novembro de 2012

Fonseca Ramos (Relator)

Salazar Casanova

Fenandes do Vale

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[2] Este Acórdão foi proferido na sequência do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 1.3.2012, a fls. 320 a 327, que anulou o Acórdão da Relação Lisboa de 30.06.2011, ordenando que o Tribunal se pronunciasse sobre a 3ª e 4ª questões assinaladas como objecto do recurso de apelação, pois só tinha havido pronúncia sobre a 1ª e a 2ª.