Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1579/14.5TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: USURA
TESTAMENTO
NEGÓCIO UNILATERAL
NEGÓCIO USURÁRIO
ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
FALTA DA VONTADE
VÍCIOS DA VONTADE
ANULABILIDADE
REQUISITOS
MODIFICAÇÃO
QUINHÃO HEREDITÁRIO
MEAÇÃO
Data do Acordão: 06/23/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / NEGÓCIOS USURÁRIOS - DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA / FALTA E VÍCIOS DA VONTADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA.
Doutrina:
- Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, I, 2000, 185.
- Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 2010, 215, 249 e ss.
- Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, 2013, 135.
- H. E. Hörster, A parte geral do Código Civil Português, 2014, reimp., 556.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I – Parte Geral, I, 2005, 651.
- Pedro Eiró, Negócio usurário, 1990, 15, 68 e ss..
- Pires de Lima/Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, I, 1987, 260.
- Wilburg, Elementen des Schadensrecht, 1941.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 282.º, 283.º, N.º2, 2194.º, 2199.º A 2203.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 640.º, N.º1, 674.º, N.º1, AL. B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 22/05/2003, PROC. N.º 03B1300, IN WWW.DGSI.PT ;
-DE 13/05/2004, PROC. N.º 1452/04, IN WWW.DGSI.PT ;
-DE 12/09/2006, PROC. N.º 06A1988, IN WWW.DGSI.PT ;
-DE 06/12/2006, PROC. N.º 06B3894, DE 29/04/2010, PROC. N.º 792/022YRPRT.S1, E DE 07/07/2010, PROC. N.º 2273/03.8TBFLG.G1.S1, CONSULTÁVEIS EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 07/10/2008, PROC. N.º 07B1994, IN WWW.DGSI.PT ;
-DE 12/01/2012, PROC. N.º 79/2001.S1, IN WWW.DGSI.PT ;
-DE 17/03/2016, PROC. N.º 124/12.1TBMTJ.L1.S1.
Sumário : I - O problema da aplicabilidade do regime dos negócios usuários ao testamento não se encontra tratado de forma aprofundada no direito português.

II - A doutrina, em tese geral, defende a possibilidade da aplicação do regime dos negócios usurários à generalidade dos negócios jurídicos, tanto bilaterais como unilaterais, sem, contudo, se referir directamente ao testamento.

III - A jurisprudência do STJ vem admitindo a aplicação da usura aos negócios unilaterais enunciando, em abstracto, a possibilidade de sujeição dos testamentos à usura, sem chegar a concretizar a transposição do instituto e dos seus requisitos.

IV - A circunstância de nos arts. 2199.º a 2203.º do CC, respeitantes à falta e vícios da vontade do testador, não existir uma norma remissiva quanto à usura não permite concluir que o legislador pretendeu o seu afastamento, na medida em que o regime da usura se inclui na regulamentação do objecto do negócio jurídico.

V - A anulabilidade dos negócios jurídicos usurários prevista no art. 282.º do CC pressupõe a verificação de três requisitos: (i) existência de uma situação de inferioridade do declarante; (ii) exploração da situação de inferioridade pelo usurário; (iii) lesão, isto é, promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro.

VI - Enquanto a transposição dos requisitos subjectivos relativos ao declarante e ao usurário não oferece especiais dúvidas, maiores dificuldades suscita a transposição do requisito objectivo da “lesão”, já que, por natureza, o testamento é apto a atribuir benefícios que excedem, total ou parcialmente, os merecimentos de quem os recebe.

VII - Embora a usura não possa, por definição, existir sem um elemento objectivo, a sua aplicação ao testamento apenas poderá afirmar-se em circunstâncias muito excepcionais em que esse negócio jurídico se insira num contexto mais alargado, no qual a factualidade provada imponha uma diferente valoração, associada ao recurso à concepção de “sistema móvel”, considerando-se que, se for particularmente intensa a prova de factos que revelam um dos pressupostos do art. 282.º, n.º 1, do CC, será aceitável um menor grau de exigência na verificação de um outro pressuposto.

VIII - Resultando da factualidade provada que a autora dos testamentos e da cessão gratuita de meação e de quinhão hereditário objecto do pedido de anulação, antes de falecer, se encontrava em situação de acentuada inferioridade, por necessidade e dependência, tanto física como psíquica, em relação a terceiros, dependência que, por actuação da própria ré, se transformou em dependência desta última, bem como que a ré explorou essa situação de inferioridade para conformar a vontade da falecida, o que se traduziu num processo para que esta lhe atribuísse, em vida ou por morte, a titularidade ou o controlo jurídico sobre a totalidade do seu património, e não podendo sequer equacionar-se a hipótese de modificação dos negócios nos termos do art. 283º, nº 2, do CC por não ter sido requerida em tempo, justifica-se a anulação de tais negócios jurídicos por usura.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA intentou acção contra BB, pedindo: 1) A anulação da cessão gratuita de meação e quinhão hereditário celebrada entre CC e a R. em 18/07/2012 por incapacidade acidental ou pelo regime dos negócios usurários; 2) A anulação dos testamentos celebrados por BB em 14/02/2011 e 12/12/2011 por incapacidade acidental ou pelo regime dos negócios usurários. A título subsidiário, pede que sejam declaradas nulas as disposições testamentárias a favor da R. nos mesmos testamentos por aplicação do regime do art. 2194º do Código Civil.

A R. contestou, defendendo-se: por excepção, suscitando a litispendência, porque no processo de inventário nº 10601/10.3TBVNG, do 5º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, o A. deduziu oposição espontânea num incidente de habilitação da cessionária da indicada cessão gratuita de meação e quinhão hereditário; e por impugnação.

No despacho saneador de fls. 139, foi julgada improcedente a excepção de litispendência.

A fls. 182, foi proferida sentença com a seguinte decisão:

“Pelo exposto, julga-se totalmente procedente a presente acção e, em consequência declaram-se anulados os negócios referidos em 3), 4) e 7) [testamentos e cessão gratuita de meação e de quinhão hereditário], dos factos provados”.

       Inconformada, a R. apelou para o Tribunal da Relação do Porto. O A. contra-alegou, formulando pedido de ampliação do objecto do recurso, no que respeita à matéria de facto dada como provada, que pretendeu ampliar.

       Por acórdão de fls. 330, foi negada a ampliação do objecto do recurso do A. por não se verificarem os pressupostos necessários para a ampliação da matéria de facto, e a apelação da R. foi julgada improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.


2. Vem a R. recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, “ao abrigo do disposto no art. 672º, nº 1, als. a) e c), 671º, nº 3, a contrario (…fundamentação essencialmente diferente…) e 674º, todos do Cód. de Proc. Civil”, formulando as seguintes conclusões:

1º. O presente recurso versa sobre os seguintes aspetos: 1º. Contradição do acórdão proferido, com outro já proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, sobre a mesma matéria; 2º. Alteração substancial da fundamentação para a anulação, quer da escritura, quer dos testamentos; 3º. A não apreciação do recurso sobre a matéria de facto, e 4º. Entender que não existe violação do Principio Constitucional da Segurança Jurídica que engloba o da Confiança e o Principio da Igualdade.

(…)

[excluem-se as conclusões relativas ao pressupostos da admissibilidade da revista excepcional]

6º. De acordo com a matéria provada (quer na Instância Central de V.N. de Gaia quer pelo TRP) verificamos que a falecida CC estava cognitivamente e mentalmente bem, logo, dúvidas não existem nesta parte (cfr. sentença da 1ª Instância [mantida pelo TRP nesta parte] "Não há um qualquer facto que demonstre que a falecida não tivesse capacidade para entender e alcançar o teor do que estava a realizar. É certo que padecia de maleitas que serão analisadas nesta sentença em relação a outro instituto jurídico mas quanto à incapacidade mencionada no artigo 2199°, na nossa opinião, a mesma não se apura"), pelo que, com facilidade, concluíram ambos os Tribunais que a falecida CC entendia tudo quanto realizou.

7º. A Instância Central de Vila Nova de Gaia vai mais longe ao afirmar que "Dos factos provados, não conseguimos retirar que, quer em relação aos testamentos, quer em relação à cessão gratuita do quinhão hereditário, a já falecida outorgante dos mesmos sofresse dessa incapacidade. Desde logo, se assim fosse, poderia ter sido detetada por quem redigiu tais negócios e nada disso se suscitou pois foram lavrados. Por outro lado, mesmo que tal incapacidade pudesse existir e não fosse detetável a terceiros, o certo é que, face à factualidade provada, não vemos que a mesma sofresse dessa incapacidade. Não há um qualquer facto que demonstre que a falecida não tivesse capacidade para entender e alcançar o teor do que estava a realizar."

8º. Dito isto, o Tribunal da Relação, para fundamentar a anulação dos referidos negócios, nomeadamente os testamentos, refere que se deverá aplicar aos mesmos o disposto no art. 282° do Cód. Civil, uma vez que o que releva para a sua aplicação é ..."Para a usura ser relevante tem que haver da parte de alguém a exploração da situação de inferioridade do declarante... o autor do vicio deve ter, tanto a consciência de o declarante se encontrar inferiorizado, como, ainda, do beneficio excessivo ou injustificado que vai obter..." (cfr. pág. 37 do Ac. recorrido), concluindo que, dessa forma e por estes motivos, estavam preenchidos todos os requisitos previstos no art. 282° n. 1 do Cód. Civil, logo, anulou todos os actos por entender serem usurários (em especifico nesta parte, os testamentos).

9º. Em nosso entender, tal decisão parte, desde logo, de uma errada aplicação de Direito, dado que, o art. 282° n. 1 do Cód. Civil não deverá ser aplicado aos negócios jurídicos unilaterais, nomeadamente testamentos, pois, em nosso entender, tal normativo dirige-se apenas aos negócios jurídicos bilaterais.

10º. Se atentarmos nos, aliás, doutos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça invocados pelo TRP, verificamos que no de 12/09/2006, estamos em face de uma situação de cobrança abusiva, excessiva e usurária de juros de mora, num contrato de compra e venda, logo negócio bilateral (mútuo), ao invés do testamento, nos nossos autos, que é unilateral.

11°. Mas este douto acórdão deixa-nos um ponto importantíssimo, pois o mesmo refere: ..."Por um lado, tem de haver benefícios manifestamente excessivos ou injustificados, isto é, tem de haver uma desproporção entre as prestações, que, segundo todas as circunstâncias, ultrapasse os limites do que pode ter alguma justificação. O critério do dobro do valor parece ser o limiar, a partir de cuja ultrapassagem se vai averiguar a existência das demais circunstâncias objectivas e dos requisitos subjectivos da usura" (vid. Ac. do STJ de 12 de Setembro de 2006, proc. n. 06A1988, negrito nosso),

12°. O critério essencial para descortinar a usura (caso a mesma se aplique aos negócios unilaterais) assenta em saber qual a desproporção, ou seja, o citado "...critério do dobro do valor..." (negrito e sublinhado nosso) mas para tal, teria, o recorrido, que ter alegado e provado o valor do benefício, algo que inexiste nos presentes autos pois, desconhecemos o valor do benefício.

13°. À falta de tais alegações, em sede de P.I., tal matéria não poderia ser apreciada, daí que, nesta parte, não poderia, nem deveria, o Tribunal da Relação fundamentar a sua decisão com este douto Acórdão, mais a mais quando estava a julgar contra outra decisão (do Tribunal da Relação de Guimarães).

14°. Quanto ao douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido a 22 de Maio de 2003 (proc. n. 03B1300), com o devido respeito, entendemos que os circunstancialismos em que o mesmo foi proferido, são totalmente diferentes dos presentes autos, dado que, é-nos referido que "Os factos provados revelam, por um lado, que a testadora, pela sua idade e condições psíquicas, estava em situação de grande dependência em relação à recorrida, que dela cuidava a titulo profissional, com intenso receio de, no caso de crise grave de saúde, não poder socorrer-se pelos seus próprios meios. E, por outro, que a recorrida, sabendo das fraquezas, angústias e preocupações da testadora, pelo modo como geriu o seu isolamento, privando-a do contacto telefónico com os familiares e amigos, agravou a dependência acima referida. Por outro lado, está assente, no referido quadro de dependência da testadora em relação à recorrida, ter esta insinuado que, após duas ou três noites mal dormidas, poderia suceder não acordar a tempo de a socorrer." (negrito nosso), ou seja, o enfoque vai para a coação sobre a testadora e o estado psíquico desta.

15°. Percorrida a matéria de facto dada como provada nos nossos autos, verificamos que, nestes autos, nunca existiu coação e, ao nível psíquico, a testadora estava consciente, era vigorosa, assertiva e sabia o que queria, sendo a anulação fundamentada no problema físico da testadora, que levou à usura.

16°. Tal douto Acórdão proferido por este Tribunal dirige-se ao instituto da coação e não propriamente, da usura, mais a mais quando, nunca foi, sequer, alegado, nem mesmo dado como provado que a recorrente soubesse dos dois testamentos, dado que, caso soubesse dos mesmos (para se provar a coação), qual o motivo da celebração da escritura de doação?, pois, tal facto seria, em si contraditório, pois, sabendo-se dos testamentos, não era necessário qualquer escritura de doação, para ser beneficiada.

17°. Só por estes factos, deveria, o Tribunal da Relação do Porto, ter seguido a vertente assente no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, através desta fundamentação.

18°. Ainda nesta parte, fundamenta-se (transcreve) ainda a Relação do Porto com o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça a 24 de Novembro de 2003 (proc. n. 04B1452), nomeadamente no único paragrafo que refere a usura nos testamentos, ou seja, ..."Ou então, atenta a natureza genérica do art. 282° (negócios usurários) aplicável a qualquer tipo de negócio jurídico, designadamente aos negócios jurídicos unilaterais como é o caso das disposições testamentárias, ficarão sujeitos à anulabilidade advinda do facto de terem explorado a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter do testador para deste obterem a concessão de benefícios excessivos ou injustificados".

19°. Nada nos é referido quanto ao caso em concreto nos nossos autos, nomeadamente uma situação de uma pessoa que mentalmente estava bem, que sabia o que queria, mas que, por ter decidido instituir sua herdeira (sem sabermos de que herança e qual o seu valor) a recorrente e, infelizmente, passado quase dois anos, a testadora veio a falecer e, o Tribunal quer substituir-se à sua vontade, antes sim, retrata uma situação em que foi lavrado um testamento três dias antes da morte do testador (vid. Ac, do STJ de 24 de Novembro de 2003).

20°. Desta forma verificamos que são situações, totalmente diferente da dos presentes autos, que em nada deveria ter sido utilizada para fundamentar a aplicação do art. 282° do Cód. Civil para anular ambos os testamentos.

21°. Noutra fase de fundamentos (nesta parte), somos do entendimento que o decidido pela Relação de Guimarães será o mais sensato de se aplicar nestes autos pois, conhecendo os doutos acórdãos destes autos, referiu (e bem) o seguinte: ... "De acordo com o disposto no artigo 2191° do Código Civil, "a capacidade do testador determina-se pela data do testamento". Este artigo fixa o momento decisivo pelo qual se mede a capacidade do testador para fazer o testamento; se o testamento foi lavrado numa altura em que o testador não sofria de nenhumas perturbações mentais, ele não perderá a sua validade pelo simples facto de o testador vir algum tempo depois ser inclusivamente interditado por anomalia psíquica", logo, tem o seu enfoque que, para se apreciar um testamento, ter-se-á que verificar a capacidade do testador, à data em que é lavrado.

22°. E, sendo dado como provado, nestes autos, que a testadora, estava mentalmente bem e na posse de todas as suas capacidades mentais - cognitivamente bem - não se vislumbra o porque de se anular os mesmos, com base na usura.

23°. Mais a mais quando, aos negócios jurídicos unilaterais (testamentos) não se aplica, também, os vícios da vontade (vid. Ac. da Relação de Guimarães e Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, v. 6, pág. 323) e, como unilateral que o é, não podia a recorrente saber da elaboração do mesmo (tal facto não é provado), nem dependia desta última, sendo que, como referido, nem sequer coação existiu, consequentemente, não se pode aplicar ao testamentos a usura.

24°. Para final, ao contrário do acórdão recorrido, entende a Relação de Guimarães (aflora) que, ainda que se aplique a usura aos testamentos, ter-se-á que ultrapassar três quesitos, a saber:

a)   - Conhecimento da recorrente da outorga de tais disposições testamentárias, sendo que tal matéria não foi alegada e, consequentemente dada como provada;

b)   - A provar-se a matéria alegada na al. a), sempre se teria que ter alegado e provado qual o benefício a retirar dessas disposição, facto que, novamente não foi alegado e, consequentemente, provado;

c)     - Por fim, ter-se-ia que verificar quais os requisitos da usura, se estavam preenchidos e, em face dos mesmos, se seriam aplicáveis aos negócios jurídicos unilaterais.

25°. Quanto ao referido em a) de 24°, dúvidas não temos que tal facto nunca foi alegado, logo, não provado, pois, hipoteticamente falando, se assim não fosse, não necessitava a recorrente da escritura de doação (com um inventário agregado).

26°. Quando à al. b) da conclusão 24°, a que valor nos estamos a referir? isto porque, tal valor é condição sine qua non para se apurar o tal "...critério do dobro do valor..." como mínimo para se declarar um negócio como usurário (cfr.. Ac. do STJ de 12/09/2006) e, consequentemente, para se apurar se existe um benefício excessivo ou injustificado, requisito esse sem o qual não se prova a usura.

27°. Aliás, o recorrido, tendo tomado consciência dessa falta (de factos alegados na sua douta P.I.), tentou ultrapassar a mesma através da figura de ampliação de recurso, nas suas contra-alegações, às alegações da recorrente para a Relação do Porto.

28°. E bem andou a Relação do Porto ao decidir que era matéria nova, logo não se podia pronunciar sobre a mesma.

29°. Daí que, não podemos compreender como foi decidido aplicar tal instituto aos presentes autos, mais a mais quando, no Tribunal da Relação de Guimarães, que serve de base nesta parte do presente recurso, refere, claramente que ... "Para que um negócio seja considerado usurário é necessário que se verifique, por um lado, a obtenção de benefício excessivo ou injustificado, de uma das partes, e o aproveitamento consciente de uma situação de inferioridade de quem é contra-parte." (vid. Ac. do Tribunal de Guimarães),

30°. E, conjugando-se com o supra referido, concluímos que o elemento essencial seria verificar qual foi a magnitude desse benefício, quantificar o mesmo para se apurar o critério do dobro do valor, algo que nunca se apurou, logo, deveria o Tribunal da Relação do Porto ter seguido a decisão da Relação de Guimarães, mesmo nesta parte em que este Acórdão, claramente, identifica o elemento essencial da usura.

31°. Para o fim, quanto à integração dos elementos que preenchem a usura, para verificarmos se tal instituto de aplicaria aos negócios jurídicos unilaterais, podemos adiantar que o Tribunal da Relação de Guimarães entende que tal instituto não se aplica aos testamentos, por ser negócio jurídico unilateral e, por este facto ... "em cuja estrutura se não levanta, a propósito dos problemas de vícios da vontade, o conflito sistemático de interesses, entre uma e outra das partes, que são próprios do contrato" (vid. Ac. da relação de Guimarães e Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, v. 6°, pág. 323).

32°. Daí que, claramente distingue os negócios bilaterais dos unilaterais, entende que o ponto essencial de partida é sempre perceber se o art. 2199° do Cód. Civil foi preenchido, para se apurar um eventual vício, com o qual se poderia anular ou peticionar a nulidade do mesmo, ou ainda se tivesse existido erro, dolo ou coação na outorga do mesmo.

33°. Entende a Relação de Guimarães que a usura, apenas pode existir em negócios bilaterais, dado que, só aqui pode existir um aproveitamento e exploração da outra parte, atento que existem duas partes, e, uma vez que nos testamentos só existe uma parte, que decide como dispor os seus bens, a não se preencher o art. 2199° do Cód. Civil, ou mesmo o erro, dolo ou coação, os testamentos são válidos, devendo o mesmo ser sempre apreciado, à data da outorga do mesmo (cfr. art. 2191° do Cód. Civil).

34°. Refere ainda tal Ac. da Relação de Guimarães que ..."Para que um negócio seja considerado usurário é necessário que se verifique, por um lado, a obtenção de benefício excessivo ou injustificado, de uma das partes..", ou seja, curou entender se existia esse preenchimento, mas, a Relação do Porto, sem se perceber muito bem como, entende que existe um benefício injustificado, pois, a contrapartida não justificava o benefício.

35°. Aqui são completamente distintos os dois Acórdãos pois, a Relação do Porto, com uma matéria, em tudo semelhante à Relação de Guimarães, dá como provado esse preenchimento, isto sem quantificar o beneficio e sem o mesmo, alguma vez ter sido alegado, mas a Relação de Guimarães, como uma análise profunda dos factos, entendeu que não se preencheu tais requisitos, dado que, não constavam dos factos alegados e dados como provados,

36°. Nesta parte, não tendo a Relação do Porto factos provados e alegados nesse sentido, entende que se preencheu tal requisito, apesar do invocado no Douto Acórdão fundamento, daí que, sendo o testamento um negócio jurídico unilateral não receptício (vid. art. 2179° do Cód. Civil), bem andou a Relação de Guimarães ao não aplicar o disposto no art. 282° do Cód. Civil aos mesmos.

37°. Pelo que, ainda que se venha a entender que a escritura junta aos autos deva ser anulada, sempre se teria que se validar ambos os testamentos (apesar de o 2° afastar o 1°) dado que, sendo um negócio jurídico unilateral, não lhe poderá ser aplicado o instituto da usura referido no art. 282° do Cód. Civil, logo, dever-se-á proferir nova decisão que absolva a Ré do pedido, julgando-se como válidos ambos testamentos.

38°. Quanto a esta primeira parte do recurso, verificamos que, claramente, existe um Oposição de Acórdãos, logo impõe-se uma decisão acerca do presente ponto, nos termos referidos em 36° e37°.

(…)

[excluem-se as conclusões quanto à existência de fundamentação essencialmente distinta entre a sentença de 1ª Instância e o acordo recorrido]

44°. Naquela terceira ordem de requisitos verifica-se uma alteração substancial da fundamentação, pois, se um refere, claramente, a existência de um benefício excessivo (1ª Instância), que apenas poderia existir na proporção do aceitável, o Tribunal da Relação diz-nos expressamente que não existe um benefício excessivo, mas sim injustificado (vid. pág. 48 do acórdão "Ainda que se considere não estar demonstrado um beneficio excessivo, resulta provado um benefício não justificado. A contrapartida não justifica o beneficio...").

45°. Consequentemente, na 1ª Instância aceitou-se a concessão de benefícios injustificados, mas não a concessão de benefícios excessivos, na Relação aceita-se os benefícios excessivos, mas não os injustificados, porque a contrapartida ultrapassa a justificação do benefício, daí que, nesta parte, a fundamentação é, totalmente, contraditória.

46°. Dito isto, desde logo se levanta um problema, pois, não descortinamos como o Tribunal da Relação do Porto se baseou para saber qual o valor do beneficio e da contrapartida? Pergunta essa que se impõe.

47°. Pois, na pág. 46 do mesmo refere: "O valor será um critério a atender, como referencial, sendo certo que se mostra determinante, face ao actual critério legal, apurar no concreto circunstancialismo se há desproporção excessiva, não justificada pelas circunstâncias particulares do negócio. No caso em concreto, não se provou o valor dos bens que compunha o património da CC, nem ainda o valor do quinhão hereditário na herança aberta por óbito do seu marido." e, "Para se verificar este requisito é necessário que entre a prestação do lesado e a contraprestação do beneficiário da declaração haja desproporção excessiva, não justificada pelas circunstâncias particulares do negócio. O critério do dobro desse valor parece o limiar...", mas lá está, não sabemos qual o valor, critério esse essencial para se apreciar a validade dos negócios.

48°. Percorrida toda a douta Pi verificamos que o facto do valor nunca foi alegado pelo recorrido daí que nunca se tenha provado em ambas as decisões, logo não se poderia preencher o dispositivo do art. 282° n. 1 do Cód. Civil, sem prejuízo de, em sede de ampliação de recurso, o recorrido tentou ultrapassar esse ponto, mas a Relação do Porto e bem, decidiu que não poderia apreciar um facto novo, que nunca havia sido levantado.

49°. Para a Relação do Porto dar como provado, como o deu, um benefício não justificado, devido ao facto de o benefício não justificar a contrapartida, teria que ter apurado o valor do benefício e da contrapartida, mas esse valor nunca foi questionado e/ou alegado.

50°. Logo, existe uma errada aplicação de Direito nestes autos, uma vez que não se encontram preenchidos os requisitos do art. 282° n. 1 do Cód. Civil, uma vez que seria diferente um benefício e contrapartida de 1.000,00€, 10.000,00€, 100.000,00€ ou de 1.000.000,00€, mais a mais quando, expressamente refere que a contrapartida não justifica o beneficio.

51°. Com o devido respeito, nunca deveria, nem poderia, o Tribunal da Relação decidir como decidiu, alterando a fundamentação da 1ª Instância, pois, não consegue integrar e preencher todos os requisitos daquele normativo, consequentemente, sem tal preenchimento, deverão improceder os pedidos do recorrido, nesta parte, alterando-se a decisão da Relação do Porto.

52°. Por outro lado, com tal alteração da fundamentação, uma outra problemática se levanta pois, se a contrapartida não justifica o benefício, o teor de tais actos notariais deveria ter sido apreciado à data em que foram lavrados e não alguns anos após a mesma, com incidência no valor das disposições e valor da contrapartida.

53°. Pois, sendo a esperança média de vida, em 2013, para as mulheres em Portugal de 83 anos, tendo a falecida a idade de 77 anos, à data da morte, com uma leitura atenta dos actos notariais, especial a escritura, verificamos que foi lavrada sob condição "...impõe à donatária o encargo de lhe prestar, a ela doadora, a devida assistência tendente ao seu bem-estar e saúde, fornecendo-lhe todos os alimentos e medicamentos de que carecer, bem como de lhe prestar todos os cuidados domésticos de que necessite." (cfr. escritura),

54°. Melhor dizendo, deveria o recorrido ter alegado que esta condição era insuficiente para o benefício concedido, alegando-se e provando-se o valor, quer da herança (benefício), quer o valor da condição (contrapartida), mas mesmo assim, sem tais factos, o Tribunal da Relação do Porto deu como provado o tal facto de o benefício ser superior á contrapartida, ao anular os negócios, com base no 282° n. 1 do Cód. Civil, algo que não podia.

55°. Atento o referido em 53° (esperança média de vida), ao elaborar os actos notariais, especial a escritura, esperava a falecida CC viver, longos anos, com a mesma qualidade de vida que, até ali teve, daí a condição (outra interpretação não se pode retirar da mesma).

56°. Pelo que, ainda devido á alteração substancial da fundamentação, nesta parte, o Tribunal da Relação do Porto ao decidir como decidiu, violou o art. 282° n, 1 do Cód. Civil, uma vez que não preenche o terceiro requisito do mesmo, pois não curou apurar o valor do benefícios e da contrapartida, aliás, nem podia, dado que nunca foi alegado, pelo que se impõe uma decisão que valide os actos notariais praticados.

57°. Sem descurarmos ainda nesta parte que, quanto aos testamentos, sendo os mesmos negócios jurídicos unilaterais, a sua elaboração não dependia da vontade e intervenção da recorrente, pois, só à morte do testado se ficaria a conhecer o seu conteúdo, logo, tem que ser apreciados à data em que foram lavrados (vid. art. 2191° do Cód. Civil).

58°. Pelo que, mais uma vez, para se integrar todos os requisitos do art. 282° do Cód. Civil, teria que ter sido alegado, pelo recorrido, que a recorrente sabia do conteúdo dos mesmos e, claro está, ter-se-ia que provar tal facto, bem como, teríamos que esquecer que os testamentos, até à data da morte, podem ser alterados/revogados.

59°. Não se deveria dar como provada, nesta parte, a situação de exploração da falecida, por parte da recorrente, dado que, desconhecendo-se qual o benefício concedido, não sabemos se o mesmo é justificado ou não e dos autos, tal prova não está presente, sem prejuízo desta matéria não ter sido alegada/provada.

60°. Concluindo, também aqui, com o devido respeito, mal andou o Tribunal da Relação do Porto pois, alterando-se a fundamentação jurídica para subsumir os presentes autos ao disposto no art. 282° n. 1 do Cód. Civil, nomeadamente para anular os testamentos, sem ter dado como provado tal conhecimento/incentivo na elaboração dos testamentos, não poderia anular os mesmos, com base na usura, pois, desconhecendo-se o teor de ambos, desconhecia-se o valor do benefício, logo, não podemos falar em benefício não justificado, consequentemente, não sabemos se o benefício é superior à contrapartida e em que medida, pelo que, ter-se-á que alterar a decisão, nesta parte, validando-se ambos os testamentos.

61°. Numa outra parte do recurso, versamos sobre a recusa do Tribunal da Relação do Porto em apreciar a parte do recurso que versava sobre a alteração da matéria de facto dada como provada.

62°. Para tal, não apreciação, fundamenta a Relação do Porto, no acórdão recorrido, com a argumentação que a recorrente não cumpriu com o prescrito no art. 640° do Cód. de Proc. Civil "...porque a apelante nas conclusões não indica os concretos pontos de facto a reapreciar, nem consequentemente, a decisão que sugere. Também não o faz na motivação de recurso, o que poderia preencher o ónus legal, face ao critério interpretativo que se vem defendendo no Supremo Tribunal de Justiça... Com efeito, através da reapreciação dos meios de prova...visa a apelante a consideração de um conjunto de factos a respeito da personalidade da falecida... e a capacidade de autodeterminação, factos que não foram alegados pelas partes nos respectivos articulados." (vid. pág. 34 do Ac. recorrido), o que leva à improcedência das conclusões de 10 a 52.

63°. Com o devido respeito, foram indicados os concretos pontos a reapreciar, quais os meios de prova que sustentavam essa reapreciação e qual a decisão que deveria ter sido proferida, tudo no seguimento da contestação da recorrente, em face da posição vertida pelo recorrido na sua douta P.I, e, claro está, sempre tendo por base a decisão do Tribunal de 1ª Instância.

64°. Pelo que, a recorrente, alegou/concluiu, minuciosamente, através das transcrições, os pontos que, incorretamente, considerava, julgados, bem como, indicando os meios provatórios que impunham uma decisão diferente (através das mesmas transcrições), refere quais as concretas passagens que, entende, deveriam ser julgadas de forma diferente

(uma vez que, das conclusões se pode remeter para as alegações).

65°. Não se podendo conformar, a recorrente, com o Tribunal da Relação do Porto, que refere "Com efeito, através da reapreciação dos meios de prova...visa a apelante a consideração de um conjunto de factos a respeito da personalidade da falecida... e a capacidade de autodeterminação, factos que não foram alegados pelas partes nos respetivos articulados." (vid. pág. 34 do Ac. recorrido), pois, o recorrido, nos seus art.s 9º a 27°, 35° a 40°, 58° a 70°, 83° a 88° (todos da P.I.) é que efetua considerações acerca da vida e carater da falecida, que a levava a não entender os actos que estava a outorgar, pontos esses rebatidos pela recorrente.

66°. O que a levou, no seu recurso, a elencar os pontos que, em concreto, foram incorretamente julgados, descriminado a prova, testemunhal e outra, produzida que levaria a uma decisão diversa da proferida e, concluído a recorrente, refere nos pontos n.s 15°, 17°, 28°, 29°, 34°, 41°, 45°, 46° e 56° (das suas conclusões), que a decisão deveria ter sido diversa, conseguentemente, deveria ter improcedido o pedido do recorrido e, validar-se, quer os dois testamentos, quer a escritura.

67°. Mas o Tribunal da Relação do Porto entendeu que a recorrente não cumpriu com o previsto no art. 640° do Cód. de Proc. Civil, escudando-se no facto de "... visa a apelante a consideração de um conjunto de factos a respeito da personalidade da falecida... e a capacidade de autodeterminação, factos que não foram alegados pelas partes nos respetivos articulados...",

68°. Nesta parte, perguntámo-nos, qual o ponto do referido preceito normativo que não foi cumprido? Logo, decidindo como decidiu, o Tribunal da Relação do Porto violou o disposto nos artigos 615° n. 1 al. d) (por via do art. 666° do Cód. de Proc. Civil) e 640°, todos do Cód. de Proc. Civil, pois, deveria ter apreciado tal parte do recurso interposto, o que leva à nulidade do douto acórdão proferido, pelo que, deve este Tribunal, ordenar a baixa do processo, por forma a ser decidida aquela parte do recurso, que não obteve resposta.

69°. Para o final deixamos, em nosso entender, a violação de Princípios Constitucionais, na aplicação do art. 282° n. 1 do Cód. Civil, a saber: Princípio da Segurança Jurídica, na sua vertente do Principio da Confiança e do Principio da Igualdade, ambos previstos na Constituição da República Portuguesa (doravante C.R.P).

70°. Quanto ao Princípio da Segurança Jurídica, na sua vertente do Principio da Confiança, todos os actos praticados (dois testamentos) pelas pessoas (diga-se, a falecida), desde que não contrários à Lei, deverão ter os efeitos jurídicos que se pretende com os mesmos, pelo que, ao serem lavrados os actos anulados pelos presentes autos, apenas o foram com a Confiança que seriam cumpridos, mais a mais quando se deu como provado que a falecida entendia e conhecia o alcance das suas declarações.

71°. Porém, entendeu o Tribunal da Relação que a aplicação, aos presentes autos, do art. 282° n. 1 do Cód. Civil não violou o Principio da Segurança Jurídica, concluindo com o facto de serem, todos eles (os testamentos), usurários.

72°. Ou seja, o Tribunal da Relação, entendeu, poder-se substituir-se à última vontade da testadora, porém, esqueceu-se que, desta forma, estava a violar a última vontade da testadora, que confiou nas normas jurídicas que lhe permitia dispor de todos os seus bens.

73°. Aliás, o Supremo Tribunal de Justiça, através do douto acórdão de 27 de Março de 2007, in www.dgsi.pt refere "1) O princípio da confiança postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, razão pela qual é inconstitucional a norma que, por sua natureza, obvie de forma intolerável ou arbitrária àquele mínimo de certeza e segurança que os cidadãos, a comunidade e o direito têm de respeitar."

74°. Ou seja, nos testamentos, tinha a falecida CC a confiança que iriam ser cumpridos, conforme seus desígnios, e como vulgarmente apelidada de última vontade, uma vez que são apenas abertos após a morte do testador.

75°. Como sabido, ainda em vida, entendeu por bem, doar a sua meação e quinhão hereditário, sob condição (vid. condição), também, com a confiança que sistema legislativo e jurídico lhe autorizavam tais disposições, sem esquecermos que foi provado que a mesma estava, na plenitude das suas capacidades mentais, logo, entendia o alcance daquela doação.

76°. Pelo que, se tivesse noção que tais negócios jurídicos não seriam válidos, nunca os celebraria, daí que, nunca tenha ficcionado que, essa Confiança e Proteção Jurídica lhe iriam anular os mesmos, com base na usura.

77°. Assim, o acórdão ora recorrido viola a C.R.P., nomeadamente o Principio da Proteção Jurídica (que engloba o Principio da Confiança) ao invocar que o art. 282° n. 1 do Cód. Civil se aplica aos testamentos (apesar de negócios jurídicos unilaterais), uma vez que vai contra a vontade expressa da testadora e, limita o direito da falecida CC em dispor da forma como entender dos seus bens e a favor de quem assim o entender.

78°. Ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação está a substituir-se à vontade da falecida CC, não curando proteger as expetativas que a mesma depositou na Proteção Jurídica que lhe eram conferidas, pelo que, viola a sua Confiança no sistema jurídico, atento que alterou a sua vontade, com tal interpretação, uma vez que, "O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida" (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, pg. 257), algo que, com tal interpretação, tal não acontece.

79°. Sendo certo que, englobando o Princípio da Proteção Jurídica o Princípio da Tutela da Confiança, este último prevê uma confiança na ordem jurídica e nas expectativas criadas, logo, todas as pessoas devem poder prever o que poderá surgir das suas ações, mas, ao mesmo tempo, tem que poder confiar em que a sua atuação, sendo a mesma legalmente admissível (como o foi por estar na posse de todas as suas faculdades mentais) permaneça em todas as suas consequências juridicamente relevantes.

80°. Esta confiança é violada sempre que o julgador ligue a situações de facto constituídas e desenvolvidas no passado, consequências jurídicas mais desfavoráveis do que aquelas com que falecida CC podia e devia contar.

81°. Pelo que, nesta parte, a julgar como o julgou, o Tribunal da Relação do Porto, na interpretação que faz do art. 282° n. 1 do Cód. Civil violou os princípios constitucionais da Segurança Jurídica, na sua vertente do Principio da Confiança, vertidos no art. 2º da Constituição da República Portuguesa, daí que, deverá ser proferido novo acórdão, que leve em linha de conta tais princípios e, consequentemente, validar-se a escritura de doação

82°. Quanto aos testamentos, dever-se-á efetuar uma interpretação da não aplicação do art. 282° n. 1 do Cód. Civil aos testamentos pois, além das razões supra elencadas, colide com a vontade expressada pela falecida, nas suas disposições, vontade essa protegida por tais princípios, logo, impõe-se a validação do mesmo e improcedência dos pedidos do recorrido.

83°. Para final, deixamos o Princípio da Igualdade, nomeadamente a sua violação, através da forma como foi interpretado o art. 282° n. 1 do Cód. Civil, que, entendeu a Relação do Porto, não ter sido violado, pois a decisão não foi proferida com base na ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição sócial ou orientação sexual.

84°. Acontece que a decisão tomada, não colide com o Principio da Igualdade, na vertente apresentada no douto acórdão recorrido, mas sim pelo facto de, com a interpretação efetuada pelo Tribunal do citado art. 282° n. 1 do Cód. Civil, este deixa de tratar de forma igual, situações que merecem o mesmo tratamento ao nível jurídico,

85°. Entende o Tribunal qualificar, quer os testamentos, quer a escritura como usurários, pois, a recorrente recebe bens injustificados (sem prejuízo de não saber que bens, quais o seus valores e esquecendo-se o Tribunal da condição imposta), logo, com a sua decisão, irá beneficiar o recorrido em igual medida, daí que perguntámo-nos, este negócio não passa agora a usurário para com o irmão da falecida?

86°. Pessoa essa que poderia ser afastada da sua sucessão, atento o previsto no art. 2157° do Cód. Civil, daí que, salvo melhor opinião, com tal interpretação, o Tribunal da Relação do Porto criou uma forma desigual de tratar situações iguais,

87°. Interpretando-se da forma como se interpretou tal norma, afasta-se uma pessoa para beneficiar outra pessoa, logo, viola-se o disposto no art. 13° n. 1 e 2° da C.R.P., dado que, não se pode violar a confiança da pessoa que outorgou aqueles actos e depois, viola-se a igualdade de uma pessoa, em detrimento de uma outra que, irá ocupar, exatamente a mesma posição da recorrente, pessoa essa que é o recorrido,

88°. O Tribunal recorrido, com esta decisão, vai contra a vontade da testadora e doadora porque, por seu livre arbítrio, entende que a recorrente é injustificadamente beneficiada, mas, não deixa de entender que o recorrido poderá receber tudo aquilo que a falecida CC decidiu deixar à recorrente, não sendo desta forma excessivo/injustificado que o mesmo receba tudo.

89°. Por estes fundamentos entendemos que a interpretação dada pelo Tribunal da Relação ao art. 282° n. 1 do Cód. Civil viola o Princípio da Igualdade previsto no art. 13° n. 1 e 2 da C.R.P., logo, pela inconstitucionalidade do douto acórdão proferido, dever-se-á substituir o mesmo por um douto acórdão que validade aqueles actos notariais e absolva a recorrente dos pedidos.

Termos em que, e nos demais de Direito mas sempre com o douto suprimento de V.s Excelências, deverá o presente recurso ser recebido e julgado procedente por provado, nomeadamente por:

a) - Existir Contradição de Acórdãos, devendo-se seguir/validar a posição vertida no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães a 27 de Maio de 2010, tudo conforme concluído de 1° a 38° e, consequentemente, validar-se ambos os testamentos (sem prejuízo do segundo anular o primeiro) improcedendo os pedidos do recorrido, uma vez que o art. 282° n. 1 do Cód. Civil não é de aplicação aos testamentos;

b) - Existir uma alteração substancial da fundamentação jurídica da anulação da escritura e de ambos os testamentos (da decisão da 1ª instância para a decisão da Relação do Porto), tudo conforme concluído de 39° a 60°, e, em face do supra alegado/concluído, dever-se-á declarar, como válidos todos os actos notariais outorgados pela falecida CC, improcedendo os pedidos do recorrido, uma vez que existe uma errada aplicação de Direito, nomeadamente do art. 282° n. 1 do Cód. Civil, atento que não se preenchem todos os seus requisitos;

c) - Violação dos art.s 615° n. 1 al. d) (por via do art. 666° do Cód. de Proc. Civil) e 640°, todos do Cód. de Proc. Civil, o que levará a baixa do processo, por forma a que o Tribunal da Relação do Porto se pronuncie acerca do recurso sobre a alteração da matéria de facto dada como provada, tudo conforme concluído de 61° a 68° e,

d) - Violação do Principio da Confiança e da Igualdade, tudo conforme concluído de 69° a 89°, o que levará a uma decisão que decida pela não aplicação do art. 282° do Cód. Civil à decisão a proferir e, consequentemente, dever-se-á declarar, como válidos todos os actos notariais outorgados pela falecida CC, improcedendo os pedidos do recorrido;

Em consequência, deverão todos os pedidos do Autor/Recorrido improceder, sendo a Ré/Recorrente absolvida de todos os pedidos.


O Recorrido contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

[excluem-se as conclusões relativas à oposição à admissibilidade da revista excepcional]

6º - O artigo 282°, n.° 1 do Código Civil não faz qualquer restrição quanto ao tipo de negócios jurídicos a que se aplica, sendo bem explícitos os requisitos aí exigidos.

7º - Desde que se verifique o preenchimento dos critérios plasmados em tal artigo, estaremos na presença da usura em qualquer tipo de negócio jurídico.

8º - O Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, de 27 de Maio de 2010 confunde a análise dos vícios da vontade com o instituto da usura, sendo que os critérios plasmados no artigo 282° do C.C., encontram-se bem definidos e não se prendem com o facto de estarmos perante um negócio unilateral ou bilateral.

9º - A aplicação do artigo 282° do Código civil aos testamentos é perfeitamente válida e correcta, sendo claro e pacífico o entendimento que o artigo 282.° do Código Civil é aplicável a todos os negócios - quer se trate de contratos bilaterais, quer se trate de contratos unilaterais ou mesmo de negócios unilaterais.

[excluem-se as conclusões relativas à oposição à admissibilidade da revista comum]

16° - Sem prescindir, tanto a decisão da 1ª instância como a do Tribunal da Relação do Porto justificam porque estamos na presença de negócios jurídicos usurários, sendo bem expressivo o ponto II do sumário do Acórdão recorrido:

"II. Configura um negócio jurídico usurário, nos termos do art. 2825/1 CC, a consciência e o aproveitamento pelo cuidador, que prestou assistência durante cerca de dois anos, da situação de inferioridade em mulher, viúva, com 75 para 77 anos, doente e dependente dos cuidados de terceira pessoa para a satisfação das necessidades básicas da vida (sofreu amputação do membro inferior direito, hemiparésia esquerda, mastectomia por carcinoma da mama direita), com algumas limitações cognitivas, sem ascendentes vivos e sem descendentes, a quem o cuidador impediu as visitas de familiares e amigos e que neste quadro vem a falecer, depois de dispor de todo o seu património a favor desse cuidador, sem causa justificativa."

17° - Resulta dos factos provados que a Ré/recorrente conheceu a falecida CC por lhe prestar, juntamente com outras pessoas, auxílio e assistência, aproveitou uma ocasião para a retirar da sua residência, levando-a para a sua própria casa, ficando a CC totalmente dependente de si, depois impediu, injustificadamente, visitas de familiares e de amigos da então doente, e vem a beneficiar de negócios que visam exclusivamente obter todo o património da doente, até esta falecer.

18° - O douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto analisa, de forma exaustiva e fundamentada, os três pressupostos constantes do artigo 282° do Código Civil para que se verifique a usura:

a)      situação de inferioridade do declarante;

b)      atuação consciente do declaratário ou de terceiro;

c)       excesso ou injustiça do proveito.

19° - A questão que é levantada (novamente) pela recorrente já mereceu, por parte do Tribunal da Relação uma apreciação fundamentada.

20° - Ao instituir a Ré como herdeira de tudo o que tenha à data da sua morte, e ao ceder gratuitamente a meação e o quinhão hereditário que lhe pertence nos bens que compõem a herança de seu marido falecido em 24/02/2010, a falecida cede todo o seu património à Recorrente, sendo que o valor de todo esse património é indeterminado, pois só será concretamente apurado em sede de inventário.

21° - Perante este cenário de absoluto aproveitamento da fragilidade da falecida, qualquer disposição a favor da Recorrente, independentemente do seu valor, será sempre excessiva e injusta. Mais ainda quando se trata de obter todo o património da doente.

22° - Nas circunstâncias descritas a disposição de todo o seu património a favor da Recorrente choca qualquer pessoa honesta, correcta, de boa fé, ou seja, é profundamente injusta e injustificada, permitindo perceber em que medida o proveito da Ré é excessivo e absolutamente injusto e injustificado.

23° - Inexiste qualquer alteração substancial da fundamentação para a anulação, inexistindo ainda qualquer violação do artigo 282° do Código Civil.

24° - Não é admissível o Recurso de Revista quanto à questão levantada pela Recorrente da não apreciação do Recurso sobre a matéria de facto.

25° - É notório e evidente que a Recorrente, no recurso de apelação, não cumpriu, minimamente, o disposto no artigo 640° do C.P.C., não especificando os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, nem a decisão que deveria ser proferida.

26° - Pelo que inexiste qualquer nulidade por violação do disposto no artigo 615°, n.° 1, al. d) do C.P.C.

27° - Para a Recorrente, a interpretação dada pelo Tribunal ao artigo 282° do Código Civil viola o princípio da confiança previsto no artigo 2º da C.R.P. e o princípio da igualdade previsto no artigo 13°, n.°1 e 2 da C.R.P.

28° - O tribunal limita-se a anular três negócios que considera serem usurários, por resultarem preenchidos os requisitos previstos no artigo 282° do Código Civil, sendo que essa anulação não visa beneficiar qualquer pessoa, nomeadamente o Autor, em detrimento da Recorrente.

29° - A decisão limita-se a apreciar a validade dos negócios em causa, concluindo pela sua anulação, não afastando ou beneficiando quem quer que seja, tanto mais que ninguém irá ocupar a posição da Recorrente, pois tudo acontece como se estes negócios nunca tivessem ocorrido.

30° - Como é dito no douto Acórdão recorrido:

"A interpretação acolhida na sentença recorrida e no presente acórdão, garante o princípio da segurança jurídica, na sua vertente da tutela da confiança, porque a interpretação defendida assenta no regime previsto no art. 282º/1 CC que estabeleceu os critérios e pressupostos a considerar para qualificar como usurário um negócio jurídico. A qualificação não fica ao critério e livre arbítrio do julgador, sendo certo que como vício do objeto negocial estava já prevista na lei, à data da celebração dos atos cuja anulação foi peticionada, fazendo parte da nossa tradição jurídica.

De igual forma, a interpretação do preceito não contende com o princípio da igualdade, pois não se trata de acolher uma diferente interpretação para idênticas situações jurídicas. A posição do Autor, enquanto herdeiro legítimo, não constitui objeto de análise nestes autos. Por outro lado, não será o único herdeiro legítimo, como decorre do testamento celebrado em março de 2011. Acresce que por aplicação do regime previsto no art. 2829/l CC a apelante viu anulados os atos celebrados em seu benefício, ficando assim privada do direito a suceder a CC nos seus bens e quinhão hereditário por óbito do marido, mas tal decisão foi tomada sem considerar a ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual da apelante.

Desta forma, não se pode falar em tratamento desigual, porque se atendeu apenas aos requisitos previstos na lei, os quais não compreendem os critérios discriminatórios do art. 13º/2 CRP."

31° - Inexiste qualquer violação dos invocados preceitos constitucionais.

32° - São claramente improcedentes todas as conclusões do Recurso interposto pela Recorrente

        

3. A fls. 418, foi proferido acórdão na conferência do Tribunal da Relação de Lisboa, com a decisão que se transcreve:


“Face ao exposto acordam os juízes desta Relação em manter os termos da decisão, por não se verificar a apontada nulidade e rectificar o acórdão na pág. 317 verso, onde se lê; ‘Improcedem, nesta parte as conclusões sob os pontos 10 a 52’, passando a ler-se ‘Improcedem, nesta parte as conclusões sob os pontos 10 a 42”.

        

4. Foi o processo levado à formação deste Supremo Tribunal, prevista no nº 3, do art. 672º, do Código de Processo Civil, que, por decisão de fls. 434, determinou o seguinte:


“Remete-se para o Senhor Relator a quem o processo for distribuído em revista normal a tomada de posição sobre a admissibilidade da questão referida em 6;

Admite-se, quanto ao mais, a revista excepcional.”


A questão referida no ponto 6. da decisão da formação consiste no não conhecimento pela Relação da pretensão recursória de alteração da matéria de facto.


5. Veio a Recorrente requerer junção da sentença do Tribunal de Instância Local de Vila Nova de Gaia – Secção Criminal – J2, de 10 de Fevereiro de 2016, pela qual foi absolvida da prática dos crimes de abuso de confiança e de usura, sentença ainda não transitada em julgado. Mais requereu a suspensão do processo até decisão definitiva no processo-crime. Notificado o Recorrido, opôs-se este à junção do documento e, subsidiariamente, à suspensão do processo.

Por despacho de fls. 480, e nos termos conjugados dos arts. 679º, 651º, nº 1 e 425º, do Código de Processo Civil, admitiu-se a junção da sentença aos autos por ser documento que não podia ter sido apresentado anteriormente, não se aceitando o pedido de suspensão da instância, na medida em que a acção criminal não constitui causa prejudicial da presente acção (cfr. art. 272º, nº 1, do CPC) e, ainda que constituísse, a causa alegadamente dependente está tão adiantada que os prejuízos da suspensão superariam as suas vantagens (cfr. art. 272º, nº 2, segunda parte, do CPC).


Cumpre decidir.


6. Vem provado o seguinte:

1. CC faleceu no dia 09/02/2013 com a idade de 77 anos no estado de viúva de DD (fls. 22).

2. O Autor é irmão de CC referida em 1).

3. No dia 14/03/2011, na residência da indicada CC, compareceu a notária, Dra. EE, tendo aquela declarado que, não tendo descendentes nem os seus ascendentes são vivos, pelo testamento dispõe que lega o jazigo de família a seu irmão, AA e a FF e institui herdeiros de tudo o que tenha á data da sua morte a Ré BB, na proporção de 75% e aos irmãos GG e AA e seus sobrinhos, filhos daqueles irmãos e falecidas irmãs HH e II, em comum, 25% de todos os bens conforme fls. 55 e 56.

4. No dia 12/12/2011 compareceu a indicada CC no cartório notarial da Dra. EE tendo aquela declarado que, não tendo descendentes nem os seus ascendentes são vivos, pelo testamento dispõe que lega o jazigo de família a seu irmão, AA e a FF e institui herdeira de tudo o que tenha à data da sua morte a Ré BB conforme fls. 60 e 61.

5. No dia 21/12/2010, na residência da indicada CC, compareceu a notária Dra. JJ tendo aquela declarado constituir seu procurador o ora Autor, AA com poderes especiais para, entre outros, abater ou mandar abater, vender árvores e representar em processos de expropriação, conforme fls. 63 a 65.

6. No dia 02/05/2011, CC referida em 1) constituiu sua procuradora a Ré BB com poderes para praticar os actos descritos a fls. 29 e 30:

Intervir, em nome da mandante, junto de todos e quaisquer bancos, nomeadamente a Caixa KK, Banco LL, Caja MM, Banco NN, Banco OO, S.A., Caixa PP (de qualquer localidade) sem exclusão de outras entidades bancárias e para-bancárias, para, solicitar abertura de contas bancárias, solicitar o encerramento de contas bancárias, efectuar, ao balcão ou através de outro meio, levantamentos e depósitos em numerário, cheques, ou de outro meio qualquer, solicitar a emissão de cheques, pedir livros de cheques, passar e assinar cheques, solicitar a emissão de cartões de débito, negociar aplicações bancárias, a prazo ou em titulas ou aplicações de qualquer outra espécie, negociar as condições dessas mesmas aplicações, realizar todas e quaisquer negociações com todos os bancos, incluindo os acima referidos, que entender conveniente, para tal estando autorizada a obrigar a mandante junto desses mesmos bancos e solicitar e ter acesso a todo a informação que entender relevante, em suma, como se da própria mandate se tratasse.

Intervir em todo e qualquer acto junto de entidades oficiais, não oficiais, organismos públicos ou privados, repartições de finanças, conservatórias, notários, e outras entidades, bem como representá-la em toda e qualquer conferência de interessados.

Representar a mandante no processo de inventário n. 10601/10.3T8VNG do 59 Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, conferindo-lhe os poderes especiais de, em seu nome, prestar declarações de cabeça-de-casal, processo em que a mandante exerce as funções de cabeça-de-casal, tendo já nos referidos autos prestado o compromisso de bom desempenho da sua função, mais ratificando todo o anterior processado, designadamente as declarações já prestadas, conferindo poderes para em seu nome, relacionar bens, reclamar da relação de bens, licitar bens, acordar na partilha e desistir, receber ou pagar, passando recibos e dando quitações, depositar e levantar capitais em bancos; representá-la junto de quaisquer repartições públicas e designadamente, nas repartições de finanças, liquidar impostos ou contribuições. reclamando dos indevidos ou excessivos, requerer avaliações fiscais e inscrições matriciais, podendo ainda prestar quaisquer declarações complementares; proceder a quaisquer actos de registo predial, provisórios ou definitivos, cancelamentos ou averbamentos.

Confere-lhe ainda poderes para negociar, vender ou comprar bens imóveis e móveis, pelo preço que entender por justo, a quem quiser, nomeadamente consigo mesmo, representando a mandate nas escrituras que possam vir a ser realizadas, como se a mandante presente o fosse, assinado as respectivas 1iquidações de impostos, escrituras essas a realizar na data que para o efeito for designada, e ainda dar quitação, e representá-la em quaisquer repartições publicas, como Repartições de finanças, Câmaras Municipais e Conservatórias do Registo Predial.

Confere-lhe ainda poderes para receber citações e representá-la em Tribunal, passar procurações forenses e a constituir mandatários em todos e quais processos judiciais e extra-judiciais que seja parte a mandante, com os mais amplos poderes forenses em direito permitidos e ainda os especiais para desistir, transigir e confessar.

Mais lhe confere poderes para, em seu nome, revogar procurações que a mandante tenha outorgado, tenham as mesmas sido outorgadas a Advogados ou a outras pessoas, nomeadamente, mas, entre outros, nos processos judiciais que a mandante intervenha, para tal, bastando comunicar ao mandatário essa revogação da procuração.

Pelo presente a mandante autoriza ainda a mandatária aqui referida a substabelecer todos os poderes que aqui lhe confere a mandatário, Advogado ou não.

7. No dia 18/07/2012, compareceu no cartório Notarial da Dra. EE a mesma indicada CC, a Ré BB tendo a primeira declarado que cedia gratuitamente à segunda a meação e o quinhão hereditário que lhe pertence nos bens que compõem a herança de seu marido falecido em 24/02/2010, impondo á donatária o encargo de prestar assistência para o seu bem-estar e saúde, declarando a 2.ª que aceitava, conforme fls. 49 e 50.

8. CC faleceu sem descendentes e sem ascendentes vivos.

9. CC em 1998 sofreu amputação da perna direita e em 04/09/2009 uma mastectomia por carcinoma da mama direita.

10. Em 01/06/2010 CC sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) de que resultou hemiparesia esquerda.

11. CC esteve internada no Hospital da Venerável Irmandade da Lapa no Porto entre 07/07/2010 e 16/07/2010 por instalação súbita de hemiparesia esquerda.

12. Depois dos problemas de saúde referidos em 10) e 11), CC teve a ajuda remunerada de FF e QQ na lide da casa tendo igualmente a visita do Autor e sua mulher também a auxiliando.

13. Depois do AVC sofrido por CC, houve pessoas que a ajudaram sendo que a certa altura foi contratada, a seu pedido, a empresa «Acurar-Assistência de saúde ao domicílio, unipessoal» que assegurava a assistência a nível de higiene, limpeza, alimentação da doente na residência desta.

14. A Ré era funcionária da referida empresa «Acurar…» tendo passado a frequentar a residência de CC no turno que teria como horário aproximado entrada às 17.00 horas e saída às 22.00 horas.

15. A certa altura, em finais de 2010, a Ré levou CC para a sua residência depois de a ter levado a uma consulta hospitalar.

16. A partir dessa altura, CC ficou na residência da Ré, deslocando-se à mesma os funcionários da empresa «Acurar…» para lhe prestarem cuidados.

17. A partir de certa altura, ficou a Ré a cuidar sozinha de CC e outros idosos que aí se encontravam também a receber cuidados.

18. Tais cuidados consubstanciavam-se no tratar da higiene, alimentação e administração de alguns medicamentos que tinham sido prescritos por médico, realização de algum curativo de simples realização aos referidos idosos incluindo CC.

19. Em 2010 havia familiares que visitavam CC.

20. Por vezes, CC estava com um raciocínio pouco claro, confundindo por exemplo a casa da Ré onde se encontrava com a sua própria casa.

21. Por vezes também se esquecia do que estava a falar.

22. CC frequentou algumas vezes reuniões da Igreja Universal do Reino de Deus.

23. A Ré não permitiu, em número indeterminado de situações, que amigos e/ou familiares de CC a visitassem na sua casa nomeadamente no dia 24/11/2012.

24. A própria CC terá afirmado, nomeadamente no citado dia 24/11/2012, que não queria ver o seu irmão, ora Autor.

25. Em Julho de 2012, por informação da Ré à médica, foi transmitido que CC estava agitada não tendo ido a uma consulta de oncologia; fez uma TAC em 25/07/2012 que apresentou lesões de carácter sequelar de provável etiologia vascular; em 27/08/2012 a mesma CC afirma que não quer fazer tratamento com ácido zoledrónico por sua opção, tudo conforme fls. 67 e 68.

26. Em 08/10/2012, CC faltou a uma consulta agendada tendo a Ré informado que a mesma não se estava a sentir bem não tendo voltado ao serviço de oncologia.


7. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, estão em causa, no presente recurso, as seguintes questões:

- Nulidade por omissão de pronúncia sobre a alteração da matéria de facto (concl. 68 e concl. final-alínea c);

- Cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto do art. 640º do CPC (concls. 61 a 68, e concl. final-alínea c);

- Validade dos testamentos ao abrigo do regime dos negócios usurários do art. 282º do Código Civil (concls. 8 a 37, 58 a 60, e concl. final-alínea a);

- Validade da cessão gratuita da meação e do quinhão hereditário ao abrigo do regime dos negócios usurários (concls. 44 a 56, e concl. final-alínea b).

- Respeito pelo princípio constitucional da segurança jurídica, na sua vertente do princípio da confiança, e pelo princípio constitucional da igualdade (concls. 69 a 89, e concl. final-alínea d).


8. Relativamente à questão da alegada nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia acerca da alteração da matéria de facto, invoca a Recorrente que se verifica “Violação dos art.s 615° n. 1 al. d) (por via do art. 666° do Cód. de Proc. Civil) e 640°, todos do Cód. de Proc. Civil, o que levará a baixa do processo, por forma a que o Tribunal da Relação do Porto se pronuncie acerca do recurso sobre a alteração da matéria de facto dada como provada”.

Vejamos o conteúdo do acórdão recorrido na parte aqui relevante:


- Reapreciação da decisão de facto -

Nas conclusões de recurso, sob os pontos 10 a 42 a apelante reporta-se a vários depoimentos das testemunhas, transcrevendo os respetivos depoimentos na motivação do recurso, extraindo de tais depoimentos os factos a respeito da personalidade da falecida CC.

    O art. 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:

“ 1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

   a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

      3. […]”

  O legislador na linha dos anteriores diplomas, que regiam sobre esta matéria, continua a não prever o prévio aperfeiçoamento das conclusões de recurso, quando o apelante não respeita o ónus que a lei impõe.

   Desta forma, o efeito de rejeição não é precedido de despacho de aperfeiçoamento, o que se explica pelo facto da possibilidade de impugnação da decisão de facto resultar de uma alteração reclamada no domínio do processo civil e estar em causa a impugnação de decisão de matéria de facto que resultou de um julgamento em relação ao qual o tribunal “ad quem” não teve intervenção e por isso, só a parte interessada estará em condições de poder impugnar essa decisão.

   Por outro lado, a rejeição do recurso porque o apelante não cumpriu o ónus de impugnação apenas se justifica por os ónus impostos ao recorrente visarem o corpo da alegação, insuscetível de ser corrigido ou completado por via do convite.

   O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.

    Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso - , motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação – fundamentação - que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.

    No caso concreto, não estão reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto, porque a apelante nas conclusões não indica os concretos pontos de facto a reapreciar, nem consequentemente, a decisão que sugere. Também, não o faz na motivação de recurso, o que a ocorrer sempre permitiria considerar preenchido o ónus legal, face ao critério interpretativo que se vem desenvolvendo no Supremo Tribunal de Justiça, como disso dá nota o Ac. STJ 04 de julho de 2013, Proc. 1727/07.1TBSTS-L.P1.S1, (disponível em www.dgsi.pt ) quando refere: “[a] delimitação concreta dos pontos de facto considerados incorretamente julgados e demais ónus impostos pelo art. 685.º-B do CPC, há de ser efetuada no corpo da alegação; nas conclusões bastará fazer referência muito sintética aos pontos de facto impugnados, e às razões porque se pretende a sua alteração, sem necessidade de transcrever (ou copiar) o que a respeito se escreveu no corpo da alegação sobre a matéria”.

   Com efeito, através da reapreciação dos meios de prova, mais propriamente da prova testemunhal visa a apelante a consideração de um conjunto de factos a respeito da personalidade da falecida CC e capacidade de autodeterminação, factos que não foram alegados pelas partes nos respetivos articulados.

   Considerando o critério legal, a reapreciação da prova não visa a ampliação da matéria de facto não alegada, mas a reapreciação da decisão dos factos enunciados nos articulados ou dos factos complementares ou instrumentais, desde que considerados na sentença, em conformidade com o critério do art. 5º do CPC.

    Contudo, na presente situação não se verificam tais circunstâncias, o que conduz à rejeição do recurso nessa parte.”


Conclui-se que a Relação não reapreciou a matéria de facto por ter considerado que a apelante não cumprira o ónus de impugnação do art. 640º do CPC. Assim sendo, não se verifica nulidade por omissão de pronúncia, mas, quanto muito, errada aplicação da lei de processo se, porventura, a justificação para a não reapreciação for incorrecta. Esta é uma questão de direito que pode, nos termos do art. 674º, nº 1, alínea b), do CPC, ser apreciada pelo Supremo Tribunal, o que se fará em seguida.


9. Quanto ao ónus de impugnação do art. 640º do CPC, alega a Recorrente tê-lo cumprido, concluindo o seguinte: “Pelo que, a recorrente, alegou/concluiu, minuciosamente, através das transcrições, os pontos que, incorretamente, considerava, julgados, bem como, indicando os meios probatórios que impunham uma decisão diferente (através das mesmas transcrições), refere quais as concretas passagens que, entende, deveriam ser julgadas de forma diferente”.

     Compulsada a apelação, verifica-se que a Recorrente nela indicou, genericamente, diversas passagens de testemunhos, sem, contudo, retirar qualquer consequência concreta dessa indicação. Entende-se, por isso, que não se encontram preenchidas todas as exigências do nº 1, do art. 640º, do CPC, exigências que são cumulativas. Ainda que tenham sido especificados os “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada” (primeira parte da alínea b)), não foi respeitada a exigência da alínea a) (indicação dos “concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”), nem a exigência da alínea c) (indicação da “decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”). Vale para o caso dos autos o que foi decidido no acórdão deste Supremo Tribunal, de 17/03/2016 (proc. n.º 124/12.1TBMTJ.L1.S1), conforme consta dos pontos 1. a 5. do respectivo sumário que, pela sua clareza, aqui se transcrevem:

1. No domínio do atual regime recursório cível, a impugnação da decisão de facto para o Tribunal da Relação não visa propriamente um novo julgamento global da causa, mas apenas a reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida.

2. Uma vez que a decisão de facto se consubstancia em juízos probatórios parcelares, positivos ou negativos, sobre cada um dos factos relevantes, a apreciação do erro de julgamento, nessa parte, é circunscrita aos pontos impugnados.

3. Nessa conformidade, impende sobre o impugnante, além do mais, o ónus de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre tais pontos de facto, sob pena de imediata rejeição do recurso, na parte afetada, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC, respetivamente.

4. O recorrente não observa tal ónus impugnatório quando se limita a convocar e analisar determinados meios de prova, nomeadamente depoimentos de parte e de testemunhas, sem especificar, de forma inteligível, quais os pontos concretos da decisão de facto que impugna nem que decisão sobre eles deve ser proferida.

5. Não compete ao tribunal de recurso inferir, sem mais, dos depoimentos assim convocados quais os pontos de facto que o recorrente pretende impugnar, sob pena de violação dos princípios do dispositivo, do contraditório e da imparcialidade do julgador, como corolários que são do princípio latitudinário do processo equitativo.


Confirma-se, assim, o entendimento da Relação de que a Recorrente não cumpriu o ónus de impugnação da matéria de facto do art. 640º, do CPC. Consequentemente conclui-se que o acórdão recorrido não fez errada aplicação da lei processual.


10. Fixados que foram os factos pela Relação, não tem relevância para o caso dos autos a sentença absolutória proferia em processo-crime, cuja junção foi admitida por despacho de fls. 480. Ainda que venha a transitar em julgado, nos termos do nº 1, do art. 624º, do CPC, sempre a prova de que a arguida, R. Recorrente no presente processo, não praticou os factos que lhe são imputados constituiria “simples presunção legal de inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário”. Na presente acção, a matéria de facto foi dada como provada pela Relação e não pode já ser alterada por este Supremo Tribunal.


11. Resolvidas as questões de índole adjectiva, concentremos a nossa atenção nas questões de mérito, designadamente na questão da validade dos testamentos e na questão da validade da cessão gratuita de meação e de quinhão hereditário.

O A. formulou o pedido de anulação dos dois testamentos com fundamento na incapacidade acidental da testadora CC (art. 2199º do Código Civil), ou no regime dos negócios usurários (art. 282º do CC), e, subsidiariamente, formulou o pedido de declaração de nulidade das deixas testamentárias a favor da R., ao abrigo do regime de indisponibilidade relativa do art. 2194º do CC.

As instâncias deram como não provados os pressupostos da incapacidade acidental e como verificados os pressupostos da usura. Desta decisão vem interposta a revista da R., alegando, em síntese, o seguinte: o regime do art. 282º do CC aplica-se apenas aos negócios jurídicos bilaterais; ainda que assim não se entenda, no caso dos autos falham os requisitos necessários, designadamente, “a) - Conhecimento da recorrente da outorga de tais disposições testamentárias, sendo que tal matéria não foi alegada e, consequentemente dada como provada; b)- A provar-se a matéria alegada na al. a), sempre se teria que ter alegado e provado qual o benefício a retirar dessas disposição [disposições], facto que, novamente não foi alegado e, consequentemente, provado; c) - Por fim, ter-se-ia que verificar quais os requisitos da usura, se estavam preenchidos e, em face dos mesmos, se seriam aplicáveis aos negócios jurídicos unilaterais.”

O A. formulou também o pedido de anulação da cessão gratuita da meação e do quinhão da herança do marido da falecida CC, com fundamento em incapacidade acidental da cedente e na aplicação do regime dos negócios usurários. As instâncias deram como não provada a incapacidade acidental (art. 257º do CC) e como verificados os pressupostos da usura (art. 282º do CC), tendo anulado a cessão. Vem-se no presente recurso impugnar esta decisão, alegando em síntese: que não se encontram verificados os requisitos do art. 282º do CC; e, especialmente, que não foi feita prova da atribuição de benefícios excessivos, tanto mais que não se provou o valor do direito cedido e que, além disso, a cessão foi feita com o encargo de prestação de assistência à cedente por parte da cessionária.


12. O problema da aplicabilidade do regime dos negócios usurários ao testamento não se encontra tratado de forma aprofundada no direito português.

Em tese geral, defende-se em alguma doutrina nacional (Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, pág. 260; Pedro Eiró, Negócio usurário, 1990, págs. 68 e segs.; H. E. Hörster, A parte geral do Código Civil Português, 2014, reimp., pág. 556) a possibilidade de tal aplicação à generalidade dos negócios jurídicos, tanto bilaterais como unilaterais, sem, contudo, se referir directamente o testamento.

Entre os cultores do direito sucessório, há autores que defendem a sujeição do testamento ao regime da usura (Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, I, 2000, pág. 185; Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, 2013, pág. 135).

A jurisprudência deste Supremo Tribunal vem admitindo a aplicação da usura aos negócios jurídicos unilaterais: em tese geral, no acórdão de 12/09/2006 (proc. nº 06A1988, in www.dgsi.pt); em concreto, quanto a uma procuração, no acórdão de 12/01/2012 (proc. nº 79/2001.S1, in www.dgsi.pt), em cujo sumário se lê: “Tendo resultado provado que, tendo o autor 92 anos e estando física e psicologicamente fragilizado, o réu – apenas 9 dias após a morte da mulher daquele – o levou ao Cartório Notarial onde este outorgou – depois de minutada pelo Réu – a procuração onde lhe concedeu poderes para dar ou tomar de arrendamento bens imóveis, doar ao próprio mandatário prédios sitos na freguesia de Fajões, receber quaisquer importâncias, valores ou rendimentos, aceitar doações etc., é de configurar tal negócio como usurário, atento todo o circunstancialismo referido bem como a não prova por parte do Réu de justificação para tal outorga.” 


Relativamente aos negócios testamentários, são de referir as seguintes decisões deste Supremo Tribunal:

- No acórdão de 22/05/2003 (proc. nº 03B1300, in www.dgsi.pt), num caso em que o testamento foi anulado por coacção, admitiu-se, em tese geral, que o regime da usura possa aplicar-se ao testamento:

“A lei prescreve, por outro lado, ser anulável o negócio jurídico quanto alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou não justificados (artigo 282º, n.º 1, do Código Civil).

Visa este normativo proteger as pessoas em situações de fraqueza contra quem se pretende aproveitar dela e pressupõe um estado de inferioridade de um dos contraentes e a obtenção consciente de benefícios excessivos ou injustificados para o outro ou para terceiro.

A verificação do vício de vontade a que este artigo se reporta, envolve, pois, três elementos, designadamente uma situação de inferioridade do declarante, a actuação consciente do declaratário ou de terceiro e o excesso ou a injustiça do proveito.

Conforme decorre dos termos da lei, a referida situação de inferioridade do declarante há-de resultar de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter.

É um normativo aplicável a qualquer tipo de negócio jurídico, designadamente aos negócios jurídicos unilaterais, como é o caso das disposições testamentárias, nesta hipótese com as necessárias adaptações, face à sua especificidade.”


- No acórdão de 13/05/2004 (proc. nº 1452/04, in www.dgsi.pt), num caso em que se concluiu não ter sido feita prova que permitisse anular o testamento, considerou-se, em tese geral, o seguinte:

“Por isso, a situação de qualquer beneficiado em testamento, que haja assistido o testador - e não seja médico, enfermeiro ou sacerdote - há-de inserir-se nas demais disposições sobre vícios de vontade, conduzindo à invalidade do testamento apenas na medida em que a sua actuação tenha determinado o testador, privando-o de vontade esclarecida (dolo ou coação) ou aproveitando-se de uma deficiência desta vontade (erro, incapacidade acidental) a celebrar o testamento ou a beneficiá-lo nele.

Ou então, atenta a natureza genérica do art. 282º (negócios usurários) aplicável a qualquer tipo de negócio jurídico, designadamente aos negócios jurídicos unilaterais como é o caso das disposições testamentárias, ficarão sujeitos à anulabilidade advinda do facto de terem explorado a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter do testador para deste obterem a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.


A jurisprudência deste Supremo Tribunal não é, por si só, conclusiva, uma vez que se limita a enunciar, em abstracto, a possibilidade de sujeição dos testamentos à usura, sem chegar a concretizar a transposição do instituto e dos seus requisitos.


13. Deve ter-se presente que se regulam, nos arts. 2199º a 2203º do Código Civil, as especificidades da falta e vícios da vontade do testador, a que acresce a expressa previsão da aplicabilidade da figura da coacção (art. 2001º do CC) por simples remissão para o regime dos arts. 255º e 256º do CC. O facto de não existir norma remissiva equivalente quanto à usura não permite concluir que o legislador pretendeu o seu afastamento, na medida em que o regime da usura se inclui na regulamentação do objecto do negócio jurídico da Secção II do Capítulo do Negócio Jurídico, possuindo, porém, afinidade com os vícios da vontade, regulados na Secção I do mesmo capítulo, relativa à declaração de vontade. Afirma Carvalho Fernandes (Teoria Geral do Direito Civil, II, 2010, págs. 249 e seg.) acerca da questão da autonomia da usura: “as relações entre a usura e os outros vícios na formação da vontade só podem compreender-se nos seguintes termos. Se existe erro, medo ou incapacidade acidental relevante, o negócio é anulável pela simples verificação dos requisitos de qualquer desses vícios. Se, como tais, eles não forem relevantes, não deixa de se verificar, contudo, uma situação de inferioridade do declarante, para os efeitos do art. 282º; contudo, esta só será atendível, se tiver havido o aproveitamento da inferioridade do declarante para alguém obter um benefício injusto ou excessivo. Por outras palavras, o vício da usura vem dar relevância a vícios da vontade que não são, por si sós, invalidantes.

Mesmo que se admita que esta autonomização da usura vale também para o testamento, surge a dificuldade em operar a transposição dos requisitos do instituto tendo em conta as características essenciais do testamento enquanto negócio jurídico unilateral não receptício com efeitos sucessórios. Carvalho Fernandes – escrevendo a respeito do erro-vício, mas em termos válidos para outros institutos – identifica claramente o problema do “risco envolvido na transposição, para o regime geral dos negócios unilaterais não recipiendos, de disposições relativas a um acto que se reveste de particularidades significativas, como acontece com o testamento” (cit., pág. 215).

Na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 262/83, de 16 de Junho, o nº 1 do art. 282º, do CC, dispõe o seguinte: “É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.”

Identificam-se os três requisitos previstos neste preceito: a) Existência de uma situação de inferioridade do declarante; b) Exploração da situação de inferioridade pelo usurário; c) Lesão, isto é, promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro.

A possibilidade de transpor para o testamento o requisito subjectivo relativo ao declarante não oferece especiais dúvidas. Também será de admitir a transposição do requisito subjectivo relativo ao usurário, uma vez que a redacção do art. 282º, nº 1, do CC, é suficientemente ampla para incluir situações em que o usurário não é o declaratário ou em que nem sequer existe declaratário.

Maiores dificuldades suscita, porém, a transposição do requisito objectivo da “lesão”, já que, por natureza, o testamento é apto a atribuir benefícios que excedem, total ou parcialmente, os merecimentos de quem os recebe. Rejeita-se a posição (Capelo de Sousa, cit., p. 185) que, pura e simplesmente, dispensa a verificação deste requisito no caso dos testamentos porque tal desvirtuaria a essência do regime dos negócios usurários. Nas palavras de Pedro Eiró (cit., pág. 15), “É no negócio usurário que o ordenamento jurídico português atribui relevância à lesão como causa invalidante do negócio jurídico. Lesão e usura estão hoje indissociavelmente ligadas. Se por um lado não existe usura sem lesão – esta é um dos seus elementos componentes –, por outro lado a lesão, como vício do negócio, só é relevante em sede de negócio usurário.”

   Se a usura não pode, por definição, existir sem um elemento objectivo, a sua aplicação não poderá verificar-se se o testamento ou testamentos forem valorados de forma isolada. Apenas se poderá afirmar em circunstâncias muito excepcionais – como parecem ser as dos autos – em que esses negócios jurídicos se insiram num contexto mais alargado, no qual a factualidade provada imponha uma diferente valoração. Diferente valoração associada ao recurso à concepção de “sistema móvel”, desenvolvida por Wilburg (na obra Elementen des Schadensrecht de 1941) a respeito do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, aceite pela doutrina nacional e igualmente válida para o instituto da usura (cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I – Parte Geral, I, 2005, pág. 651), permitindo considerar que, se for particularmente intensa a prova de factos que revelam um dos pressupostos do art. 282º, nº 1, do CC, será aceitável um menor grau de exigência na verificação de um outro pressuposto.

14. A doutrina supra citada (Pires de Lima/Antunes Varela, cit., pág. 260; Pedro Eiró, Negócio usurário, 1990, págs. 68 e segs.; H. E. Hörster, A parte geral do Código Civil Português, 2014, reimp., pág. 556) admite também a aplicação do regime da usura não apenas aos contratos bilaterais como também aos contratos unilaterais, tanto onerosos como gratuitos.

Em função, precisamente, da natureza contratual da cessão gratuita de meação e quinhão hereditário, a possibilidade de aplicação do regime do art. 282º, do CC, não coloca dificuldades quanto à verificação dos requisitos subjectivos, mas já as suscita quanto à verificação do requisito objectivo. Na verdade, da própria natureza dos negócios gratuitos resulta que as vantagens atribuídas ao beneficiário podem ser “excessivas” e não ter, total ou parcialmente, justificação.

Em abstracto, será possível configurar hipóteses em que o requisito objectivo da lesão se verifique, como sugere Pedro Eiró, cit., págs. 70 e seg.: A existência de benefícios excessivos ou injustificados não é excluída mesmo nos negócios gratuitos em que exista um verdadeiro espírito de liberalidade ou ‘animus donandi’. Tomemos um exemplo concreto: A pretende fazer uma doação a B, seu familiar. B, aproveitando-se de um dia de particular euforia de A, consegue que o montante doado seja muito superior àquele previsto inicialmente por A. Este contrato é uma verdadeira doação, embora usurária.” Ainda assim, trata-se de hipóteses muito circunscritas, que se encontram na fronteira com o âmbito dos vícios da vontade legalmente tipificados. Vale também aqui o entendimento supra citado de que “o vício da usura vem dar relevância a vícios da vontade que não são, por si sós, invalidantes”.


15. Se, no breve enquadramento teórico realizado, se distinguiram entre os negócios testamentários e a cessão gratuita, no processo de aplicação dos requisitos do art. 282º do CC ao caso dos autos, considera-se necessário considerar os três negócios conjuntamente, na medida em que os factos relevantes para a verificação dos requisitos subjectivos são comuns; e, sobretudo, na medida em que a apreciação do requisito objectivo da usura exige – como já se afirmou – a ponderação dos três negócios jurídicos cuja invalidade se invoca, inseridos no contexto mais amplo dos sucessivos actos jurídicos praticados pela falecida.

O acórdão recorrido conclui que se verifica o primeiro requisito – Existência de uma situação de inferioridade do declarante – com a seguinte fundamentação:


“A inferioridade decorre da situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter e que no caso concreto têm como causa a idade (ponto 1 dos factos provados), as limitações físicas de que padecia Maria da Conceição (pontos 9, 10, 11 dos factos provados), o estado de doença (ponto 20, 21, 25 e 26 dos factos provados) e a total dependência de uma terceira pessoa, no caso, a apelante (pontos 17 e 18 dos factos provados), para se movimentar e praticar os atos mais elementares do seu quotidiano, associado ao facto da apelante ter impedido a visita de familiares e amigos a Maria da Conceição (ponto 23 dos factos provados).”


       Não pode senão aderir-se à qualificação da situação da falecida CC como sendo de inferioridade, devido à sua necessidade e dependência, tanto física como psíquica, em relação a terceiros, neste caso em relação à própria R. que contribuiu ela mesma, de forma activa, para essa situação. Trata-se, pois, de um caso em que o requisito subjectivo da usura relativo ao declarante ocorre de uma forma especialmente intensa e grave.


16. Quanto ao segundo requisito – Exploração da situação de inferioridade pelo usurário –, afirma-se no acórdão recorrido:


“A apelante não podia ignorar a celebração dos testamentos, nem o contrato de cessão de quinhão hereditário e neste último, o respetivo conteúdo.

         Todos os atos foram celebrados depois de CC passar a residir a tempo inteiro na casa da apelante. Apenas a apelante prestava cuidados e assistência a CC, já que a apelante não alegou e como tal não se provou, que terceiro exercesse tais tarefas. CC para se movimentar necessitava da apelante, pois foi-lhe amputada a perna direita e em consequência do AVC resultou hemiparesia esquerda (pontos 9 e 10 dos factos provados). O testamento celebrado em 14 de março de 2011 foi lavrado na casa de morada da apelante – Rua …, nº …, freguesia de Crestuma, Vila Nova de Gaia. O testamento celebrado em 12 de dezembro de 2011 foi lavrado no cartório notarial. A escritura de cessão de quinhão hereditário celebrada em 18 de julho de 2012 foi outorgada no cartório notarial e com a intervenção da apelante, que figura como cessionária.

        Neste contexto a apelante tinha conhecimento da situação de inferioridade da lesada CC e da causa dessa inferioridade. Recebeu CC na sua casa, por sua iniciativa, para continuar a prestar os cuidados e assistência necessária, sem que se tenha provado que ficou acordado receber uma contrapartida por tais serviços, sendo certo que CC suportava uma despesa com tais serviços (pontos 13 a 18 dos factos provados).

       Fazendo funcionar as presunções judiciais - art. 349º e 351ºCC -, somos levados a concluir que estas circunstâncias constituem desde logo um indício que a apelante contava poder ser beneficiada pelos serviços que estava a prestar e sabia que CC seria detentora de património, que não seria diminuto, capaz de garantir tais despesas. Não existindo entre a apelante e CC qualquer relação de parentesco ou afinidade, como explicar esta súbita dedicação de um estranho, por alguém que se encontra numa situação de absoluta dependência física de terceiros para garantir a satisfação das mais elementares necessidades de existência.

       O teor do primeiro testamento revela já uma vontade diminuída. Tal ato foi celebrado cerca de três meses após CC se mudar para a casa da apelante (pontos 3 e 15 dos factos provados). Desse testamento decorre a intenção de CC beneficiar a apelante, em proporção superior aos seus familiares – 75% para a apelante e 25% para os restantes familiares -, entre os quais o seu irmão, aqui apelado. Estando deterioradas as relações entre CC e o irmão, como argumentou a apelante, não se compreende como pretendeu CC beneficiá-lo.

        No segundo testamento celebrado em 12 de dezembro de 2012 a apelante surge como única beneficiária, pois o legado com encargo (sepultura), não tem expressão, sem que resulte demonstrado que entre o período que mediou entre os dois testamento, os cuidados e assistência prestados a CC se tenham revelado mais dispendiosos ou uma qualquer outra circunstância, que revelasse a intenção de CC beneficiar a apelante.

        Por fim, a cessão do quinhão hereditário é celebrada quando ocorre um agravamento do estado de saúde de CC, mas sem que resulte demonstrado despesas com internamento hospitalar ou tratamento médicos, suportados pela apelante (ponto 25 dos factos provados).

        Este quadro permite concluir que a apelante usando da situação de inferioridade de CC modelou a sua vontade no sentido de CC a beneficiar.”


      Para concluir pela verificação do segundo requisito da usura, socorre-se a Relação de simples presunções judiciais. Entende-se que é lícito à Relação desenvolver a matéria de facto fixada em 1ª Instância, mediante presunções judiciais alicerçadas nas regras da experiência, não cabendo a este Supremo Tribunal sindicar o conteúdo e substância de tais juízos probatórios, mas apenas verificar o respeito pelos pressupostos subjacentes, designadamente de logicidade da ilação de factos essenciais a partir de factos instrumentais dados como provados (cfr., por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 06/12/2006 (proc. nº 06B3894), de 29/04/2010 (proc. nº 792/022YRPRT.S1) e de 07/07/2010 (proc. nº 2273/03.8TBFLG.G1.S1, consultáveis em www.dgsi.pt).

      No caso dos autos, não se verifica o desrespeito de tais pressupostos pelo que o acórdão recorrido não merece censura. Conclui-se, assim, pela verificação do segundo pressuposto da usura.


17. Por fim, quanto ao requisito objectivo – Promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro – o acórdão recorrido concluiu que, não tendo sido feita prova do valor do património da falecida CC, não se podiam propriamente qualificar os benefícios como excessivos, mas que os mesmos são antes injustificados.

No caso dos autos, não foi feita prova do valor do património da testadora, mas sabe-se que, no 1º testamento (de 14/03/2011), lhe foi deixado 75% desse património e, no 2º testamento (de 18/07/2012), lhe foi deixada a totalidade desse património, com excepção apenas do legado do jazigo de família a seu irmão, A. nos autos, e a FF.

Como se apreciou supra, na transposição do requisito objectivo para o domínio do negócio jurídico testamentário depara-se com o obstáculo de, por natureza, as vantagens concedidas pelo testamento não precisarem de ter correspondência, total ou parcial, nos merecimentos dos beneficiários. Assim, o elemento objectivo da usura, que, repita-se, não se pode dispensar, não poderá verificar-se se o testamento ou testamentos forem valorados de forma isolada. Apenas se poderá afirmar em circunstâncias muito excepcionais – como parecem ser as dos autos – em que esses negócios jurídicos se insiram num contexto mais alargado no qual a factualidade provada imponha uma diferente valoração.

Deste modo, antes de tomar posição, haverá que considerar a cessão gratuita de meação e quinhão hereditário, bem como o demais circunstancialismo do caso.

É certo que, no processo de apuramento do requisito objectivo da usura quanto à cessão gratuita, não foi feita prova do valor do património cedido. Além disso, existe uma cláusula modal com o seguinte conteúdo:


 “Que impõe à donatária o encargo de lhe prestar, a ela doadora, a devia assistência tendente ao seu bem-estar e saúde, fornecendo-lhe todos os alimentos e medicamentos de que carecer, bem como de lhe prestar todos os cuidados domésticos de que necessite”.


       Perante o conteúdo do encargo, podem levantar-se, efectivamente, dúvidas acerca da verificação do requisito objectivo da usura, conforme alegado pela Recorrente. No seu entendimento, o encargo – ainda que não fosse contrapartida da prestação da cedente – implicaria para a cessionária um conjunto de tarefas e custos, que faria com que os benefícios obtidos não pudessem ser tidos como injustificados, tal como decidido pela Relação.

       Porém, há que ter presente que a cessão ocorreu num contexto particular, que o acórdão recorrido assinala:


     “Contudo, cumpre ter presente os seguintes factos:

        A escritura pública de cessão de quinhão hereditário foi celebrada em 18 de julho de 2012.

         CC faleceu em 09 de fevereiro de 2013.

          Em julho de 2012, por informação da Ré à médica, foi transmitido que CC estava agitada não tendo ido a uma consulta de oncologia.

           Em 25/07/2012 fez uma TAC que apresentou lesões de caráter sequelar de provável etiologia vascular.

          Em 27/08/2012 a mesma CC afirma que não quer fazer tratamento com ácido zoledrónico por sua opção, tudo conforme fls. 67 e 68.

         Em 08/10/2012 CC faltou a uma consulta agendada tendo a Ré informado que a mesma não se estava a sentir bem não tendo voltado ao serviço de oncologia (pontos 1, 25 e 26 dos factos provados).

         A apelada sabia e tinha conhecimento que o estado de saúde de CC se tinha agravado, que sofria de doença incurável e por isso, sabia que CC não tinha grande esperança de vida, quando além do mais rejeitou o tratamento.

        Ainda que se considere não estar demonstrado um benefício excessivo, resulta provado um benefício não justificado. A contrapartida não justificava o benefício, quando além do mais, a apelante estava já constituída como única beneficiária no testamento celebrado em dezembro de 2011, por CC e CC sabia disso. Para garantir as despesas de CC, a apelante dispunha de procuração com plenos poderes para movimentar as contas bancárias, atento o amplo teor da procuração outorgada em 02 de maio de 2011, por CC a seu favor.”


       Ainda que, repita-se, não se possa qualificar o encargo como contrapartida da cessão gratuita, certo é que, sendo dado como provado que a esperança de vida da CC, à data da celebração da cessão, era já reduzida – e que a Recorrente não o podia ignorar –, o peso efectivo do encargo de dela cuidar não era afinal tão significativo.

O acórdão recorrido salienta, a este propósito, que a Recorrente dispunha, desde Maio de 2011, de procuração que lhe permitia movimentar as contas da CC.

Afigura-se que a procuração tem ainda mais relevância do que a que lhe foi atribuída pelas instâncias. Nela se concederam à R. Recorrente poderes amplíssimos nos seguintes termos:


“Intervir, em nome da mandante, junto de todos e quaisquer bancos, nomeadamente a Caixa KK, Banco LL, Caja MM, Banco NN, Banco OO, S.A., Caixa PP (de qualquer localidade) sem exclusão de outras entidades bancárias e para-bancárias, para, solicitar abertura de contas bancárias, solicitar o encerramento de contas bancárias, efectuar, ao balcão ou através de outro meio, levantamentos e depósitos em numerário, cheques, ou de outro meio qualquer, solicitar a emissão de cheques, pedir livros de cheques, passar e assinar cheques, solicitar a emissão de cartões de débito, negociar aplicações bancárias, a prazo ou em titulas ou aplicações de qualquer outra espécie, negociar as condições dessas mesmas aplicações, realizar todas e quaisquer negociações com todos os bancos, incluindo os acima referidos, que entender conveniente, para tal estando autorizada a obrigar a mandante junto desses mesmos bancos e solicitar e ter acesso a todo a informação que entender relevante, em suma, como se da própria mandate se tratasse.

(…)

Representar a mandante no processo de inventário n. 10601/10.3T8VNG do 59 Juizo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, conferindo-lhe os poderes especiais de, em seu nome, prestar declarações de cabeça-de-casal, processo em que a mandante exerce as funções de cabeça-de-casal, tendo já nos referidos autos prestado o compromisso de bom desempenho da sua função, mais ratificando todo o anterior processado, designadamente as declarações já prestadas, conferindo poderes para em seu nome, relacionar bens, reclamar da relação de bens, licitar bens, acordar na partilha e desistir, receber ou pagar, passando recibos e dando quitações, depositar e levantar capitais em bancos;

(…)

Confere-lhe ainda poderes para negociar, vender ou comprar bens imóveis e móveis, pelo preço que entender por justo, a quem quiser, nomeadamente consigo mesmo, representando a mandate nas escrituras que possam vir a ser realizadas, como se a mandante presente o fosse, assinado as respectivas liquidações de impostos, escrituras essas a realizar na data que para o efeito for designada, e ainda dar quitação, e representá-la em quaisquer repartições publicas, como Repartições de finanças, Câmaras Municipais e Conservatórias do Registo Predial.

Confere-lhe ainda poderes para receber citações e representá-la em Tribunal, passar procurações forenses e a constituir mandatários em todos e quais processos judiciais e extra-judiciais que seja parte a mandante, com os mais amplos poderes forenses em direito permitidos e ainda os especiais para desistir, transigir e confessar.

Mais lhe confere poderes para, em seu nome, revogar procurações que a mandante tenha outorgado, tenham as mesmas sido outorgadas a Advogados ou a outras pessoas, nomeadamente, mas, entre outros, nos processos judiciais que a mandante intervenha, para tal, bastando comunicar ao mandatário essa revogação da procuração.

(…).”


        

Na presente acção não se invoca a invalidade da procuração, mas o seu conteúdo a inserção na cronologia dos negócios jurídicos impugnados afiguram-se absolutamente decisivos. É esta a sucessão cronológica dos factos:


- Em finais de 2010 – a R. leva CC para a sua residência;

- Em 14/03/2011 – CC outorga o 1º testamento, deixando 75% do seu património à R.;

- Em 02/05/2011 – CC outorga a procuração a favor da R.;

- Em 12/12/2011 – CC outorga o 2º testamento, deixando praticamente a totalidade do seu património à R.;

- Em 18/07/2012 – CC cede gratuitamente à R. a meação e quinhão hereditário do património do marido;

- Em 09/02/2013 – Falecimento da CC.


Quanto ao conteúdo da procuração, saliente-se que, para além dos amplíssimos poderes para actuar junto de entidades bancárias – “Intervir, em nome da mandante, junto de todos e quaisquer bancos, nomeadamente (…) sem exclusão de outras entidades bancárias e para-bancárias, para, solicitar abertura de contas bancárias, solicitar o encerramento de contas bancárias, efectuar, ao balcão ou através de outro meio, levantamentos e depósitos em numerário, cheques, ou de outro meio qualquer, solicitar a emissão de cheques, pedir livros de cheques, passar e assinar cheques, solicitar a emissão de cartões de débito, negociar aplicações bancárias, a prazo ou em titulas ou aplicações de qualquer outra espécie, negociar as condições dessas mesmas aplicações, realizar todas e quaisquer negociações com todos os bancos, incluindo os acima referidos, que entender conveniente, para tal estando autorizada a obrigar a mandante junto desses mesmos bancos e solicitar e ter acesso a todo a informação que entender relevante, em suma, como se da própria mandate se tratasse.” –, foram atribuídos à R. Recorrente “poderes para negociar, vender ou comprar bens imóveis e móveis, pelo preço que entender por justo, a quem quiser, nomeadamente consigo mesmo”.

       Deparamo-nos assim, ao longo de cerca de ano e meio, com uma “escalada” no processo de controlo jurídico do património da CC por parte da R., tanto por actos inter vivos (procuração, cessão gratuita) como por actos mortis causa (testamentos). Pelo primeiro testamento a R. é instituída herdeira de ¾ daquele património. Dois meses depois são-lhe atribuídos poderes que lhe permitem movimentar livremente as contas bancárias da CC e, sobretudo, que lhe permitem alienar – a terceiro ou a si mesma – os bens móveis e imóveis a quem entender e nas condições que entender. Sete meses depois é outorgado novo testamento, instituindo a R. herdeira praticamente da totalidade do património. Pouco mais de meio ano volvido, quando as condições de saúde da CC se deterioravam acentuadamente, esta cede gratuitamente à R. a meação e quinhão hereditário da herança do marido. Por esta altura, todo o património da CC passou a estar sob o controlo jurídico da R. logo em vida, através da procuração e da cessão. E aquilo de que a R. não se quisesses apropriar em vida seria seu à morte da CC.

      Verifica-se uma situação limite, que, precisamente por o ser, nos permite concluir pela verificação do pressuposto objectivo da usura – obtenção de benefícios injustificados por parte da R. - considerados os actos jurídicos no seu conjunto e não em separado. Não é que cada um dos testamentos e a cessão gratuita possa ser considerado, em si mesmo e autonomamente, um negócio usurário. Mas o conjunto dos três negócios – integrado no circunstancialismo provado que inclui os poderes concedidos pela procuração – permite concluir pela verificação do pressuposto objectivo da usura. No sentido da invalidade de um conjunto de negócios jurídicos que isoladamente seriam válidos, se pronunciou este Supremo Tribunal, por exemplo, no acórdão de 07/10/2008 (proc. nº 07B1994, in www.dgsi.pt).


Em síntese, tendo sido dado como provado que a falecida CC se encontrava em situação de acentuada inferioridade, por necessidade e dependência, tanto física como psíquica, em relação a terceiros, dependência que, por actuação da própria Recorrente, se transformou em dependência desta última; tendo sido dado como provado que a Recorrente explorou essa situação de inferioridade para conformar a vontade da CC; tendo sido dado como provado que tal se traduziu num processo para que a CC atribuísse à Recorrente, em vida ou por morte, a titularidade ou o controlo jurídico sobre a totalidade do seu património; e, por fim, não podendo sequer equacionar-se a hipótese de modificação dos negócios nos termos do art. 283º, nº 2, do CC por não ter sido requerido em tempo pela R. Recorrente, confirma-se a anulação dos testamentos e da cessão gratuita por usura.


18. Por fim, invoca a Recorrente que o acórdão recorrido viola o princípio constitucional da segurança jurídica, na sua vertente do princípio da confiança, e o princípio constitucional da igualdade pelas seguintes razões: “Assim, o acórdão ora recorrido viola a C.R.P., nomeadamente o Principio da Proteção Jurídica (que engloba o Princípio da Confiança) ao invocar que o art. 282° n. 1 do Cód. Civil se aplica aos testamentos (apesar de negócios jurídicos unilaterais), uma vez que vai contra a vontade expressa da testadora e limita o direito da falecida CC em dispor da forma como entender dos seus bens e a favor de quem assim o entender”; “Interpretando-se da forma como se interpretou tal norma, afasta-se uma pessoa para beneficiar outra pessoa, logo, viola-se o disposto no art. 13° n. 1 e 2° da C.R.P., dado que, não se pode violar a confiança da pessoa que outorgou aqueles actos e depois, viola-se a igualdade de uma pessoa, em detrimento de uma outra que, irá ocupar, exatamente a mesma posição da recorrente, pessoa essa que é o recorrido”.

A tutela da confiança na manutenção dos negócios jurídicos diz respeito a negócios jurídicos válidos. Existindo, como se provou, fundamento para anulação, o ordenamento jurídico-constitucional não protege esses negócios. No caso dos autos, em que o fundamento da anulação exige a prova de uma conduta censurável de quem pretende prevalecer-se da validade dos negócios, é ainda mais evidente que tal tutela se encontra excluída.

Está também fora de questão a possibilidade de o acórdão recorrido ter violado o princípio da igualdade por, alegadamente, atribuir o património da CC ao seu irmão, A. nesta acção, em vez de o atribuir à Recorrente, porque ambos se encontrariam em igualdade de circunstâncias. A fonte da expectativa sucessória do A. é a própria lei que, nos termos do art. 2133º, nº 1, alínea c), do CC, integra os irmãos e seus descendentes na terceira classe de herdeiros legítimos. Não é o acórdão recorrido que atribui ao A. direito ao património da falecida CC. O acórdão limita-se a anular os negócios jurídicos gratuitos de que a Recorrente foi beneficiária. A sucessão legítima a favor do A. operar-se-á, se se verificarem todas as condições, por força da lei sucessória.


19. Pelo exposto, considera-se improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas pela Recorrente.


Lisboa, 23 de Junho de 2016


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Bettencourt de Faria

João Bernardo